Vocabulário Hans Jonas – OLIVEIRA (RFA)

OLIVEIRA, J. Vocabulário Hans Jonas. Caxias do Sul: EDUCS, 2019. Resenha de: FONSECA, Lilian S. Godoy. Revista de Filosofia Aurora, v.31, n.54, p.979-985, out./dez, 2019.

O Vocabulário Hans Jonas — recentemente publicado pela EDUCS em parceria com o Centro Hans Jonas Brasil, sob a organização de Jelson Oliveira (PUCPR) e Eric Pommier (PUC-Chile), como parte dos eventos comemorativos pelos 40 anos de O Princípio Responsabilidade (1979), obra mais relevante de Jonas — é o resultado de um trabalho realizado a várias mãos, reunindo 31 autores de oito países e 24 diferentes instituições de ensino superior que, embora identificados a diversas vertentes filosóficas, têm em comum o conhecimento e o apreço pela obra jonasiana.

Desde a proposta de organizar o Vocabulário, feita durante a reunião do GT Hans Jonas, realizada no XVII encontro da ANPOF, em Aracaju, até a sua publicação, foram necessários três anos, para elaborar, reunir e traduzir todos os verbetes; o que demonstra o rigoroso processo de preparação e empenho exigidos para oferecer aos leitores essa pequena, mas expressiva, compilação composta por 33 vocábulos retirados do extenso e pluritemático arcabouço teórico de Jonas. Autor que, até pouco mais de uma década, era praticamente desconhecido no meio acadêmico brasileiro e hoje, dada a importância de sua reflexão filosófica para a atualidade, vem, felizmente, conquistando cada vez mais interessados em conhecer e se aprofundar em seu pensamento.

Jonas nasceu em 1903, na cidade alemã de Mönchenglandbach, em uma família judia, razão pela qual sua primeira formação humanística foi marcada pela rigorosa leitura dos profetas hebreus. Ele próprio resumiu sua rica trajetória intelectual, em três diferentes momentos. O primeiro teve início em 1921, ano em que iniciou sua graduação na Universidade de Freiburg, escolhida por lá lecionar o já célebre filósofo Edmund Husserl (1859-1938). Ali, assistiu também às aulas de um jovem e brilhante professor, Martin Heidegger (1889-1976), até então pouco conhecido. Jonas admite que, por muito tempo, Heidegger foi seu mentor intelectual1, tanto que, quando o mestre se transferiu para a Universidade de Marburg, ele o seguiu sem hesitar. Fato importante em seu percurso, pois foi lá que Jonas conheceu o seu segundo mentor: Rudolf Bultmann (1884-1976), quem o despertou para o tema sobre o qual versou sua tese — Gnose e o cristianismo primitivo —, defendida em 1931, sob a orientação de Heidegger. Desse trabalho inicial resultou, em 1934, a sua primeira publicação: o notável Gnosis und spätantiker Geist (Gnose e o espírito antigo tardio), em que apresenta importantes e originais contribuições ao estudo sobre a gnose e que ele considerou como seu primeiro grande passo como filósofo.

O segundo mais relevante momento de sua vida intelectual, cuja inspiração ele atribuiu à sua participação na Segunda Grande Guerra — como soldado das brigadas judias do exército britânico contra Hitler —, foi marcado pela publicação, em 1966, de sua segunda grande obra, o célebre The Phenomenon of Life, Toward a Philosophical Biology (O fenômeno da Vida, Rumo a uma Biologia Filosófica), reunindo artigos nos quais busca estabelecer os parâmetros para uma abordagem fenomenológica da vida, que ele denominou de “uma biologia filosófica”. Inaugurouse, assim, um novo campo de sua reflexão voltado para a precariedade da vida, assinalando o enorme alcance filosófico da abordagem das questões biológicas. Desse modo, Jonas restituiu à vida sua posição de destaque, afastando-se a uma só vez das duas tendências então vigentes e igualmente extremas: o irreal idealismo e o limitado materialismo. Ele ainda advertiu quanto ao perigoso equívoco de se separar o homem da natureza e de imaginá-lo isolado das demais formas de vida. No epílogo dessa obra, Jonas delineia, de forma geral, o seu projeto ao escrever que “com a continuidade entre o espírito2 e o organismo, entre o organismo e a natureza, a ética se torna parte da filosofia da natureza […]. Somente uma ética fundada na amplitude do ser […] pode ter significado na ordem das coisas”3.

