Saúde do trabalhador na sociedade brasileira contemporânea – MINAYO et al (TES)

MINAYO, Carlos; MACHADO, Jorge Mesquita Huert; PENA, Paulo Gilvane Lopes. (Orgs.). Saúde do trabalhador na sociedade brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2011, 540 p. Resenha de: LEÃO, Luís Henrique da Costa. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.10 n. 2, p. 347-351, jul./out.2012.

Esta obra oferece ao leitor uma revisão do campo da saúde do trabalhador no Brasil considerando suas dimensões teórico-conceituais e político-institucionais, bem como apresenta dilemas, desafios e perspectivas teóricas e práticas para a área diante das transformações econômicas e sociais da atualidade.

Nos últimos anos verifica-se um quadro de mudanças caracterizado por globalização dos mercados, reestruturação produtiva e incorporação de novas tecnologias, coexistindo com processos de trabalho tayloristas-fordistas, além da expansão do setor de serviços e do aumento de trabalho informal e exclusão social, ao lado dos problemas estruturais da formação social do Brasil.

Em face dessa conjuntura, que também modifica o perfil dos trabalhadores e a dinâmica do emprego/desemprego, o livro aborda questões essenciais para os horizontes científico e institucional da saúde do trabalhador.

Foi organizado por pesquisadores de significativa trajetória no surgimento e desenvolvimento desse campo no Brasil – Carlos Minayo Gomez, sociólogo e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Jorge Mesquita Huet Machado, médico e tecnologista da Fiocruz e Paulo Gilvane Lopes Pena, médico e professor da Universidade Federal da Bahia – e reuniu pesquisadores de diferentes instituições de ensino e pesquisa do país, favorecendo interlocuções férteis sobre o saber acumulado na área.

A origem do livro está relacionada às atividades do Grupo de Trabalho de Saúde do Trabalhador da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco), que em 2007 realizou o I Simpósio Brasileiro de Saúde do Trabalhador (I Simbrast) no Rio de Janeiro, com a participação de vários pesquisadores. O objetivo foi fazer um balanço da área avaliando suas conquistas e avanços, assim como limitações e entraves. Ao mesmo tempo, buscou identificar carências e vislumbrar tendências à luz das transformações atuais.

Diversos textos apresentados e discutidos naquele encontro compõem o conteúdo deste livro, formando uma coletânea diversificada, dinâmica e coletiva que contribui para o processo de desenvolvimento desse campo no país.

O livro é iniciado, no texto introdutório, com uma reflexão crítica acerca da construção e trajetória da saúde do trabalhador, suas características, marco teórico-conceitual e impasses atuais. Minayo-Gomez problematiza a noção de ‘campo’ da saúde do trabalhador, com base nos pressupostos de Bourdieu, afirmando que esse conjunto de conhecimentos e práticas interdisciplinares, multiprofissionais e interinstitucionais nascido no contexto da redemocratização brasileira do início da década 1980, na verdade, se insere no campo das relações saúde-trabalho. Nele, a saúde do trabalhador, como perspectiva da saúde coletiva, supera dialeticamente concepções hegemônicas da medicina do trabalho e saúde ocupacional e noções reducionistas de causa e efeito ancoradas em modelos mono ou multicausais que relacionam doença a um agente ou a fatores de risco dos ambientes de trabalho. Além disto, considera o trabalhador como sujeito ativo nos processos e se baseia na compreensão da saúde como direito vinculando- se, como campo institucional, aos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS).

Sob essas premissas identificadoras do campo e a partir da noção de habitus, também de Bourdieu, Minayo-Gomez questiona se de fato existiria um grau de coesão teórica e prática entre os diversos pesquisadores e trabalhadores da área a ponto de compartilharem o mesmo paradigma. Ele constata que é preciso avançar bastante, pois o ‘campo’ está fragmentado e “não há uma verdadeira comunidade teórico-prática, com conceitos, categorias e planos de ação acordados, trabalhando com um único paradigma” (p. 32). Ao finalizar, ele chama a atenção para a necessidade de aprofundamento teórico, institucional e fortalecimento do movimento coletivo dos trabalhadores para a construção contínua da área.

