Direita na história / Varia História / 2014

Durante muito tempo, a pesquisa acadêmica relegou a segundo plano o estudo da direita política. Em parte, isso se explica pelo desprezo que os círculos progressistas devotavam à direita, que muitos consideravam destinada ao lixo da história graças ao esperado triunfo das forças favoráveis à mudança social. Tal quadro de pensamento fortaleceu-se com a derrota da direita no contexto da Segunda Guerra, o que levou os mais afoitos a imaginar um declínio irreversível das forças conservadoras. Ledo engano. Em décadas recentes a direita demonstrou capacidade de renovar-se e formar novas lideranças, ao mesmo passo em que tem conseguido atrair apoio social e suporte eleitoral. Processos iniciados há algum tempo, como o declínio dos modelos dominantes à esquerda – notadamente a crise das matrizes soviética e social-democrata – contribuíram para esse quadro, assim como eventos mais atuais, como a crise econômica europeia. Já vão longe os tempos em que a direita parecia sem futuro, obliterada pela sensação (exagerada) de uma maré montante dos valores progressistas. O fato é que a direita “voltou” ao proscênio da política mundial – e nacional –, o que a torna um tema de pesquisa ainda mais relevante. Para os historiadores, o fato de um determinado processo ou fenômeno estar superado não diminui sua importância como objeto de estudo. Porém, sem dúvida, a atualidade aguça o nosso interesse e curiosidade, bem como as eventuais implicações políticas do nosso trabalho.

Para designar adequadamente esse campo político o melhor seria dizer “direitas” – embora a pluralidade pode ser entendida como implícita no conceito –, pois o grupo é heterogêneo e marcado pela presença de diferentes tradições políticas. O estabelecimento das “fronteiras” que definem o campo direitista é assunto polêmico. Há desde as situações consensuais, como o conservadorismo clássico e o fascismo, cujo pertencimento à direita não é objeto de questionamento sério, até o caso mais complexo do liberalismo, que gera disputas mais acirradas devido a suas implicações atuais. Por outro lado, deve ser lembrado que a própria luta contra a esquerda ajuda a estabelecer os contornos da direita, já que o combate acirrado contra os inimigos é fundamental para a sua instituição como segmento específico do campo político.

Ao longo do tempo as forças de direita construíram tradições que lograram arraigar-se profundamente, ao ponto de podermos identificar algumas delas como verdadeiras culturas políticas. Mais além de constituírem projetos de poder e basearem-se em conjuntos de ideias, as culturas de direita fornecem identidades agregadoras e implicam valores que transcendem a política stricto sensu. A manutenção da ordem, na perspectiva de algumas culturas de direita, significa muito mais do que a defesa da propriedade e de interesses materiais. Elas batem-se, também, por valores morais e, frequentemente, religiosos, que percebem como estando ameaçados pelas ações da esquerda. Fundamental levar em conta a complexidade que caracteriza os grupos de direita, estudar seus valores, seus mitos, seus objetivos, de outro modo não se alcançará análise e compreensão adequadas desse fenômeno pleno de relevância histórica e de atualidade.

Tais considerações explicam a motivação para propor este dossiê aos editores de Varia Historia. Para dar corpo à ideia de organizar o volume foram convidados destacados pesquisadores estrangeiros que se dedicam à história das direitas. A intenção é oferecer aos estudiosos do tema no Brasil – aliás, um grupo em crescimento – uma amostra do que nossos colegas do exterior têm realizado. E os cinco artigos apresentam diferentes possibilidades (teóricas, temáticas, regionais) de abordagem do campo da direita. Não se trata de aprender ou ensinar lições, afinal, estudos elaborados no Brasil também têm inspirado pesquisadores de outros países. A expectativa é estabelecer uma relação de troca que poderá ser frutífera para todos nós, inclusive porque a maioria dos autores convidados pesquisa o contexto brasileiro ou dialoga com ele.

O primeiro texto do dossiê é de autoria do pesquisador e professor português António Costa Pinto, que tem publicado importantes trabalhos sobre movimentos autoritários e fascistas da Europa. No presente artigo, Costa Pinto centra sua análise no corporativismo e nas instituições nele inspiradas, que foram apropriadas por diferentes grupos de direita. O autor analisa as origens do corporativismo, mas, sobretudo, a sua difusão no contexto entre guerras (anos 1920-40), quando alcançou vários países na Europa e em outros continentes. No texto, Costa Pinto mostra que as ideias e as instituições corporativistas, originalmente produtos do pensamento católico, transcenderam essas bases religiosas e foram adaptadas por diferentes regimes políticos autoritários e fascistas, por vezes alcançando marcante longevidade.

