História Regional: novas perspectivas / Revista Maracanan / 2021

A historiografia recente interpreta “região” como um conceito polissêmico, não apenas ligado a recortes espaciais, construídos por entidades político-administrativas, tais como os Estados-nacionais, como também a questões de identidade e de representação. O presente número da Revista Maracanan traz o dossiê “História Regional: novas perspectivas”, aqui vislumbrada como um campo de pesquisa em franco desenvolvimento, partindo de problemáticas concernentes às relações entre espaço físico e espaço social, referendando que toda divisão regional parte de uma definição política. Os estudos aqui apresentados ressaltam a importância de estudos sobre o Brasil em suas múltiplas diversidades e abordagens, que vão além das esferas de poder mais tradicionais. A região também é percebida em sentido ampliado, evocando o campo das lutas simbólicas, a partir do qual, portanto, tornar-se-ia possível investigar aspectos relativos aos debates sobre identidade(s) e memória social.

Diante disso, o dossiê “História Regional: novas perspectivas” reúne trabalhos que partem da perspectiva da história regional aqui explicitada, sem restrições temporais ou epistemológicas, permitindo um diálogo polissêmico e original. Inicialmente apresentamos duas entrevistas sobre História Regional como campo de estudos. As professoras Alessandra Izabel de Carvalho e Maria Silva Leoni falam de suas trajetórias, de como entendem e trabalham com História Regional e analisam as potencialidades e dificuldades da área no Brasil e na Argentina, respectivamente.

Essas entrevistas apresentam o debate que segue com o primeiro artigo de Maria Alice Ribeiro Gabriel intitulado “‘A doçura que envolve’: a culinária brasileira do Nordeste em Baú de Ossos”. Nele a autora faz uma análise da obra do médico e memorialista brasileiro Pedro da Silva Nava, destacando o valor histórico das referências do autor sobre alimentos, em especial a cozinha regional nordestina no século XIX e princípios do século XX. O artigo apresenta uma análise histórico-comparativa para examinar os temas relativos à alimentação e à culinária que emergem de episódios biográficos sobre a família Nava, além de aspectos culturais e sociais de pratos populares e tradicionais do Nordeste brasileiro.

O segundo artigo, de autoria de Clovis Antonio Brighenti & Osmarina de Oliveira, intitulado “Conflitos territoriais como espaço de disputas entre memória e história: Análise de processos judiciais da Itaipu Binacional contra os Guarani no Oeste do Paraná” desloca o debate sobre região para o sul do Brasil e, através da análise de algumas ações judiciais envolvendo a disputa por terra entre o povo Guarani e o Estado, os autores analisam um discurso construído em torno de elementos que confluem para desconsiderar a história Guarani e desconstruir a memória da ocupação territorial regional, apresentando o estado atual do debate sobre o tema.

O artigo de Fernando Vojniak, “Cultura escrita na Fronteira Sul: Uso políticos da escrita entre os Kaingang” dá continuidade ao debate envolvendo indígenas e questões regionais ao analisar os temas da cultura escrita e das práticas intelectuais indígenas, campos ainda pouco explorados pela historiografia. O foco está na apresentação panorâmica das possibilidades de análise em perspectiva histórica das práticas intelectuais e dos usos políticos da escrita entre os indígenas, especialmente os Kaingang.

O quarto artigo é de Marcelo Ferreira Lobo & Aline de Kassia Malcher Lima, intitulado “Jacobinos da Amazônia: Nacionalismo, trabalho e violência no Pará (1890-1920)”. Nele os autores analisam as tensões entre nacionais e estrangeiros em Belém do Pará nas primeiras décadas da República. Para os autores, a presença significativa de imigrantes, em grande parte portugueses, na cidade de Belém, proporcionou o acirramento de tensões étnicas, onde nacionalismo transfigurou-se em antilusitanismo e servem que gancho para o estudo da difusão de ideias nacionalistas entre os anos de 1890 a 1920 no Pará e as implicações no mundo do trabalho amazônico.