Com tal conclusão, Jonas anunciou o terceiro e último momento de seu trajeto intelectual e, logo em seguida, tem início a elaboração de uma ética específica para nossa civilização tecnológica. Assim, sua ética da responsabilidade, reconhecida como sua principal formulação, foi publicada em 1979, em sua língua materna, sob o título: Das Prinzip Verantwortung — Versuch einer Ethic für die technologische Zivilisation (O princípio responsabilidade — um ensaio ético para a civilização tecnológica), traduzida para o inglês em 1984, para o francês em 1990, para o espanhol em 1994 e para o português, apenas em 2006. Algo que, talvez, explique a tardia descoberta pelo público brasileiro dessa obra que, com justiça, o notabilizou mundialmente.

Ademais, é preciso assinalar que Jonas foi um dos primeiros, senão o primeiro a se deter sobre as implicações éticas da técnica moderna e acrescentar que, mesmo antes de publicar O Princípio Responsabilidade, ele já se ocupava de questões identificadas à Bioética. Cabe destacar que, na verdade, seu primeiro artigo dedicado explicitamente a essa área data de 1969 e tem por título “Philosophical Reflections on Experimenting with Human Subjects” (“Reflexões filosóficas sobre experiências com seres humanos”)4. Isso revela que sua preocupação prática antecedeu a necessidade de elaboração teórica concretizada posteriormente, por meio de vários artigos5 que ao longo dos anos 70 prepararam a publicação, ao final dessa mesma década, do Princípio Responsabilidade, no qual expõe sua concepção ética definitiva e cuja aplicação é apresentada em seu Technik, Medizin und Ethik (Técnica, Medicina e Ética), publicado em 1985, reunindo artigos escritos entre 1969 e 1984, cuja tradução para português do Brasil foi realizada pelo GT Hans Jonas e publicada em 2013, pela Editora Paulus.

Como o próprio título sugere e Jonas explicita no prefácio, Technik, Medizin und Ethik tem por objetivo “partir daquilo que é mais próximo a nós, ali onde a técnica tem diretamente por objeto o próprio homem e onde o conhecimento de nós mesmos, a ideia de nosso bem e nosso mal tem uma responsabilidade direta, ou seja: no âmbito da biologia humana e da medicina” (1985, p.19).

Com efeito, Technik, Medizin und Ethik é, sobretudo, destinado à reflexão acerca da biotecnologia e sua relação com o ser humano, tanto no âmbito experimental quanto no da aplicação. Cabe explicitar que dos doze ensaios que o compõem, os cinco primeiros6 podem ser considerados como propedêuticos, enquanto os demais se voltam ao exame “prático”, propriamente dito, das questões que decorrem do fato de o homem ter se convertido em objeto das biotecnologias, como o sujeito de experimentação ou o alvo de sua aplicação.

Feita essa concisa apresentação de uma pequena parte da vasta e diversa produção filosófica de Jonas, cabe frisar que o Vocabulário buscou contemplar relevantes conceitos presentes nos principais momentos de seu pensamento. Dentre os quais, destacamos: o conceito de gnose, cujo verbete foi elaborado por Nathalie Frogneux, professora da Universidade Católica de Louvain (UCLouvain), localizada na região francofone da Bélgica, autora de vários artigos e de um excepcional estudo sobre a obra jonasiana, intitulado Hans Jonas ou la vie dans le monde (Hans Jonas ou a vida no mundo), publicado em 2001, pela De Boeck Université, de Bruxelas. Cabe notar que o termo gnose merece destaque devido a sua importância por, como vimos, inaugurar a produção filosófica de Jonas e pelo fato de, com sua pesquisa, ele ter apresentado contribuições significativas, ainda hoje reconhecidas pelos estudiosos da área.

