A visão em deslocamento: uma história de palavras, figuras e paisagens do São Francisco (1930/1970) | Elson Assis Rabelo (R)

O livro de Elson de Assis Rabelo, Visões em deslocamento, é um estudo sobre a produção de imagens, narrativas e espaços do rio São Francisco em contextos autoritários do Brasil do século XX. Produto de uma tese de doutoramento na Universidade Federal de Pernambuco, o livro analisa um conjunto de vestígios, reportagens, fotografias, periódicos, livros, revistas científicas, relatos de viagens, documentos oficiais, dialogando com teorias pós-estruturalistas, abordagens que investigam a história do campo científico da geografia, historicizam a tipificação das populações, a produção dos espaços, a construção de temporalidades arcaicas para esses tipos construídos e problematiza os interesses e conflitos envolvidos nessa realidade produzida. O objetivo dessa resenha é apresentar a obra e pensar, à partir de temas introduzidos pelo autor, sobre novas possibilidades de reflexão em torno do lugar-comum do rio da integração.

O livro se divide em duas partes, com dois capítulos cada, a primeira trata das paisagens e a segunda dos agentes sociais do espaço. No primeiro capítulo sobre a emergência de um novo espaço na geopolítica da integração, Rabelo reconstituiu a invenção do espaço regional são-franciscano desde a topografia dos engenheiros topógrafos nos anos 1930 até os geógrafos de influência estadunidense do final dos anos 1940, passando por importantes autores sobre o assunto como Geraldo Rocha, Jorge Zarur, Agenor Miranda, Orlando Carvalho, entre outros. O segundo capítulo investiga, partindo da análise de uma longa reportagem da revista Realidade, já nos anos 1960, as imagens de progresso e decadência da navegação, bem como a disputa de memórias da mesma, no contexto de desenvolvimento autoritário nacional. No terceiro capítulo, o autor investiga os processos de tipificação das populações do vale pela geografia e pela sociologia das comunidades, passando pela análise de fotografias. Essa área de imagem e história, na qual o autor se especializa desde então, domina o quarto e último capítulo, onde há uma análise de fotografias que contribuem para deslocar esses tipos e humanizá-los, desclassificá-los de uma taxonomia fixadora de caracteres folclorizantes.

Rabelo consegue muito bem analisar a produção espacial do Vale do São Francisco pelos saberes técnicos e pela imprensa. Sua análise das fotografias é perspicaz. Não é preocupação do autor, entretanto, lidar com a heterogeneidade dos discursos. Nesse sentido, o livro é muito útil para novos pesquisadores, pois estabelece um panorama de grandes linhas gerais da escrita sobre o São Francisco. Novas pesquisas permitirão preencher as lacunas deixadas pelo autor, tanto cronológicas, como o interregno entre o Estado Novo e a ditadura militar-empresarial iniciada em 1964, quanto bibliográficas, já que outros escritores se detiveram sobre a questão são-franciscana nesse período, não analisados pelo autor. Na ficção, especialmente, surgiram narrativas que, quando não contestavam diretamente as espacializações e tipificações descritas por Rabelo, desestabilizavam seus pressupostos. Os poucos trabalhos acadêmicos nessa linha são caracterizados ainda por um saudosismo romântico, que costuma reificar narrativas, tipificações e construir novas espacializações e memórias, sem problematizar a sua produção ou a artificialidade das mesmas. Rabelo consegue problematizar as tipificações e espacializações sem construir novas em seu lugar. Ele não disputa a definição do São Francisco e do sertanejo, não o romantiza ou o idealiza. Em algumas passagens, chega-se a duvidar que ele seja mesmo o objeto do trabalho do autor. A análise se concentra no discurso de tal modo que não há dúvida de que o autor trata dos vestígios, do arquivo e não da realidade dada a ver por eles.

A única lacuna que poderia ser destacada na análise é uma questão cara à história intelectual. Quanto Rabelo trata da espacialização do São Francisco pelos engenheiros e topógrafos dos anos 1930 e 1940, temos a impressão de que não há apropriação, reconfiguração e subversão interpretativa dos mesmos em relação às teses de João Ribeiro, Euclides da Cunha e Vicente Licínio Cardoso, mas uma continuidade e aplicação regional. A ideia de rio da unidade nacional e caminho da civilização, de João Ribeiro em seu livro História do Brasil no final do século XIX, retomada por Euclides da Cunha em Os Sertões no início do século XX, foi aprofundada e reformulada por Vicente Licínio Cardoso em conferências dos anos 1920, publicadas nos anos 1930 em edição póstuma, que serviram de referência básica para todos os escritores que lidaram com a questão são-franciscana até pelo menos os anos 1950, quando há um salto qualitativo em termos especializados e institucionalizados da produção do saber sobre o rio – muito bem documentado por Rabelo ao tratar do desenvolvimento de pesquisas de geografia regional científica e profissional sobre o Vale. Ocorre que aquilo que é apenas mencionado por João Ribeiro e citado em Cunha é aprofundado em Cardoso, transformado à luz de uma visão sobre o país e o papel da terra como sujeito, bastantes distintas daqueles dois autores. Por sua vez, Geraldo Rocha, Agenor Miranda e outros que se baseiam em Cardoso o fazem com uma reconfiguração ou mesmo o usam como recurso de autoridade para desenvolverem explicações outras, distintas das do engenheiro carioca. Rabelo destaca bastante a homogeneidade dos discursos sobre o rio São Francisco, sem se concentrar na heterogeneidade e nos conflitos e descontinuidades.

