Histórias, memórias e narrativas dos movimentos sociais LGBTQIA+/Historiæ/2022

No primeiro número de 2022 Historiæ apresenta o dossiê “Histórias, memórias e narrativas dos movimentos sociais LGBTQIA+”, como o próprio título indica abarca estudos que trabalham questões vinculadas aos movimentos sociais LGBTQIA+.

Ao entendermos “movimento social” como sendo coletivos de sujeitos que mobilizam ações que objetivam alcançar alterações sociais, culturais e/ou econômicas por meio de embates político-ideológicos em contextos permeados de tensões, disputas e valores. Este dossiê preocupou-se em reunir resultados de pesquisas acadêmicas que tenham as categorias “narrativas”, “memórias” e “histórias” das atuações de Organizações da Sociedade Civil de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Queers, Intersexos, Assexuados + no Brasil como eixos de produção de conhecimento. Para tanto, o dossiê reuniu artigos resultantes de pesquisas, amparadas nas múltiplas possibilidades teórico metodológicas de estudos, imbricadas com a memória, a história e suas narrações, já que as entendemos enquanto elementos centrais aos direitos humanos e componentes indispensáveis ao aprimoramento da democracia e cidadania. Leia Mais

Memorias e industrias culturales. La mediatización del pasado en América Latina/ Clepsidra. Revista Interdisciplinaria de Estudios sobre Memoria/2022

El propósito de este dossier es contribuir a nuestro conocimiento de los procesos contemporáneos de mediación y mediatización de la memoria, tanto a partir del rol que juegan las industrias culturales en la distribución y circulación de artefactos memoriales, como en los procesos de mercantilización de los pasados traumáticos. Leia Mais

Historia y memorias, relaciones entre arte e prisión /Revista de Historia de las Prisiones/2022

Este dossier reúne reflexiones sobre arte y prisión. Propone pensar las formas en las que el arte permite recrear/ reinventar las relaciones sociales en el espacio carcelario y más allá de él. Movidos por la preocupación, por lo que nos inquieta en relación a la existencia de las prisiones, el grupo a cargo de organizar este dossier formuló algunos problemas clave para animar a investigadores, artistas y activistas a reflexionar sobre sus aportes. ¿Qué espacios existen en las prisiones para la literatura, la fotografía, la pintura, el cine o la artesanía? ¿Cómo nacen y se desarrollan los proyectos artísticos en prisión? ¿Cómo puede ayudar el arte a mantener o incluso reinventar los lazos identitarios previos a la prisión? ¿Puede el arte ayudar a crear nuevos espacios identitarios en prisión? ¿Cómo conduce la producción artística a la investigación y cómo se expresa artísticamente? ¿Cómo puede el arte conducir a una reflexión política y ética sobre la prisión? ¿El uso del arte en las instituciones de privación de libertad tiene una historia? ¿Qué roles se le atribuían al arte en estas instituciones? ¿De qué manera la prisión es permeable a los movimientos artísticos y, por el contrario, de qué manera la propia institución Arte se desestabiliza y se recrea a partir del quehacer artístico dentro de espacios marginados, como las cárceles? Leia Mais

Néstor Perlongher: memórias, poéticas e espacialidades desejantes/ Cadernos Pagu/2022

O dossiê que, para a nossa felicidade, trazemos neste número 66 dos cadernos pagu responde a um tempo que, acreditamos, precisa ser notado. Ocorre que, no dia 26 de novembro deste ano de 2022, completam-se 30 anos do falecimento do antropólogo, poeta e militante argentino Néstor Perlongher. Sua dissertação em Antropologia Social, defendida em 1986 e orientada por Mariza Corrêa, uma das fundadoras do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu (Unicamp), completará, em breve, 35 anos. Notar o tempo de Néstor e de uma obra que marcou profundamente as trajetórias intelectuais e artísticas de tantas pessoas é convertê-los em oportunidade de futuro. Leia Mais

Memorias de la prisión política durante el terrorismo de Estado en la Argentina (1974-1983) | Santiago Garaño

El encuadre de una entrevista, del vínculo que va forjándose entre el investigador y el sujeto entrevistado, aparece descripto en las páginas de este libro como marca propia de la etnografía. Brotan así, en el relato, algunas huellas de los “diarios de campo” que componen el quehacer del antropólogo. En el cruce entre esa disciplina –de la que proviene su autor– y los intereses de la historia reciente se sitúa el apasionante libro de Santiago Garaño, asumiendo un tono que en ciertos momentos escapa de los corsés del estricto discurso académico. Entre el análisis detallado de documentos y del discurso de ex presos políticos, emergen también algunos elementos fortuitos que trazaron caminos en el estudio originalmente planteado, desnudando así la trastienda de la práctica investigativa. Es este uno de los aspectos singulares del trabajo que nos convoca, que resulta una invitación a sumergirse en los marcos de sentido que estructuraron la experiencia carcelaria en los años setenta y ochenta. Leia Mais

Memórias e Mortes de Imperadores romanos (I a.C. – VI d.C.) | História (Unesp) | 2020

Memórias e Mortes são dois temas que constantemente impulsionam questionamentos e pesquisas nos estudos das humanidades. A morte gera uma ausência e, certas vezes, o espaço vazio deixado pelo morto é parcialmente preenchido com discursos (escritos, esculpidos, proclamados…) sobre tal pessoa. A “busca pelo passado”, e uma idealização que vem com ela, pode explicar a frequência desses assuntos em nossas pesquisas. Nesta circunstância, observamos que os diversos documentos produzidos durante o Império Romano proporcionam diferentes pontos de vista para pensarmos nossa relação com a morte e com a memória que é elaborada sobre ela.

Conforme o estudioso das ideias, Paolo Rossi, “a memória (como bem sabia David Hume) sem dúvida tem algo a ver não só com o passado, mas também com a identidade e, assim (indiretamente), com a própria persistência no futuro” (ROSSI, 2010, p. 24). Na procura por identificação, por vezes, celebramos e lamentamos a morte através da construção de memórias que geram modelos positivos ou negativos de conduta. Portanto, memórias são discursos organizados por autores que desejam sistematizar o passado para a sua compreensão no presente. Neste ínterim, a memória é um dos suportes para o passado. Refere-se à elaboração de imagens sobre um passado, ou seja, é uma “memória manipulada” (RICOEUR, 2007, p. 93). Longe de serem elaborações neutras, as memórias respondem, sim, a objetivos determinados – normalmente por grupos que administram uma pequena região ou mesmo um país inteiro. Leia Mais

Memorias, región, conflicto, lecturas posibles latinoamericanas desde la perspectiva de la actual Comisión de la Verdad en Colombia/Ciencia Nueva. Revista de Historia y Política/2020

La crisis global de los paradigmas democráticos encuentra en los escenarios transicionales complejidades adicionales. Al desencanto experimentado ante las fragilidades de los órdenes democráticos y sus espejismos de inclusión y participación social, se suman las promesas transicionales de superación de las violencias endémicas, sin comprometer los intereses político-económicos que perfilaron los motivos de las confrontaciones armadas. Este doble reto se instala en las arquitecturas institucionales construidas en los escenarios transicionales, dibujando promesas que de manera frágil se enfrentan a las estructuras sociales construidas en los tiempos de las violencias. Leia Mais

Sandra Jatahy Pesavento: acervo, memórias e trajetórias de pesquisa / Revista do IHGRS / 2020

Sandra Jatahy Pesavento: acervo, memórias e trajetórias de pesquisa [1]

Em março de 2019 completaram-se os 10 anos do falecimento da Profa. Dra. Sandra Jatahy Pesavento (1946-2009), docente titular do Departamento de História da UFRGS e professora dos Programas de Pós-Graduação de História e do PROPUR da mesma instituição. Algumas homenagens foram feitas pela equipe que coordena o acervo da professora, abrigado no IHGRGS em Porto Alegre. Uma destas homenagens foi a IV Jornada Sandra Jatahy Pesavento que aconteceu em 8 de junho do ano passado, no Centro Histórico Cultural da Santa Casa de Misericórdia. Para ela, foram convidados alguns pesquisadores que tiveram forte interlocução com a historiadora Pesavento, seja pelo GT de História Cultural, seja pela orientação de pós-graduação. Naquele momento, surgiu a ideia de publicarmos os textos apresentados e, para isso, todos os participantes foram convidados a comporem este dossiê. Nem todos puderam aceitar, mas a maior parte, sim, enviou seu texto para nós.

A trajetória da professora / pesquisadora / historiadora, dedicada ao ensino de História e à pesquisa, resultou na projeção e no reconhecimento do inegável legado intelectual dos seus estudos nos campos da História Econômica e da História Cultural, atestando a importância da influência do seu pensamento na formação de gerações de historiadores / as e na produção historiográfica contemporânea. Sandra Pesavento fez doutorado em História Econômica na USP, seguindo formação na França na vertente da História Cultural, onde construiu uma trajetória acadêmica internacional relevante, contribuindo, sobretudo, para a formalização de acordos entre universidades francesas e a UFRGS, notadamente o acordo CAPES / COFECUB. Foi pesquisadora 1 A do CNPq desde o ano de 1996. Autora de uma vasta obra historiográfica, com aproximadamente 261 publicações (entre artigos publicados no Brasil e no exterior livros, entre individuais e coletivos e capítulos de livros), Pesavento foi uma das mais importantes historiadoras do século XX, no Brasil, cuja obra versa sobre variadas vertentes da historiografia.

Da História Econômica, com viés marxista, à História Cultural, sua extensa obra versa sobre as charqueadas gaúchas, sobre a Revolução Farroupilha, sobre a burguesia gaúcha e, também, sobre as questões do urbano, das imagens, das sensibilidades e da relação História-Literatura, estas últimas já sob o enfoque da História Cultural.

Por iniciativa da família Pesavento (esposo e filhos da historiadora), os escritos da historiadora gaúcha foram digitalizados integralmente e disponibilizados gratuitamente para a comunidade acadêmica e para a sociedade em geral. Atualmente estão alocados no site oficial do Instituto Histórico Geográfico, o qual guarda, também, seu acervo intelectual (biblioteca e material de 40 anos de pesquisa, incluindo também seus objetos, álbuns e diários de viagens). Existe, desde início de 2015, uma equipe de curadoria para o acervo, sob responsabilidade de uma historiadora (uma das organizadoras deste dossiê), que atua em diversas ações de preservação e divulgação deste arquivo pessoal tão importante para história da disciplina História de nosso estado.

Justificou-se, por este conjunto de fatores, a proposição de um Dossiê Temático na Revista do IHGRGS, focando os percursos da pesquisadora e o processo de construção dos seus objetos e metodologias de pesquisa singulares, através de seu acervo, de memórias de seus interlocutores / as e de trajetórias de pesquisas que se entrecruzam em diálogo com os seus estudos durante o período em que esteve ativamente produzindo no campo da História. A proposta emergiu desta reflexão frente à importância de sua produção, mas também frente ao momento que atravessamos no Brasil, onde se faz necessária a discussão sobre os espaços patrimoniais de guarda de documentos e o desenvolvimento de políticas públicas que auxiliem em sua salvaguarda e manutenção. Também devido à situação de pandemia que atravessamos, outras reflexões se fazem necessárias e são incorporadas em alguns textos.