O livro foi subdividido em quatro partes, iniciando com oito capítulos que analisam o estado das práticas com foco nas políticas públicas de prevenção e vigilância, e em algumas experiências institucionais.

Os autores discutem os desafios da política de saúde do trabalhador em direção ao desenvolvimento sustentável e a necessidade de considerar a categoria trabalho como determinante nos processos saúde-doença, apresentam os pressupostos da vigilância em saúde do trabalhador no contexto do SUS, avaliam a estratégia da Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (Renast), mencionando fragilidades como o distanciamento do controle social e a baixa articulação intra e intersetorial.

São abordadas ainda a política nacional de humanização, a implantação das políticas setoriais de ergonomia, as lutas pelo controle do benzeno no Brasil e a potencialidade do conceito de território para análises e intervenções em saúde, trabalho e ambiente.

Esse conjunto de textos de caráter avaliativo e propositivo sinaliza diversos pontos críticos a serem superados para a efetiva institucionalização da saúde do trabalhador no Brasil e sugere caminhos para o fortalecimento das políticas e ações institucionais.

Os quatro capítulos da segunda parte tratam de outros fenômenos marcantes na realidade brasileira: os acidentes e os agravos à saúde relacionados ao trabalho. Questões cruciais são debatidas, tais como as dificuldades e possibilidades de dimensionamento do número de acidentes de trabalho no país, os impactos do modelo produtivo do agronegócio brasileiro à saúde e ao ambiente, e o desafio da caracterização das doenças dos trabalhadores.

Diante dos processos de saúde-produção-doença, que inclusive refletem históricos conflitos sociais brasileiros, os autores propõem a criação de meios para melhoria das condições de trabalho e vida dos trabalhadores, afirmando a necessidade de movimentos que “ponham fim à ideia de que mortes no trabalho, mesmo ‘no varejo’, sejam aceitáveis” (p. 223), e a importância de “problematizar a vida que se discute em saúde do trabalhador, porque alguns trabalhos, mesmo com todo o avanço tecnológico, permanecem matando lentamente, ou até abruptamente” (p. 290).

É pertinente destacar que uma importante contribuição dessas discussões foi a incorporação da temática ambiental, que trouxe para o debate a relação saúde, trabalho e ambiente, ampliando a principal categoria de análise da área – o processo de trabalho e sua relação com o processo saúde-doença – e demandando novas perspectivas de ação intersetorial e transversal com vistas à sustentabilidade ambiental e social.

Outras questões fundamentais para a saúde do trabalhador nas atuais conjunturas do mundo do trabalho são as relações entre subjetividade e trabalho. Crescem as demandas de sofrimentos psíquicos que desafiam a gestão, os profissionais do SUS e demais setores. Esse tema é aprofundado no terceiro bloco do livro. São seis capítulos que trazem reflexões críticas sobre o trabalho na atualidade com base em autores como Negri e Hardt, discutem criticamente sobre o ‘mental’ no trabalhar na perspectiva da ergologia, debatem as principais abordagens do campo da saúde mental e trabalho, como a psicodinâmica do trabalho, e expõem a diversidade de acepções dos construtos subjetividade e sofrimento na produção científica em saúde do trabalhador.

Essas discussões, embasadas em abordagens distintas e até mesmo conflitantes, enriquecem o campo da saúde do trabalhador e aprofundam conceitos para o processo de compreender intervir nas vivências dos trabalhadores.

Outras importantes contribuições podem ser percebidas na última parte, que em seus seis capítulos enfoca dimensões do trabalho em serviços e as questões de gênero. Neles são expostos os fundamentos teóricos sobre a noção de serviços e os desafios da saúde do trabalhador nesse contexto, as complexidades e condições de trabalho no setor saúde, as contribuições da ergologia para o campo da saúde pública, a divisão sexual do trabalho na educação e as características e desafios do trabalho em telemarketing.

