Memórias da Violência Colonial: reconhecimentos do passado e lutas pelo futuro / Estudos Ibero-Americanos / 2019

Memórias da Violência Colonial: reconhecimentos do passado e lutas pelo futuro*

O crescente interesse sobre a memória dos colonialismos tem tornado cada vez mais evidente a necessidade de se confrontarem os legados das violências instauradas pelos impérios modernos. Nesse sentido, este dossiê reúne artigos que contribuem para uma reflexão sobre a atualidade do passado colonial português em uma perspectiva que privilegia o peso das heranças da violência colonial. Pretende-se, por um lado, avaliar uma realidade social invadida pelas implicações das lógicas que instauraram genocídios, escravidões, elisão de culturas ancestrais, guerras coloniais, deslocamentos, trabalhos forçados e todo um rol de opressões quotidianamente reiteradas. Por outro lado, pretende-se reconhecer de que modo o presente é também, e significativamente, o resultado de resistências e lutas anticoloniais que, inscritas historicamente, contribuíram para o fim do colonialismo político e que legaram ao tempo presente inspiradoras narrativas de dignidade humana. É esse o sentido mais amplo dos artigos aqui reunidos.

Em “As múltiplas vidas de Batepá: memórias de um massacre colonial em São Tomé e Príncipe (1953-2018)”, Inês Nascimento Rodrigues examina as reverberações memoriais produzidas por um evento disruptivo ocorrido na ilha de São Tomé em fevereiro de 1953, quando um número indeterminado de são-tomenses foi massacrado a mando do poder colonial. Posteriormente conhecido como o “Massacre de Batepá”, ele viria a transformar-se em um marco paradigmático da violência, mas também em um dia comemorativo que, a partir de 1975, permitirá conectar o imaginário de sofrimento e resistência ao colonialismo com a legitimação da nova nação independente. A autora analisa diacronicamente as três vidas do “Massacre de Batepá”, mostrando como a sua evocação é sensível a mudanças políticas e socioculturais e como o evento se mantém em uma relação espectral com o percurso pós-colonial da nação são-tomense.

Rosa Cabecinhas, por seu turno, compara representações sociais sobre o passado colonial em Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e Timor Leste. Socorrendo-se do conceito de Mia Couto de “luso(a)fonias” – implicitamente denunciador de desencontros entre antigos países colonizadores e colonizados e recorrendo a uma noção como a de lusofonia, ela própria problemática nas suas emanações neocoloniais –, a autora analisa um amplo conjunto de dados que denotam diferenças substanciais no modo como se caracterizam e valorizam as histórias nacionais ligadas a um “passado comum” colonial. Não obstante as diferenças de percepção detetadas entre os jovens participantes nos estudos, denota-se uma distinção essencial entre os participantes portugueses, que de forma dominante referem-se positivamente ao passado dos “Descobrimentos” e secundarizam a violência colonial e os jovens dos países africanos, que valorizam as lutas de libertação e tendem a visibilizar o peso e o carácter desestruturante dos modos de violência intrínsecos à experiência colonial.

No texto de Clodomir Cordeiro Matos Júnior, “A perspectiva das vítimas e a teoria social contemporânea: entre memórias do passado e futuros alternativos”, é explorada a centralidade da figura da vítima para a compreensão da violência colonial. Nessa perspectiva, a partir das contribuições de Enrique Dussel, Aníbal Quijano e Boaventura de Sousa Santos, o autor procura aprofundar a importância do processo de reconhecimento das vítimas do colonialismo na produção de uma teoria social comprometida com a superação de políticas de esquecimento. Debruçandose sobre as críticas que envolvem a versão eurocêntrica e hegemônica da Modernidade (DUSSEL, 1993), as heranças materiais e subjetivas dos arranjos coloniais (QUIJANO, 2005) e as possibilidades das Epistemologias do Sul (SANTOS, 2018), o artigo faz emergir o reconhecimento da figura da vítima e suas experiências dentro de processos significativos para a validação de memórias silenciadas e a imaginação de futuros impensados.

Em “Escrita e cicatriz: da colonização à prisão”, de Ivete Walty, são colocadas em diálogo algumas imagens da série Cicatriz, de Rosângela Rennó, com a escrita de / sobre a prisão em diferentes momentos da história da literatura brasileira, à luz do conceito de colonização em seu sentido lato, em relação com os conceitos de biopolítica (Foucault) e necropolítica (Mbembe). Representando momentos ditatoriais diversos, a autora analisa, sob o enfoque da imagem da cicatriz / tatuagem associada à da escrita, cenas de Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos (1954), Cartas da Prisão (1977), O canto na fogueira (1977) e Batismo de Sangue (2006), de Frei Betto, para além da trilogia de Luis Alberto Mendes: Memórias de um sobrevivente (2001), Às cegas (2005) e Confissões de um homem livre (2015).

No artigo “Existências deslocadas pelo colonialismo e pela guerra”, Fátima da Cruz Rodrigues toma como pano de fundo a experiência da guerra colonial combatida, entre 1961 e 1974, pelo Estado português e por movimentos de libertação africanos. Depois de uma guerra, os que lhe sobrevivem têm de se reconstruir e de recompor as suas vidas em articulação com a realidade que o fim do conflito inaugura. É de algumas dessas heranças que trata esse texto que apresenta uma reflexão sobre a forma como a guerra colonial interferiu nas existências de antigos combatentes africanos que integraram as Forças Armadas Portuguesas (FAP) e que passaram a residir em Portugal após a libertação dos territórios onde nasceram. Com base em um trabalho de pesquisa de caracter qualitativo, com recurso a histórias de vida, reconstroem-se os percursos de alguns desses homens e procura-se perceber o sentido que os mesmos atribuíram às suas existências marcadas por descontinuidades e momentos particularmente fraturantes no que toca a construção dos seus projetos de vida. Nesse texto, caracterizam-se os diversos tipos de percursos que resultaram dessa análise, bem como os principais eixos discursivos que esses homens mobilizaram para justificar as diversas opções tomadas. A análise desses percursos e discursos permitiu, por sua vez, interpelar a problemática da construção de identidades marcadas por descontinuidades e por posicionamentos múltiplos, ambíguos e aparentemente contraditórios.