O referido dossiê reúne, assim, trabalhos de pesquisadores / as, professores / as que tiveram uma significativa interlocução com a historiadora e ou com sua obra e acervo, buscando gerar e socializar novas abordagens através do seu legado, seu acervo e memórias desta pesquisadora. Compõem o dossiê: nove artigos (oito de convidados, incluindo os convidados da Jornada de 2019 e membros da equipe de curadoria do Acervo SJP, e um que veio pela chamada pública); uma entrevista com Jacques Leenhardt (professor francês de forte interlocução com a historiadora); duas resenhas de livros de Pesavento; um artigo da própria historiadora, sobre memória e patrimônio e publicado nos Cadernos LEPAARQ da UFPEL em 2008; um artigo intitulado “Conversando com Sandra”, de um colega historiador que teve uma influência da obra de Pesavento em sua trajetória acadêmica.

Também a publicação do conjunto de artigos, entrevistas e resenhas neste dossiê surge no período de comemoração do centenário do IHGRGS (agosto / setembro de 2020), o que é de grande relevância para a comunidade acadêmica e para a história do Instituto.

Desejamos uma ótima leitura a todos!

Nota

1. Esse dossiê é um dos produtos do projeto de pesquisa “O pensamento de Sandra Jatahy Pesavento e sua importância na historiografia brasileira: da história econômica à História Cultural – um estudo a partir do arquivo pessoal da historiadora”, em parceria do PPG em Performances Culturais da UFG (Universidade Federal de Goiás) com o IHGRGS, onde está depositado sob custódia o arquivo da historiadora. O projeto foi contemplado no edital ‘Chamada Universal MCTIC / CNPq n.º 28 / 2018’, portanto tem financiamento do CNPq.

Porto Alegre, 21 de julho de 2020

Hilda Jaqueline de Fraga – Doutora.

Nádia Maria Weber Santos – Doutora.

Organizadoras do Número Especial Dossiê Sandra Jatahy Pesavento


FRAGA, Hilda Jaqueline de; SANTOS, Nádia Maria Weber. Apresentação. Revista do IHGRS. Porto Alegre, n.158, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Memórias, Narrativas e Patrimônios | Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica | 2020

A vida humana e suas trajetórias, desde algum tempo, passaram a ter, nas práticas museológicas e de cunho patrimonial, uma centralidade e importância significativas, pois somente ao se considerar as experiências individuais e coletivas é que os atos de preservação se justificam. Tal perspectiva impõe-se, pois, se por um lado, a trajetória é marcada por conexões com territorialidades e materialidades, por outro, toda a produção de cultura material, matéria-prima das ações de preservação, não pode ser entendida afastada da vida humana e suas aventuras.

O dossiê Memórias, Narrativas e Patrimônios reúne 16 artigos que provocam e cruzam discussões sobre práticas patrimoniais, experiências e memórias de modos diversos como os sujeitos vivem e constroem patrimônios e potencializam ações dos agentes envolvidos nesses processos. Leia Mais

Memórias, Patrimônios e Narrativas / Ofícios de Clio / 2020

Existem três tempos, disse Santo Agostinho no livro XI de suas Confissões, “o presente do passado, o presente do presente e o presente do futuro. (…) O presente do passado é a memória; o presente do presente é a intuição direta; o presente do futuro é a esperança.” Assim também podem ser pensadas as relações entre memória, patrimônio e narrativa, uma vez que são fenômenos que adquirem sentido no presente, e mobilizam a percepção que se tem de passado e de futuro, seja como reconhecimento ou como promessa (RICOEUR, 2007). No mesmo sentido, a dimensão narrativa que envolve as noções de memória e de patrimônio lança luz sobre diferentes zonas de conflito e de reivindicações identitárias, manifestadas em lugares, discursos e celebrações.

Da mesma forma, cabe lembrar que a memória também é construída por meio de narrativas, que constituem discursos e organizam experiências, de modo a dar sentido à relação que uma coletividade estabelece com o seu passado. Essa relação está presente não apenas naquilo que se diz do passado, mas nos lugares, bens, saberes e fazeres reconhecidos como patrimônios.

Ainda que a noção de patrimônio, como herança, remonte a Antiguidade Clássica, é a sua dimensão política e suas interfaces sociais e culturais que interessam a esta discussão. De acordo com Josep Ballart Hernandez, o patrimônio é resultado de um ou mais processos de atribuição de valores socialmente construídos, em suas palavras:

El valor es una cualidad añadida que los individuos atribuyen a ciertos objetos que los hacen merecedores de aprecio. Estamos, pues, ante un concepto relativo que aparece y desaparece en función de un mareo de referencias intelectuales, culturales, históricas y psicológicas, que varia según las personas, los grupos y la épocas. (HERNÁNDEZ et al.1996, p. 215)

Esses valores resultam, por sua vez, do conjunto de memórias compartilhadas por uma coletividade, bem como dos hábitos e costumes consolidados em suas narrativas, rituais e lugares de memória (NORA, 1993). Assim, quando se propõe a discussão em torno das relações estabelecidas entre memória, patrimônio e narrativa, o que se está realmente propondo é um olhar sobre a construção, a difusão e a consolidação desses valores, que, em última análise, refletem a sociedade que os reproduz.

Nessa perspectiva, a memória é percebida não apenas como a capacidade de reconhecer e acumular uma lembrança, mas também como um processo de compartilhamento de representações sociais, as quais se manifestam de diferentes formas, desde o estabelecimento de cultos e práticas religiosas, até a superação de traumas e a reivindicação identitária. Dessa forma, como afirma Joel Candau (2012, p. 19), “Não há busca identitária sem memória e, inversamente, a busca memorial é sempre acompanhada de um sentimento de identidade”.

A importância da narrativa como um elemento de coesão tanto nos processos de patrimonialização, quanto nas buscas memoriais se faz evidente nos artigos que compõem este dossiê, demonstrando que a narrativa não se restringe ao gesto do testemunho, mas está imbricada nas práticas sociais e nos costumes consolidados por elas. Afinal, como afirma Bruner (1997, p. 152) “nuestra experiencia de los asuntos humanos viene a tomar la forma de las narraciones que usamos para contar cosas sobre ellos”.

Os artigos que compõem este dossiê discutem, cada um à sua maneira, as relações entre patrimônio, memória e narrativa. Podendo ser divididos em dois grupos: o primeiro, composto por artigos que discutem essas relações pelo viés da narrativa e dos seus desdobramentos como rituais e tradições; o segundo, composto por artigos que discutem a cultura material, expondo o modo como as coletividades se relacionam com as materialidades do seu passado. A seguir, conheça um pouco sobre cada um deles.

No artigo “Escrita, biografia e sensibilidade: o discurso da memória soviética de Svetlana Aleksiévitch como um problema historiográfico”, João Camilo Grazziotin Portal, mestrando da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) chama a atenção para a necessidade de se pensar o indivíduo como um elemento fundamental na construção da narrativa histórica, e o faz por meio de uma leitura crítica da obra de Svetlana Aleksiévitch. Nessa perspectiva, o autor discute os usos da memória enquanto fonte para o gênero literário testemunhal, abordando as noções de verdade e de testemunho no intricado limite entre a História, a Memória e a Literatura.

Com o mesmo propósito de buscar o indivíduo na construção da narrativa histórica, Vanessa dos Santos Bernardes, mestranda do Programa de Pós-Graduação (PPG) da Universidade Federal de Pelotas, em seu artigo intitulado “De soldado a santo: a história de Maximiano Domingos do Espírito Santo. ‘O homem com a grandeza de um coração bem formado’”, apresenta-nos a trajetória biográfica de um santo popular e seu legado para o imaginário social fronteiriço. Nesse artigo a noção de memória é discutida tanto em relação ao ritual de visitação / adoração ao túmulo de Maximiano, como ao compartilhamento de representações sociais referentes a sua importância para o protagonismo negro na região.

As narrativas religiosas e os rituais que as envolvem, também protagonizam o artigo “Narrativas da religiosidade popular em Bonito -MS: o mito de Sinhozinho, o santo (1940-2018)”, sob a autoria da doutoranda pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Layanna Sthefanny Freitas do Carmo. Com um olhar sensível à religiosidade popular e à dimensão mítica das narrativas sobre Sinhozinho, a autora expõe a persistência da memória pela tradição oral, bem como a importância de se considerar a literatura local como fonte.

Em “A comemoração como lugar de disputa: um estudo das mobilizações do passado pelos povos indígenas nas Comemorações dos ‘500 anos do Brasil’ (2000)”, Pedro Henrique Batistella, mestrando da UFRGS, apresenta uma profícua discussão sobre os usos políticos do passado no contexto de disputa pela memória que caracterizou as comemorações dos “500 anos do Brasil”. Com um olhar voltado às ações do e sobre o movimento indígena, o autor expõe as políticas de comemorações em suas dimensões de classe, raça, gênero e status de cidadania.

As questões metodológicas que envolvem a compreensão contemporânea dos discursos sobre gênero e sexualidade são o mote do artigo “Agripina e o diálogo com o poder: reflexões sobre gênero e sexualidade em / na Roma Antiga”, sob autoria de Caroline Coelho, aluna de graduação em História da UFRJ. Ao discutir a importância de Agripina como mulher politicamente ativa na biografia de Nero, a autora expõe as formas de poder que permeavam as relações de gênero no Império, bem como os silenciamentos e distorções acerca da construção da imagem de Agripina e das narrativas construídas sobre ela.

Os conflitos de memória e os processos de reivindicação memorial relativos a eventos traumáticos da história recente brasileira são as principais temáticas trabalhadas pelo mestrando da UNICENTRO, Bruno César Pereira, em seu artigo intitulado “O Massacre do Carandiru: entre apagamentos e exclusões, uma disputa pela memória”. Com o propósito de compreender as relações de disputa que envolvem as diferentes narrativas sobre o massacre do Carandirú, o autor busca, na produção bibliográfica e audiovisual produzida sobre o evento, expor as contradições existentes entre essas narrativas, bem como demonstrar as relações de poder e os silenciamentos decorrentes da consolidação dessas narrativas.

No artigo “Aproximação entre dois patrimônios: a construção narrativa dos Conventos Franciscanos nas Crônicas da Ordem no Período Colonial”, sob autoria de Rafael Ferreira Costa, também do PPG da UFPEL, a relação entre narrativa e patrimônio se dá no âmbito da escrita, isto é, na relevância do conhecimento preservado nas Crônicas Clássicas da Ordem dos Frades Menores de São Francisco no Brasil, para a compreensão dos processos de patrimonialização de seu espólio construtivo. O autor desenvolve, assim, uma discussão em torno do valor patrimonial das Crônicas e das edificações pertencentes à Ordem, expondo as construções narrativas que as conectam.