Outro conceito a ressaltar é o de mortalidade, cujo verbete foi elaborado por Lawrence Vogel, professor do Connecticut College (EUA), laureado com diversos prêmios, autor de vários textos sobre Jonas, em alguns dos quais propõe um diálogo entre o pensamento jonasiano e o de autores como Heidegger, Hannah Arendt, Leo Strauss, Leon Kass e Levinas. Vogel foi editor de um volume em que foram publicados os dois últimos ensaios de Jonas, com o título de Mortality and morality: a search for the good after Aushwitz (Mortalidade e moralidade: uma busca pelo bem depois de Auschwitz), publicado pela Northwestern University Press, em 1996, e também escreveu o prefácio para a reedição do The Phenomenon of Life, publicado pela mesma Northwestern, em 2001. O termo mortalidade atravessa, sob diferentes aspectos, toda a obra de Jonas. Na verdade, foi graças a seu confronto com o tema que teve início sua reflexão sobre a vida, resultando no que denominou de biologia filosófica. A mortalidade é um tema subjacente até à sua reflexão ética, já que é a vulnerabilidade da vida o que exige a responsabilidade. Mas essa é uma questão ainda mais relevante em sua reflexão bioética, sobretudo devido à sua relação com a redefinição de morte e assuntos como a eutanásia e o prolongamento da vida.

Cabe assinalar, a seguir, o conceito de responsabilidade, cujo verbete foi elaborado por Oswaldo Giacoia Junior, professor do Departamento de Filosofia da Unicamp que, embora estudioso de pensadores como Augusto Comte, Friedrich Nietzsche e Arthur Shopenhauer, desde 1989, publicou diversos artigos sobre Jonas e foi tradutor de vários textos do autor para o português, feitos que o colocam como um dos precursores estudiosos e divulgadores da obra jonasiana no Brasil. O termo responsabilidade, com toda certeza, é o que confere destaque a Jonas e a seu pensamento. Sem a menor dúvida, foi a sua ética da responsabilidade que o tornou mundialmente conhecido, até mesmo fora do meio acadêmico, e o que constitui a sua obra como tão atual e necessária ao nosso momento.

Além dos verbetes referentes aos termos citados, o leitor encontrará outros 30, alguns dos quais remetem a temas bem recorrentes ao longo da tradição filosófica, como os de bem, consciência, corpo, Deus, para mencionar apenas alguns dos mais introdutórios. Ainda assim, a leitura oferecerá a abordagem singular que Jonas propõe para cada um dos conceitos que, embora já bem debatidos pela tradição, recebem, no texto jonasiano, uma roupagem própria e, muitas vezes, inusitada; como é o caso, por exemplo, do conceito de liberdade.

Por tudo o que foi dito, o Vocabulário Hans Jonas tem a oferecer, com grande diversidade de estilos, uma modesta, porém, significativa mostra dos temas tratados por esse pensador que viveu e pensou o século XX com intensidade e profundidade, antevendo problemas que o nosso século tem e terá, cada vez mais, de enfrentar.

Por sua atualidade e urgência das temáticas que aborda, Jonas é um autor que precisa ser conhecido para além das fronteiras da Filosofia e dos muros da Academia. Por esse motivo, o Vocabulário Hans Jonas cumpre a necessária missão de divulgar e tornar ainda mais acessível o pensamento jonasiano. É uma obra escrita por muitos especialistas, mas destinada não só a estudantes e professores de Filosofia ou universitários, mas ao público em geral que tem interesse em conhecer um pouco dos temas com os quais se ocupou esse autor, cuja vida e obra tanto marcaram o século passado, mas que tem muito ainda a oferecer a nós que, em pleno século XXI, ainda não assimilamos aquilo que ele, no final da década de 1970, já declarava:

O futuro da humanidade é o primeiro dever do comportamento coletivo humano na idade da civilização técnica, que se tornou ‘todo-poderosa’ no que tange ao seu potencial de destruição. Esse futuro da humanidade inclui, obviamente, o futuro da natureza como sua condição sine qua non . Mas, independentemente desse fato, o futuro da natureza constitui sua responsabilidade metafísica, na medida em que o homem se tornou perigoso não só para si, mas para toda a biosfera (PR. p. 229).

Referências

JONAS, H. Philosophical Essays. Chicago: University of Chicago Press, 1980. 349 p.

JONAS, H. The Phenomenon of Life: Toward a Philosophical Biology. University of Chicago Press: Phoenix Books, 1982. 303 p.

JONAS, H. Le Principe Responsabilité. Paris: Flammarion, 1990. 470 p.