No artigo seguinte, a pesquisadora norte-americana Margaret Power apresenta um estudo sobre tema marcante na histórica recente das manifestações de direita, o ativismo político de grupos femininos. A participação das organizações femininas no golpe de 1964 é tema conhecido e já bastante estudado no Brasil. A novidade do artigo é mostrar as conexões transnacionais estabelecidas por tais grupos de mulheres, concentrando-se no estudo de redes que se constituíram entre Brasil, Chile e Estados Unidos. Tributária da historiografia mais recente que vem questionando visões tradicionais sobre a Guerra Fria e o papel dos atores locais nessas disputas, Power analisa como a direita norte-americana foi influenciada pela atuação das mulheres conservadoras atuantes em países da América Latina.

O terceiro texto do dossiê foi escrito por Ernesto Bohoslavsky, historiador argentino que tem oferecido contribuição importante ao estudo das direitas no cone sul. Neste artigo, Bohoslavsky analisa o tema do anticomunismo no debate político e parlamentar do Brasil e do Chile no contexto dos anos iniciais da Guerra Fria. Nesse período ocorreram processos semelhantes de perseguição aos comunistas nos dois países, que culminaram na exclusão dos respectivos Partidos Comunistas do jogo político institucional, nos anos de 1947 e 1948. Aprofundando o estudo dos discursos políticos produzidos por líderes de direita nesse contexto, o autor encontrou um quadro mais complexo no que toca ao anticomunismo professado por todos eles. A iniciativa de proscrever os partidos comunistas do jogo político não foi aceita de maneira unânime entre as direitas, que divergiram na estratégia de combate ao comunismo. Enquanto alguns setores apoiaram a repressão total aos partidos comunistas, outros grupos de direita acharam que a proibição do funcionamento legal de tais partidos era ineficiente, além de significar uma agressão inaceitável às garantias democráticas tradicionais.

No artigo seguinte do dossiê publicamos uma interessante reflexão do historiador francês Stéphane Boisard, cujas pesquisas têm como foco as direitas na América Latina. Neste texto, a proposta de Boisard é fazer algumas reflexões gerais sobre a aplicação à América Latina de categorias e conceitos elaborados originalmente para o quadro europeu. Partindo da análise dos principais debates teóricos realizados por autores europeus para a caracterização das direitas, o autor aponta a necessidade de aprofundar as pesquisas sobre esse tema na América Latina. Enfatizando a importância de pesquisar as redes de circulação de ideias entre a América e a Europa, e o modo como os conceitos europeus foram recebidos nesta parte do mundo, Boisard sugere, entre outras coisas, que se dê atenção especial à periodização da história das direitas, e que se busque uma adequada caracterização dessas correntes políticas na América Latina.

O texto do historiador norte-americano Benjamin A. Cowan encerra o dossiê, com um esclarecedor estudo que aponta a atualidade do tema da direita. Ele aborda a história recente da atuação política dos evangélicos conservadores, que ganharam notável visibilidade nos dias atuais. A originalidade do trabalho de Cowan reside em mostrar o processo de surgimento e ascensão da direita evangélica em seus primórdios, nos anos 1970. Atemorizados com o processo de mudança de comportamentos e valores morais, que eles percebiam como implicado nas ações da esquerda, os evangélicos conservadores abandonaram sua atitude tradicional de evitar o campo político. Eles passaram a abraçar com entusiasmo a militância conservadora, entrando em choque com grupos protestantes de linha “progressista”. Nesse caminho, aliaram-se à ditadura militar, em nome da defesa da família tradicional e da moral cristã, contra a liberdade sexual e o comunismo.

Enfim, o leitor tem nas mãos um conjunto de trabalhos de qualidade, que mostram o “estado da arte” no campo de estudos da história da direita. O dossiê é uma aposta no estreitamento do diálogo transnacional envolvendo os pesquisadores dedicados ao tema, assim como um convite para que jovens historiadores venham se juntar ao grupo.

Boa leitura, bom diálogo.

Rodrigo Patto Sá Motta – Departamento de História Universidade Federal de Minas Gerais.


MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.30, n.52, jan. / abr., 2014. Acessar publicação original [DR]

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História e culturas políticas / Varia História / 2002

Dando seqüência a um formato editorial iniciado a partir do número 25, quando Varia Historia passou a ser organizada pelas linhas de pesquisa do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG, apresentamos a presente edição, cuja coordenação coube à linha “História e Culturas Políticas”.