A força do livro está na análise da tipificação das populações e da espacialização das paisagens, mas também aponta a produção das temporalidades nesses texto. Trata-se da parte menos desenvolvida no campo de estudos sobre o assunto. Rabelo faz apenas alguns comentários breves sobre o tempo lento das populações rurais do Vale, característica das narrativas tanto dos topográfos, quanto da sociologia de comunidade de Pierson. Chega a tratar mesmo da falta dela, a tese de Licínio Cardoso do rio São Francisco ser um “rio sem história” escrita. Suas considerações limitam-se a apontar as narrativas como anacrônicas, naturalizadoras da história ou deterministas geográficas, sem entrar nos meandros das narrativas construídas e da intertextualidade dos autores com matrizes ou com outros textos dos próprios investigados. Além disso, há pouca ou nenhuma diversidade das temporalidades construídas pelos escritores investigados, dos aspectos híbridos entre técnica e memória na construção de narrativas e dos textos como produções identitárias. Alguns dos documentos analisados por Rabelo são verdadeiros discursos fundadores de regionalismos onde a abordagem técnica e produtora de espaços e tipos se mistura a relatos biográficos, narrativas épicas, memórias familiares e exaltação de personagens. A abordagem dada por alguns trabalhos acadêmicos que, como foi dito acima, reificam noções romantizadoras do rio e se não são capazes de artificializar essa produção discursiva, ao contrário, reforçam uma tradição que contribuem para produzir, é a continuação dessa produção de mitos. Rabelo trata bem dessa produção mítica em espaço e tipos, mas pouco trata do enredo. Isso se deve, possivelmente, pela sua busca por padrões discursivos, que podem ser construídos com espacializações e personagens comuns, mas é mais difícil de ser encontrada em um conjunto muito mais amplo de narrativas. É possível, aliás, que o único caminho viável seja uma taxonomia das temporalidades produzidas pelos mitos engendrados pelos escritores do São Francisco, especialmente em virtude de suas motivações ideológicas e dos projetos sociais aos quais se vinculam.

Sem dúvida, A visão em deslocamento é uma importante contribuição para um campo de estudos interdisciplinar muito vasto que tem o rio São Francisco como tema, cenário ou objeto. Ao contrário de outros trabalhos que buscam validar, quando na verdade instituem, uma tradição narrativa são-franciscana, o livro de Rabelo permite perceber a produção discursiva sobre esse tema, historiciza essa escrita e bagunça a tradição. Ironicamente, é possível que o livro venha a compô-la, ao refazê-la, abrindo novas possibilidades de estudos e desenvolvendo, verticalmente, discussões tratadas de forma panorâmica com fôlego. Bons estudos correlatos tem sido publicados, mas geralmente monográficos e bastante especializados. A vantagem do livro de Rabelo é que realiza uma síntese do campo, uma espécie de balanço da produção escrita, ainda que seja o livro tenha recorte de vestígios e cronologia muito bem definidos.

Numa época em que se matam rios que foram reificados discursivamente como espaços de progresso latente, uma obra que conta uma história desse “rio sem história” é muito bem-vinda.

Flávio Dantas Martins – Mestre em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana. Atualmente é doutorando em História pela Universidade Federal de Goiás. Professor do Centro das Humanidades da Universidade Federal do Oeste da Bahia. E-mail: [email protected]  ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5275-5761


RABELO, Elson Assis. A visão em deslocamento: uma história de palavras, figuras e paisagens do São Francisco (1930/1970). Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2016. Resenha de: MARTINS, Flávio Dantas. A invenção do Rio São Francisco: configurações do espaço e dos tipos em contextos autoritários. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.37, n.2, p.462-465, jul./dez. 2019. Acessar publicação original [DR]

Contested territory: mapping Peru in the sixteenth and seventeenth centuries – SCOTT (AN)

SCOTT, Heidi V. Contested territory: mapping Peru in the sixteenth and seventeenth centuries. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2009. 256p. Resenha de: LA JOUSSELANDIÈRE, Victor Santos Vigneron de. Anos 90, Porto Alegre, v. 20, n. 37, p. 339-346, jul. 2013.

Mesmo que recebida com bons olhos pela maior parte dos pesquisadores, a perspectiva interdisciplinar ainda tem um longo caminho até se tornar uma prática recorrente. Por si só, essa consta tação justifica o interesse de Contested territory: mapping Peru in the sixteenth and seventeenth centuries. Nesse livro, Heidi Scott amplia os horizontes da pesquisa peruanista ao trabalhar no limiar entre História e Geografia, tomando por objeto a própria paisagem descrita pelos cronistas. Contudo, deter-se na valia dessa perspectiva em nada ajudaria a ultra passar as generalidades muitas vezes evocadas quando se fala em interdisciplinaridade.

Ora, essa opção engendra na obra em questão uma série de consequências analíticas, não apenas no que toca ao tema específico da colonização, mas ainda no que diz respeito à própria relação entre teoria e História. É certo que o livro de Scott encontra uma imagem mais orgânica, indistinta mesmo, entre tais temas; dividi-los, contudo, permite compreender o alcance de sua aventura por limites acadê micos tão pouco frequentados. Os impasses daí resultantes não deixam de ser uma das riquezas desse gesto.

No primeiro capítulo, Landscape and the Spanish Conquest of Peru, a autora anuncia os delineamentos básicos que darão forma às análises realizadas ao longo do trabalho. Em última instância, são essas considerações que dão coesão a uma obra estruturada por capítulos autônomos em seus temas e recortes. O principal elemento comum emerge em torno do conceito de “paisagem” (SCOTT, 2009, p. 1-15).