JONAS, H. Técnica, medicina y ética – la práctica del principio de responsabilidad. Barcelona: Paidós, 1997. 206 p.

JONAS, H. Le Phénomène de la Vie – Vers une biologie philosophique. Traduit de l’anglais par Danielle Lories. Bruxelles: De Boeck Université, 2001. 288 p.

JONAS, H. O Princípio Responsabilidade. Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Tradução do original alemão Marijane Lisboa e Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Editora PUC Rio, 2006. 354 p.

JONAS, H. Técnica, medicina e ética: sobre a prática do princípio de responsabilidade. Trad. Grupo de Trabalho Hans Jonas da ANPOF. São Paulo: Paulus, 2013. 328 p.

Notas

1 Pois, posteriormente, devido ao envolvimento de Heidegger com o nazismo, Jonas dele se afastou até quase o fim da vida de seu antigo professor.

2 No original o termo é Geistes e na versão francesa esprit . A tradução espanhola segue a tradição anglo-saxã de traduzir tais termos por mind e adota o termo mente .

3 H. Jonas. Das Prinzip Leben. pp. 401 e 403. Versão francesa: Le phénomène de la vie. pp. 281 e 282.

4 Versão original publicada em Dædalus e versões posteriores em periódicos especializados ou coletâneas, por exemplo, Philosophical Essays — From Ancient Creed to Technological Man . Chicago: The University Chicago Press, 1974. Midway Reprint, 1980, pp. 105-131. Republicado também em TME como o ensaio de número 6.

5 Vale mencionar: “The Scientific and Technological Revolutions”, in Philosophy Today , 15, 1971, pp. 79-101”; “Testimony Before Subcommittee on Health, United States Senate: Hearings on Health, Science, and Human Rights”, Nov, 9, 1971, The National Advisory Commission on Health S cie n c e a n S o cie t y R e s olu tio n , (…) (73-191-0), 1972, pp. 119-123.; “Technology and Responsibility: Reflections on the New Tasks of Ethics”, in Social Research , 40, 1973, pp. 31-54; “Responsibility Today: The Ethics of an Endangered Future”, in Social Research , 43, 1976, pp. 77-97; “Freedom of Scientific Inquiry and the Public Interest”, in The Hastings Center Report , 6, 1976, pp. 15-17; “The Right to Die”, in The Hastings Center Report , 8, 1978, pp. 31-36; e, por fim, “Toward a Philosophy of Technology”, in The Hastings Center Report , 9, 1979, pp. 34-43. Alguns desses artigos foram escritos a convite e parte deles republicada em TME.

6 No ensaio 1, Jonas justifica (formal e materialmente) o fato de a filosofia tomar a técnica por objeto. No ensaio 2, ele expõe 5 motivos para justificar o fato de a técnica ter se convertido em objeto (também) da reflexão ética. No ensaio 3, ele faz uma espécie de “balanço axiológico”, refletindo sobre os valores passados e antecipando alguns valores futuros (apesar da crise atual de valores). No ensaio 4, ele propõe uma questão acerca da compatibilidade entre a ciência destituída de valores e a responsabilidade referente à autocensura da pesquisa. No ensaio 5, ele discute a relação entre liberdade da pesquisa e a noção de bem público, além de propor a questão: pode a moral ofuscar a ciência?

Lilian S. Godoy Fonseca – Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), Diamantina, MG, Brasil. Doutora em Filosofia. E-mail: [email protected]

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Para uma ética da amizade em Friedrich Nietzsche – OLIVEIRA (RFA)

OLIVEIRA, J. Para uma ética da amizade em Friedrich Nietzsche. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011. Resenha de: LACERDA, Tiago Eurico de. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.24, n.35, p.663-669, jul./dez, 2012.

Um livro escrito para amigos. É assim que Jelson Oliveira, logo na introdução de sua obra, inicia uma reflexão sobre a amizade a partir de um ponto de vista filosófico. Inspirado por Nietzsche, o tipo de filosofia praticada por ele não é aquela que se mantém distante da vida, mas sim se enraíza nas vivências. E como na vida nada é tão retilíneo a ponto de manter uma estabilidade pura, da mesma forma o conceito de amizade apresentado pelo autor não se apoia nas concordâncias ou conforto de acordos, mas, no adverso, pois o autor afirma que “ao escolher um amigo, também auferimos um adversário”. E nessa transição paradoxal é que encontramos a beleza de toda a relação amical.