Esses capítulos aprofundam as reflexões sobre a saúde do trabalhador diante da emergência de um novo paradigma produtivo centrado no setor terciário, que alterou o padrão industrial dos séculos XIX e XX. Fato relevante, pois historicamente o campo da saúde do trabalhador focalizou o paradigma industrial na academia e nas ações institucionais. As transformações dos processos e organização do trabalho do novo modelo calcado no setor de serviços desafiam a saúde do trabalhador e exigem inovadoras perspectivas de análise-intervenção. À luz dessas tendências, o livro realizou um importante trabalho de contextualização teórica e metodológica, contribuindo para a superação da ênfase dos estudos no setor secundário da economia que fora motivo de críticas ao campo.

Importante chamar a atenção também para o setor primário, uma vez que a agricultura é outra realidade desafiadora no Brasil. O país é um dos maiores exportadores de commodities, como soja, café e cana e apresenta sérios problemas no que tange às condições de vida e trabalho no mundo rural. Uso de agrotóxicos, precarização das relações de trabalho e situações extremas como mortes por exaustão em canaviais são alguns exemplos. Os capítulos 6, 7 e 11, inclusive, apontam a necessidade de maior articulação acadêmica e política em prol da melhoria das condições nesse setor.

Percebe-se, portanto, que o livro analisa o trabalho em sua integralidade, considerando não apenas os riscos físicos, químicos, biológicos e mecânicos dos ambientes laborais, mas também as relações sociais. Além das condições de trabalho, a categoria organização do trabalho foi abordada, dando relevo às pressões, às hierarquias, às relações de poder, à divisão e conteúdo das tarefas nas novas dinâmicas produtivas do capitalismo.

Após expor os blocos temáticos do livro e suas contribuições, convém ainda ressaltar lacunas no campo da saúde do trabalhador, observadas pelos autores, que poderiam formar uma agenda de pesquisa. No âmbito acadêmico revela-se a falta de rigor conceitual sobre a relação do trabalho com o processo saúde-doença e ausência da interdisciplinaridade nas pesquisas, bem como a repetição de discursos simplificadores e a ênfase nos trabalhadores como objetos de estudo passivos. E, do ponto de vista institucional, verifica-se a falta de políticas integradas, poucas avaliações das ações, distanciamento entre pesquisadores, representantes de trabalhadores, gestores e formuladores de políticas, e dificuldades de um diagnóstico da real situação da classe trabalhadora.

A estas limitações soma-se a fragilidade do movimento de trabalhadores organizados como sujeitos ativos e impulsionadores das políticas. Refreou-se a sua atividade protagonista na definição de linhas de ação conformando uma atuação de ‘controle social’ dos governos, em instâncias instituídas como conselhos de saúde, comissões intersetoriais, entre outras.

Alguns capítulos abordam essa importante temática, demonstrando a necessidade de debater academicamente a questão da participação dos trabalhadores e fomentar maiores articulações para que esse movimento coletivo, ora fragilizado, seja protagonista das ações.

Lacunas como essas, segundo os organizadores do livro, “só serão superadas por meio da intensificação da articulação entre as análises teóricas, as propostas políticas e as ações de intervenção, conforme tem sido a tradição desse campo” (p. 21).

Em síntese, o livro traz reflexões cruciais sobre as principais questões da saúde do trabalhador, empreendidas com lucidez, perspicácia, rigor científico e compromisso com a transformação da realidade, marca histórica da área. Constitui-se como obra de referência para interessados no tema, oferecendo um ‘estado da arte’ das políticas e das práticas da saúde do trabalhador na atualidade, cuja relevância e pertinência são inegáveis. Os enriquecedores subsídios teórico-metodológicos trazidos contribuem para a solidez do campo e convoca pesquisadores, trabalhadores, técnicos e demais atores sociais a um renovado compromisso coletivo com um bem inalienável: a vida, a saúde dos trabalhadores.

Luís Henrique da Costa Leão Universidade Federal Fluminense, Niterói, Brasil. E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

[MLPDB]