O quinto artigo é “Sobre os Dízimos e os Direitos de Saída na São Paulo Provincial” de Camila Scacchetti & Luciana Suarez Galvão e busca quantificar a trajetória ascendente do dízimo, posteriormente denominado direitos de saída, nas finanças públicas paulistas durante o século XIX. Para as autoras, com essa análise documental é possível traçar um paralelo entre a evolução cafeeira e as expectativas arrecadatórias provenientes do imposto incidente sobre a exportação na região de São Paulo.

Na sequência, “História regional sob a perspectiva dos processos civilizadores: possibilidades de pesquisa a partir do caso de Monte Alegre – PR”, artigo de Ana Flávia Braun Vieira & Miguel Archanjo de Freitas Junior, traz o debate sobre a cidade-empresa de Monte Alegre (atual município de Telêmaco Borba, Paraná), de propriedade das Indústrias Klabin. Os autores buscam compreender como a região conhecida como sertões do Tibagi se tornou uma referência para a industrialização e urbanização nacional de meados do século XX e o fazem analisando o conteúdo das crônicas de Hellê Vellozo Fernandes, publicadas no jornal O Tibagi entre 1948 e 1964. A partir desses textos são identificadas e apresentadas as sensibilidades que orientaram o processo de civilização naquela formação social, as esferas da vida às quais as publicações eram dirigidas e os processos de adequação comportamental e as ações de resistência.

Em “De Straßburg a Strasbourg: Marc Bloch, Lucien Febvre e o nascimento dos Annales” Jougi Guimarães Yamashita nos apresenta uma discussão bastante interessante sobre a importância da Universidade de Estrasburgo no processo de criação da revista Annales d`Histoire Économique et Sociale, liderado por Marc Bloch e Lucien Febvre. Estabelecendo uma relação alvissareira com a proposta do dossiê, o autor estabelece diálogos entre as estratégias políticas de reconhecimento da Alsácia como região francesa a partir de 1919, após o domínio alemão de quase quarenta anos. A partir da pesquisa realizada em algumas revistas históricas, Yamashita propõe uma análise dos esforços dos renomados editores em afirmar a região em questão como francesa, bem como a relação desse processo com a editoração dos Annales.

A seguir, Samira Peruchi Moretto, em seu artigo intitulado “O desmatamento e reflorestamento no Oeste de Santa Catarina nas décadas de 1960 e 1970”, propõe um estudo sobre o desmatamento do estado de Santa Catarina e as práticas empreendidas, sem preocupações ambientais, durante as décadas de 60 e 70 do século XX, de projetos considerados pela autora como “de cunho imediatistas”. A historiografia mais recente tem se aprofundado nas relações entre a História Ambiental e a História Regional e a pesquisa apresentada pela autora em seu artigo demonstra com êxito esses debates, a partir de uma base documental bastante diversificada.

O décimo artigo que compõe o dossiê se intitula “Os indesejados da seca: a imagem do sertanejo desde as narrativas da Revista Instituto do Ceará ao Campo de Concentração do Alagadiço (1877-1915)”, de autoria de Leda Agnes Simões de Melo & Camila de Sousa Freire, é um estudo sertanejo. Seu mote é a criação do primeiro campo de concentração do estado, o campo do Alagadiço, na seca do ano de 1915. Sua intenção é propor uma análise do discurso construído, na época, pelo Instituto do Ceará e por uma elite em torno dessa instituição, sobre a região, o pioneirismo cearense e a abolição da escravatura.

O próximo artigo que apresentamos é intitulado “No Asilo e no orfanato: crianças pobres e doentes em Goiás na primeira metade do século XX”, de autoria de Rildo Bento de Souza & Lara Alexandra Tavares da Costa. O trabalho toma como foco duas instituições de caridade leigas para crianças pobres e doentes com o objetivo de realizar um estudo sobre as relações de poder na cidade de Goiás, relacionando as estruturas políticas regionais com as formas de caridade assistencial adotadas pelas elites da cidade.

