Cadernos à vista: escola, memória e cultura escrita – MIGNOT (RBHE)

MIGNOT, Ana Chrystina Venancio (Org.). Cadernos à vista: escola, memória e cultura escrita. Rio de Janeiro: Eduerj, 2008. Resenha de: PETRY, Marília Gabriela Petry; MOREIRA, Glória Cristina Maciel Moreira. Revista Brasileira de História da Educação, n. 23, p. 261-267, maio/ago. 2010.

Conforme anuncia o título, o propósito da obra é trazer os cadernos escolares à nossa vista. Objeto ordinário da educação escolar, o caderno é reconhecido como elemento fundamental da escolarização moderna, mas muitas vezes passa despercebido aos nossos olhos, já tão acostumados à sua presença. O subtítulo da obra – Escola, memória e cultura escrita –, destaca o objeto “caderno escolar”, as memórias nele incrustadas bem como a reflexão acerca da cultura escrita que perpassará boa parte dos textos.

Organizado por Ana Chrystina Venancio Mignot, o livro possui 272 páginas divididas em 14 artigos escritos por autores brasileiros e estrangeiros. Sua editoração é impecável, sendo grande parte dos artigos ilustrados com fotografias que representam fontes das pesquisas.

Os 14 artigos que compõem o livro estão estruturados em quatro eixos, propostos por Mignot. São eles:

1) Balanço dos estudos feitos no âmbito da historiografia da educação;

2) Produção e circulação dos suportes e utensílios da escrita escolar;

3) Usos dos cadernos escolares;

4) Iniciativas pessoais e familiares de salvaguarda desses documentos produzidos durante a trajetória escolar.

Em “Os cadernos escolares como fonte histórica: aspectos metodológicos e historiográficos”, Antonio Viñao faz um mapeamento desses materiais pedagógicos ao longo da história, tomando-o como produto da cultura escolar, e discorre acerca das dificuldades metodológicas que perpassam as pesquisas debruçadas sobre essa temática. Discute, ainda, a utilização dos cadernos escolares como instrumento de conhecimento e reconhecimento da escola e seu cotidiano, abordando a importância de um entrecruzamento de fontes.

Em “Os cadernos de classes como fonte primária de pesquisa: alcances e limites teóricos e metodológicos para sua abordagem”, Silvina Gvirtz e Marina Larrondo apresentam um estudo, realizado em alguns países da Europa e da América do Sul, no qual evidenciam quanto os cadernos escolares dizem a respeito dos sistemas educativos e são produtores de saberes, além de transmissores. Saberes esses que devem ser incorporados pelos alunos, sendo, portanto, produtores de efeitos.

Dentre os trabalhos que apontam para um estudo da origem, produção e disseminação do uso dos cadernos escolares, bem como da importância e do sentido que esse suporte tomou em sala de aula, encontra-se o capítulo escrito por Rogério Fernandes, “Um marco no território da criança: o caderno escolar”. O autor faz uma genealogia dos cadernos escolares, os quais, aos poucos, substituíram as caixas de areia e as ardósias, que eram aparatos de baixo custo da cultura escrita. Remete o olhar para o âmbito da indústria e do mercado, os quais deram suporte para a disseminação do uso do caderno individual. Para Rogério Fernandes, não obstante o mercado estar atento às mudanças e contribuir para o uso em massa do caderno, foram necessárias também mudanças nas práticas escolares. Os alunos passaram a ser protagonistas no processo de ensino e aprendizagem, por meio da teorização e individualização, o que facilitou a difusão do caderno como principal instrumento de escrita do aluno, refletindo naquele o trabalho do professor.

Ana Chrystina Venancio Mignot, em seu capítulo “Antes da escrita: uma papelaria na produção e circulação dos cadernos escolares”, fala da trajetória da Casa Cruz, que passou de mercado de artigos de pesca a uma renomada papelaria, atendendo à elite do Rio de Janeiro, em fins do século XIX e início do século XX, estando em funcionamento até os dias atuais e atribuindo seu enorme sucesso ao ecletismo com que trabalhava. Afirma que o caderno há muito não é mais um conjunto de folhas cosidas juntas. Utilizando-se de exemplares de coleções de cadernos, anúncios em periódicos e entrevistas com antigos proprietários, Mignot faz uma relação entre os processos de escolarização, industrialização e comércio que contribuíram para a massificação do uso dos cadernos, elevando-os de objetos de desejo a objetos de consumo. Observou, ainda em seu estudo, como os cadernos contribuíram para a transmissão de valores e ensinamentos que deveriam ser perpetuados: “mensagens introjetadas de amor à pátria, de obediência à ordem e amor ao trabalho” (p. 72). Por fim, conclui que esses suportes da escrita foram banalizados, mas ao longo da história afetaram as práticas de escrita, os processos de ensino-aprendizagem e os uso do tempo nas salas de aula.