A relação entre os imigrantes espanhóis e a cidade de Belém do Pará, construída desde o processo migratório iniciado no século XIX, é o tema tratado por Aline de Kassia Malcher Lima, mestranda da Universidade Federal do Pará (UFPA), no artigo intitulado “Belém dos Imigrantes: espanhóis na capital paraense (1890-1920)”. Dessa forma, a autora propõe uma reflexão sobre a relevância das redes de sociabilidade e solidariedade construídas por esses imigrantes no cenário socioeconômico de Belém.

A relação entre cultura material e memória é o mote do artigo intitulado “Alinhavando as memórias: a apropriação do vestuário como objeto de recordação”, sob autoria de Laiana Pereira da Silveira, mais uma componente do PPG da UFPEL. Nele a autora discute a importância do vestuário como um objeto de recordação, sobre qual são estabelecidos vínculos identitários e de pertencimento. No mesmo sentido, a autora evidencia o papel evocador de memórias exercido pelo vestuário, enquanto objeto cotidiano que acompanha os indivíduos por toda a vida.

O necessário diálogo entre a Arqueologia e a História, para uma melhor compreensão dos processos de ocupação do território e de construção das estruturas sociais sobre as quais a sociedade brasileira está baseada, configura o mote do artigo intitulado “Cumaú ou Santo Antônio? Uma Abordagem Histórica Sobre o Forte no Igarapé da Fortaleza – AP”, sob autoria de Diovani Furtado da Silva, mestre pela Universidade Federal do Amapá (UNIFAP). Nele, o autor expõe a complexidade das narrativas construídas sobre o objeto analisado, isto é, o Forte Português construído sobre os vestígios do Forte Inglês, que por sua vez, foi construído junto a um assentamento indígena.

No artigo intitulado “Museu Imperial: narrar entre as reticências da memória e as exclamações da História”, Priscila Lopes d’Avila Borges, doutoranda da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), discute a relação entre memória, narrativa e patrimônio sob a perspectiva da educação em museus, questionando o uso pedagógico do museu e expondo os silenciamentos que podem decorrer de práticas equivocadas no relacionamento público-museu. O museu, enquanto lugar de memória, é apresentado pela autora como um universo potencial de aprendizagem, quando reconhecido como um campo de disputa e tensão entre memória e esquecimento.

Uma abordagem semelhante, relativa a comunicação entre público e instituições de salvaguarda, ou gestores patrimoniais, pode ser observada no artigo intitulado “A Importância do Inventário Participativo na Preservação do Patrimônio Cultural”, sob autoria da mestranda pela Universidade Federal do Pernambuco, Emanuelly Mylena Velozo Silva. Nele, a autora chama a atenção para a importância do inventário participativo como um instrumento cultural que aproxima sociedade civil e Estado ao longo dos processos de reconhecimento e salvaguardada do Patrimônio Cultural. Da mesma forma, aponta para a contribuição dessa forma de inventário para a valorização de tradições territórios e saberes negligenciados por formas mais convencionais de registro.

Ainda dentro de uma perspectiva crítica em relação à comunicação entre instituições de memória e seus públicos, o artigo “A pedagogia da memória através dos comentários do TripAdvisor: análise do Archivo Provincial de la Memoria, Argentina”, sob autoria de Carolina Gomes Nogueira, mestranda do PPG da UFPEL, propõe uma reflexão acerca da pedagogia da memória enquanto uma estratégia educativa adotada pelo Archivo Provincial de la Memoria, e seus desdobramentos nos discursos difundidos no ciberespaço. Assim, a autora traz para o campo do debate as conexões entre políticas de memória e justiça de transição, bem como sua relevância para a relação estabelecida entre os visitantes e a instituição de salvaguarda.

Por fim, cabe ressaltar que, como afirma Carlo Ginzburg (2007, p.8), “entre os testemunhos, seja os narrativos, seja os não narrativos, e a realidade testemunhada existe uma relação que deve ser repetidamente analisada”, e esta relação se faz ver, direta ou indiretamente, nas muitas formas como os indivíduos e as coletividades se relacionam com o seu passado. Os artigos que compõem este dossiê apresentam uma gama diversa dessas relações e, assim, contribuem para uma melhor compreensão do mundo enquanto espaço comum, neste tempo entre a memória e a esperança.

Referências

AGOSTINHO, Santo, Bispo de Hipona. Confissões. Tradução de Frederico Ozanam Pessoa de Barros. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.

BRUNER, Jerome. La Educación Puerta de la Cultura. Madri: Visor, 1997.

CANDAU, Joel. Memória e Identidade. São Paulo: Contexto, 2012.

GINZBURG, Carlo. O Fio e os Rastros: Verdadeiro, Falso, Fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

HERNÁNDEZ, Josep Ballart et al. El valor del patrimônio histórico. Complutum Extra, 6(11), 1996. P. 215-224. https: / / revistas.ucm.es / index.php / CMPL / article / view / CMPL9696330215A / 29835 Último acesso em 05 / 05 / 2020

MENDOZA GARCÍA, Jorge. «Las formas del recuerdo. La memoria narrativa». Athenea digital, [en línea], 2004, n.º 6, https: / / www.raco.cat / index.php / Athenea / article / view / 34157 [Consulta: 20-09- 2020].

RICOEUR, Paul. A Memória, a História, o Esquecimento. Campinas: Editora Unicamp, 2007.

Cristiéle Santos de Souza – Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural / UFPel.

Isabel Cristina Bernal Vinasco – Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural / UFPel.


SOUZA, Cristiéle Santos de; VINASCO, Isabel Cristina Bernal. Apresentação. Revista Discente Ofícios de Clio, Pelotas -RS, v.5, n. 8, jan./jun., 2020. Acessar publicação original [DR]

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Povos, comunidades tradicionais e grupos populares latino-americanos: oralidades, memórias e imagens | História Oral | 2019

Travessias, “SERTÃO” e Águas Amazônicas

Aquilo era a tristonha travessia, pois então era preciso”.

Guimarães Rosa

Os organizadores do dossiê Povos, comunidades tradicionais e grupos populares latino-americanos: oralidades, memórias e imagens, não poderiam deixar, em estilo de apresentação, de prestar uma discreta, mas justa homenagem à professora, pesquisadora e, acima de tudo, Amiga, Jerusa Pires Ferreira, que fez a sua travessia, pelo testemunho de pessoas queridas ali presentes, em 21 de abril de uma tarde triste, com céu limpo rumo ao Orum. Pelo contexto, imaginamos também a presença viva dos sons dos tambores. Leia Mais

Memórias da Violência Colonial: reconhecimentos do passado e lutas pelo futuro / Estudos Ibero-Americanos / 2019

Memórias da Violência Colonial: reconhecimentos do passado e lutas pelo futuro*

O crescente interesse sobre a memória dos colonialismos tem tornado cada vez mais evidente a necessidade de se confrontarem os legados das violências instauradas pelos impérios modernos. Nesse sentido, este dossiê reúne artigos que contribuem para uma reflexão sobre a atualidade do passado colonial português em uma perspectiva que privilegia o peso das heranças da violência colonial. Pretende-se, por um lado, avaliar uma realidade social invadida pelas implicações das lógicas que instauraram genocídios, escravidões, elisão de culturas ancestrais, guerras coloniais, deslocamentos, trabalhos forçados e todo um rol de opressões quotidianamente reiteradas. Por outro lado, pretende-se reconhecer de que modo o presente é também, e significativamente, o resultado de resistências e lutas anticoloniais que, inscritas historicamente, contribuíram para o fim do colonialismo político e que legaram ao tempo presente inspiradoras narrativas de dignidade humana. É esse o sentido mais amplo dos artigos aqui reunidos.

Em “As múltiplas vidas de Batepá: memórias de um massacre colonial em São Tomé e Príncipe (1953-2018)”, Inês Nascimento Rodrigues examina as reverberações memoriais produzidas por um evento disruptivo ocorrido na ilha de São Tomé em fevereiro de 1953, quando um número indeterminado de são-tomenses foi massacrado a mando do poder colonial. Posteriormente conhecido como o “Massacre de Batepá”, ele viria a transformar-se em um marco paradigmático da violência, mas também em um dia comemorativo que, a partir de 1975, permitirá conectar o imaginário de sofrimento e resistência ao colonialismo com a legitimação da nova nação independente. A autora analisa diacronicamente as três vidas do “Massacre de Batepá”, mostrando como a sua evocação é sensível a mudanças políticas e socioculturais e como o evento se mantém em uma relação espectral com o percurso pós-colonial da nação são-tomense.

Rosa Cabecinhas, por seu turno, compara representações sociais sobre o passado colonial em Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e Timor Leste. Socorrendo-se do conceito de Mia Couto de “luso(a)fonias” – implicitamente denunciador de desencontros entre antigos países colonizadores e colonizados e recorrendo a uma noção como a de lusofonia, ela própria problemática nas suas emanações neocoloniais –, a autora analisa um amplo conjunto de dados que denotam diferenças substanciais no modo como se caracterizam e valorizam as histórias nacionais ligadas a um “passado comum” colonial. Não obstante as diferenças de percepção detetadas entre os jovens participantes nos estudos, denota-se uma distinção essencial entre os participantes portugueses, que de forma dominante referem-se positivamente ao passado dos “Descobrimentos” e secundarizam a violência colonial e os jovens dos países africanos, que valorizam as lutas de libertação e tendem a visibilizar o peso e o carácter desestruturante dos modos de violência intrínsecos à experiência colonial.

No texto de Clodomir Cordeiro Matos Júnior, “A perspectiva das vítimas e a teoria social contemporânea: entre memórias do passado e futuros alternativos”, é explorada a centralidade da figura da vítima para a compreensão da violência colonial. Nessa perspectiva, a partir das contribuições de Enrique Dussel, Aníbal Quijano e Boaventura de Sousa Santos, o autor procura aprofundar a importância do processo de reconhecimento das vítimas do colonialismo na produção de uma teoria social comprometida com a superação de políticas de esquecimento. Debruçandose sobre as críticas que envolvem a versão eurocêntrica e hegemônica da Modernidade (DUSSEL, 1993), as heranças materiais e subjetivas dos arranjos coloniais (QUIJANO, 2005) e as possibilidades das Epistemologias do Sul (SANTOS, 2018), o artigo faz emergir o reconhecimento da figura da vítima e suas experiências dentro de processos significativos para a validação de memórias silenciadas e a imaginação de futuros impensados.

Em “Escrita e cicatriz: da colonização à prisão”, de Ivete Walty, são colocadas em diálogo algumas imagens da série Cicatriz, de Rosângela Rennó, com a escrita de / sobre a prisão em diferentes momentos da história da literatura brasileira, à luz do conceito de colonização em seu sentido lato, em relação com os conceitos de biopolítica (Foucault) e necropolítica (Mbembe). Representando momentos ditatoriais diversos, a autora analisa, sob o enfoque da imagem da cicatriz / tatuagem associada à da escrita, cenas de Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos (1954), Cartas da Prisão (1977), O canto na fogueira (1977) e Batismo de Sangue (2006), de Frei Betto, para além da trilogia de Luis Alberto Mendes: Memórias de um sobrevivente (2001), Às cegas (2005) e Confissões de um homem livre (2015).