Segundo a autora, não se trata de reconstituir os traços dos “espaços reais” atravessados e narrados pelos cronistas, mas de atentar ao processo mesmo de “produção da familiaridade”, que os torna cognoscíveis e passíveis de descrição. A sugestão já foi desenvolvida por autores clássicos, como Edmundo O’Gorman e John Elliott (O’GORMANN, 1992; ELLIOTT, 1984, p. 9-40). Contudo, o que particulariza a análise de Scott é a ênfase dada à agência indígena nesse processo de cons trução simbólica da paisagem. A autora não deixa, aliás, de iniciar seu livro com uma crítica a Elliott, que teria dado um tom excessivamente europeu à produção da familiaridade descritiva (SCOTT, 2009, p. 1-5). A crítica a Elliott pode ser tomada como chave de leitura para o restante da obra, pois o que está em questão não é apenas uma discordância no que toca à participação indígena no processo de construção da paisagem, mas sim o próprio conceito de “colonização”. O tom hispanista adotado por aquele historiador seria apenas a manifestação de um diagnóstico mais fundamental a respeito da própria presença europeia na América. Scott argumenta que o termo se presta a uma definição demasiado uniforme da realidade americana sob a presença europeia. No que diz respeito à discussão com Elliott, procura demonstrar que sua leitura hispanista da produção da paisagem tornaria homogêneas as relações de força que não o são, não apenas no contexto peruano, mas nos variados contextos coloniais americanos na primeira Idade Moderna. O exercício historiográfico empreendido nos cinco capítulos seguintes aten de, em última ins tância, a essa preocupação no que diz respeito aos conceitos e às explicações unificadoras consagradas.

A partir do capítulo dois, Scott parte para a empiria com o fito de atestar o desvalor do conceito de “colonização”. Para tanto, a autora volta sua atenção para os momentos mais decisivos do processo de instituição do domínio castelhano no Peru. O segundo capítulo, Beyond textuality. Landscape, embodiment, and native agency, inicia esse percurso ao tratar da conquista. Perceba-se que o argumento ganha tanto mais força quanto se trata de uma primeira geração de cronistas, cuja relação com os índios peruanos, a princípio, seria superficial quando comparada com a interação existente décadas mais tarde. Esse é, por exemplo, o fundamento da periodização proposta por Franklin Pease para as crônicas andinas (PEASE, 1995, p. 15-63). Ora, acompanhar a narrativa da conquista elaborada por Nicolás de Ribera ou ainda a clássica descrição dos acontecimentos dada por Pedro Cieza de León é um recurso estratégico da autora. Se analisado em perspectiva com documentos produzidos por outras fontes, como as petições feitas ao rei pelos curacas de Jauja, esse discurso da conquista emerge como fruto de uma “experiência paisagística” mediada pelos índios (SCOTT, 2009, p. 26-36). Por um lado, a existência de uma descrição menos “literal” da paisagem por parte dos espanhóis seria fruto da rede de proteção que se interporia entre esses e a “paisagem real”. Por outro lado, esta contaria com elementos compatíveis com o acervo cognitivo europeu tendo em vista as intervenções promovidas no espaço pelos Incas, fato que teria possibilitado a localização da conquista numa “paisagem familiar” (SCOTT, 2009, p. 36-42).

Se de fato essa discussão tem por objetivo deslocar o hispanismo um tanto esquemático de Elliott, trata-se ainda de uma crítica voltada contra outra importante explicação unificadora para o período colonial peruano. Também a “história dos vencidos” é evocada por Scott por conta de seu, digamos, “excesso conceitual”. Para tanto, elege-se como interlocutor Nathan Wachtel, importante referência desse modelo explicativo que adquiriu força em meados do século XX. Se por um lado concorda em investir ao índio um papel central nas suas análises, Scott discorda do caráter “traumático” atribuído por Wachtel à conquista (WACHTEL, 1977, p. 55-64). Ao procurar relativizar a ruptura provocada por esse acontecimento, a autora tende a contrapor o caráter “negociado” da presença espanhola à “desestruturação” por este sustentada. Contrária à concepção negativista embutida no epíteto “vencidos”, Scott propõe compreender o caráter positivo da agência indígena na constituição de uma nova “experiência paisagística” no Novo Mundo.

O último item desse segundo capítulo anuncia uma das tônicas dos capítulos subsequentes. Ao mencionar as transformações ocorridas após o período da conquista, com a emergência de uma “paisagem colonial”, a autora retorna para a discussão acerca da colonização com respeito a outro de seus momentos definidores, inaugurado com a “pacificação” dos vecinos por La Gasca, em 1548 (SCOTT, 2009, p. 42-48). A partir, portanto, do terceiro capítulo, Landscapes of resistance? Peru’s ‘Relaciones geográficas’, o conceito é agora questionado justamente onde ele parecia mais apropriado. Mais especificamente, trata-se de inventariar os limites postos ao projeto de produção de cidades espanholas, isto é, de intervenção colonial na paisagem americana. Note-se que essa proposta analítica se pretende válida para uma década tão significativa quanto a de 1570, em que as incertezas quanto ao futuro da região teriam sido suplantadas pelas reformas centralizadoras do vice-rei Francisco de Toledo, funcionário talhado à imagem e semelhança de Felipe II (LOHMANN VILLENA, 1967). E o campo escolhido para tanto dificilmente poderia ser mais significativo que as Relaciones geográficas.

É nesse conjunto de informes solicitados aos funcionários reais em toda a América que Scott pretende descobrir as marcas da agência local. À primeira vista, seria corroborada aquela visão “tradicional”, notando-se a marca da política de Toledo na redução dos índios dispersos, levando à sua desvinculação da paisagem, ao mesmo tempo em que tinha lugar a “extirpação” de uma toponímia e uma geografia idolátricas. Contudo, esse mesmo tema permite à autora questionar o enquadramento binário, reputado a autores como Wachtel, que divi de as posições possíveis na sociedade colonial a dominantes e vencidos.