A amizade pode ser percebida em vários sistemas éticos na história da filosofia, pois muitos filósofos se dedicaram a refleti-la conceitualmente, desde os gregos aos contemporâneos, em diferentes nuances. Nietzsche não deixou de lado esse movimento conceitual provocado pelos vários tempos históricos e sociedades, mas integrou a amizade ao seu projeto de crítica à décadence da cultura e da moral ocidental, que busca, segundo o filósofo alemão, a incorporação de valores e costumes impostos a partir dos idealismos religiosos e metafísicos. Por isso, ao contrário do que é estável e pacífico, seu projeto de uma ética da amizade, conforme Jelson Oliveira nos mostra, visa a potencializar as resistências de forças para chegar ao resultado de um crescimento da própria força, levando o indivíduo a cultivar a si mesmo, se conhecer e se perceber na adversidade.

Assim como nos discursos filosóficos, o termo amizade geralmente esteve ligado à perda, ou temáticas sobre a morte, o mesmo podemos perceber na filosofia de Nietzsche. É nas obras do chamado segundo período de seus escritos que percebemos a ruptura com Richard Wagner e Carl Von Gersdorff e é nesse momento que ele também se desliga de Schopenhauer, seu maior “amigo” intelectual. Podemos dizer que é pela experiência pessoal de perda e rompimento que entenderemos o interesse de Nietzsche pela amizade fazendo que esse tema permaneça marcante em sua reflexão.

Segundo Jelson Oliveira, a amizade parte da tarefa humana de fazer de si mesmo o experimento, pois é só a partir dessa experimentação consigo mesmo que alguém pode tornar senhor de si e artista de si mesmo. E, para alcançar esse patamar de senhor de si, é preciso passar, por um lado, pela experiência da solidão e, por outro, pela experiência das relações conflitantes a partir da necessidade de compartilhamento da fartura e do contentamento conquistado nessa afirmação de si. A ideia da amizade difundida desde os gregos é que amigos são poucos, estando esse sentimento associado à raridade; estabeleceu-se a ideia de que a amizade verdadeira é sinal de coragem de se deixar questionar, de vivenciar as relações conflitivas para que haja um fortalecimento que estabeleça relações mais saudáveis com as pessoas. Assim, o conceito de amizade ligado à ideia de que o outro nos complementa e sempre está de acordo com nossos pensamentos precisa ser revisto a partir da figuração do amigo pensada por Nietzsche. Nessa encontramos o espírito livre, o andarilho e o inimigo. A essas figurações Nietzsche associa virtudes para que, pela via de sua prática, a amizade se torne um sentimento supremo: coragem, simplicidade e resistência.

Ao associar tais virtudes às figurações acima, Nietzsche pretende refletir e resgatar a grandeza e a coragem promovidas por um modelo ético que favorece a expansão das forças vitais. Isso porque as relações amicais possibilitam afirmação de si mesmo e crescimento dessas forças, o que não ocorre nas demais relações nas quais se predica a fraqueza, a pena, o medo, a recusa do combate. Tudo isso só é possível pela experimentação, que é uma condição do espírito livre: este carrega em si a tarefa de reinterpretação da moral, uma vez que legisla a partir do que favorece a vida e usa de suas próprias vivências para alcançar o conhecimento. E para que isso aconteça se faz necessário o retirar-se da forma de vida gregária, para poder fazer uma experiência de solidão que contrasta com a vida moderna, marcada pela moral da compaixão que reprime a possibilidade de cultivo de si mesmo e de uma amizade associada às noções nietzschianas.

Essa experiência da solidão torna a amizade possível: pelo distanciamento podemos ver o amigo de forma mais bela e mais nítida. Jelson Oliveira nos mostra como essa solidão não remete a um distanciamento por estar aborrecido ou temer as demais pessoas, mas é um momento sublime pelo qual podemos nos purificar para aprender a lidar com os outros se mantendo fiel a si mesmo. Nietzsche expressa que “precisamos ser honestos conosco e nos conhecer muito bem, a fim de poder praticar com os outros essa dissimulação filantrópica que chamamos de amor e bondade” (Aurora, 335). Pois muitos se empenham demasiadamente no conhecimento do outro e se perdem a si.