No artigo “Existências deslocadas pelo colonialismo e pela guerra”, Fátima da Cruz Rodrigues toma como pano de fundo a experiência da guerra colonial combatida, entre 1961 e 1974, pelo Estado português e por movimentos de libertação africanos. Depois de uma guerra, os que lhe sobrevivem têm de se reconstruir e de recompor as suas vidas em articulação com a realidade que o fim do conflito inaugura. É de algumas dessas heranças que trata esse texto que apresenta uma reflexão sobre a forma como a guerra colonial interferiu nas existências de antigos combatentes africanos que integraram as Forças Armadas Portuguesas (FAP) e que passaram a residir em Portugal após a libertação dos territórios onde nasceram. Com base em um trabalho de pesquisa de caracter qualitativo, com recurso a histórias de vida, reconstroem-se os percursos de alguns desses homens e procura-se perceber o sentido que os mesmos atribuíram às suas existências marcadas por descontinuidades e momentos particularmente fraturantes no que toca a construção dos seus projetos de vida. Nesse texto, caracterizam-se os diversos tipos de percursos que resultaram dessa análise, bem como os principais eixos discursivos que esses homens mobilizaram para justificar as diversas opções tomadas. A análise desses percursos e discursos permitiu, por sua vez, interpelar a problemática da construção de identidades marcadas por descontinuidades e por posicionamentos múltiplos, ambíguos e aparentemente contraditórios.

Este volume conta ainda com uma detalhada entrevista a Mustafah Dhada, professor na California State University e um estudioso da violência colonial no Império português. Percorremos, nessa entrevista, aspectos relacionados com o seu último livro sobre o massacre de Wiriyamu, perpetrado pelas tropas portuguesa em 1972, em Moçambique, no contexto da guerra colonial. Dhada revela-nos desafios associados ao trabalho com entrevistas, examina a articulação entre violência e colonialismo e traz-nos uma cuidadosa autorreflexão sobre o posicionamento do historiador na escrita da história. Ao mesmo tempo, levanta um pouco o véu sobre o seu próximo livro – que terá ainda como tema o massacre de Wiriyamu – e faz um balanço, mais de quinze anos depois, sobre a originalidade e também os limites da sua obra Warriors at Work, um trabalho seminal sobre o PAIGC e a guerrilha anticolonial na Guiné.

Os textos aqui reunidos colocam ao centro a violência colonial e se posicionam ante os quadros de sentido complacentes com políticas do esquecimento e com versões triunfalistas dos mundos que o colonialismo criou. Olhar o futuro a partir das tensões, discriminações e lutas instauradas pelo passado-presente da imaginação eurocêntrica, racista e imperial convida, nessa perspectiva, a uma imaginação política renovada e ampliada por um dever cívico da memória, ou seja, por um imperativo ético que conecte o necessário reconhecimento do passado com as lutas por futuros questionadores das heranças de violência instauradas pelos colonialismos.

Nota

* O presente dossier foi organizado no âmbito do projeto CROME – Crossed Memories, Politics of Silence. The Colonial-Liberation Wars in Postcolonial Times, financiado pelo Conselho Europeu para a Investigação (StG-ERC-715593).

Referências

DUSSEL, Enrique. Eurocentrism and modernity: Introduction to the Frankfurt lectures. Boundary 2, Durham, v. 20, n. 3, p. 65-76, 1993. Disponível em: https: / / doi.org / 10.2307 / 303341 . Acesso em: 7 maio 2019.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005.

SANTOS, Boaventura de Sousa. O fim do império cognitivo. Coimbra: Almedina, 2018. Recebido em: 1 / 4 / 2019.

Sheila Khan – Socióloga, é atualmente investigadora do Centro Estudos de Comunicação e Sociedade, da Universidade do Minho. Doutorada em Estudos Étnicos e Culturais pela Universidade de Warwick, tem, no seu percurso académico, centrado a sua atenção nos estudos pós-coloniais, com especial enfoque nas relações entre Moçambique e Portugal, incluindo a questão dos imigrantes moçambicanos em Portugal. De entre os temas que tem trabalhado inclui-se a história e a literatura moçambicana e portuguesa contemporâneas, narrativas de vida e de identidade a partir do Sul global, autoridades de memória e de pós-memória. É de destacar os seus recentes livros, “Portugal a Lápis de Cor: A Sul de uma pós-colonialidade” (Almedina, 2015); “Visitas a João Paulo Borges Coelho: leituras, diálogos e futuros” (et al., 2017, Colibri); “Mozambique on the Move: Challenges and Reflections” (com Paula Meneses e Bjorn Bertelsen, Brill, 2018). Atualmente, investigadora doutorada do projeto financiado pelo Conselho Europeu de Investigação, EXCHANGE e membro da equipa de investigação do projeto FCT / Aga Khan sobre as relações interculturais entre Moçambique e Portugal. E-mail: [email protected]  https: / / orcid.org / 0000-0002-8391-8671

Bruno Sena Martins – Investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES / UC). É Co-coordenador do Programa de Doutoramento Human Rights in Contemporary Societies e Co-coordenador no Programa de extensão académica “O Ces vai à Escola”. É docente no Programa de Doutoramento “Pós-colonialismos e cidadania global”. Com trabalho de campo em Portugal, India e Moçambique, tem pesquisado e publicado sobre o colonialismo, o corpo e os direitos humanos. E-mail: [email protected] https: / / orcid.org / 0000-0003-3367-9155

Miguel Cardina – Investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES). Foi Presidente do Conselho Científico do CES (2017-2019) e membro da coordenação do Núcleo de Humanidades, Migrações e Estudos para a Paz (NHUMEP) (2013-2106). Recebeu em 2016 a bolsa Starting Grant do European Research Council (ERC – Conselho Europeu para a Investigação) na qualidade de coordenador do projeto de investigação “CROME – Crossed Memories, Politics of Silence. The Colonial-Liberation Wars in Postcolonial Times” (2017-2022). É autor ou coautor de vários livros, capítulos e artigos sobre colonialismo, anticolonialismo e guerra colonial; história das ideologias políticas nas décadas de 1960 e 1970; e dinâmicas entre história e memória. E-mail: [email protected] https: / / orcid.org / 0000-0001-5428-457X


KHAN, Sheila; MARTINS, Bruno Sena; CARDINA, Miguel. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 45, n. 2, maio / ago., 2019. Acessar publicação original [DR]

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LGBTTQI. Histórias, Memórias e Resistências / Revista Transversos / 2018

Ao nos defrontarmos com a imagem da capa desta edição (ELIAS1, Coraticum, 2018), nosso olhar se impacta com um coração que vibra num agenciamento de multiplicação de cores. Tonalidades que se chocam e se interseccionam em suas artérias, oxigenando uma vida não monocromática e sim uma “vida artista” como proposta ético-política (Foucault, 2004), potencializada por uma constituição de si que tem na diversidade sua beleza criadora. É com a força libertadora do Coraticum, da existência como obra de arte, que a 14ª edição da Transversos apresenta seu dossiê LGBTTQI: histórias, memórias e resistências, da linha de pesquisa Vulnerabilidades: pluralidade e cidadania do Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades Sociais (LEDDES / UERJ).

Este dossiê é efeito de encontros e de esforços coletivos de pesquisadorxs que focalizam, estudam e exploram temas, experiências, histórias de vida, memórias, resistências e contracondutas do universo de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transgêneros, Queer e Intersexuais (LGBTTQI).

Diversas correntes teóricas e perspectivas metodológicas, balizas temporais e geográficas e áreas do saber possibilitam debate sobre as diferenças sexuais e as de gênero, interseccionando, muitas vezes, gênero, raça, sexualidade, geração, classe, nacionalidade e estilo corporal, complexificando, assim, históricos programas culturais e matrizes de gênero.

Para além da visibilidade aqui oferecida às pesquisas e às reflexões de uma rede internacional de pesquisadorxs e instituições, sobretudo entre o LabQueer (Laboratório de estudos das relações de gênero, masculinidades e transgêneros, da UFRuralRJ) e o INTIMATE (projeto de pesquisa desenvolvido no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES- UC), o objetivo foi o de ampliar e verticalizar o debate sobre históricas formas de nomear os sujeitos, seus desejos e afetos, de atribuir sentido a si e aos outros, de produzir conhecimento sobre os gêneros e as sexualidades, sobre as diversidades corporais, as agendas teóricas e políticas da construção da subjetividade, os processos e códigos de significação, os esquemas binários de vigilância / controle e a “produção transversal das diferenças” (PRECIADO, 2004, p. 48). Ao mesmo tempo, os artigos oferecem análises sobre os processos por meio dos quais identidades são afirmadas e cristalizadas, realidades são social e culturalmente forjadas, as exclusões, marginalizações e apagamentos são produzidos, bem como destacam as inúmeras contestações das normas cisheterocentradas, as resistências e as fraturas do universal e assimilacionista, muitas vezes conjugado no masculino cisheteronormatizado.

O desafio proposto por Michel Foucault (1984, p. 13), o de tentar saber de que maneira e até onde seria possível pensar diferentemente em vez de legitimar o que já se sabe, foi potencializado por debates que desnaturalizam e fraturam os pertencimentos, identidades, papéis e expressões de gênero, os privilégios de visibilidade e de hierarquias, as estruturas definidoras de opressão, os saberes e discursos que legitimam a(s) sexualidade(s). Ao mesmo tempo, a provocação do filósofo francês foi matizada por conexões políticas e teóricas, como os feminismos, a teoria queer, o movimento transgênero e as diferentes demandas relacionadas à orientação sexual.

A genealogia, como pensada por Foucault e Nietzsche, da teoria queer nos é apresentada por Pablo Pérez Navarro por meio de suas aproximações com as políticas e teorias feministas. No artigo que abre o dossiê, Pérez Navarro problematiza como a proliferação e fragmentação do sujeito do discurso feminista promove um ataque ao sujeito universal do iluminismo ao questionar interna e fronteiriçamente a naturalização a-histórica de categorias como a “diferença sexual”, a unidade do sujeito “mulher”, os gêneros binários e a heterossexualidade. Os feminismos lésbicos, chicanos, latinos, asiáticos e afro-americanos (em suas análises da interseccionalidade das opressões de gênero, raça, classe, etnia) são destacados no artigo como caminhos que potencializaram a teoria queer no final do século XX.

Ana Cristina Santos focaliza a memória coletiva do movimento social LGBTQ em Portugal. A autora analisa as transformações associadas aos campos da lei e da política partidária, o progresso verificado na cobertura noticiosa dada a temas LGBTQ e sugere o conceito de ativismo sincrético, demonstrando o seu potencial analítico no que se reporta a compreender duas décadas de histórias, memórias e resistências do movimento LGBTQ.

