Astronomia em Camões – MOURÃO (EPEC)

MOURÃO, Ronaldo Rogério de Freitas. Astronomia em Camões. São Paulo: Lacerda Editores, 1998. 166 p. Resenha de: RIBEIRO, Juliana. Os vários céus de Camões. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v.12, n.02, p.281-286, mai./ago. 2010.

Abre parênteses: In(certezas) Tudo indica que tenha nascido em Portugal, entre 1517-1525. Alguns registros apontam, veementemente, que o ano exato do seu nascimento é 1524.

Sem muita clareza, acredita-se que tenha pertencido à pequena nobreza, que estudou Humanidades em Coimbra, que perdeu o olho direito em um combate – depois de ter ofendido certa dama da corte.

Foi preso, embarcou em uma expedição para a Índia e, ao tentar regressar, foi vítima de um naufrágio na foz do Rio Mecom. Sobreviveu às suas impetuosas correntezas, nadando com apenas um braço – já que o outro se manteve erguido, incansavelmente, velando pela ode que o imortalizou.

Viveu miseravelmente em Moçambique, até ser encontrado pelo amigo Diogo do Couto, que deixou registrado: “tão pobre, que vivia de amigos”.

Retornou a Lisboa e, após alguns contatos com o rei D. Sebastião, publicou Os Lusíadas, em 1572.

Faleceu em 1580, tornando-se o Príncipe dos Poetas.

Fecha parênteses: Veracidades Apesar do vasto imaginário que existe em torno da vida de Luís Vaz de Camões, com toda fidúcia, pode-se afirmar que sua obra transgride a égide de seu tempo.

Com linguagem prodigiosa e singular, o poeta estabelece uma relação indissociável entre as mais diferentes instâncias de sua época: o povo português, os amores, as misérias, as guerras, os desbravamentos, as descobertas científicas – tudo está intrínseco em seu discurso: ora heroico e extasiado, ora empolgante e profético, ora lastimoso e melancólico.

Ficção e realidade mesclam-se perfeitamente e, juntas, abrolham uma linguagem que reflete – acima de tudo – um recorte da história de uma estação, com todas as suas mazelas, conquistas e descobertas.

Sustentação: Camões e a Astronomia “O melhor método para conhecer a cultura científica de uma determinada época é estudar as obras literárias e/ou as publicações não especializadas que se utilizavam do conhecimento científico ensinado nas universidades daquele período”. Com essas palavras, o pesquisador e astrônomo Ronaldo Rogério de Freitas Mourão inicia seu paralelo sobre os pormenores do principal poema épico da contemporaneidade – Os Lusíadas, em A astronomia em Camões –, e o conhecimento que especialistas daquele tempo detinham acerca do universo.

A epopeia, estruturada em dez cantos, apresenta uma linguagem vigorosamente metafórica, que reflete uma perspectiva bastante singular e embasada nas ideias astronômicas que vigoravam no século XVI.

Camões, assim como a maior parte dos cientistas daquele momento, possuía visão cosmogônica do mundo, que corroborava com a premissa de que a origem do universo estava associada às lendas, religiões, mitologias e teorias científicas. Talvez seja este o motivo que o levou a adotar, em sua principal obra, os preceitos instituídos pelo sistema proposto pelo astrônomo grego Ptolomeu – benquisto pela igreja, pelos teólogos e pela corte europeia renascentista, com seus 11 céus e o inseparável vínculo com a astrologia.

Ptolomeu propôs um sistema cosmológico, onde a Terra estaria no centro do universo e os outros corpos celestes descreveriam movimentos circulares uniformes ao seu redor. Esses movimentos eram perfeitos, sempre idênticos, fechados sobre si mesmos e, sobretudo, sem início e fim.

Tais movimentos – principalmente os realizados pelos planetas, que também eram chamados de estrelas – constituem objetos de estudo dos astrônomos.

Assim, eles instituíram os sistemas de círculos ou esferas, que compreendiam uma esfera principal, associada às secundárias. Era a esfera principal – ou céu, como Camões descreve em Os Lusíadas, a base para os movimentos dos círculos menores que compunham todo o universo.

Céus de Camões A morada do criador, dos espíritos virtuosos, dos justos, santos e anjos era chamada de Céu Empírio – o maior e mais distante. Impossível de ser visto da Terra, foi revelado ao ser humano pelos textos sagrados.