A seguir temos um artigo de autoria de Raimundo Hélio Lopes, “O general do Norte: Juarez Távora e o movimento pelo seu generalato no imediato pós-30”. O autor, através de pesquisas realizadas na documentação do arquivo pessoal de Juarez Távora e no acervo de imprensa da região norte, analisa as estratégias adotadas por Juarez Távora e seu grupo para tomar e demarcar a região, na conjuntura política do pós Revolução de 1930.

“Os agentes não humanos na construção da paisagem da Cidade-Parque: História da Arborização de Brasília-DF (1960-1980)”, assinado por Marina Salgado Pinto & José Luiz de Andrade Franco é mais um estudo que se vale das relações estabelecidas pela historiografia recente entre História Regional e História Ambiental. É apresentada uma análise feita sobre o processo de arborização de Brasília nas décadas de 1960 e 70. Considerando uma “visão utilitarista da natureza”, os autores problematizam a influência da mídia, dos agentes políticos e dos especialistas envolvidos no projeto na formação de um espaço urbano que controlasse a paisagem nativa e atendesse às demandas de controle dos poderes constituídos, harmonizando-as.

Fechando o nosso dossiê temos o artigo intitulado “O papel do Instituto Histórico na construção de memórias sobre a Baixada Fluminense (1971-1985)” de Eliana Santos Laurentino & Rui Aniceto Fernandes, analisa como o Instituto Histórico da Câmara de Duque de Caxias (RJ), foi útil para edificar uma memória de “Progresso” para o município, nos anos 1970. Explorando os usos do espaço físico do próprio Instituto em comemorações oficiais os autores sustentam que a memória não se constrói livremente, mas é alimentada por arquivos, aniversários e celebrações que foram usadas, nesse caso, para favorecer o diálogo com o regime político vigente.

Priscila Gomes Correa & Aline Farias de Souza são as autoras de “Política e Região: a Bahia da Modernização Conservadora e o primeiro governo estadual de Antonio Carlos Magalhães”. A nota de pesquisa, adjunta ao dossiê, apresenta um estudo baseado nos diálogos possíveis entre a História Regional e a História Política. Para tal, é feito uma análise do processo de construção do que as autoras chamaram de “região da Bahia da Modernização Conservadora”, durante o primeiro governo de Antônio Carlos Magalhães no estado (1971- 1975) e das mudanças provocadas no território baiano.

Na seção de artigos livres os trabalhos estão publicados “Quando os súditos se convertem em soldados: O pacto político ao Norte e ao Sul da América Portuguesa” de Christiane Figueiredo Pagano de Mello; “A narrativa poética de Joaquim Alves da Silva: polícia versus jagunços no oeste; e, sudoeste do Paraná” de Claércio Ivan Schneider; e, “A administração dos bens confiscados dos Jesuítas na Capitânia de São Paulo, 1760-1782” de Ilana Peliciari Rocha.

Por fim, este número é fechado com a tradução de um texto seminal de Martin Jay, professor Emérito da University of California-Berkeley. “‘Ei! Qual é a grande ideia?’: ruminações sobre a questão da escala na História Intelectual” discute sobre este ramo da historiografia a partir de uma proposta metódica que reconhece a ambiguidade semântica dos conceitos, por meio de uma leitura que considera a longa duração. O exercício de crítica do autor surge como uma resposta e alternativa à chamada História das Ideias tradicional.

Basta agora convidar o leitor a navegar no sumário do número 26 da Revista Maracanan. Desde já, desejamos boas leituras!