Fábio Henrique Lopes traz à cena narrativas autobiográficas e escritas de si de Aloma Divina, travesti que viveu na cidade do Rio de Janeiro ao longo da década de 1960, considerada da “primeira geração”. Sua proposta foi a de identificar e explorar a emergência histórica de novas subjetividades, como a de travesti, marcadas por múltiplos e históricos eixos de diferenciação, como o gênero, a sexualidade, a diversidade corporal e a raça.

A construção de redes de amizade como táticas de (re)existência de pessoas trans na ordem cisgênera e heteronormativa são problematizadas por Rafael França Gonçalves dos Santos e Marcio Nicolau. A partir dos estudos queer, dos feminismos transgênero e negro, Gonçalves e Nicolau destacam como tais redes de afeto foram acionadas por sujeitos trans que partiram de Campos dos Goytacazes / RJ para o sul da Europa para a criação de subjetividades que borram as fronteiras binárias do existir, perturbam o controle biopolítico dos corpos e possibilitam vidas menos “normalizadas” e mais criativamente diversas.

As relações de amizade também se destacam no artigo de Beatrice Gusmano. Através de um olhar sociológico, mostra como pessoas LGB estabelecem relações de amizade e de cuidado, compartilhando o cotidiano. Um dos principais resultados apresentados é como as redes de amizade se tornam um meio não apenas necessário, mas escolhido, para construir relacionamentos íntimos resilientes, sublinhando, dessa maneira, o potencial transformador e subversivo da amizade entre pessoas LGB.

Desnaturalizar os dispositivos de poder que levam à desumanização de pessoas trans e intersexuais é o que Renata Santos Maia propõe em seu artigo Corpos dissidentes: as identidades que “intertransitam” no cinema argentino contemporâneo. Com esse fim, três produções cinematográficas (XXY [2007], El último verano de la Boyita [2009] e Mía [2011]) são as fontes escolhidas para focalizar os dilemas, dores e violências que vidas não binárias carregam em sociedades heterocentradas e masculinistas, com destaque para as latino-americanas, especialmente, a Argentina. Maia destaca como as vidas trans e intersexuais apresentadas nos filmes são atravessadas pelo determinismo dicotômico de ter que escolher um verdadeiro sexo / corpo / gênero / desejo.

Erica de Aquino Paes e Luciane da Costa Moas oferecem importantes chaves para o exame dos conflitos entre a normatividade cisgênera e a atuação transgressora da transgeneridade. A abjeção de pessoas trans produzidas pelas relações de saber-poder do discurso médico e jurídico é problematizada por meio de um estudo de caso: o da jogadora de vôlei Tiffany Abreu, mulher trans cuja atuação profissional é atravessada por tensões e negações em torno do exercício de seus direitos civis. Jogo que se desdobra na luta pela equidade de gênero em um domínio esportivo normatizado pela cis-heteronormatividade.

Ana Lúcia Santos analisa o potencial crítico e transformador de corpos protésicos e intersexo no regime capacitista e cisgénero. A partir do conceito de glitch, do feminismo digital, e das teorias crip e arte do fracasso, Santos apresenta essas vidas transviados e falhadas no desporto como resistências às classificações binárias do existir e como possibilidade de criação de identificações híbridas que transgridem positivamente a normalidade hegemônica.

A construção de certa identidade homossexual produzida pelo jornal Lampião da Esquina, durante os anos 1978-1981, é problematizada no artigo de Natanael de Freitas Silva & Natam Felipe de Assis Rubio. A partir da noção de contra-conduta, Silva e Rubio destacam os jogos de poder em torno dos diferentes significados sobre a homossexualidade presentes na sociedade brasileira de então. Aqui, mais uma vez, as existências silenciadas pela heteronorma ganham destaque nessa reescrita da história que tem nas demandas da atualidade seu ponto de partida.

Na seção de artigos livres, Santiago Arboleda Quiñonez examina a étnico-educação como meio de crítica e de transformação da colonialidade do poder (Quijano, 2002) presente nas sociedades latino-americanas. O ensino das relações étnico-raciais se destaca como forma de desnaturalizar o paradigma monocultural (masculino, branco, cristão, colonizador) e promover ações propositalmente decoloniais por meio do destaque e valorização das culturas, histórias e pensamentos das populações indígenas e afrocolombianas. A étnico-educação como ação decolonial, proposta no artigo de Quiñonez, é mais uma possibilidade de crítica e (re)existência ao “sistema-mundo patriarcal / capitalista / colonial / moderno europeu” (Grosfoguel, 2009) apresentada pela 14ª edição da Transversos

Para concluir, histórias e memórias, instituições, saberes e discursos, micro e macropolíticas, normas sexuais, programas culturais de gênero, autodeterminação e autoexpressão, demandas e direitos, opressões e hierarquias, vetores de normatização, dotações e cristalizações de sentido, possibilidades epistêmicas, intervenções corporais, potencialidades, afetos e encontros, negociações, jogos, subversões, fraturas, desestabilizações e contracondutas compõem o quadro de desafios e de objetivos desse dossiê sobre o colorido, plural e potente universo LGBTTQI, que ousa expandir e intensificar a vida.

Nota

  1. Páginas @raphaelelias @arterio.arteiro

Referências

FOUCAULT, Michel. “A ética do cuidado de si como prática de liberdade.” In: MOTTA, Manoel Barros da (Org.) Ditos e escritos: ética, sexualidade, política. Tradução de Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.

______________. História da Sexualidade 2; o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.

GROSFOGUEL, Ramón. “Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global.” In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENEZES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina, 2009.

PRECIADO, Beatriz. Entrevista com Beatriz Preciado, por Jesús Carrillo. 2004. Disponível em: http: / / www.poiesis.uff.br / PDF / poiesis15 / Poiesis_15_EntrevistaBeatriz.pdf. Acesso em 05 de setembro de 2017.

QUIJANO, Aníbal. “Colonialidade, poder, globalização e democracia.” Novos Rumos, 37, 2002, p. 4-28.

Fábio Henrique Lopes

Marina Vieira de Carvalho

Ana Cristina Santos

Rio de Janeiro, 02 de dezembro de 2018.


LOPES, Fábio Henrique; CARVALHO, Marina Vieira de; SANTOS, Ana Cristina. Revista Transversos, Rio de Janeiro, n.14, set. / dez., 2018. Acessar publicação original [DR]

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Futebol, biografias e memórias / Revista Eletrônica História em Reflexão / 2018

O período que vai de 2007 a 2016 foi cognominado, em coletânea recente, de “a década esportiva” (Spaggiari; Machado; Giglio, 2016). O balizamento temporal desses dez anos faz alusão, por suposto, ao intervalo que se estende entre o anúncio da Copa do Mundo no Brasil pela FIFA e a realização dos Jogos Olímpicos de verão na cidade do Rio de Janeiro, ocorridos há três anos atrás.

No referido decênio, como sabemos, o país assistiu a uma série de convulsões político-sociais. O otimismo, o crescimento, a inclusão e as promessas até então reinantes, e que incluíam os megaeventos esportivos na agenda das transformações e promoções por que passava a nação, parecem ter sido levados de roldão pela onda conservadora e pelo abalo institucional vivenciado em tal conjuntura histórica, a se arrastar até os dias de hoje.

Não cabe aqui, nos limites dessa apresentação, discorrermos sobre esse ponto, mas talvez valha a pena pinçar desse quadro de múltiplas, sucessivas e desencontradas crises das instituições de poder ao menos um aspecto que pode ser considerado positivo. Dentro daquilo que nos compete, tal aspecto diz respeito ao contexto dos grandes eventos de esportes transcorridos no país, com especial atenção ao futebol.

O estudo de Campos (et. al., 2017), dedicado a mapear a presença do futebol nas Ciências Sociais e Humanas no decorrer do século XXI, traz um levantamento que pode ser tomado como alvissareiro para a consolidação desse subcampo disciplinar no país. A despeito da persistência das disparidades regionais, apontadas criticamente pela equipe de pesquisa associada ao GEFuT – Grupo de Estudos em Futebol e Torcidas, da Escola de Educação Física / UFMG –, a investigação mostrou um incremento quantitativo notável na produção científica com temática futebolística nos últimos anos.

Talvez seja problemático postularmos aqui os efeitos de um “legado acadêmico” – apropriação do termo nativo, supostamente beneficente, da organização promotora da segunda Copa do Mundo realizada no Brasil em 2014 –, mas é indubitável que a visibilidade do megaevento planetário estimulou a criação de grupos e projetos de pesquisa; propiciou a realização de fóruns e reuniões em associações de pós-graduação; e motivou a organização de dossiês e artigos nos periódicos científicos centrados no temário do futebol.

Se a consolidação de tais estudos vai-se mostrar duradoura, apenas os próximos anos e as futuras pesquisas de mapeamento irão dizer. De todo modo, é de se esperar que a quantidade de novos trabalhos implique em elevação de qualidade e em adensamento analítico, bem como que a curva ascendente apontada pela equipe do GEFuT reverta-se, pelo menos no médio e no longo prazo, na estabilização dessa seara de investigações.

Para as gerações que hoje começam a lidar com o objeto, trata-se de uma forma otimista de dizer que o futebol doravante não será mais “tema menor”. Tampouco que o mesmo carecerá de seriedade e legitimidade no rol dos assuntos relevantes, tal como parte da Academia e do senso-comum quis, durante bom tempo, nos fazer acreditar.

Um dos sinais da afirmação e da consolidação dos estudos futebolísticos é o interesse dos pesquisadores em fase de formação na pós-graduação dos cursos de História e de Ciências Sociais em se dedicar a este assunto. Mais do que contabilizar números de dissertações e teses defendidas, um caminho possível para aferir o estado da arte é levantar os dossiês que vêm sendo organizados ultimamente nas revistas discentes de pós.

A título de exemplificação, invoquemos os volumes que resultaram em publicações no ano de 2018. Um primeiro exemplo é o da Revista Mosaico, dirigida pelos alunos do Programa de Pós-Graduação em História Política e Bens Culturais (CPDOC-FGV), que se intitulou “Diálogos com o futebol” [1]. O segundo, denominado “História dos esportes e do lazer”, foi uma iniciativa da Revista discente Hydra, vinculada à pós-graduação em História da Universidade Federal de São Paulo / UNIFESP [2].

O presente dossiê, cuja chamada foi lançada no ano passado, vem ao encontro dessa tendência que consideramos positiva e sintomática do interesse de mestrandos e doutorandos pela abordagem acadêmica do futebol. Pertencente ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), sediado no estado de Mato Grosso do Sul, o periódico eletrônico discente História em Reflexão, criado há mais de dez anos (2007) e publicado com regularidade semestral, também elegeu para tematização em 2019 o futebol.

Convidados pela editora da revista Kelen Katia Prates Silva, mestranda do Programa, a delinear as diretrizes do supracitado dossiê, amadurecemos inicialmente qual seria o escopo preferencial por definir. Com o critério preliminar da exclusão dos temas relativamente explorados em publicações precedentes, orientamo-nos pelo capítulo de balanço feito pela professora da UFF, Simoni Lahud Guedes, acerca da produção científica concernente ao eixo “Esporte, lazer e sociabilidade” (2010), em coletânea organizada pela Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais, a ANPOCS.