À diferença dessa perspectiva, Scott observa a intimidade dessas posições, havendo antes uma interpenetração de elementos culturais na constituição de algo novo. Isso seria corroborado pela Relación enviada pelo corregedor de Jauja, que permitiria observar os vaivéns dos huancas perante as instituições castelhanas, privilegiadamente emblematizadas na figura do ladino Felipe de Guacra Paucar (SCOTT, 2009, p. 60-69). Mas o que o caso particular dos huancas de Jauja sugere são as restrições generalizadas à política de reduções. Aliás, isso não se deveu apenas à obstinada mobilidade indígena, mas também à resistência oposta a esse plano por parte de muitas autoridades espanholas (SCOTT, 2009, p. 69-74). Seu interesse pessoal, imediato e concreto, muitas vezes obstaria qualquer “projeto colonial”, distante e abstrato.

O capítulo seguinte, The mobile landscapes of Huarochirí, deparase com outro contexto fundamental à afirmação da colonização peruana, tendo um papel significativo na política de “extirpação de idolatrias”, ali iniciada por Francisco de Ávila em 1610. Contudo, aquilo que poderia representar a consolidação do projeto evangelizador é lido sob outra perspectiva por Scott. Assim como a política civil de redução não teria deitado raízes, também sua equivalente eclesiástica, a paróquia, não teria impedido a mobilidade indígena (SCOTT, 2009, p. 75-107). Da mesma forma os corregedores estariam entre os principais obstáculos à política colonial, a evangelização seria atravessada pelos mais variados interesses: curas de paróquia, jesuítas, índios e funcionários reais conformariam um panorama impossível de ser reduzido a um núcleo conceitual. É particularmente interessante para a argumentação da autora a contraposição entre a exemplar Relación geográfica produzida pelo corregedor local e as formulações contidas no Manuscrito de Huarochirí (SCOTT, 2009, p. 90-98). Se aquela pode dar a ideia de uma execução zelosa das orientações filipinas, este revelaria a superficialidade da disrupção (do “trauma”) operada pelos espanhóis em seu combate à geografia idolátrica. A própria ação extirpadora é colocada em tela por Scott, que sublinha as contradições nesse processo, tendo em vista os interesses múltiplos representados pelos curas, pelos extirpadores e pelos índios. Essa situação teria dado ensejo mesmo a um estranhamento crescente perante a paisagem, narrada pelos religiosos de modo a tematizar a resistência do terreno ao conhecimento de suas propriedades idolátricas. Nada mais distante, enfim, da progressiva penetração das instituições coloniais, inclusive sob seu braço eclesiástico, no interior peruano.

Os dois últimos capítulos, Negotiating Amazonia e Contested fron tiers and the Amazon/Andes divide, possuem o interesse adicional de versarem sobre regiões pouco analisadas pela historiografia, a fronteira amazônica do vice-reino. O percurso analítico adotado no livro é conhecido: Scott parte da crítica à explicação historiográfica consagrada que associa o tema amazônico às representações edênicas. A esse respeito, o capítulo quinto retoma a significativa trajetória de Juan Recio de León para aferir até que ponto a paisagem da Amazônia boliviana teria sido objeto de uma intricada negociação. Ao analisar essa personagem, percebe-se que o próprio tema edênico é antes um “recurso discursivo” à disposição dos cronistas para defender seus interesses pessoais. Com essa constatação é possível compreender a construção da paisagem local enquanto “espaço de oportunismo”, expressão empregada por Scott em um de seus subtítulos (SCOTT, 2009, p. 111). Nesses quadros, a trajetória turbulenta de Recio de León apresenta as várias estratégias discursivas que esse ator adota, uma a uma, a depender do momento em que se encontra, jogando com as conveniências: a vantagem da conquista, seu papel missionário, a riqueza prometida pela região, os riscos representados por estrangeiros que frequentam o lugar, a possibilidade do transporte de prata pelo Amazonas, de ampliação da mão de obra indígena em Potosi.

Não deixa de ser irônico, ou melhor, significativo, que Madri seja o lugar por excelência onde essa variedade de argumentos poderia ter lugar. O volume de informações que ali chegavam e a impossibilidade de confirmação direta caracterizariam o espaço de onde, supostamente, irradiariam as diretrizes colonizadoras (SCOTT, 2009, p. 124-131). Ao mesmo tempo, trata-se de combater a visão dualista que opõe o espaço andino àquele amazônico, fato que não é indiferente a uma apropriação da própria visão incaica (SCOTT, 2009, p. 133-136). Tal intento é realizado principalmente no capítulo sexto, em que são apresentados os diversos projetos que sublinharam a possibilidade de investir na região. Possibilidade essa, destaque-se, aventada contra as expectativas da administração castelhana.

A essa altura cabe indagar-se sobre a articulação entre o encaminhamento metodológico proposto pela autora e seus resultados historiográficos. É possível perceber que toda a narrativa empreendida por Scott parte de uma posição nominalista com relação às explicações ou conceitos unificadores. Um a um, “colonização”, dualidade entre “vencedores” e “vencidos”, ruptura da conquista ou impermeabilidade da fronteira são questionados por sua incapacidade de dar conta do “real”. Lembre-se a esse respeito, que a autora não deixa de mencionar a “paisagem real” ao lado do “discurso” sobre a paisagem (SCOTT, 2009, p. 1-15). Em certa medida, portanto, o conceito encontrar-se-ia em “excesso” diante da empiria. Pelo contrário, a profusão de interesses pessoais marcaria um cenário que apenas poderia ser definido como “complexo”. Deve estar claro a essa altura que o gesto negativo empregado por Scott com relação à historiografia possui sua contraparte: a complexidade é complementada pela ênfase na ação individual (a “agência” indígena, a busca de interesses pessoais, os “espaços de oportunismo”). Fato que não é estranho ao próprio conceito de “paisagem” empregado pela autora, que recusa o distanciamento entre visão e escrita e enfatiza uma abordagem multissensorial e totaliza a experiência do meio pelo sujeito.