Isadora Tavares Maleval – Professora Adjunta da Universidade Federal Fluminense, Campos dos Goytacazes, Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional, Departamento de História. Doutora, Mestre e graduada em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0003-4882-7907 http: / / lattes.cnpq.br / 5004479701596418

Cláudia Atallah – Professora Adjunta da Universidade Federal Fluminense, Campos dos Goytacazes, Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional, Departamento de História. Professora do Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Formação de Professores. Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense; Mestre e graduada em História e Especialista em História do Brasil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0001-5298-9939 http: / / lattes.cnpq.br / 2918940954094400

Susana Cesco – Professora Adjunta da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Escola de História. Professora do Mestrado Profissional em Ensino de História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; Mestre e graduada em História pela Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0002-1357-3743 http: / / lattes.cnpq.br / 1534977452527340

As organizadoras.


MALEVAL, Isadora Tavares; ATALLAH, Cláudia; CESCO, Susana. Apresentação. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n.26, 2021. Acessar publicação original [DR]

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Fontes e Métodos na escrita da História: novas perspectivas de abordagens / Revista Maracanan / 2017

“Sem documentos, sem história”.[1] A máxima, tão conhecida por historiadores de formação – ainda que nem sempre compreendida, de fato –, tem origem no tempo em que se ansiava para a disciplina um estatuto científico. Apesar da atualidade ainda permanente desse debate sobre a história ser ou não ciência, é inquestionável a transformação pela qual passou a substância do trabalho do historiador ao longo do tempo, desde a publicação de Introdução aos Estudos Históricos (1898).

O que nunca se transformou foi a crença de que o cerne da operação historiográfica centra-se no trato direto com as fontes.[2] Mesmo os críticos mais tenazes de Charles-Victor Langlois e Charles Seignobos (para nos restringirmos à tradição francesa) jamais deixaram de lado a possibilidade de se fazer história partindo de uma dada “realidade” do que foi. A fonte seria isso, essa possibilidade, ou caminho.

Evidentemente que a natureza do que se entende por fonte modificou-se na mesma medida em que a ciência histórica amadureceu. Para Marc Bloch e Lucien Febvre, ela poderia ser “qualquer coisa”, desde que colaborasse em responder às perguntas formuladas pelo historiador – a famosa concepção de história-problema. Autores igualmente importantes no campo da teoria da história qualificam fonte como “vestígio”, como o italiano Carlo Ginzburg. [3] Assim, mais do que um documento escrito, oriundo, normalmente, da burocracia estatal, como criam os metódicos, o historiador deve apelar para aquilo que restou do passado no seu presente. [4]

Mas, então, como realizar esse trabalho?

Partindo do método crítico, diriam alguns. Sim, aquela forma de tratar a fonte também evidenciada em Introdução aos Estudos Históricos, não à toa considerado um manual da escola metódica, a partir da influência alemã. O historiador deve questionar o documento, contextualizá-lo, atentar para suas especificidades. Saber, em última análise, quem o produziu, por que e para quem. Havia também certa obsessão em distinguir um documento original de uma falsificação, herança dos eruditos desde o Renascimento. [5] Afinal, como um documento falso poderia trazer a verdade de que necessitava o historiador?

Ao longo do novecentos, essa postura também se alterou. No seu mais famoso trabalho, Bloch indica que mesmo a falsificação pode subsidiar o historiador. Sempre importa sua questão, aquilo que, com os olhos do presente, ele busca investigar no passado. De todo modo, a análise crítica, juntamente com a comparação, seguiu vital para o historiador profissional. “O testemunho só fala quando questionado” [6] torna-se nossa nova máxima. Tal questionamento, entretanto, segue um roteiro semelhante ao anterior: quem disse, por que, com que intenção? Se mentiu, por que o fez?

Até mesmo após os fundadores dos Annales, o método crítico não perdeu sua majestade. Qualquer historiador que se preze deve tê-lo em mente no processo de pesquisa. No entanto, assim como a concepção do que pode ser fonte, aquilo que se entende por metodologia histórica também foi alterada – ou melhor, ampliada.

