Para uma ética da amizade em Friedrich Nietzsche – OLIVEIRA (RFA)

OLIVEIRA, J. Para uma ética da amizade em Friedrich Nietzsche. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011. Resenha de: LACERDA, Tiago Eurico de. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.24, n.35, p.663-669, jul./dez, 2012.

Um livro escrito para amigos. É assim que Jelson Oliveira, logo na introdução de sua obra, inicia uma reflexão sobre a amizade a partir de um ponto de vista filosófico. Inspirado por Nietzsche, o tipo de filosofia praticada por ele não é aquela que se mantém distante da vida, mas sim se enraíza nas vivências. E como na vida nada é tão retilíneo a ponto de manter uma estabilidade pura, da mesma forma o conceito de amizade apresentado pelo autor não se apoia nas concordâncias ou conforto de acordos, mas, no adverso, pois o autor afirma que “ao escolher um amigo, também auferimos um adversário”. E nessa transição paradoxal é que encontramos a beleza de toda a relação amical.

A amizade pode ser percebida em vários sistemas éticos na história da filosofia, pois muitos filósofos se dedicaram a refleti-la conceitualmente, desde os gregos aos contemporâneos, em diferentes nuances. Nietzsche não deixou de lado esse movimento conceitual provocado pelos vários tempos históricos e sociedades, mas integrou a amizade ao seu projeto de crítica à décadence da cultura e da moral ocidental, que busca, segundo o filósofo alemão, a incorporação de valores e costumes impostos a partir dos idealismos religiosos e metafísicos. Por isso, ao contrário do que é estável e pacífico, seu projeto de uma ética da amizade, conforme Jelson Oliveira nos mostra, visa a potencializar as resistências de forças para chegar ao resultado de um crescimento da própria força, levando o indivíduo a cultivar a si mesmo, se conhecer e se perceber na adversidade.

Assim como nos discursos filosóficos, o termo amizade geralmente esteve ligado à perda, ou temáticas sobre a morte, o mesmo podemos perceber na filosofia de Nietzsche. É nas obras do chamado segundo período de seus escritos que percebemos a ruptura com Richard Wagner e Carl Von Gersdorff e é nesse momento que ele também se desliga de Schopenhauer, seu maior “amigo” intelectual. Podemos dizer que é pela experiência pessoal de perda e rompimento que entenderemos o interesse de Nietzsche pela amizade fazendo que esse tema permaneça marcante em sua reflexão.

Segundo Jelson Oliveira, a amizade parte da tarefa humana de fazer de si mesmo o experimento, pois é só a partir dessa experimentação consigo mesmo que alguém pode tornar senhor de si e artista de si mesmo. E, para alcançar esse patamar de senhor de si, é preciso passar, por um lado, pela experiência da solidão e, por outro, pela experiência das relações conflitantes a partir da necessidade de compartilhamento da fartura e do contentamento conquistado nessa afirmação de si. A ideia da amizade difundida desde os gregos é que amigos são poucos, estando esse sentimento associado à raridade; estabeleceu-se a ideia de que a amizade verdadeira é sinal de coragem de se deixar questionar, de vivenciar as relações conflitivas para que haja um fortalecimento que estabeleça relações mais saudáveis com as pessoas. Assim, o conceito de amizade ligado à ideia de que o outro nos complementa e sempre está de acordo com nossos pensamentos precisa ser revisto a partir da figuração do amigo pensada por Nietzsche. Nessa encontramos o espírito livre, o andarilho e o inimigo. A essas figurações Nietzsche associa virtudes para que, pela via de sua prática, a amizade se torne um sentimento supremo: coragem, simplicidade e resistência.

Ao associar tais virtudes às figurações acima, Nietzsche pretende refletir e resgatar a grandeza e a coragem promovidas por um modelo ético que favorece a expansão das forças vitais. Isso porque as relações amicais possibilitam afirmação de si mesmo e crescimento dessas forças, o que não ocorre nas demais relações nas quais se predica a fraqueza, a pena, o medo, a recusa do combate. Tudo isso só é possível pela experimentação, que é uma condição do espírito livre: este carrega em si a tarefa de reinterpretação da moral, uma vez que legisla a partir do que favorece a vida e usa de suas próprias vivências para alcançar o conhecimento. E para que isso aconteça se faz necessário o retirar-se da forma de vida gregária, para poder fazer uma experiência de solidão que contrasta com a vida moderna, marcada pela moral da compaixão que reprime a possibilidade de cultivo de si mesmo e de uma amizade associada às noções nietzschianas.