No tocante à antropologia do futebol, a pesquisadora destaca duas temáticas que avultaram nos últimos anos, tornando-se recorrentes, em função de sua visibilidade e de sua percepção mais abrangente como “problema social”. A primeira concerne às identidades construídas por meio do futebol, com mais ênfase para a relação identitária do país com a Seleção Brasileira e com as Copas do Mundo, à luz das chamadas “comunidades imaginadas”, de que falava Benedict Anderson para pensar a emergência do nacionalismo no contexto pós-colonial dos países do sudoeste asiático.

O segundo assunto destacado por Guedes na sua apreciação de conjunto relaciona-se às torcidas organizadas, cujo envolvimento com a pauta da opinião pública atinente à violência urbana vem demandando da Academia estudos de relativização dos estigmas, da naturalização de comportamentos desviantes e do etos associado a estes agrupamentos juvenis na contemporaneidade.

Tendo em vista os avanços reflexivos na exploração da identidade nacional e da violência no futebol, consideramos de modo alternativo um dossiê com foco futebolístico capaz de cobrir um ângulo novo do assunto e, ao mesmo tempo, de não deixar de incitar questões tradicionais e caras ao terreno da historiografia.

Nesse sentido, elegemos dois flancos de abrangência: a relação dual entre história e memória, sempre importante como suporte conceitual na elaboração teórica dos historiadores; e a biografia, dimensão de igual importância na reflexão em torno da escrita historiográfica, em função do que pressupõe para o entendimento da relação entre indivíduo, sociedade e temporalidade, ou, para usarmos os termos críticos de Bourdieu, para desconstruir sua “ilusão biográfica”.

Ambos os temas sugeridos consistem em questões frequentes de interpelação, quer aos estudiosos do futebol tout court, quer aos historiadores que se dedicam a analisar as fronteiras de seu métier profissional com outras áreas. O dossiê Futebol, biografias e memórias mobiliza, pois, um ponto de partida metodológico para refletir sobre o estudo da prática deste esporte profissional, a saber, a escrita de sua história vis-à-vis a narrativa dos jornalistas esportivos.

O aquecimento do mercado editorial com livros sobre futebol, especialmente na conjuntura dos megaeventos esportivos, é uma das expressões mais candentes dos desafios de se pensar uma história científica desta modalidade esportiva, face a um volumoso material preexistente, com a capacidade de fornecer dados e informações abundantes, mas dotados de objetivos e métodos diversos daqueles almejados pelos historiadores profissionais. Assim, embora com objetos convergentes, os objetivos de cientistas sociais e jornalistas muitas vezes divergem quando se trata de procedimentos de pesquisa relacionados ao futebol.

Em artigo seminal sobre os usos do gênero biográfico na história e no jornalismo, Benito Bisso Schmidt (1997) detém-se na gama de aproximações e de afastamentos entre as duas áreas, mediadas pela literatura ou pelo que Walter Benjamin compreende como a “arte de narrar”. Ao abordar a emergência da biografia na vida contemporânea, Bisso salienta, entre os jornalistas, o advento do new journalism nos Estados Unidos, em meados do século passado, bem como o modo pelo qual as biografias são exploradas, porquanto suscitam a curiosidade e despertam de sedução no imaginário coletivo em face da vida privada de personalidades e homens célebres.

Em contrapartida, os historiadores assistiram a uma retomada dos relatos biográficos desde fins dos anos 1970, quando a historiografia deixa de lado postulados estruturalistas e críticas ao positivismo da história oficial, também chamada dos grandes vultos, para apostar no potencial de abordagens históricas que podem, no limite, ajudar a reconstituir painéis históricos inteiros. O reconhecimento do papel do sujeito na história permite a recuperação das histórias de vida de anônimos, seja os egressos da cultura popular do Renascimento – como no caso do moleiro Menocchio de Carlo Ginzburg – seja os personagens saídos da cavalaria medieval – como no episódio do marechal Guillaume, enfocado por Georges Duby.

Não é o momento apropriado, nos limites de uma Apresentação, para aprofundar a longitude dessa discussão. Nosso intuito consiste apenas em sublinhar a pertinência do debate escolhido para esse dossiê, bem como sua relevância de fundo, na medida em que se trata de articular os estudos futebolísticos com a agenda de questões biográficas e memorialísticas com que a historiografia se depara de maneira cíclica.

Para este número, após o cumprimento das etapas constitutivas do “fazimento editorial”, quais sejam, a divulgação da chamada, a submissão dos autores, o parecer por pares cegos, a retificação dos originais em atendimento às avaliações, o cumprimento dos prazos e a padronização final dos textos à guisa de publicação – o presente dossiê chegou à seleção de 8 artigos aprovados, somados a uma entrevista e a uma resenha.

Além de uma contribuição em espanhol, submetida por trio de pesquisadores uruguaios, observa-se o alcance nacional do dossiê, em termos de diversidade regional, institucional, disciplinar e de titulação dos autores cujos textos foram afinal aprovados. Haja vista que a maioria das biografias tende a enfocar futebolistas que se tornaram ídolos esportivos, o presente dossiê contempla análises de personagens históricos, como Pelé e Garrincha, chegando até os dias de hoje, com o caso de Neymar Jr.

Outro alvo tematizado no dossiê são os livros apologéticos que narram a saga dos clubes de futebol, via de regra escritos por aficionados e memorialistas. Estes, na linha dos antiquaristas, voltam-se para o passado das suas agremiações clubísticas, em busca de datas, anedotas, mitos de origem e feitos extraordinários protagonizados por figuras lendárias do seu panteão.

Ainda no quesito do memorialismo, o dossiê conta com uma contribuição que se debruça sobre a trajetória do torcedor-símbolo de um modesto clube de Pelotas, o Farroupilha. Neste trabalho, o argumento incide na construção da persona abnegada, cujos sacrifícios altruísticos em prol do time do coração exemplificariam o lídimo amor clubístico, à primeira vista autêntico e incondicional.

Dois outros artigos perscrutam as origens futebolísticas por meio dos espaços, um deles com foco no futebol de várzea paulistano, outro com respeito à introdução da prática nas praças públicas da cidade de Fortaleza. Aqui lança-se luz no caráter espacial do jogo, seguido por modificações bruscas desses mesmos espaços ao longo do século XX e no início do século XXI, relegando-as à condição de esquecimento.

Não obstante, tais artigos chamam ao mesmo tempo a atenção para a imbricação dos dois episódios com as abordagens contemporâneas que entendem a relação espaço-temporal na chave não somente dos documentos, mas também dos monumentos, com destaque para os lugares de memória a que se referia Pierre Nora.

Last but not least, o dossiê completa-se com a publicação de uma entrevista e de uma resenha, sendo ambas voltadas para as práticas e representações do futebol feminino no Brasil. Esta temática, não custa repetir, vem cada vez mais galvanizando pesquisadores interessados em revisitar a escrita da história deste esporte à luz dos estudos de gênero e das questões que se colocam para a mulher e para o corpo feminino na contemporaneidade.

Por fim, não podemos deixar de reiterar nosso agradecimento ao generoso convite de Kelen para a organização do dossiê que ora vem a público, após quase um ano de labor e de preparação.

Notas

1. Disponível em: http: / / bibliotecadigital.fgv.br / ojs / index.php / mosaico / issue / view / 4166.

2. Disponível em: http: / / www.hydra.sites.unifesp.br / index.php / pt / numeros / 75-numero-5-volume-3-dezembro2018

Referências

CAMPOS, Priscila (et. al.). “Produção sobre futebol nas ciências humanas e sociais: um mapa a ser analisado. In: CORNELSEN, Élcio Loureiro; CAMPOS, Priscila; SILVA, Sílvio Ricardo da. Futebol: linguagens, artes, cultura e lazer. Rio de Janeiro: Jaguatirica, 2017.

GUEDES, Simoni. “Esporte, lazer e sociabilidade”. In: DUARTE, Luiz Fernando Dias (Org.). Horizontes das ciências sociais no Brasil: antropologia. São Paulo: ANPOCS, 2010.

SCHIMDT, Benito Bisso. “Construindo biografias…historiadores e jornalistas: aproximações e afastamentos”. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 19, 1997, p. 3-21.

SPAGIARI, Enrico; MACHADO, Giancarlo; GIGLIO, Sérgio (Orgs.). Entre jogos e copas: reflexão de uma década esportiva. São Paulo: Intermeios / Fapesp, 2016.

Bernardo Buarque de Hollanda – Professor da Escola de Ciências Sociais (FGV-CPDOC)

Raphael Rajão Ribeiro – Doutorando em História Política e Bens Culturais (FGV-CPDOC)


HOLLANDA, Bernardo Buarque de; RIBEIRO, Raphael Rajão. Apresentação. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v. 12, n. 24, jul. / dez., 2018. Acessar publicação original [DR]

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Memórias, ofícios e lutas de trabalhadores e trabalhadoras no Brasil / História & Perspectivas / 2017

Para este Número 57, da Revista História & Perspectivas, temos a composição do Dossiê Memórias, ofícios e lutas de trabalhadores e trabalhadoras no Brasil e uma seção de artigos com diferentes temáticas.

Ao definir a temática para a chamada deste dossiê, o Conselho Editorial da Revista teve como objetivo construir um panorama sobre estudos com diferentes abordagens, que enfocassem diversos aspectos envolvidos na constituição da condição de trabalhadora ou trabalhador e de seus modos de vida no Brasil. O propósito era de que a delimitação dessa temática abrangesse estudos sobre questões relacionadas a formação de identidades, construção de ofícios, relações de gênero e etnicorraciais, movimentos sociais, organizações sindicais, memórias, lutas, embates e disputas de trabalhadoras e trabalhadores, implicadas na própria constituição do ser trabalhadora ou trabalhador e de suas vidas em diferentes temporalidades e espacialidades do Brasil.

Apresentamos seis artigos originados de pesquisas em torno de trabalhadores e de trabalhadoras no Brasil, sua experiência de atuação profissional, seus movimentos de organização e luta, relações com imprensa, transformações nas relações de produção e de poder nos espaços de vida, em diferentes temporalidades e conjunturas entre os séculos XIX e XXI.