A “negociação” a que o discurso sobre a paisagem está submetido incorpora, por conseguinte, a própria dimensão corpórea.

Sem negar a riqueza de possibilidades assim aberta, há de se questionar a validade intersubjetiva de uma perspectiva que contrapõe as múltiplas experiências sensíveis ao trabalho do conceito.

Este não deveria encontrar sua determinação na empiria, na experiência corpórea? Longe de ser uma questão estritamente teórica, trata-se de uma dúvida que remete a alguns impasses da obra de Scott. Isso porque ao colocar lado a lado “discurso sobre a paisagem” e “paisagem real” (assim como a intervenção indígena correspondente a esses dois campos) a autora afirma a vigência do conceitual, do simbólico. Nesses termos, o conceito de “complexidade” joga um papel estratégico, sem o qual seria impossível à própria autora construir seu discurso historiográfico. Essas questões ajudam a compreender alguns dos limites da crítica feita, por exemplo, ao conceito de “trauma”, em seu uso dado por Wachtel. Se é inquestionável que este autor não aferiu de maneira correta as fundamentais continuidades demonstradas por Scott, esta tampouco considerou o fato de “trauma” supor uma relação (necessariamente prenhe de mediações) entre estrutura e acontecimento. Desse ponto de vista, é possível sustentar, ainda que numa conformação distinta daquela pretendida por Wachtel, uma experiência traumática da conquista. Da necessidade assim constatada de conjugar experiência subjetiva e operação historiográfica intersubjetiva nota-se, por fim, que, ao centrarse excessivamente no polo individual, a autora de Contested territory deu-se com uma definição oportunista do poder, que não é compreendido como relação, e sim como predicado. Nessa redução conceitual reside muito da impugnação avançada contra o conceito de “colonização”.

Referências

ELLIOTT, John H. O Velho Mundo e o Novo: 1492-1650. Lisboa: Querco, 1984.

LOHMANN VILLENA, Guillermo. Étude préliminaire. In: MATIENZO, Juan de. Gobierno del Perú (1567). Lima/Paris: IFEA, 1967. p. I-LXIX.

O’GORMAN, Edmundo. A invenção da América: refl exão a respeito da estrutura histórica do Novo Mundo e do sentido do seu devir. São Paulo: Unesp, 1992.

PEASE G. Y., Franklin. Las crónicas y los Andes. Lima: PUCP/FCE, 1995.

SCOTT, Heidi V. Contested territory: mapping Peru in the sixteenth and seventeenth centuries. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2009.

WACHTEL, Nathan. La vision des vaincus: les indiens du Pérou devant la conquête espagnole, 1530-1570. Paris: Gallimard, 1977.

Victor Santos Vigneron de La JousselandièrePossui graduação em História pela Universidade de São Paulo (2008) e mestrado em História Social pela Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é professor de história da Prefeitura Municipal de São Paulo. Tem experiência na área de História, com ênfase em História Moderna e Contemporânea. E-mail: [email protected].

Escravidão, mestiçagens, ambientes, paisagens e espaços – PAIVA et al (S-RH)

PAIVA, Eduardo França; IVO, Isnara Pereira; AMANTINO, Márcia (Orgs.). Escravidão, mestiçagens, ambientes, paisagens e espaços. Belo Horizonte: PPGH-UFMG; São Paulo: Annablume, 2011, 284 p. Resenha de: SILVA, Kalina Vanderlei. Um manifesto sobre os usos dos conceitos na História. sÆculum REVISTA DE HISTÓRIA, João Pessoa, [27] jul./dez. 2012.

Dentro do atual cenário acadêmico brasileiro, e de suas rigorosas exigências em torno da produção científica – exigências muitas vezes mais quantitativas que qualitativas –, os grupos de pesquisa vêm agindo como verdadeiros palcos para o desenvolvimento do debate científico e da pesquisa sistemática, chamando a atenção tanto das instituições de investigação quanto das agências de fomento. No entanto, especificamente no campo historiográfico, nem todos conseguem de fato realizar um trabalho efetivo de diálogo entre diferentes instituições e ao mesmo tempo apresentar os resultados para o público mais amplo de pesquisadores.

Nesse sentido, o Grupo de Estudos Escravidão e Mestiçagens tem se destacado positivamente por conseguir ultrapassar as exigências básicas postas a seus congêneres ao reunir regularmente pesquisadores de várias regiões brasileiras. Seus integrantes compartilham um interesse temático que gira em torno da diversidade de situações coloniais – sempre observadas em suas especificidades, mas jamais desligadas das múltiplas conexões externas às Américas – e de uma preocupação teórico-metodológica com os conceitos empregados na construção do saber historiográfico.

Apesar de sediado no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais, o grupo – cujos primórdios datam de uma primeira reunião realizada no âmbito do XXIII Simpósio Nacional de História2 – não apenas congrega historiadores para discutir conceitos teóricos e metodologias de investigação, mas também vem produzindo obras de qualidade, como o recente Escravidão, mestiçagens, ambientes, paisagens e espaços.