Essa experiência da solidão torna a amizade possível: pelo distanciamento podemos ver o amigo de forma mais bela e mais nítida. Jelson Oliveira nos mostra como essa solidão não remete a um distanciamento por estar aborrecido ou temer as demais pessoas, mas é um momento sublime pelo qual podemos nos purificar para aprender a lidar com os outros se mantendo fiel a si mesmo. Nietzsche expressa que “precisamos ser honestos conosco e nos conhecer muito bem, a fim de poder praticar com os outros essa dissimulação filantrópica que chamamos de amor e bondade” (Aurora, 335). Pois muitos se empenham demasiadamente no conhecimento do outro e se perdem a si.

Quanto a isso, Jelson Oliveira ressalta que a solidão é o processo pelo qual se bebe da água mais pura, a água do próprio poço. Essa imagem do próprio poço contrasta com a da multidão dita por Nietzsche em Aurora, 491: “por isso vou para a solidão – a fim de não beber das cisternas de todos”. A solidão é o lugar onde se potencializa as forças para se encontrar consigo mesmo e viver de forma livre, podendo por essa experiência descobrir em si mesmo a alegria da vida e transbordá-la nas relações amicais. Nessas relações, os amigos se ajudam, pois partilham as mesmas vivências: ajudando o outro se ajuda a si mesmo, possibilitando a afirmação de si a partir de virtudes que ajudam a fortalecer a vida e estas são contrárias à moral da compaixão, pois se baseiam na partilha da alegria. Tais virtudes são: coragem, resistência, simplicidade e alegria.

Essas virtudes são, em Nietzsche, resultado da realização do jogo de forças, nas quais a figura do amigo busca forças para resistir à moral da compaixão e construir uma moral do futuro: este último é o papel do espírito livre, o qual não busca nenhum ideal de permanência, mas sua vida está pautada num nomandismo e não teme o confronto, pois é nos inimigos que encontra um jogo de forças que o leva a resistir e se fortalecer. Assim retomamos, então, a figuração do amigo supracitada com suas respectivas virtudes associadas para compreender a amizade como um tema teórico e também vivencial: ao espírito livre está associada a virtude da coragem; ao andarilho, a simplicidade; e ao inimigo, a resistência.

A coragem está na prática da liberdade do espírito. Somos corajosos quando não tememos experimentar novas relações, quando caminhamos com pessoas que não nos são próximas, mas com as quais, pela amizade, podemos compartilhar este experimento, utilizando a vida como fonte do conhecimento, não temendo e tendo como missão a reinterpretação da moral valorizando a vida humana e aquilo que lhe é própria. Oliveira afirma que o espírito livre não acredita mais na verdade de forma dogmática, porque não precisa dela e, por isso, se faz um experimentador. Este aprende a buscar de forma corajosa o seu próprio caminho até a verdade e a partir daí torna-se também um legislador. Essa coragem nasce da afirmação da própria força diante da vida. A virtude dos corajosos é a de quem conhece o medo e assim o vence, pois conhece o lado trágico da vida e, não o temendo, pode vencê-lo como a águia que se vê pairando acima de todas as coisas.

A simplicidade se associa ao andarilho, uma figura que não se apega a todas as coisas, mas ao que é importante, ao que significa algo para o crescimento, deixando de lado o que não ajuda chegar ao conhecimento de si. O apego a demasiadas coisas turva nossa visão daquilo que é realmente importante para a vida. Esse andarilho é um espírito livre que vive com “grande desprendimento”, se elevando sobre todas as ideias e opiniões fixas sobre o mundo e sobre si mesmo. Nessa concepção de simplicidade, encontramos o nomandismo, pelo qual cada indivíduo tem em si a concepção de mudança, o que se associa ao devir, como apresentado em Heráclito. Segundo o autor, o viajante nômade é o espírito livre e o indivíduo do experimento que se conhece como marcado e transformado, criado e alterado pelos lugares e experiências das viagens. Vivendo dessa forma, ele acredita que o mundo é a sua casa e esse é o “conforto” encontrado por aqueles que não esperam nada mais da vida do que simplesmente viver.

Por fim, na figura do inimigo, encontramos a resistência, aquilo que nos dá forças, o que nos coloca diante da parede e nos faz duvidar das nossas próprias certezas. E nesse sentido o autor destaca que a amizade é um campo de cultivo privilegiado, pois só nela se pode guerrear verdadeiramente com inimigos dignos e merecedores de atenção. Isso porque, nessa relação, o indivíduo pode lograr afirmação de si e aumento das forças, enquanto nas outras relações reina fraqueza, pena, medo e a recusa do combate, o que leva ao enfraquecimento. O importante é que, nessa guerra, ninguém abandone sua singularidade, mas que se deixe confrontar para perceber suas certezas e a possibilidade de mudá-las.