Como métodos, entende-se a maneira de tratar a fonte. Mesmo com os críticos pós-modernos indagando se haveria alguma possibilidade de encontro do historiador com uma realidade prévia (ou, ao fim e ao cabo, se a própria realidade existiria, diriam eles), e, portanto, questionando esse lugar da fonte e do método, ainda hoje, grosso modo, os profissionais que fazem história centram sua análise no passado presente que é a fonte. E fazem isso tendo em vista não só a crítica histórica, mas uma série de metodologias que surgiram e vem surgindo ao longo dos anos.

Hoje existem inúmeras possibilidades sobre a forma como a fonte pode ser investigada, tratada, ou, como diria Bloch, interrogada. Análise dos discursos, história oral, história comparada, história dos conceitos, história serial e história quantitativa são apenas algumas delas. Métodos e formas que nos abrem um enorme leque de alternativas para o fazer histórico. O presente dossiê tem como propósito contar um pouco dessa história, reunindo de forma plural uma variedade de fontes e métodos utilizados pelos autores para a elaboração de seus artigos.

Em “A estranha vida dos objetos: Os alcances e limites de uma historiografia da ciência a partir dos instrumentos científicos”, Janaína Lacerda Furtado reflete acerca da cultura material como fonte e objeto para o historiador, a partir de uma análise das propostas teóricas e metodológicas surgidas nos últimos anos em torno da temática. Também Tiago Luís Gil, em seu artigo “As Listas Nominativas de habitantes como fontes para a história dos preços, 1798- 1810”, apresenta ao leitor as possibilidades de trabalho com um tipo específico de documento – as listas nominativas de habitantes – apresentando-o como fonte relevante para tratar do período colonial brasileiro, sobretudo no que diz respeito ao estudo dos preços. Já Paulo Roberto de Jesus Menezes contextualiza as “galerias ilustradas”, em “Retrato, Biografia e Conhecimento Histórico no Brasil oitocentista”. Além disso, o autor investiga como tais fontes são importantes por portar uma determinada memória a partir da conexão entre imagens e textos.

Os historiadores Francisco Gouvea de Souza, Géssica Guimarães Gaio e Thiago Lima Nicodemo propõem em seu texto “Uma lágrima sobre a cicatriz: O desmonte da Universidade pública como desafio à reflexão teórica (#UERJresiste)” uma discussão em torno do nosso ofício, enquanto pesquisadores e professores, tomando a própria historiografia como fonte de pesquisa, e o fazer histórico, por conseguinte, como objeto de estudos. Outro artigo elaborado coletivamente, “‘Entre os artistas amigos o momento bom de ternura é o aparecimento de obra nova’: O exercício da crítica literária na correspondência de Luís da Câmara Cascudo e Mário de Andrade (1924-1928)”, de Giuseppe Roncalli Ponce León de Oliveira, Marinalva Vilar de Lima e José Machado de Nóbrega, busca privilegiar as cartas trocadas entre aqueles intelectuais na década de 1920. A partir desse caminho, observou-se o debate de ideias entre os pares, sobretudo no que dizia respeito à crítica literária, tão fundamental para a configuração do movimento modernista brasileiro.

Em “A Lei de Terras de 1850 e os Relatórios do Ministério da Agricultura entre 1873- 1889”, Pedro Parga Rodrigues seleciona os referidos relatórios como fontes centrais para a pesquisa. Ao fazê-lo, traz uma nova leitura da problemática exposta, partindo do princípio, por exemplo, de que os relatórios indicam que a aplicação da legislação não foi homogênea em todo o território nacional, indicando a necessidade do olhar específico do historiador para compreender as vicissitudes de cada província.

Robério Américo do Carmo Souza, ao finalizar os artigos que compõem a parte temática do dossiê, problematiza a narrativa oral, refletindo sobre sua própria construção como fonte. Tal elaboração é feita ativamente, vale lembrar, pelo historiador. “Narrativas orais como fontes para uma compreensão histórica da experiência vivida” faz parte, portanto, de um contexto investigativo importante para o campo da história oral – metodologia em crescente uso pelos historiadores, ainda que, de certo modo, permaneça sendo objeto constante de julgamentos por parte dos mais críticos.