Privilegiando uma metodologia comparativa, embasada sempre em detalhada pesquisa documental cujos objetos são colocados em espaços coloniais específicos e bem definidos, os autores discutem as possibilidades conceituais no estudo da escravidão e das mestiçagens coloniais, inquietando-se acerca de quais conceitos e categorias podem ser empregados – e de que forma podem ser empregados – a fim de maximizar a compreensão o mais aproximada possível das realidades coloniais, de seus múltiplos personagens e de suas tão distintas identidades.

Terceiro livro da série, ‘… Paisagens e Espaços’ traz questionamentos que aprofundam e espelham outros já visíveis nas duas obras anteriores: no primeiro livro, ‘Escravidão, mestiçagem e histórias comparadas’, a reflexão principal girava em torno da utilização da metodologia comparativa em estudos sobre os dois grandes conceitos do grupo3; no segundo livro, por sua vez, ‘Escravidão, mestiçagens, populações e identidades coloniais’, a preocupação basilar eram as identidades4.

Por outro lado, tanto a metodologia comparativa quanto os estudos identitários podem ser percebidos também em ‘Escravidão, Mestiçagens, Ambientes, Paisagens e Espaços’, o que dá aos três livros uma coerência interna e os apresenta como obras conectadas, realmente integrantes de uma série.

Assim é que, dando continuidade a essas discussões, os organizadores defendem na apresentação de sua terceira obra, além do cuidado com os conceitos relacionados ao mundo colonial – seu tema mais recorrente –, também a necessidade de focar outros espaços que não os urbanos, já que esses são em geral pensados de forma privilegiada pela historiografia como cenários para os jogos políticos coloniais. E para levar essa proposição a cabo, Eduardo França Paiva, Isnara Pereira Ivo e Márcia Amantino – historiadores em atividade respectivamente em Minas Gerais, na Bahia e no Rio de Janeiro – dividem sua obra em duas partes: a primeira, mais extensa, abrangendo o período colonial e a segunda se debruçando sobre o século XIX. Nesta última, o recorte espaço-temporal privilegiado se distancia do cenário favorito do grupo, a sociedade colonial americana. Apesar disso, os artigos mantêm a conexão temática e teórica ao enfocar aspectos das relações socioculturais estabelecidas por escravos, forros e livres do Império brasileiro a partir de premissas discutidas para os espaços coloniais.

Os capítulos de ‘…Paisagens e Espaços’ seguem uma perceptível divisão temática: o olhar sobre as paisagens urbanas perpassa principalmente os artigos de José Newton Menezes, de Carla Mary de Oliveira, de Maciel Carneiro Silva e de Luiz Gustavo Cota, enquanto o mundo para além das ruas escravistas é estudado por Isnara Pereira Ivo, que se debruça sobre o sertão, e Márcia Amantino, que focaliza as fazendas jesuítas. Por sua vez, a preocupação com os atores sociais dentro desses espaços preenche as páginas de Maria Lemke, Marcelo Rocha e Renato Rangel, que se preocupam com aspectos particulares das vidas de personagens mestiços, usando diferentes conceitos para abordá-los: pardos, mulatos, mamelucos. Já Eliane Garcindo e Eduardo Paiva, por seu turno, propõem reflexões conceituais mais amplas sobre as identidades mestiças, enquanto João Azevedo Fernandes traça uma revisão historiográfica, ou como ele denomina uma ‘arqueologia cultural’, dos mamelucos em autores clássicos tais como Freyre e Darcy Ribeiro.

De forma geral, percebe-se uma coerência teórica na abordagem das mestiçagens pelos múltiplos autores que seguem, basicamente, a definição de mestiçagem estabelecida por França Paiva na apresentação da obra: nela, Paiva expressa a fé de ofício do grupo, propondo a compreensão das mestiçagens enquanto mesclas bioculturais processadas nas dimensões complexas e dinâmicas dos espaços coloniais ibero-americanos5. Por outro lado, as espacialidades – um dos focos temáticos principais do livro – são abordadas com diferentes ênfases ao longo do texto.

O tratamento conceitual mais aprofundado dedicado a estas está no texto de José Newton Coelho Menezes. Em seu artigo ‘Escalas espaço-temporais e História Cultural: reflexão de um historiador sobre o espaço como categoria de análise’, ele se debruça sobre o uso historiográfico de conceitos de espacialidade, estabelecendo definições que pensam o lugar enquanto produto da ação humana, e a paisagem enquanto espaço percebido pelos sentidos. Tomando as Minas setecentistas como recorte, Menezes defende uma abordagem que busque compreender a relação entre identidades e espacialidades sempre considerando as características históricas da construção do lugar estudado. Esse seria o caso do estudo dos limites entre o urbano e o rural que o autor utiliza como exemplo: partindo de uma análise que considera as características urbanas comuns dentro do Império português, ele descreve uma complexa malha de lugares na capitania das minas, buscando pensar dentro dela o lugar dos escravos. Em cima dessa base empírica, ele passa a enfocar a historicidade dos conceitos de espaço, ou seja, como esses conceitos são não apenas construídos mas também mutáveis ao longo do tempo: conceitos tais como lugar – o lugar de determinados personagens na paisagem. Propõe assim que os lugares dos escravos na sociedade colonial, por exemplo, sejam buscados através dos sentidos que possuíam então.

Essa preocupação com a construção e a mutação dos significados dos termos, expressões e conceitos coloniais – uma inquietação que aponta para a preocupação mais profunda com a reconstrução exata das formas de pensar e socializar-se no mundo colonial – perpassa todos os textos do livro. Chamada de “polissemia dos termos colonial”, ela aponta para a busca pelas identidades como objetivo principal da maioria dos autores de ‘… Paisagens e Espaços’. Caso de Marcelo Rocha que em seu artigo ‘Vidas mescladas: mulatos livres e hierarquias na Nova Espanha (1590- 1740)’ reflete, baseado em ampla documentação hispânica, sobre as identidades mulatas no México colonial. Identidades não apenas mutáveis, mas também muito dependentes da relação que os grupos sociais que as construíram mantinham com o sistema de castas vigente no Império espanhol. Para Rocha, inclusive, essas identidades dependiam da capacidade dos atores de “instrumentalizar condições de assimilação aos distintos contextos a partir das relações grupais ou interpessoais”6. O que significa, de fato, que as identidades mestiças nada tinham de estáveis nem de fixas, mudando conforme os personagens se adaptavam a novos cenários, geográficos ou sociais.