Quanto a isso, Jelson Oliveira ressalta que a solidão é o processo pelo qual se bebe da água mais pura, a água do próprio poço. Essa imagem do próprio poço contrasta com a da multidão dita por Nietzsche em Aurora, 491: “por isso vou para a solidão – a fim de não beber das cisternas de todos”. A solidão é o lugar onde se potencializa as forças para se encontrar consigo mesmo e viver de forma livre, podendo por essa experiência descobrir em si mesmo a alegria da vida e transbordá-la nas relações amicais. Nessas relações, os amigos se ajudam, pois partilham as mesmas vivências: ajudando o outro se ajuda a si mesmo, possibilitando a afirmação de si a partir de virtudes que ajudam a fortalecer a vida e estas são contrárias à moral da compaixão, pois se baseiam na partilha da alegria. Tais virtudes são: coragem, resistência, simplicidade e alegria.

Essas virtudes são, em Nietzsche, resultado da realização do jogo de forças, nas quais a figura do amigo busca forças para resistir à moral da compaixão e construir uma moral do futuro: este último é o papel do espírito livre, o qual não busca nenhum ideal de permanência, mas sua vida está pautada num nomandismo e não teme o confronto, pois é nos inimigos que encontra um jogo de forças que o leva a resistir e se fortalecer. Assim retomamos, então, a figuração do amigo supracitada com suas respectivas virtudes associadas para compreender a amizade como um tema teórico e também vivencial: ao espírito livre está associada a virtude da coragem; ao andarilho, a simplicidade; e ao inimigo, a resistência.

A coragem está na prática da liberdade do espírito. Somos corajosos quando não tememos experimentar novas relações, quando caminhamos com pessoas que não nos são próximas, mas com as quais, pela amizade, podemos compartilhar este experimento, utilizando a vida como fonte do conhecimento, não temendo e tendo como missão a reinterpretação da moral valorizando a vida humana e aquilo que lhe é própria. Oliveira afirma que o espírito livre não acredita mais na verdade de forma dogmática, porque não precisa dela e, por isso, se faz um experimentador. Este aprende a buscar de forma corajosa o seu próprio caminho até a verdade e a partir daí torna-se também um legislador. Essa coragem nasce da afirmação da própria força diante da vida. A virtude dos corajosos é a de quem conhece o medo e assim o vence, pois conhece o lado trágico da vida e, não o temendo, pode vencê-lo como a águia que se vê pairando acima de todas as coisas.

A simplicidade se associa ao andarilho, uma figura que não se apega a todas as coisas, mas ao que é importante, ao que significa algo para o crescimento, deixando de lado o que não ajuda chegar ao conhecimento de si. O apego a demasiadas coisas turva nossa visão daquilo que é realmente importante para a vida. Esse andarilho é um espírito livre que vive com “grande desprendimento”, se elevando sobre todas as ideias e opiniões fixas sobre o mundo e sobre si mesmo. Nessa concepção de simplicidade, encontramos o nomandismo, pelo qual cada indivíduo tem em si a concepção de mudança, o que se associa ao devir, como apresentado em Heráclito. Segundo o autor, o viajante nômade é o espírito livre e o indivíduo do experimento que se conhece como marcado e transformado, criado e alterado pelos lugares e experiências das viagens. Vivendo dessa forma, ele acredita que o mundo é a sua casa e esse é o “conforto” encontrado por aqueles que não esperam nada mais da vida do que simplesmente viver.

Por fim, na figura do inimigo, encontramos a resistência, aquilo que nos dá forças, o que nos coloca diante da parede e nos faz duvidar das nossas próprias certezas. E nesse sentido o autor destaca que a amizade é um campo de cultivo privilegiado, pois só nela se pode guerrear verdadeiramente com inimigos dignos e merecedores de atenção. Isso porque, nessa relação, o indivíduo pode lograr afirmação de si e aumento das forças, enquanto nas outras relações reina fraqueza, pena, medo e a recusa do combate, o que leva ao enfraquecimento. O importante é que, nessa guerra, ninguém abandone sua singularidade, mas que se deixe confrontar para perceber suas certezas e a possibilidade de mudá-las.