Esta edição é enriquecida, ainda, com uma entrevista, uma tradução, além de notas de pesquisa, um artigo livre e um depoimento. Em uma agradável conversa, o arquivista Jaime Antunes, nos brindou com as memórias dos [muitos] anos em que esteve à frente da direção-geral do Arquivo Nacional. Antunes destacou aspectos de sua trajetória profissional, desde o seu primeiro estágio com ênfase para os esforços que possibilitaram a Lei de Arquivos, assim como sua importante atuação para garantir a aprovação da Lei de Acesso à Informação. Legislações recentes que asseguraram, não apenas aos historiadores, mas também ao público em geral, a disponibilidade dos documentos históricos, atravessando, para tanto, as polêmicas que ainda envolvem os arquivos da Ditadura Militar no Brasil. Ao longo da entrevista concedida à Revista Maracanan, Antunes relatou os tortuosos caminhos percorridos pelas leis de abertura de documentos ao público e a criação do “Centro de documentação Memórias Reveladas – Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985)”.

Em trabalho conjunto, Beatriz de Moraes Vieira e Renata Duarte nos apresentam a tradução do artigo “A escrita da história: Entre literatura, memória e justiça”, de Enzo Traverso. Um texto que nos ajuda a pensar questões metodológicas debatidas pelos historiadores nos últimos vinte anos, desde a natureza da história enquanto narrativa, até a relação entre a escrita da história e a justiça, recuperando que a história é, sobretudo, um ato de escrita.

Em um estudo sobre as redes constituídas por letrados brasileiros e portugueses no final do século XIX, Rodrigo Perez Oliveira, se debruça em seu artigo “Uma República luso-brasileira das letras: a interlocução entre Eduardo Prado, Ramalho Ortigão e Eça de Queirós no final do século XIX” sobre a correspondência entre os escritores mencionados para compreender as angústias e inquietudes desta intelectualidade luso-brasileira.

Nesta edição apresentamos três notas de pesquisa. Em “A Colônia Juliano Moreira e seus homens ‘desviantes’ (1930-1945)”, as autoras Anna Beatriz de Sá Almeida, Ana Carolina de Azevedo Guedes, Renata Lopes de Almeida Marinho e Aléxia Iduíno Duarte de Mello voltam um olhar cuidadoso para o “tratamento” da homossexualidade. Partindo de um espaço que desperta a atenção de diferentes campos de estudo, atravessam o período varguista, buscando refletir sobre o ideal de masculinidade desta conjuntura. A partir de uma contribuição estrangeira, Rodrigo Cabrera Pertusatti se debruça sobre o estudo de duas línguas da Baixa Mesopotâmia, o sumério e o acádio, em “Consideraciones en torno al contacto entre lenguas y el cambio lingüístico. Repensando el bilingüismo sumerio-acadio del tercer y segundo milenio a. C.1”. O texto de Thiago Bastos de Souza apresenta os resultados parciais de sua dissertação de mestrado. Em “Recopilación Historial / Historia de Santa Marta: notícias de uma ficção política” o autor objetiva a formulação conceitual de ficção política, enquanto uma categoria de análise sobre a crônica Recopilación Historial, escrita pelo provincial da ordem franciscana frei Pedro de Aguado para o Vice-Reino da Nueva Granada no século XVI.

