Saúde coletiva: teoria e prática – PAIM; ALMEIDA-FILHO (TES)

PAIM, Jairnilson Silva; ALMEIDA-FILHO, Naomar de (Orgs.). Saúde coletiva: teoria e prática. Rio de Janeiro: Medbook, 1.ed., 2014, 720pp. Resenha de: FRAGA, Lívia; CARNEIRO, Carla Cabral Gomes.  Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.14, n.1, jan./mar. 2016.

É um desafio tentar sumarizar, neste espaço, a contribuição de oitenta coautores à reflexão sobre a saúde coletiva, dentre eles Jairnilson Silva Paim e Naomar de Almeida-Filho, organizadores da obra Saúde coletiva: teoria e prática. Trata-se de uma complexa coletânea que, em seus 45 capítulos, agrupados em sete seções, apresenta uma introdução didática ao conjunto de saberes, estratégias e técnicas que compõem a saúde coletiva. Considerando as limitações deste espaço editorial e o público alvo do livro, optamos por destacar os temas e conceitos centrais abordados por seção, a fim de situar e provocar o leitor a construir seus próprios caminhos de leitura.

Iniciando o volume, na seção I são apresentados os ‘eixos’ conceituais da saúde coletiva como “campo de saberes e práticas sociais,” fundamentais para a leitura dos demais capítulos. Para tanto, são analisados historicamente as diversas iniciativas políticas e os movimentos de ideias e práticas que antecederam e formaram esse campo, suas fronteiras e similaridades. Este percurso perpassa a articulação entre a saúde oletiva, a Reforma Sanitária Brasileira (RSB) e o Sistema Único de Saúde (SUS), destacando a necessidade de aquele campo reafirmar-se e renovar-se a fim de fundamentar a práxis transformadora de sujeitos individuais e coletivos. São apresentados o debate teórico-metodológico acerca do conceito de saúde; necessidades, problemas e determinantes em saúde; e uma densa reflexão teórica sobre os usos da noção de ‘campo’ nas ciências.

Na seção II, o conjunto dos três capítulos situa o leitor nos ‘Modos’ com os quais se estruturam os sistemas e políticas de saúde desde a concepção até a operacionalização no cotidiano dos serviços. Partindo-se do debate entre diferentes conceitos de sistemas, são apresentados os componentes de um sistema de serviços de saúde e reconhecidos os desafios para implantação de sistemas integrados no Brasil e no mundo. Em seguida, o enfoque recai sobre a discussão acerca do ciclo de políticas públicas da saúde, enfatizando-se seu caráter processual, dinâmico e complexo e a importância de profissionais e cidadãos reconhecerem-se como parte desse processo. Por fim, aborda-se a história do planejamento e da programação em saúde no Brasil, demonstrando como esta se constituiu em proposta de modelo assistencial, cujo propósito seria prover a integração de ações individuais e coletivas com efeitos na saúde da população.

“Contextos” é a terceira seção da coletânea, formada por sete capítulos que discutem a conjuntura contemporânea na qual se insere o sistema de saúde do país. Inicialmente, são apresentadas as transformações epidemiológicas da população brasileira no contexto de profundas mudanças políticas, econômicas, sociais e demográficas, iniciadas na segunda metade do século XX. São desvelados os desafios a serem enfrentados, especialmente no que tange às desigualdades socioeconômicas e à garantia do direito à saúde para todos os brasileiros. Expõe-se uma leitura panorâmica do SUS, mostrando o difícil processo de construção de um sistema universal no país e seu quadro atual. Em seguida, faz-se uma análise do sistema de assistência médica suplementar no Brasil, por meio de evidências acerca das convergências e contradições existentes entre o sistema de saúde brasileiro e estadunidense. Atenção especial é dada à dinâmica e à regulação dos planos e seguros de saúde no contexto nacional, às iniquidades e fragmentação geradas pela estrutura de oferta e financiamento do sistema e às principais modalidades de empresas prestadoras de serviços de saúde no país e sua estreita relação com a penetração do capital financeiro no setor. Tais reflexões permitem uma visão comparada entre os sistemas brasileiro, canadense, alemão e estadunidense. Na sequência, discorre-se acerca do Complexo Econômico Industrial da Saúde. A preocupação central dos autores é a discussão da dinâmica de inovação e o papel do Estado no fortalecimento nacional da base produtiva da saúde, além das repercussões desta inovação no acesso equânime da população às tecnologias produzidas. Finaliza-se a seção destacando-se a produção de informação em saúde coletiva e sua importância para a tomada de decisões em nível de gestão do sistema e dos serviços.