Essa possibilidade de mudança não tem nada a ver com o desprezo de si. Ao inverso, Nietzsche é contra esse processo, por isso convida a fazer de si mesmo o experimento. Abrir-se ao adverso, mas como isso é possível? “Livre-se do desgosto com seu ser, perdoe a seu próprio Eu, pois de toda forma você tem em si uma escada com cem degraus, pelos quais pode ascender ao conhecimento” (Humano, demasiado humano, I). É preciso estar bem consigo mesmo e se fartar de alegria para que o próximo passo seja transbordá-la, compartilhá-la na amizade. E para se encontrar neste ponto é preciso se afastar, buscar a solidão e, como salienta o autor acerca de Nietzsche, ele precisou se distanciar de si para conquistar, pela autodisciplina, que inclui a solidão, aquilo que ele realmente era. Somente assim ele pôde partilhar o seu tesouro, aquilo que descobriu que é. Como já afirmamos anteriormente, essa solidão não pode ser entendida como um afastamento, distanciamento para não estar mais com as pessoas. Não é uma misantropia, mas a consequência de um amor ávido demais pelos homens, um amor reservado e seletivo que é a amizade. Tratase de uma forma de evitar um amor que torna indigestível o outro.

Assim, o amigo é aquele que primeiramente alegra-se consigo mesmo e como experimenta tamanha grandeza dessa alegria consigo e com a vida, é que deseja tornar-se um afirmador, o que diz “sim”. A amizade é seu transbordamento. Espraia essa alegria por estar transbordante dela. E esta é uma virtude da relação amical, a partilha da alegria, tema do último capítulo de Para uma ética da amizade em Friedrich Nietzsche. E como pudemos ver na referida obra, os gregos se tornaram, segundo Nietzsche, também o povo da amizade, pois buscavam vencer e se destacar – isso porque foram, primeiro, um povo da alegria. Conseguiram fazer isso, pois não negavam as coisas humanas que lhes são próprias e se colocavam acima da alegria da equiparação, que leva ao enfraquecimento. Eles celebravam o corpo (não como oposto da alma) pela via da arte, pelo cultivo de si e pela valorização do trágico da existência, que se aproxima mais da vida como ela é; essa celebração não acontecia pela via das concepções idealistas que distanciam o homem de si mesmo e da vida, dando a ela uma finalidade inalcançável criada como um artefato da fraqueza.

Podemos concluir que a obra Para uma ética da amizade em Friedrich Nietzsche apresenta de uma forma não somente didática, mas profundamente filosófica, uma reflexão acessível acerca da amizade; o fato de essa obra ser desdobramento de uma tese homônima de doutorado poderia dificultar a compreensão daqueles que não estão iniciados no assunto. Mas Jelson Oliveira trata o tema com tanta versatilidade e destreza que nos faz mergulhar em seus escritos nos impulsionando à reflexão e possibilitando uma nova cosmovisão a respeito de Nietzsche e da amizade, outrora não vistos com tanta clareza. A riqueza de citações ao longo do texto amplia nosso conhecimento à medida que nos coloca diante do próprio filósofo que questiona a ética da compaixão, adotada por certo cristianismo e busca, em contrapartida, com a ética da amizade, estabelecer novos parâmetros pelos quais o experimento desencadeará uma série de possibilidades; isso se justifica porque cada indivíduo tem sua própria vivência e é a partir de sua singularidade que ele estabelecerá suas relações, sem o medo do devir e com “novas leis” que encontra a cada passo nessa experiência de viver como andarilho.

Certamente esta obra, como o próprio autor a inicia, é um livro escrito para amigos, aqueles que já cultivamos e aqueles que ainda cultivaremos. É uma obra indicada tanto para os adeptos da filosofia de Nietzsche quanto para os que, sedentos de uma boa reflexão, desejam adentrar este mundo e aprender com o filósofo a se retirar para um lugar que possibilite o cultivo de si mesmo, a fim de não beber da cisterna de todos; eis a metáfora do lugar onde a singularidade da vida se mistura à vulgarização da multidão. Contra isso, a água própria, límpida e pura advinda da solidão e da liberdade espiritual, dá de beber a outros andarilhos-amigos.

Tiago Eurico de Lacerda – Mestrando em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba, PR – Brasil. E-mail: [email protected]

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