Por fim, pensando a interface entre as fontes e os métodos de pesquisa, a historiadora Márcia Motta, rompe com as especificidades e limites das áreas de conhecimento. Em seu depoimento, “Um INCT em construção: Proprietas (História Social das Propriedades e Direitos de acesso)”, discorre acerca da construção de uma rede multidisciplinar de pesquisadores, norteados por um tema comum de pesquisa, a propriedade e o direito de acesso. O depoimento nos mostra, além da identidade da Rede Proprietas, e de todo o trabalho da equipe envolvida, o quanto o potencial de nossos pesquisadores é capaz de alcançar quando lhes são concedidas as condições para que isso ocorra. Diante das crises que assolam a todas as instituições de ensino, ciência e tecnologia, produção de conhecimento ou salvaguarde do patrimônio – histórico, artístico, documental, intelectual, etc. –, tais escritos nos levam a refletir acerca de diversas questões que permeiam nossa sociedade. Deste modo, a publicação do referido dossiê foi uma conquista dos professores e pesquisadores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Em tempos de crise, continuamos resistindo.

Notas

  1. LANGLOIS, Ch. V.; SEIGNOBOS, Ch. Introdução aos Estudos Históricos. São Paulo: Renascença, 1946, p. 15.
  2. CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica – 1. Um lugar social. In: A Escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002, p. 65-77.
  3. Ginzburg, além de entender a fonte como vestígio, indica o trabalho do historiador como algo aproximado ao de um detetive. Cf. GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas e sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 143-180.
  4. “A história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando eles existem. Mas ela pode fazer-se, ela deve fazer-se sem documentos escritos, se os não houver. Com tudo o que o engenho do historiador pode permitir-lhe utilizar para fabricar o seu mel, à falta das flores habituais. Portanto, com palavras. Com signos. Com paisagens e telhas. Com formas de cultivo e ervas daninhas. Com eclipses da lua e cangas de bois. Com exames de pedras por geólogos e análises de espadas de metal por químicos. Numa palavra, com tudo aquilo que, pertencendo ao homem, depende do homem, serve o homem, exprime o homem, significa a presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem”. FEBVRE, Lucien. Combates pela história. Lisboa: Editorial Presença, 1989, p. 249.
  5. Cf. FURET, François. O nascimento da história. In: A oficina da história. Lisboa: Gradiva, p. 109-135; PAYEN, Pascal. A constituição da história como ciência no século XIX e seus modelos antigos: fim de uma ilusão ou futuro de uma herança? História da historiografia, Ouro Preto, n. 6, p. 103-122, mar. 2011.
  6. BLOCH, Marc. Apologia da história, ou, O ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 78.

Ana Carolina Galante Delmas – Professora com vínculo pós-doutoral ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGH-UERJ). Possui graduação, mestrado e doutorado em História pela UERJ. Suas pesquisas têm se voltado para a história do Brasil no período joanino e história do Brasil Império, privilegiando as abordagens no campo da história política, da história cultural e da história do livro e da leitura. Integra o Laboratório Redes de Poder e Relações Culturais (UERJ) e o Grupo de Pesquisa Ideias, cultura e política na formação da nacionalidade brasileira – CNPq.

Marina Monteiro Machado – Professora da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCE-UERJ) e do Programa de Pós-Graduação em História da mesma instituição. Possui graduação em História pela Universidade Federal Fluminense e mestrado e doutorado em História Social pela mesma instituição. Atualmente, é coordenadora de curso da FCE-UERJ; integrante do Núcleo de História Rural; membro-fundador e vice-coordenadora do INCT Proprietas. É autora do livro Entre Fronteiras: posses e terras indígenas nos sertões (Rio de Janeiro, 1792-1824) (Horizonte / Unicentro / EdUFF, 2012).

Isadora Tavares Maleval – Professora da área de Teoria e Metodologia da História no Departamento de História de Campos da Universidade Federal Fluminense (CHT-UFF). Possui doutorado e mestrado pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGH-UERJ); cumpriu estágio doutoral na Université Paris-Sorbonne e pós-doutoral no Departamento de História da UERJ. É especialista em temas relacionados à teoria da história, historiografia, história do Brasil Império e história do livro e da leitura.


DELMAS, Ana Carolina Galante; MACHADO, Marina Monteiro; MALEVAL, Isadora Tavares. Apresentação. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n.17, 2017. Acessar publicação original [DR]

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