No capítulo “Instrumentos da escrita na escola elementar: tecnologia e práticas”, Márcia de Paula Gregório Razzini fala de uma demanda por outros instrumentos que começaram a servir de suporte ao papel com o crescente uso dos cadernos escolares e se consagraram ao longo do tempo, como penas, tintas e, posteriormente, lápis, canetas, entre outros. Ao utilizar várias fontes para seu estudo, entre elas anúncios, dicionários, manuais pedagógicos e inventários de escolas, a autora aponta que, além da substituição da caixa de areia ou da ardósia pelo caderno, se operou também a substituição de seus aportes, o dedo ou o lápis de pedra pelas canetas de pena, lápis e canetas de madeira. Ao concluir, a autora chama a atenção para que façamos uma reflexão sobre os usos excessivos das canetas e lápis em sala de aula, o que poderia contribuir para um empobrecimento da oralidade escolar, a qual é peculiar, uma vez que possui padrões formais que só a escola poderia e pode oferecer à maioria da população, de acordo com a autora.

Rosa Maria Souza Braga, no capítulo “A boa letra tem grande importância: Orminda Marques e as prescrições sobre a escrita”, versa sobre os cadernos de caligrafia e discute a importância que estes adquiriram no período em questão. Em seu estudo, Rosa Maria utiliza o livro escrito por Orminda, cujo intuito foi unir ciência e educação, tendo como título A escrita na escola primária. Nesse livro, Orminda defende a incorporação de uma metodologia da escrita por parte dos alunos, a qual contempla graciosidade no traço, ou seja, a necessidade de um senso estético desde cedo, além de economia do tempo na tarefa de escrita e disciplinamento do corpo.

“Aprendendo com cadernos escolares: sujeitos, subjetividades e práticas sociais cotidianas na escola”, capítulo escrito por Inês Barbosa de Oliveira, mostra como supostos consumidores não são apenas passivos de uma ação, mas usam o que lhes é oferecido para consumo e imprimem subjetividades, tornando esses objetos muito particulares e diversificando seus usos. Inês Barbosa de Oliveira defende que é possível, partindo desse pressuposto, colocar como sujeitos de um estudo não somente os alunos a quem esses cadernos pertencem, mas também os demais sujeitos da cultura escolar, como os professores e as metodologias por eles aplicadas, o que permite compreender uma “pluralidade de redes tecidas entre alunos e escola”.

No texto “Aprendendo a usar cadernos: um caminho necessário para a inserção na cultura escolar”, Anabela Almeida Costa e Santos, pela ótica da psicologia escolar e da pesquisa etnográfica, analisou cadernos de alunos de uma turma de 1ª e outra de 4ª série de uma escola pública paulista. Segundo a autora, essas duas séries marcam momentos distintos da escolarização e apropriação do objeto “caderno”, a 1a como fase de iniciação quanto ao seu uso e, no caso da 4a série, de autoria, uma vez que nesta os alunos passam a criar novas formas de se apropriar do caderno, revelando co maior ênfase características pessoais. Conclui que, ao longo dos anos, os estudantes começam a ter domínio das regras do uso desse material, o que possibilita que seja utilizado efetivamente como auxiliar de estudo.

María del Mar del Pozo Andrés e Sara Ramos Zamora, no texto “Representações da escola e da cultura escolar nos cadernos infantis (Espanha, 1922-1942)”, têm como objeto de estudo uma coleção de 300 cadernos oriundos de escolas públicas espanholas. A análise desse material permitiu um aprofundamento acerca das práticas escolares de cultura escrita dessas instituições. O foco do texto está nas “percepções da escola e dos valores educativos que se refletem nos cadernos escolares” (p. 162).

De acordo com as autoras, um dos aspectos mais interessantes da prática de escrita era a redação de cartas pelos alunos, atividade muito esmerada e presente nos cadernos. O estudo concluiu que nesses cadernos coexistiam os escritos disciplinados e dirigidos pelos professores e uma principiante forma de expressão infantil espontânea. Entretanto, as autoras não se propuseram a responder se os escritos refletiam exclusivamente a personalidade do professor ou da criança.

Em “Cadernos escolares: memória e discurso em marcas de correção”, Isa Cristina da Rocha Lopes trabalhou com uma coleção de 45 cadernos da 1a a 4a séries do ensino fundamental, originários de acervos pessoais. O estudo propôs-se a delinear tendências visíveis nesses cadernos e pode-se perceber o quanto a marca da presença do professor no período estudado (1951-2003) esteve aparente nos cadernos dos alunos, por meio de registros escritos, sinais gráficos e imagens constituintes de um discurso escolar indicador de identidades. De acordo com a autora, conclui-se que produções discursivas semelhantes podem cumprir funções diferentes, pois dependem de quando aparecem e de quais sentidos estão impregnados.