Importante ressaltar que ‘… Paisagens e Espaços’ se apresenta como um verdadeiro panorama da diversidade dos espaços coloniais no mundo iberoamericano: seus autores, se em sua maior parte continuam a privilegiar os espaços urbanos, por outro lado privilegiam diferentes espaços urbanos: das vilas mineiras setecentistas às capitanias do norte do Estado do Brasil. E fora dos espaços urbanos a heterogeneidade também prevalece: dos sertões baianos às fazendas jesuítas, do mundo andino à Nova Espanha.

Ainda em torno dos espaços urbanos coloniais, Carla Mary S. Oliveira se apropria de uma abordagem cara ao grupo Escravidão e Mestiçagem ao analisar a produção artística barroca de Minas Gerais e das Capitanias do Norte do Estado do Brasil de forma comparada. Com um olhar treinado pela História da Arte, a autora enfoca trajetórias de vida de artesãos mestiços em um texto cujo repertório documental está fundado sobre os forros de igrejas e os óleos sobre madeiras que constituem o patrimônio visual dos templos das irmandades/ ordens religiosas em Minas Gerais, Recife, Salvador e João Pessoa. Esmiuçando os elementos pictóricos dessas fontes, ela busca compreender as representações artísticas que os artesãos, eles mesmo mestiços, construíam sobre as mestiçagens no mundo colonial.

Sem desconsiderar as rígidas imposições de regras artísticas que a Igreja tridentina trazia para o mundo colonial, a autora reflete sobre as “estratégias de apropriação e ressignificação que se cristalizaram na arte religiosa colonial dos séculos XVII e XVIII no Brasil, estratégias essas que historiadores como Gruzinski chamam de hibiridização”7. E se em seu texto a influência de Serge Gruzinski é mais direta, essa influência paira, por outro lado, em muito da produção dos pesquisadores do grupo Escravidão e Mestiçagem.

Se no capítulo de Oliveira as identidades são buscadas dentro de cenários urbanos coloniais, no trabalho de Isnara Ivo essas identidades são perseguidas nos sertões. Os personagens de Ivo são os chamados ‘homens de caminho’, comerciantes de diferentes etnicidades que percorriam, constantemente, os interiores coloniais da América portuguesa. Trabalhando sobre registros fiscais, a autora procura desenhar um retrato desses personagens, ousando analisar as descrições físicas trazidas pelos documentos. Assim, as descrições setecentistas de barbas, cabelo e cor dos olhos, tornam-se, em sua abordagem, elementos para reflexão não apenas sobre o imaginário e as identidades coloniais, mas também sobre as próprias conceituações generalistas usadas pela historiografia em torno do difícil personagem do mestiço. Tudo isso, todavia, sem fugir do recorte teórico dedicado às espacialidades.

No entanto, se as espacialidades compõem a temática central da obra, em associação com os conceitos de escravidão e de mestiçagem, isso não significa que todos os autores prefiram focá-las de forma central em seu trabalho. Assim é que alguns capítulos, como o de Maria Lemke sobre Goiás e o de Rangel Cerceau sobre Minas Gerais, cuidam menos de especificar as espacialidades, apesar de perceptivelmente focarem urbes coloniais, e mais de analisar identidades e formas de sociabilidades. Por um lado, Lemke se utiliza de uma metodologia cada vez mais atual na historiografia para melhor compreender os contextos e estruturas sociais: o estudo de trajetórias de vida; uma metodologia devedora de Ginzburg, apesar de não creditada a ele no texto. A partir dessa abordagem ela segue alguns ortodoxa’ de alguns governadores régios, ampliaram seus espaços de ação em Vila Boa, Capitania de Goiás. Assim é que através da descrição da correspondência administrativa, a autora descortina um cenário de conflitos políticos que envolviam ‘homens bons’ e representantes régios, mas também pardos ascendidos a posições oficiais.

Já o tema de Cerceau são as famílias. De fato, são “as mesclas envolvendo as uniões familiares constituídas por indivíduos desiguais social e culturamente”8. Assim como Lemke, ele também realiza estudos de caso sobre trajetórias de personagens específicos: no seu caso, as mulheres forras. Com relação à metodologia, sua abordagem dá uma atenção especial às conceituações setecentistas que poderiam influenciar as representações identitárias desses personagens. Assim é que ele analisa as definições de dicionaristas, pintores e cronistas para tentar se aproximar das imagens vigentes, nos setecentos, sobre os crioulos9.