Referência contínua nas explanações dos poetas, teólogos e filósofos, este céu envolvia todos os outros. De maneira eloquente, é apresentado no Canto X do poema camoniano, como o destino dos merecedores da salvação eterna.

Este orbe que, primeiro, vai cercando Os outros mais pequenos que em si tem, Que está com luz tão clara radiando Que a vista cega e a mente vil também, Empíreo se nomeia, onde logrando Puras almas estão daquele Bem Tamanho, que Ele só se entende e alcança, De quem não há no mundo semelhança. (Lus., X)

Já o abrigo dos doze signos e do Zodíaco, chamado Primeiro Móvel, era grande, veloz e virtuoso. Capaz de mover todos os outros céus que estavam situados abaixo, ficou conhecido como a mais nobre de todas as esferas.

Enfim que o sumo Deus, que por segundas Causas obra no Mundo, tudo manda.

E, tornando a contar-te das profundas Obras da Mão Divina veneranda:

Debaixo deste círculo, onde as mundas Almas divinas gozam, que não anda, Outro corre, tão leve e tão ligeiro, Que não se enxerga: é o Móbile primeiro. (Lus., X)

Transparente e límpido era o Cristalino e, na maior distância onde os olhos alcançam, estava o Firmamento. Repleto de estrelas – fruto da dádiva divina.

A mais importante era o Sol – claro olho do céu e repleto de luz própria.

Debaixo deste grande Firmamento Vês o céu de Saturno, Deus antigo; Júpiter logo faz movimento, E Marte abaixo, bélico inimigo; O claro Olho do céu, no quarto assento, E Vênus, que os amores traz consigo; Mercúrio, de eloquência soberana; Com três rostos, debaixo vai Diana. (Lus., X 89).

Em contrapartida, havia a Lua. Há quem acredite, ainda hoje, que sobre uma grande colina, é possível tocá-la. Majestosa, tornou-se inspiração de poetas. Instigante, é símbolo de culto e adoração de diversos povos. Apesar de os avanços científicos terem-na reduzido a satélite – sem luz própria – a pujança de sua existência se entrelaça aos destinos humanos.

Em Os Lusíadas, a Lua media o intervalo de tempo. Suas fases apontavam, com precisão, a saga portuguesa a caminho das Índias. Seus intervalos elucidavam partidas e chegadas.

No Canto V, Camões narra a partida da armada no dia 8 de julho de 1947, em Lisboa, até o desembarque na Baía de Santa Helena, no dia 4 de novembro. Nos quatro meses decorridos, a Lua passou cinco vezes de quarto crescente à cheia – passando “de meio rosto para rosto inteiro”, e estabelecendo o tempo da viagem de Vasco da Gama.

Mas já o Planeta que no céu primeiro Habita, cinco vezes apressada, Agora meio rosto, agora meio inteiro, Mostrara, enquanto o mar cortava a armada, Quando da etérea gávea um marinheiro Pronta coa vista: “Terra! Terra!” brada: Salta no bordo alvoroçada a gente Cós olhos no Horizonte do Oriente (Lus., V) Entre os proeminentes estudiosos e admiradores da obra camoniana, o pesquisador e astrônomo Ronaldo Rogério de Freitas destaca-se por essas e outras referências que apontam que o poeta quinhentista não poderia ter se baseado apenas em sua experiência e em leituras secundárias para associar – com tanta magnitude e acuidade – as descobertas astronômicas da época com sua narrativa.

A precisão com que construiu, no Canto X, a grande Máquina do Mundo aponta difíceis conceitos astronômicos. As constelações conhecidas – ainda hoje – já estavam presentes, de maneira magistral, na obra do poeta.

Olha por outras partes a pintura Que as Estrelas fulgentes vão fazendo: Olha a Carreta, atenta a Cinosura, Andrómeda e seu pai, e o Drago horrendo; Vê de Cassiopeia a formosura E do Oriente o gesto turbulento; Olha o Cisne morrendo que suspira, A Lebre e os Cães, a Nau e a doce Lira.

(Lus., X) Seria o Príncipe dos Poetas também um astrônomo? Esta pergunta, assim como tantas outras, irão complementar o imaginário que é traçado acerca da vida deste que foi, indiscutivelmente, um dos maiores escritores de todos os tempos.

Juliana RibeiroMestranda em Estudos de Linguagens pelo Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET/MG).

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