No texto “O conteúdo emocional de três cadernos escolares do franquismo”, Kira Mahamud Ângulo fala-nos da educação de meninas na Espanha, a partir da análise de três cadernos pertencentes a uma professora. Esses cadernos são conhecidos como “cadernos de circulação” ou “de aula” e são assim chamados porque todos os alunos participavam de sua escrita; destinavam-se ao registro da memória das aulas, uma espécie de diário. O objetivo do trabalho centrou-se em enfatizar o conteúdo emocional desses cadernos, a partir de três elementos: transparência da professora na expressão dos seus sentimentos, referências ao amor pátrio e religioso nas lições de comemorações e recurso à poesia para o ensino. Os cadernos continham várias poesias favoráveis ao regime franquista e serviam como impregnadores da nova ideologia. A autora concluiu, entre outras coisas, que a professora concebia o caderno de circulação como um recurso e material educativo, que exercia função de introjeção da cultura escrita, de doutrinação de uma visão de mundo a partir do conhecimento e sentimentos, não se caracterizando apenas como dispositivo de controle e inspeção.

Eurize Caldas Pessanha, no texto “Entrevendo o currículo: um estudo sobre cadernos escolares de normalistas”, usa como fonte de pesquisa dois cadernos de duas normalistas da década de 1930, um de higiene e outro de rascunho (anotações rápidas). A autora considerou esses cadernos frestas para enxergar parte do processo de negociaçãodo currículo e pretendeu analisar quais práticas de transmissão de conhecimentos poderiam ser deduzidas a partir deles. O texto está estruturado em três partes: na primeira, a autora situa os cadernos a partir da história das escolas frequentadas pelas normalistas; na sequência, descreve-os materialmente; e, por último, explicita os conhecimentos e práticas possíveis de serem visualizadas.

Em “A estética e as ilustrações nos cadernos escolares: o caso de uma escola de meninas na Espanha franquista”, Ana María Badanelli Rubio analisa cadernos pertencentes à mesma professora mencionada no artigo de Kira Mahamud Ângulo, porém de períodos diferentes. Estes “cadernos de rotação”, que relatavam os acontecimentos escolares, continham ilustrações de qualidade excepcional feitas pelas alunas. Além de servirem como diário, a professora selecionava atividades que as alunas deveriam desenvolver, o que indica que eram meticulosamente planejados. Sendo assim, esses cadernos não eram um espaço de fruição, imaginação e fantasia. A autora conclui que os cadernos não eram apenas um meio para aquisição de conhecimentos, mas também um local de registro do cotidiano escolar e de informações a respeito dos atores envolvidos. Ana María pontua, ainda, questões a respeito da estética presente nos cadernos, devido à inspeção pela qual passariam, questões de gênero e de religiosidade.

Para finalizar, em “Velhos cadernos, novas emoções”, Mirian Paura Sabrosa Zippin Grinspun dá voz às próprias lembranças a respeito dos cadernos de família e os motivos que a levaram a guardá-los. Pela análise dessa coleção, evidencia permanências e rupturas ao longo da escolarização da sua família.

Da leitura desta obra, retiramos algumas reflexões acerca do objeto “caderno”, hoje consagrado e tornado quase invisível, banalizado por aqueles que o usam.

Conforme os autores dos artigos sublinham, os cadernos são, pela especificidade que os sujeitos lhes emprestam, passíveis de serem compreendidos para além de sua materialidade, uma vez que nos falam, de modo próprio, de características de uma época. Versam sobre currículos e métodos de ensino e de como e em quais circunstâncias esses métodos foram empregados. Falam-nos de subjetividades, não somente de alunos e de professores, mas de atores envolvidos no processo de escolarização, de uma cultura específica e de processos naturalizados e internalizados por quem passa pelos cadernos escolares e deixa suas marcas escritas nas linhas e nas entrelinhas.

Os textos enfatizam a importância dos cadernos como fontes de pesquisa ocupadas de investigações que ajudam a compreender a complexa construção da cultura escolar (ou culturas, como têm preferido alguns autores). Escrevendo a partir de espaços geográficos diferentes, mas tendo em comum esse suporte material tão marcante da vida escolar, os autores remetem a diferentes abordagens e possibilidades de leitura de um mesmo objeto.

Marília Gabriela Petry – E-mail: [email protected]

Glória Cristina Maciel Moreira –  E-mail: [email protected]

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