Todas essas considerações conceituais em torno das mestiçagens e espacialidades, associadas ao contexto escravista americano ficam, de fato, bem exemplificadas no texto de Eliane Garcindo de Sá. Em seu artigo, intitulado ‘Identidade, espacialidade e territorialidade: reflexões sobre a presença africana no universo colonial’, Sá se debruça sobre crônicas andinas para questionar as espacialidades em sua relação com as representações construídas sobre as identidades coloniais. Seguindo uma das mais fortes premissas do grupo – a de buscar as interpretações próprias aos muito diversificados grupos mestiços sem concessões às leituras eurocêntricas e teleológicas impostas pela historiografia –, a autora lê as crônicas indígenas andinas em busca de suas versões próprias acerca da presença dos estrangeiros – fossem espanhóis fossem africanos – nos espaços incaicos. E nessa trilha ela identifica em algumas dessas crônicas um “libelo contra a mestiçagem”10. Além disso, a autora percebe a noção de território como um fator fundamental nas definições identitárias estabelecidas dentro dos domínios da Monarquia Católica, contexto no qual seus personagens se inseriam: para ela, os autores indígenas, eles próprios mestiços como Poma de Ayala, definiam africanos, espanhóis e descendentes de ambos como estrangeiros a partir de uma consideração geográfica, associando sempre as identidades desses personagens a seus territórios de origem. O que tornava esses autores – mestiços que nem sempre se autoidentificavam como tal, lembremos – opositores do próprio processo de mestiçagem. Esta mestiçagem, por sua vez, sempre entendida em suas páginas como a permanência de atores sociais estrangeiros, de fora daquelas espacialidades específicas.

Entre os textos que pensam as espacialidades não urbanas está, por sua vez, o capítulo de Márcia Amantino sobre as fazendas jesuíticas. Compondo um detalhado estudo de caso focado em uma fazenda específica – a fazenda de São Cristóvão no Rio de Janeiro setecentista – a autora apresenta dados de extrema relevância para a história da escravidão, bem característicos de uma tradicional História Social: dados populacionais, principalmente. Uma abordagem compartilhada também por Carlos Engelman, que discorre sobre as identidades crioulas no Vale do Paraíba também a partir de densos dados seriais.

Mas Engelman, por sua vez, vem se somar já à segunda parte de ‘…Paisagens e Espaços.’ E se esta é consideravelmente mais curta e menos coesa que a primeira, apesar disso ela traz interessantes contribuições para a discussão temática geral da obra: além de Engelman também Maciel Silva, que compara as ruas de Salvador e Recife a partir do personagem das domésticas, dialoga ativamente com as principais questões do grupo, desde a metodologia comparativa até os problemas identitários. Entre os dois estão os textos de Luiz Gustavo Cota – mais culturalista, centrado em festividades abolicionistas estudadas a partir de uma abordagem que mistura discursos, memória e a própria espacialidade urbana para compreender a difusão e as leituras da ideia de liberdade – e de João Azevedo Fernandes com sua crítica historiográfica que pinça a imagem do mameluco desde Varnhagen até Darcy Ribeiro.

Assim, em seu conjunto todos os textos de Escravidão, Mestiçagens, Ambientes, Paisagens e Espaços se inserem na discussão inicialmente proposta em sua apresentação, apesar de que as diretrizes teóricas esboçadas a princípio não chegam a engessar os resultados de seus diferentes autores. Tal mescla de coerência conceitual e flexibilidade metodológica torna a obra extremamente enriquecedora tanto para os estudiosos das temáticas canônicas do grupo quanto para a historiografia sociocultural que se debruça sobre o mundo colonial americano. Mas, além disso, esse terceiro volume do grupo Escravidão e Mestiçagens funciona também como exemplo do que uma obra historiográfica coletiva deveria ser: pela miríade de diferentes fragmentos desse mundo colonial que apresenta; pela coerência teórica que embasa tantos autores de diferentes contextos; pela seriedade e pertinência do trabalho com as fontes históricas.

Notas

2 Cf. Anais do XXIII Simpósio Nacional de História – História: Guerra e Paz. Londrina: ANPUH; Editorial Mídia, 2005.

3 Cf. PAIVA, Eduardo França & IVO, Isnara Pereira (orgs.). Escravidão, mestiçagem e histórias comparadas. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPGH-UFMG; Vitória da Conquista: Ed.UESB, 2008.

4 Cf. PAIVA, Eduardo França; IVO, Isnara Pereira & MARTINS, Ilton Cesar (orgs.). Escravidão, mestiçagens, populações e identidades coloniais. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPGHUFMG; Vitória da Conquista: Ed. UESB, 2010.

5 PAIVA Eduardo França; Ivo, Isnara Pereira & AMANTINO, Márcia. “Apresentação” In: PAIVA, Eduardo França; IVO, Isnara Pereira & AMANTINO, Márcia (orgs.). Escravidão, mestiçagens, ambientes, paisagens e espaços. São Paulo: Annablume, 2011, p. 07-09.

6 ROCHA, Marcelo. “Vidas mescladas: mulatos livres e hierarquias na Nova Espanha (1590-1740)”. In: PAIVA, IVO & AMANTINO, Escravidão, mestiçagens, ambientes…, p. 94.

OLIVEIRA, Carla Mary S. “Arte colonial e mestiçagens no Brasil setecentista: irmandades, artífices, anonimato e modelos europeus nas Capitanias de Minas e do Norte do Estado do Brasil”. In: PAIVA, IVO & AMANTINO, Escravidão, mestiçagens, ambientes…, p. 97.

8 CERCEAU NETO, Rangel. “Famílias mestiças e as representações identitárias: entre as maneiras de viver e as formas de pensar em Minas Gerais, no século XVIII”. In: PAIVA, IVO & AMANTINO, Escravidão, mestiçagens, ambientes…, p. 165.

9 CERCEAU NETO, “Famílias mestiças…”, p. 165.

10 SÁ, Eliane Garcindo de. “Identidade, espacialidade e territorialidade: reflexões sobre a presença africana no universo colonial”. In: PAIVA, IVO & AMANTINO, Escravidão, mestiçagens, ambientes…, p. 39.

Kalina Vanderlei Silva – Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Docente da Faculdade de Formação de Professores de Nazaré da Mata, Universidade de Pernambuco. E-mail: <kalinavan@ uol.com.br>.

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