O primeiro artigo, de Luiz Antonio Dias, analisa como o jornal O Estado de S. Paulo retratou os movimentos de trabalhadores, tanto rurais como urbanos, no período que antecedeu o Golpe de 1964, e como justificou o golpe e a violência que se seguiu sobre os trabalhadores. O segundo, de Maristela Novaes e Noé Freire Sandes, discute a presença de profissionais do vestuário (fiandeiras, tecelãs, costureiras, alfaiates, comerciantes) no contexto cultural de Villa Platina, região do Triângulo Mineiro, no início do século XX, a relação dessa sociedade com seu sistema de vestuário e com o comércio direcionado a esse ramo nos termos da redefinição da tradição da manufatura de roupas. O terceiro, de Rosane Marçal da Silva, problematiza elementos e dimensões do processo de intensificação da produção industrial e as mudanças que o trabalho industrial ocasionou na vida dos trabalhadores das indústrias de confecções do vestuário, em Santa Helena, no Paraná, durante os anos 1980-2000. Valéria de Jesus Leite se debruça sobre a organização dos trabalhadores em Montes Claros e Norte de Minas Gerais, suas demandas e suas lutas, entre as décadas de 1970 e 1980, problematizando o processo de modernização econômica. Cleber Augusto Gonçalves Dias e Marina Fernandes Braga Nakayama apresentam reflexões sobre práticas e espaços de sociabilidade de trabalhadores durante o tempo livre e o lazer em Juiz de Fora, na Zona da Mata mineira, com base em relatos presentes nos processos crime de homicídio produzidos do período de 1900 a 1924. Escravos que se tornam senhores de escravos é o objeto de discussão de Robson Pedrosa Costa, que investigou um modelo de gestão implementado pela Ordem Beneditina do Brasil em Pernambuco, durante os séculos XVIII E XIX, a partir do estímulo dado a escravos a possuírem os próprios escravos para o trabalho em suas roças.

Na segunda seção deste número consta um conjunto de nove textos.

Luis Fernando Cerri e Caroline Pacievitch cotejando obras de Jörn Rüsen e de Agnes Heller para discutir suas posições sobre consciência histórica e suas possíveis implicações para a Didática da História, face à importância da defesa de valores como a razão, a verdade e a democracia para a formação de historiadores e professores de história. João Paulo Pereira Coelho e José Joaquim Pereira Melo desenvolvem reflexão sobre o conceito de passado em suas dimensões sociais e históricas, considerando as relações entre enfrentamentos sociais e diferentes formas de apropriação do passado.

Rosana Areal de Carvalho se dedica a compreender a publicação da obra de Primitivo Moacyr e discutir o modo como a questão da instrução enquanto responsabilidade do Estado se fez presente no cenário político e cultural brasileiro entre anos 1930 e 1940. Maria Aparecida Leopoldino desenvolveu pesquisa no campo da História da Disciplina Escolar, tomando como objeto de estudo e fonte de pesquisa o manual O Brasil e o Paraná para uso nas escolas primárias, de 1903, no contexto dos ideais republicanos e da construção de uma “história regional”. Ao mesmo tempo, a relação entre intelectuais educação e imprensa durante o debate brasileiro em torno da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1961 é o objeto de estudo de Maria Cristina Gomes Machado e Mário Borges Netto, que problematizaram o modo como os intelectuais lidaram com a imprensa para divulgar distintos projetos educacionais no conflituoso processo de constituição e consolidação da escola pública estatal.

Kalina Vanderlei Silva dedica-se à análise crítica e paleográfica de três manuscritos setecentistas, da Capitania de Pernambuco, sobre festas públicas, discutindo possibilidades de estudo de documentos camarários e de interpretação das festas como espaços de demarcação de status para a elite açucareira colonial. André Luiz Moscaleski Cavazzani e Sandro Aramis Richter Gomes discutem práticas terapêuticas em uma região da Província de São Paulo, nos anos de 1848 a 1851, a partir do estudo de registros de tratamentos de doenças em memórias de famílias. Também tratando de festas como temática de estudo, Maria Clara Tomaz Machado e Anderson Aparecido Gonçalves de Oliveira analisam práticas e saberes rurais do interior goiano a partir das festividades religiosas em homenagem a São Sebastião.

Adriana Vaz e Rossano Silva estudaram a forma como as disciplinas de desenho foram formatadas na primeira década da Reforma Universitária na Universidade Federal do Paraná para compreender a matriz do ensino de desenho no início dos anos 1970 e suas relações com outras áreas de conhecimento.

Conselho Editorial


Memórias, ofícios e lutas de trabalhadores e trabalhadoras no Brasil. História & Perspectivas, Uberlândia, n.57, 2017. Acessar publicação original [DR].

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Memórias em narrativas orais: história oral e oralidades sob os dilemas da cultura  / Escritas / 2017

Memórias hostis: O rumor de vozes em escritos

“Morta” sob condições degradantes em um campo de trabalhos “correcionais” (Vtoraïa Rechka) aos redores da cidade de Vladivostok, extremo oriente da então URSS, a voz de Ossip Mandesltam (1891-1938) – poeta e ativista político – é memória em projeção graças à Nadejda Mandelstam, a esposa, e acima de tudo um diário orgânico desse “acervo” político-poético, permitido à publicação, a partir dos anos 60. Pelo trânsito de séries ou pela oralidade na busca de outros “corpos”, Mandelstam nos faz auscultar os ruídos subterrâneos de suas histórias e poéticas revolucionárias.

Sob o diapasão de Paulo Bezerra, “O Rumor do Tempo e Viagem à Armênia”, escrito originalmente em 1925 e publicado no Brasil em 2000, testemunha a voz se fazendo escritura. Mandelstam (2000, p.92), em relatos autobiográficos, erige força perlocutória ao “tramar” críticas sócio-políticas por sua radicalidade discreta: “Não quero falar de mim, mas seguir de perto o século, o rumor e a germinação do tempo. Minha memória é hostil a tudo que é pessoal. Se dependesse de mim, eu me limitaria a franzir o cenho ao recordar o passado […] repito, minha memória não é amorosa, mas hostil, e não trabalha a reprodução, mas o descarte do passado. ” Leia Mais

Memórias e representações / Fato & Versões / 2014

Os artigos deste número da Revista Fato & Versões tratam de questões ricas na historiografia contemporânea. São textos diversos que passam pela discussão de conceitos importantes como de memória e representação, que discutem o a noção de meio ambiente e outros que recuperam processos históricos vividos em regiões diferentes do Brasil e em temporalidades distintas. Estes variados conceitos e supostos estão presentes em artigos que centralizam sua discussão na análise teórica ou em outros que partem de fontes e registros históricos específicos para interpretar as ações dos sujeitos históricos. O objetivo deste número é contribuir para reflexão historiográfica sem limitar os textos em um enredo específico.

O primeiro artigo, de Marco Lunardi Escobar e José Otávio Aguiar trabalha com um tema caro para o tempo presente, a História Ambiental. Para enriquecer a reflexão os autores propõe um diálogo interdisciplinar com outras ciências, a exemplo da Biologia e do Direito. Importante afirmar que esta produção interdisciplinar é proposta sem que as ciências percam seus supostos teóricos e suas especificidades.

Marcelo Ferreira Lemes, Rodrigo Tavares Godoi e Vanessa Barbosa de Oliveira trazem uma importante contribuição para as discussões sobre o conceito de memória. Os autores utilizam do embate entre Maurice Halbwachs contra Henri Bergson para apontar as contribuições deste último para o entendimento deste conceito. Vale ressaltar o diálogo dos autores com pesquisadoras brasileiras sobre a temática como Jacy Alves de Seixas e Ecléia Bosi.

O artigo de Camilla da Silva Portela utiliza o acervo da Delegacia de Ordem Política e Social do Maranhão (DOPS / MA) para analisar as ações repressivas contra padres ligados a ala progressista de Igreja Católica. Portela recupera um conjunto de fatos políticos na esfera federal desde o final do governo de Jânio Quadros até o início da década de 1970 para explicar as posições dentro da Igreja no estado do Maranhão e as divergências de posições dentro desta instituição.

O texto de Erasmo Peixoto de Lacerda trabalha com fontes literárias para pensar a demonização do negro no pós-abolição. Sua fonte privilegiada é a literatura de Cordel produzida por Leandro Gomes de Barros. Lacerda analisa as relações sociais vividas no Brasil no final do século XIX para compreender as representações do Diabo e sua construção como um homem negro. Nesse percurso nos mostra como a mentalidade escravagista estava presente nos primeiros anos do Brasil República e foi um dos fortes elementos culturais que provocaram rejeição à cultura afro-brasileira.

Danyllo Di Giorgio da Mota aborda o conceito de memória interpretando o processo histórico conhecido como Revolução de 30. Para problematizar estas memórias traz como fonte principal a obra biográfica de Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, um político mineiro de importante atuação nos movimentos da Aliança Liberal e da Revolução de 1930. Da Mota problematiza também a memória hegemônica deste processo conquistada pela herança varguista e o apagamento de ação de outros sujeitos que tiveram grande influência política. Outro conceito importante discutido no texto é o de tradição que o autor trabalha dialogando com autores como Reinhard Koselleck e Eric Hobsbawn.

A literatura também está presente no texto de Cássio Santos Melo que confronta duas obras para falar de populações da floresta. A obra À Margem da História de Euclides da Cunha e Coração das Trevas de Joseph Conrad. O foco do autor é a abordagem e o caráter de denúncia das condições de vida de populações destes lugares. A primeira obra trata das condições de vida e trabalho na floresta amazônica e a segunda no Congo. Melo recupera diversos aspectos da vida de Euclides da Cunha para encontrar indícios que ajudem na interpretação de sua obra. No caso de Conrad, Melo estabelece um diálogo com o crítico literário Luiz Costa Lima, para entender suas representações acerca da África e do imperialismo.

Por fim temos um texto sobre o protestantismo brasileiro e o integralismo, de João Marcos Leitão Santos. Santos parte dos supostos teóricos e metodológicos da história política para analisar as concepções políticas do protestantismo no início da república brasileira. O autor busca estas concepções na literatura e na imprensa e traz importantes considerações sobre os embates travados pelos protestantes contra a hegemonia da igreja Católica e contra os projetos políticos do integralismo.


SILVA JUNIOR, Renato Jales. Apresentação. Fatos e Versões. Campo Grande, v.6, n.11, 2014. Acessar publicação original [DR]

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Biografias, Memórias e Trajetórias / História (Unesp) / 2014

O presente fascículo da revista História (São Paulo) é iniciado pelo dossiê Biografias, Memórias e Trajetórias, organizado pelo professor Wilton Carlos Lima da Silva, do Departamento de História da Unesp / Assis. Esse dossiê é composto por autores do Brasil e de Portugal interessados no estudo dos condicionamentos políticos e culturais que incidem na construção dos relatos biográficos, na busca por fontes inovadoras para a pesquisa biográfica, assim como na reflexão do ofício do historiador dedicado à biografia.