Este volume conta ainda com uma detalhada entrevista a Mustafah Dhada, professor na California State University e um estudioso da violência colonial no Império português. Percorremos, nessa entrevista, aspectos relacionados com o seu último livro sobre o massacre de Wiriyamu, perpetrado pelas tropas portuguesa em 1972, em Moçambique, no contexto da guerra colonial. Dhada revela-nos desafios associados ao trabalho com entrevistas, examina a articulação entre violência e colonialismo e traz-nos uma cuidadosa autorreflexão sobre o posicionamento do historiador na escrita da história. Ao mesmo tempo, levanta um pouco o véu sobre o seu próximo livro – que terá ainda como tema o massacre de Wiriyamu – e faz um balanço, mais de quinze anos depois, sobre a originalidade e também os limites da sua obra Warriors at Work, um trabalho seminal sobre o PAIGC e a guerrilha anticolonial na Guiné.

Os textos aqui reunidos colocam ao centro a violência colonial e se posicionam ante os quadros de sentido complacentes com políticas do esquecimento e com versões triunfalistas dos mundos que o colonialismo criou. Olhar o futuro a partir das tensões, discriminações e lutas instauradas pelo passado-presente da imaginação eurocêntrica, racista e imperial convida, nessa perspectiva, a uma imaginação política renovada e ampliada por um dever cívico da memória, ou seja, por um imperativo ético que conecte o necessário reconhecimento do passado com as lutas por futuros questionadores das heranças de violência instauradas pelos colonialismos.

Nota

* O presente dossier foi organizado no âmbito do projeto CROME – Crossed Memories, Politics of Silence. The Colonial-Liberation Wars in Postcolonial Times, financiado pelo Conselho Europeu para a Investigação (StG-ERC-715593).

Referências

DUSSEL, Enrique. Eurocentrism and modernity: Introduction to the Frankfurt lectures. Boundary 2, Durham, v. 20, n. 3, p. 65-76, 1993. Disponível em: https: / / doi.org / 10.2307 / 303341 . Acesso em: 7 maio 2019.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005.

SANTOS, Boaventura de Sousa. O fim do império cognitivo. Coimbra: Almedina, 2018. Recebido em: 1 / 4 / 2019.

Sheila Khan – Socióloga, é atualmente investigadora do Centro Estudos de Comunicação e Sociedade, da Universidade do Minho. Doutorada em Estudos Étnicos e Culturais pela Universidade de Warwick, tem, no seu percurso académico, centrado a sua atenção nos estudos pós-coloniais, com especial enfoque nas relações entre Moçambique e Portugal, incluindo a questão dos imigrantes moçambicanos em Portugal. De entre os temas que tem trabalhado inclui-se a história e a literatura moçambicana e portuguesa contemporâneas, narrativas de vida e de identidade a partir do Sul global, autoridades de memória e de pós-memória. É de destacar os seus recentes livros, “Portugal a Lápis de Cor: A Sul de uma pós-colonialidade” (Almedina, 2015); “Visitas a João Paulo Borges Coelho: leituras, diálogos e futuros” (et al., 2017, Colibri); “Mozambique on the Move: Challenges and Reflections” (com Paula Meneses e Bjorn Bertelsen, Brill, 2018). Atualmente, investigadora doutorada do projeto financiado pelo Conselho Europeu de Investigação, EXCHANGE e membro da equipa de investigação do projeto FCT / Aga Khan sobre as relações interculturais entre Moçambique e Portugal. E-mail: [email protected]  https: / / orcid.org / 0000-0002-8391-8671

Bruno Sena Martins – Investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES / UC). É Co-coordenador do Programa de Doutoramento Human Rights in Contemporary Societies e Co-coordenador no Programa de extensão académica “O Ces vai à Escola”. É docente no Programa de Doutoramento “Pós-colonialismos e cidadania global”. Com trabalho de campo em Portugal, India e Moçambique, tem pesquisado e publicado sobre o colonialismo, o corpo e os direitos humanos. E-mail: [email protected] https: / / orcid.org / 0000-0003-3367-9155

Miguel Cardina – Investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES). Foi Presidente do Conselho Científico do CES (2017-2019) e membro da coordenação do Núcleo de Humanidades, Migrações e Estudos para a Paz (NHUMEP) (2013-2106). Recebeu em 2016 a bolsa Starting Grant do European Research Council (ERC – Conselho Europeu para a Investigação) na qualidade de coordenador do projeto de investigação “CROME – Crossed Memories, Politics of Silence. The Colonial-Liberation Wars in Postcolonial Times” (2017-2022). É autor ou coautor de vários livros, capítulos e artigos sobre colonialismo, anticolonialismo e guerra colonial; história das ideologias políticas nas décadas de 1960 e 1970; e dinâmicas entre história e memória. E-mail: [email protected] https: / / orcid.org / 0000-0001-5428-457X


KHAN, Sheila; MARTINS, Bruno Sena; CARDINA, Miguel. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 45, n. 2, maio / ago., 2019. Acessar publicação original [DR]

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