Essa possibilidade de mudança não tem nada a ver com o desprezo de si. Ao inverso, Nietzsche é contra esse processo, por isso convida a fazer de si mesmo o experimento. Abrir-se ao adverso, mas como isso é possível? “Livre-se do desgosto com seu ser, perdoe a seu próprio Eu, pois de toda forma você tem em si uma escada com cem degraus, pelos quais pode ascender ao conhecimento” (Humano, demasiado humano, I). É preciso estar bem consigo mesmo e se fartar de alegria para que o próximo passo seja transbordá-la, compartilhá-la na amizade. E para se encontrar neste ponto é preciso se afastar, buscar a solidão e, como salienta o autor acerca de Nietzsche, ele precisou se distanciar de si para conquistar, pela autodisciplina, que inclui a solidão, aquilo que ele realmente era. Somente assim ele pôde partilhar o seu tesouro, aquilo que descobriu que é. Como já afirmamos anteriormente, essa solidão não pode ser entendida como um afastamento, distanciamento para não estar mais com as pessoas. Não é uma misantropia, mas a consequência de um amor ávido demais pelos homens, um amor reservado e seletivo que é a amizade. Tratase de uma forma de evitar um amor que torna indigestível o outro.

Assim, o amigo é aquele que primeiramente alegra-se consigo mesmo e como experimenta tamanha grandeza dessa alegria consigo e com a vida, é que deseja tornar-se um afirmador, o que diz “sim”. A amizade é seu transbordamento. Espraia essa alegria por estar transbordante dela. E esta é uma virtude da relação amical, a partilha da alegria, tema do último capítulo de Para uma ética da amizade em Friedrich Nietzsche. E como pudemos ver na referida obra, os gregos se tornaram, segundo Nietzsche, também o povo da amizade, pois buscavam vencer e se destacar – isso porque foram, primeiro, um povo da alegria. Conseguiram fazer isso, pois não negavam as coisas humanas que lhes são próprias e se colocavam acima da alegria da equiparação, que leva ao enfraquecimento. Eles celebravam o corpo (não como oposto da alma) pela via da arte, pelo cultivo de si e pela valorização do trágico da existência, que se aproxima mais da vida como ela é; essa celebração não acontecia pela via das concepções idealistas que distanciam o homem de si mesmo e da vida, dando a ela uma finalidade inalcançável criada como um artefato da fraqueza.

Podemos concluir que a obra Para uma ética da amizade em Friedrich Nietzsche apresenta de uma forma não somente didática, mas profundamente filosófica, uma reflexão acessível acerca da amizade; o fato de essa obra ser desdobramento de uma tese homônima de doutorado poderia dificultar a compreensão daqueles que não estão iniciados no assunto. Mas Jelson Oliveira trata o tema com tanta versatilidade e destreza que nos faz mergulhar em seus escritos nos impulsionando à reflexão e possibilitando uma nova cosmovisão a respeito de Nietzsche e da amizade, outrora não vistos com tanta clareza. A riqueza de citações ao longo do texto amplia nosso conhecimento à medida que nos coloca diante do próprio filósofo que questiona a ética da compaixão, adotada por certo cristianismo e busca, em contrapartida, com a ética da amizade, estabelecer novos parâmetros pelos quais o experimento desencadeará uma série de possibilidades; isso se justifica porque cada indivíduo tem sua própria vivência e é a partir de sua singularidade que ele estabelecerá suas relações, sem o medo do devir e com “novas leis” que encontra a cada passo nessa experiência de viver como andarilho.

Certamente esta obra, como o próprio autor a inicia, é um livro escrito para amigos, aqueles que já cultivamos e aqueles que ainda cultivaremos. É uma obra indicada tanto para os adeptos da filosofia de Nietzsche quanto para os que, sedentos de uma boa reflexão, desejam adentrar este mundo e aprender com o filósofo a se retirar para um lugar que possibilite o cultivo de si mesmo, a fim de não beber da cisterna de todos; eis a metáfora do lugar onde a singularidade da vida se mistura à vulgarização da multidão. Contra isso, a água própria, límpida e pura advinda da solidão e da liberdade espiritual, dá de beber a outros andarilhos-amigos.

Tiago Eurico de Lacerda – Mestrando em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba, PR – Brasil. E-mail: [email protected]

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