Memória e Mídia / Tempo e Argumento / 2017

A explosão dos acontecimentos de maio de 1968, na França, colocou em questão a relação entre a narrativa midiática dos “fatos históricos” e o trabalho acadêmico dos historiadores que consideravam esse tipo de concepção superficial e ultrapassada. Em O Renascimento do acontecimento, François Dosse reinterpreta o clássico artigo de Pierre Nora, que encara “O retorno do fato” com surpresa e desconforto, já que para os herdeiros de Braudel o que importava eram as permanências. Com a irrupção de acontecimentos espetaculares, que já poderiam ser considerados “históricos” no próprio momento em que repercutiam, Pierre Nora compreende que a imaginação histórica das massas difere muito do modo como os historiadores haviam aprendido a lidar com o passado. Preocupado com isso, ele define os limites do historiador no âmbito dos arquivos e debates acadêmicos, deixando o trabalho memorialístico para artistas e jornalistas, sendo que esta produção memorialística poderia servir, ela mesma para ser analisada por historiadores como documentos de época. Mas o que ocorre quando elas são documentos de nossa época? Não há um passado que reverbera no presente? Ou só o presente reverbera no passado, e este não passa de uma imagem caricata que nós produzimos segundo os nossos próprios desejos?

Na trama dos três tempos – o acontecimento, a sua formulação narrativa e a reação que ela desencadeia –, se estabelece uma relação fundamental para compreender a História do Tempo Presente, com novas camadas narrativas produzidas segundo os interesses do momento. Mas como observa Paul Ricoeur, mesmo a primeira narrativa produzida sobre um acontecimento, ainda que realizada imediatamente depois dele, já se constitui como memória. Tanto as notícias de jornais quanto os livros de memórias elaboram narrativas de presumida identidade com seus leitores. Visam convencer e, assim, corresponder a uma certa cumplicidade de expectativas sociais. O material impresso possui um poder de artefato de memória em registro físico, que pode ser guardado e catalogado, o que lhe dá uma perenidade. Aquilo que foi impresso possui significado social marcante, por ter sido publicado, o que envolve relativo reconhecimento e que, portanto, merece ser lembrado posteriormente, como “algo que vai ficar para a História”.

Certamente outras mídias, como a televisão, talvez tenham mais influência na reação do público diante dos acontecimentos narrados imediatamente. Por outro lado, ao longo do tempo, elas tendem a provocar mais esquecimento do que memória, segundo ponderou Frederic Jameson, já que o televisor, como aparelho de fluxo contínuo de imagens, está sempre nos desviando a atenção de uma coisa para a outra, nos distraindo de forma irreversível. Esse aspecto aleatório, em que o telespectador não sabe qual é a imagem, o programa ou o comercial que virá a seguir, bem como aquele que passa em outro canal, também é um complicador para a pesquisa histórica. Isso porque as emissoras são muitas vezes produtoras dos programas veiculados e proprietárias exclusivas do conteúdo que é difundido por elas, ainda que esta seja uma concessão pública. Por essa razão, sempre houve pouca disponibilidade de consulta à programação televisiva para fins de pesquisa histórica. A existência de alguns acervos físicos particulares, como observou Áureo Busetto, permitiu sua transferência para plataformas digitais, o que hoje amplia em muito os limites da pesquisa histórica nesse âmbito, fundamental para compreender a dinâmica do imaginário social a partir dos anos 1970.

Por outro lado, há produtos culturais que preservam sua autonomia no sentido de serem veiculados e vendidos como obras, como foi o caso dos livros, da música gravada em disco e posteriormente do cinema quando os filmes passaram a ser comercializados em fitas para serem vistos em casa. No cinema de ficção clássico, vemos nos chamados “filmes de época” personagens do presente que vestem roupas do passado, e dos seus conflitos pode ser tirada uma lição – tal como analisa Fábio Nigra quando trata da história dos Estados Unidos produzida em Hollywood. Considerado como arte, o cinema se torna também parte da monumentalização do passado, promovida pela memória, pelo desejo de colocar na tela os personagens que já não se encontram ao nosso redor. Ou, então, relembrar as ações daqueles que ainda se encontram ativos, mas que foram marginalizados e esquecidos ao longo do tempo, ou que ainda continuam publicamente em evidência. No cinema documentário, o tratamento dado ao passado é outro. Ao propor que trata diretamente de lugares, acontecimentos e personagens reais, observamos que não é raro que esses elementos dos quais ele trata estejam hoje soterrados, apagados ou desaparecidos, e precisem ser resgatados. Em ambos os casos, o cinema visa lançar uma luz sobre o passado, mas seu objetivo é fazer com que o espectador se identifique de alguma maneira com alguém que aparece na tela ou fala sobre aquilo que se vê.

Como obra, o cinema cria imagens que se cristalizam na memória, que se tornam referências do imaginário coletivo, sobre o qual desejam deliberadamente intervir. E intervir na memória através da mídia é uma preocupação recorrente dos movimentos sociais. Criar táticas de repercussão na mídia é um de seus métodos, embora também contem com suas próprias estratégias de divulgação militante, disputando um espaço no imaginário social. Ao mesmo tempo, lutam por manter o espaço já conquistado, reivindicando‐se como herdeiros das lutas do passado. Mas também esse legado é alvo de disputa na memória coletiva, sendo constantemente ressignificado por diversos grupos em função de seus próprios interesses. Em geral, reivindicam causas que aqueles personagens não poderiam ter concebido, atribuindo a suas ações um sentido muito distante daquele que era formulado. Por essa razão, sempre que propomos analisar as relações entre a memória e a mídia, emerge o problema da história militante, que busca denunciar manipulações da mídia, combater esquecimentos para assim reparar a memória social dos seus erros e omissões.

Essas são as reflexões a que está dedicado este número da Revista Tempo & Argumento, que reúne contribuições de pesquisadores do Brasil e da Argentina. Agradeço à colaboração de Javier Campo, professor da Faculdade de Artes da Universidad del Centro de la Província de Buenos Aires (UNCPBA), que dividiu comigo a organização do presente dossiê. Esperamos com isso ter dado nossa contribuição para pensar as relações entre Memória e Mídia, algo de inegável valor para qualquer pesquisa feita no âmbito da História do Tempo Presente.

Rafael Rosa Hagemeyer – Professor do Programa de Pós‐Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).


HAGEMEYER, Rafael Rosa. Apresentação. Tempo e Argumento, Florianópolis, v.9, n.21, 2017. Acessar publicação original [DR]

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