A RSB e o SUS são postos em perspectiva na seção IV, denominada “Hemisfério SUS”. Inicialmente, a RSB é apresentada como processo histórico e social, tomando como eixo de análise um ciclo composto de ideia-proposta-projeto-movimento-processo. Recorrendo à história, os autores avaliam três momentos distintos do processo da RSB e os desdobramentos recentes do movimento. A ênfase é dada à agenda dos governos e à atuação e inflexão do movimento sanitário no período pós-constituinte. Somada a isto, focaliza-se a análise das forças políticas e sociais em disputas em distintas conjunturas e a necessidade do desenvolvimento de uma consciência crítica para a sustentação do processo da RSB. Dada a implementação do SUS, os capítulos seguintes se debruçam sobre sua estrutura tecnológica, configuração político-institucional, controle social, gestão e financiamento do sistema, finalizando com a reflexão acerca dos obstáculos para implementação de uma modelo de atenção integral à saúde.

A seção V desta coletânea reúne as estratégias – e seus fundamentos – empregadas para realização das funções sociais de um sistema de saúde, discutidas ao longo da obra, quais sejam: promoção da saúde; prevenção e proteção a doenças, agravos e riscos; e recuperação da saúde de indivíduos, grupos e ecossistemas, assim como para operacionalização dos princípios e diretrizes do SUS. Os objetos desses capítulos são diversos e podem ser organizados em duas subseções. A primeira contém os sete capítulos iniciais, que versam sobre os componentes gerais e a organização dos serviços de saúde a partir de quatro temas: 1) Promoção da saúde, apresentada a partir da perspectiva estreitamente relacionada aos ‘determinantes sociais em saúde’; 2) Atenção à saúde, tema que ocupou maior espaço nesta subseção, central em três dos sete capítulos aqui situados, a partir dos assuntos: a relação entre os três níveis de atenção à saúde (básica, de média e de alta complexidade); a Estratégia Saúde da Família; e a qualidade do cuidado em saúde; 3) Vigilância em saúde, abordada pelo capítulo 23, a partir do foco na vigilância sanitária, e retomada, de forma ampliada, no capítulo 28, junto às campanhas sanitárias e aos programas, na discussão sobre estratégias voltadas à prevenção e controle de problemas de saúde; e 4) Regulação da Saúde, que remete à discussão sobre a relação entre Estado e mercado, com foco no papel da Agência Nacional de Vigilância Sanitária e da Agência Nacional de Saúde Suplementar.

O segundo bloco da seção V consiste em oito capítulos sobre estratégias específicas ao atendimento de necessidades e problemas de saúde de certos subgrupos populacionais (usuários de drogas psicoativas, trabalhadores, crianças e adolescentes) e/ou ao enfrentamento de problemas específicos (doenças transmissíveis, crônicas não transmissíveis; violências interpessoais e comunitárias; saúde bucal e saúde mental). Ainda que esta seção não aborde as demais políticas e programas especiais do SUS – aqueles voltados à saúde da mulher, dos povos indígenas, da população negra, dentre outros – alguns são brevemente tratados na seção III.

Em “Estados da Arte,” oito capítulos apresentam panoramas acerca de questões centrais referentes às disciplinas fundadoras e estruturantes da saúde coletiva (Epidemiologia, Ciências Sociais e Política, Planejamento e Gestão) e de determinados temas desse campo, tais como saúde do trabalhador, trabalho e educação, comunicação em saúde, saúde bucal e sistemas de informação.

No único capítulo que integra a seção de conclusão da obra, “Epílogo,” os autores fazem uma análise de conjuntura da saúde coletiva, apontando tendências e desafios ao campo, estreitamente relacionados ao desenvolvimento socioeconômico brasileiro, no qual é central a desigualdade social abissal e persistente, embora sejam reconhecidos os avanços alcançados nos últimos anos, em função de políticas sociais. Cabe destacar que a crise política, ética e econômica que assolou o país em 2015 atualiza os problemas mencionados de forma contundente e consistente pelos autores, como a permanência da dicotomia público-privado desde a Constituição de 1988, uma tendência ao conservadorismo político e ideológico, e também o acirramento das iniquidades sociais. Indica-se a necessidade da revisão do papel e dos deveres do Estado, que historicamente não tem garantido à população serviços públicos de qualidade, reforçando as desigualdades sociais.

Tendo em vista esses aspectos, a obra é um convite para olhar os princípios conceituais e metodológicos da saúde coletiva, assim como para sua trajetória, lutas, conquistas e desafios. Tal empreendimento é considerado fundamental nos tempos atuais, marcado por tensão e incertezas, mas também por avanços em algumas dimensões da vida social, que precisam ser consolidados, expandidos e/ou reestruturados a fim de se retomar um projeto civilizatório de transformação social.

Lívia Fraga  Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

Carla Cabral Gomes Carneiro Fundação Oswaldo Cruz, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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