Iara Lis Schiavinatto analisa o papel desempenhado pela imagem na consagração pública dos governantes luso-brasileiros, especialmente os participantes das Cortes Constituintes de 1820, a partir do exame de coleções de retratos confeccionados para fixar a memória oficial. A pintura também é tema do texto de Cristina Meneghello, a qual se debruça sobre a obra do pintor paranaense Eugenio de Proença Sigaud, com o propósito de reavaliar o legado de Sigaud pela confrontação da tradicional crítica artística com novos elementos aportados pela pesquisa histórica. A questão do exílio português é o centro dos dois textos seguintes. Heloísa Paulo discute as dificuldades e armadilhas metodológicas envolvidas na pesquisa biográfica dos exilados portugueses durante o Salazarismo e aponta para a necessidade de superar os relatos lineares e as memórias estabelecidas. Em seguida, Luiz Nuno Rodrigues analisa o exílio do general Antonio de Spinola, primeiro presidente da República de Portugal após a Revolução dos Cravos, que se refugiou no Brasil depois de se demitir do cargo e tentar voltar ao poder por meio de um frustrado golpe de Estado. Portugal ainda comparece em outro texto, de Elsa Lechner, dedicado a relatar a pesquisa biográfica de imigrantes que vivem atualmente nesse país e a refletir sobre as potencialidades e limites deste tipo de investigação. Quanto à Argentina, país prolífico na construção de mitos históricos, tem dois destes, dos mais proeminentes – Eva Perón e Ernesto Che Guevara – , examinados por Cecília López Badano, a qual procura compreender como a ficcionalização das suas biografias reconfigurou a percepção social, transformando-os em heróis martirizados. O dossiê é finalizado pela estimulante reflexão de Benito Bisso Schmidt a respeito das implicações éticas do trabalho do historiador biógrafo.

A seção de artigos livres traz duas contribuições relativas à história da administração da monarquia portuguesa. Armando Norte examina a formação do estamento burocrático nos séculos iniciais do Reino de Portugal, ao passo que Francismar Lopes de Carvalho se detém nas tensas relações dos funcionários e colonos da capitania de Mato Grosso com a Coroa portuguesa. Os setores populares são tematizados sob duas diferentes perspectivas. Beatriz Ana Loner estuda como a primeira extração da Loteria do Ipiranga, em 1880, incidiu sobre a vida de um conjunto de escravos e trabalhadores livres rio-grandenses. Por sua vez, Luis Reznik e Rui Aniceto Fernandes examinam as instituições que recebiam os imigrantes nas Américas, dedicando especial atenção ao Rio de Janeiro, em fins do século XIX. O Chile merece a atenção de dois autores. Manuel Loyola focaliza a chamada Buena Prensa, uma iniciativa do Vaticano para modernizar a imprensa católica no mundo, e analisa os seus desdobramentos na sociedade chilena. Por sua vez, Carlos Dominguez Ávila propõem uma original interpretação da repercussão internacional do golpe contra o governo de Salvador Allende, com base na documentação diplomática do Ministério de Relações Exteriores do Brasil. A seção é encerrada pelo artigo de Carimo Mohomed, dedicado a explorar o complexo papel desempenhado pelas correntes islâmicas na formação do estado paquistanês.

Este número é completado por uma resenha de livro a respeito da Espanha visigótica e por uma tradução de artigo do historiador espanhol Jaume Aurell, o qual dialoga com a temática do dossiê, em sua reflexão, a respeito das autobiografias elaboradas pelos historiadores.

Agradecemos pelo apoio do CNPq, da Pró-Reitoria de Pesquisa e dos Programas de Pós-Graduação em História da UNESP, que viabilizaram a tradução dos artigos e as diversas fases da editoração deste número.

José Luis Bendicho Beired

Jean Marcel Carvalho França

Editores


BEIRED, José Luis Bendicho; FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Apresentação. História (São Paulo), Franca, v.33, n.1, 2014. Acessar publicação original [DR]

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Memórias, Narrativas e Fronteiras de Gênero / Territórios & Fronteiras / 2011

“Memórias, narrativas e fronteiras de gênero” foi idealizado a partir do Simpósio Temático 45 do Seminário Internacional Fazendo Gênero 9, realizado em Florianópolis (SC) em agosto de 2010. Nesse evento encontraram-se as três historiadoras que ora assumem a organização deste dossiê. Janine e Temis eram as coordenadoras do simpósio e Ana Maria estava inscrita para apresentar trabalho, como as outras também o fizeram. Conhecíamo-nos de outros eventos acadêmicos, mas o contato naquele momento conduziu à ideia de propormos um dossiê para a revista Territórios & Fronteiras, aproveitando a noção de fronteira que permeava as nossas discussões teóricas e conceituais, a aproximação de uma de nós com o Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e a temática da revista. O propósito era utilizar a metáfora das fronteiras que nos separam fisicamente em cinco regiões geográficas e aproximar, ligar ou unir alguns artigos num debate comum sobre gênero.

A noção de fronteira inspira-se em Labache & Saint Martin* . Por um lado, as fronteiras delimitam os contornos das categorias sociais (a participação desigual dos indivíduos na vida social) e, por outro, abrem espaços de troca e de encontro para que as classes se comuniquem entre si. As fronteiras separam o “nós” do “eles” e interrompem, circunscrevem ou produzem segregações na distribuição de populações ou de atividades dentro das sociedades. Essas fronteiras não são dadas: constroem-se, ultrapassam-se e desconstroem-se no tempo e com o tempo.

Os cinco artigos, de uma forma ou de outra, abordam modos de percepção e os processos de construção ou transgressão das fronteiras de gênero. Os trabalhos das autoras que circunscrevem as cinco regiões do Brasil (aqui, fronteira no conceito tradicional de espaço) tratam de estudos bem diferentes realizados nos seus contextos específicos. Ana Maria Marques (Universidade Federal de Mato Grosso – CentroOeste) apresenta sua pesquisa sobre a revista A Violeta e problematiza o feminismo da “primeira onda” por intermédio desse periódico no âmbito de uma Cuiabá e um Brasil da primeira metade do século XX. Carolina dos Anjos Nunes de Oliveira (Universidade Federal de Pernambuco – Nordeste) mostra sua pesquisa de mestrado sobre as “profissionais do sexo” nos discursos de jornais da Bahia no período entre 1930 e 1950 e discute os conflitos que emergem da visibilidade que elas ganham no espaço urbano. Janine Gomes da Silva (Universidade Federal de Santa Catarina – Sul), em coautoria com Valéria König Esteves, aborda a dinâmica do turismo rural em Joinville (SC) na sua interface com as questões da memória e do patrimônio alimentar. Lidia M. V. Possas (Universidade Estadual de São Paulo – Sudeste), por meio de sua pesquisa literária, enfoca as fronteiras das narrativas de mulheres na década de 1930 em São Paulo. Temis Gomes Parente (Universidade Federal do Tocantins – Norte) aborda a vulnerabilidade dos(as) adolescentes na fronteira do extremo norte do Tocantins e a situação de marginalidade construída historicamente nas relações familiares e de trabalho que ali se estabeleceram.

Buscando apreender os processos de enfraquecimento de fronteiras sociais hierarquizadas e experiências de ruptura de fronteiras abordadas em cada texto, convidamos a todos e a todas a empreenderem uma viagem pelos cinco (en)cantos deste Brasilzão!

Nota

* LABACHE, Lucette; SAINT MARTIN, Monique de. Fronteiras, trajetórias e experiências de rupturas. Educação & Sociedade, v. 29, n. 103, p. 333-354, maio / ago. 2008. Centro de Estudos Educação e Sociedade Brasil.

Ana Maria Marques

Janine Gomes da Silva

Temis Gomes Parente


MARQUES, Ana Maria; SILVA, Janine Gomes da; PARENTE, Temis Gomes. Apresentação. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v.4, n.1, jan / jul, 2011. Acessar publicação original [DR]

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Deslocamentos humanos. Cidades – Memórias / Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade / 2018

 

[Deslocamentos humanos. Cidades e memórias]. Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade, São Paulo, n. 21 jul. / dez., 2008. Acessar dossiê [DR]

 

Nação-Região; Memórias: abordagens, escritura / História & Perspectivas / 2004

Reunindo trabalhos que tratam de momentos decisivos da história da ocupação da terra e da gestão da população em Minas e no Triângulo Mineiro, este número 31 da revista História & Perspectivas abre-se com um dossiê composto por alguns estudos relacionando as transformações regionais com a história política, econômica e cultural do país.

O abrangente campo destas relações nação-região é visto sob vários aspectos: primeiramente através de um artigo sobre as forças militares da Capitania de Minas Gerais na segunda metade do século XVIII num contexto de intenso recrutamento militar devido às guerras de fronteiras no sul; em seguida estas relações são consideradas numa perspectiva sócio-econômica em dois estudos que examinam, num caso, o trabalho escravo na economia de subsistência do Triângulo Mineiro no processo de inserção da região na economia capitalista, e no outro, a política agrícola implementada nos anos 1960 a 1985, a criação do Sistema Nacional de Crédito Rural e os custos sociais desta modernização rural em termos regionais e nacionais. Ainda no campo destas relações nação-região, publicamos uma análise sobre a influência do catolicismo e das características culturais regionais na expansão da religião kardecista no Brasil.

Este número apresenta também um outro conjunto temático formado por três artigos sobre a memória. Eles abordam, segundo seus diferentes objetos de análise, as formas de produção social, individual, os modos de representação e de escrita da memória – ou do esquecimento, conforme trata deste último o texto sobre a construção de uma memória histórica paulista que cria seus mitos, mas exclui importantes aspectos de seu passado. A questão das representações da memória é trabalhada através das experiências cotidianas da mulheres brasileiras na passagem do século XIX para o XX, vistas na escrita literária de Júlia Lopes de Almeida. Este conjunto se encerra com uma reflexão metodológica sobre uma modalidade específica de documento histórico, o diário pessoal, registro que, na maioria dos casos, permanece anônimo e restrito a uma determinada localidade, mas pode, no entanto, ser fonte de extração de várias possibilidades temáticas por parte do historiador.

Este número traz ainda dois artigos, os quais, por meio de temáticas distintas, e situando-se em abordagens disciplinares diferentes, uma delas referente à sociologia política e a outra à história da cultura brasileira na segunda metade do século XX, tratam da cultura democrática no Brasil contemporâneo. O primeiro tem como tema a discussão sobre a agenda política presente na atual reforma do estado, observando a necessidade de uma reflexão teórica na qual o problema da responsabilidade institucional seja equacionado considerando-se as dificuldades existentes para estabelecer escolhas sociais democráticas no meio sócio-político brasileiro. No segundo, a questão da democracia na cultura nacional é analisada sob uma outra perspectiva: aquela da sua supressão durante a ditadura militar instaurada a partir de 1964 e vista por meio de uma análise do jornal O Pasquim, que na sua oposição à ditadura redefiniu a imprensa alternativa brasileira por meio da crítica dos costumes, do humor e da inovação da linguagem jornalística.

Encerrando este número, publicado por ocasião do quadragésimo aniversário do golpe de 1964, apresentamos um texto da dramaturgia brasileira que é um testemunho contundente da situação de rebaixamento político e moral gerada pela violência imposta ao país durante a ditadura militar: trata-se de uma seleção de trechos da peça Torquemada, de Augusto Boal, que retrata a covardia, a violência física e psicológica da prática degradante da tortura.


Nação-Região; Memórias: abordagens, escritura. História & Perspectivas, Uberlândia, n.29-30, jul./dez., 2003 – jan./jul., 2004. Acessar publicação original [DR].

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