Abre este número de Varia Historia um dossiê que reúne parte dos trabalhos apresentados no “Colóquio História e Culturas Políticas”, realizado pela linha em novembro de 2001. O evento reuniu pesquisadores da casa e convidados de outras instituições, com o objetivo de empreender esforço conjunto de discussão em torno desse campo de pesquisa que se configura instigante e inovador. De fato, nota-se vivo contraste entre a riqueza de possibilidades abertas pelo estudo das culturas políticas, que descortinam universo amplo de indagações a serem colocadas aos fenômenos políticos, e a relativa escassez de reflexões sobre o alcance- e eventuais limitações- do trabalho com essa categoria.

No dossiê, publicamos sete dos textos apresentados no Colóquio, amostra pequena mas significativa das discussões empreendidas. No texto inicial, a Prof. Eliana Regina de Freitas Dutra faz um balanço das definições e da história do conceito de cultura política, e ao mesmo passo, realiza inventário das principais tendências historiográficas que, a partir do diálogo com outras ciências sociais, têm se dedicado a esse campo de análise e pesquisa. A Prof. Carla Maria Junho Anastasia oferece algumas reflexões sobre a violência política e os motins na América portuguesa do século XVIII , além de analisar como, sob o impacto da edição da Lei da Boa Razão, que implicou o cerceamento de direitos costumeiros internalizados pelos vassalos da coroa, foram engendradas novas formas de ação coletiva.

O artigo da Prof. Kátia Gerab Baggio enfoca fenômeno político importante para compreender a América Latina contemporânea, a cultura política nacionalista. Ela privilegia os casos de México, Cuba e Porto Rico e procura apontar as representações nacionais construídas nesses países, respeitadas as nuanças e particularidades de cada situação. No seu texto, a Prof. Angela de Castro Gomes retoma o debate envolvendo as categorias populismo e trabalhismo, e apresenta interessante roteiro de análise. A proposta é pensar o populismo como um mito político, integrante do imaginário social brasileiro, e encarar o trabalhismo como uma tradição política pertencente ao campo do pensamento social / político. Compreender o “queremismo”, ou seja, o movimento que levou contingente expressivo de populares às ruas, em 1945, demandando a permanência de Vargas no poder, é o eixo do trabalho do Prof. Jorge Ferreira. Partindo da análise das crenças e valores daqueles trabalhadores, o autor procura explicar as razões da persistente popularidade do ditador que, paradoxalmente, via o regime que havia construído se esboroar.

O tema do Prof. João Trajano Sento-Sé é o brizolismo, força política preponderante no Rio de Janeiro dos anos 1980 e 1990. O argumento central do artigo é explicar a popularidade do líder gaúcho no Rio de Janeiro, que teria a ver com a capacidade do brizolismo de mobilizar certos aspectos da cultura política carioca. O Prof. José Antonio Dabdab Trabulsi, cujo texto encerra o dossiê, procura analisar as visões construídas pela historiografia européia do século XIX acerca da cidade grega antiga, mostrando como essas leituras eram informadas pela influência de culturas políticas contemporâneas como o republicanismo, o conservadorismo e o socialismo.

A revista traz ainda outros quatro artigos. O trabalho do Prof. Marcelo Cândido da Silva está centrado na análise da obra de um autor medieval, Gregório de Tours, historiador do reino Franco. A hipótese sustentada é que o texto, para além do conteúdo moralizante e religioso, pode ser usado como fonte para compreensão da história política merovíngia. Já o texto da Prof. Berenice Cavalcante tem como tema a obra política e intelectual de Afonso Arinos. Submetidos à análise da autora, os escritos do ex-Senador revelam um intelectual refinado, capaz de aliar uma notável faceta moderna à sólida formação clássica. Um confronto entre memórias de militares e militantes políticos de esquerda, atuantes nos embates dos anos 1960 e 1970, é o que nos apresenta o Prof. João Roberto Martins Filho. Do contraste entre essas falas, constata o autor a permanência do tema da tortura como pomo de discórdia entre as esquerdas e os militares. Fechando a edição, temos o artigo de Eduardo Flores Clair e Alba López Mijares, que revela faceta pouco conhecida das sociedades mineiras da Nova Espanha no século XVIII, qual seja, o cotidiano familiar e doméstico daqueles grupos sociais, em que afloram sentimentos e segredos íntimos e, também, a violência.

Rodrigo Patto Sá Motta

Heloisa Starling

(Organizadores)


MOTTA, Rodrigo Patto Sá; STARLING, Heloisa. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.18, n.28, dez., 2002. Acessar publicação original [DR]

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