Multimedia Learning – MAYER (EPEC)

MAYER, Richard E. Multimedia Learning. New York: Cambridge University Press, 2ª ed., 2009. Resenha de: SILVA, André Coelho da. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v.19, 2017.

Richard Mayer é professor de Psicologia na Universidade da Califórnia desde 1975. Seus interesses de pesquisa estão relacionados à aplicação da ciência da aprendizagem à educação e envolvem, especialmente, estudos sobre cognição, tecnologia e ensino. Atualmente desenvolve projetos sobre aprendizagem multimídia, aprendizagem apoiada por computador e uso de jogos computacionais para a aprendizagem. Nesse sentido, tem como objetivo central encontrar formas de auxiliar as pessoas a desenvolverem aprendizagens que permitam a utilização desses conhecimentos em novas e diferentes situações.Mayer é autor de mais de 500 trabalhos, entre eles, livros como: Jogos computacionais para a aprendizagem (Computer Games for Learning, 2014), Aplicando a ciência da aprendizagem (Applying the Science of Learning, 2011) e Manual da Aprendizagem Multimídia de Cambridge (The Cambridge Handbook of Multimedia Learning: Second Edition, 2014).

No livro Aprendizagem Multimídia (Multimedia Learning, 2009) Mayer visa apresentar princípios para a produção de recursos didáticos multimídia que possam favorecer uma melhor aprendizagem.

Para o autor, um recurso multimídia não é um meio utilizado para trabalhar determinados conteúdos (livros, computadores etc.), mas sim um material que engloba palavras (texto falado ou escrito) e informações gráficas/figuras (gráficos, fotos, animações, mapas etc.). Assume-se que os meios não possuem relação direta com a aprendizagem e, portanto, ao invés de buscar meios que potencialmente maximizariam a aprendizagem, a questão passa a ser como desenvolver recursos multimídia que possam aperfeiçoar os conteúdos/mensagens abordados.

Mayer distingue dois tipos de abordagem quanto à produção de recursos multimídia: a centrada na tecnologia e a centrada nos aprendizes. Enquanto a primeira objetiva possibilitar o acesso às novas tecnologias implicando na necessidade de que os aprendizes se adaptem a elas; a segunda visa adaptar as novas tecnologias às necessidades dos aprendizes visando favorecer a aprendizagem. A abordagem centrada nos aprendizes – assumida por Mayer no livro – partiria da tentativa de entender o funcionamento da cognição humana. Além disso, recursos coerentes com tal funcionamento seriam mais efetivos na promoção da aprendizagem.

A cognição humana poderia ser resumida em dois pressupostos: I) o do canal duplo, que indica a existência de dois sistemas não-equivalentes de processamento de informação: verbal/auditivo e visual/pictórico; e II) o da capacidade cognitiva, que indica que a quantidade de informação processada simultaneamente em cada canal é limitada. O resultado de um processamento cognitivo ativo seria a produção de um modelo mental. Nesse contexto, aprender implicaria em lembrar, isto é, em ser capaz de reproduzir e reconhecer o conteúdo, e em entender, isto é, em construir um modelo mental coerente para o conteúdo. Consequentemente, aprendizagem multimídia seria a construção de conhecimento (enquanto algo pessoal, intransferível) a partir da interação com um recurso multimídia.

Para que resulte em aprendizagem multimídia, a interação com o recurso precisaria desencadear uma série de processos: seleção de palavras relevantes para processamento na memória de trabalho verbal; seleção de imagens relevantes para processamento na memória de trabalho visual; organização das palavras de forma coerente em um modelo mental verbal; organização das imagens de forma coerente em um modelo mental visual; integração das representações verbais e visuais entre si e com o conhecimento prévio.

Mayer apresenta alguns princípios que poderiam auxiliar no desenvolvimento de recursos didáticos multimídia – de forma a torná-los potencialmente mais efetivos em termos da aprendizagem: I) Concentração (destacar ideias chave nas figuras e textos); II) Concisão (minimizar detalhes desnecessários/alheios nos textos e figuras); III) Correspondência (colocar figuras e textos correspondentes próximos); IV) Concretude (apresentar textos e figuras de maneira a facilitar a visualização); V) Coerência (construir uma linha de raciocínio e uma estrutura clara); VI) Compreensibilidade (utilizar textos e figuras familiares); e VII) Codificabilidade (utilizar textos e figuras cujas características chave facilitem a memorização). De fato, tais princípios são encampados pelos doze princípios da aprendizagem multimídia definidos pelo autor (entendidos como princípios para a produção de materiais multimídia).

Os princípios da aprendizagem multimídia são consistentes com o funcionamento da cognição e da aprendizagem humana e estão amparados em resultados de diversos estudos empíricos focados em testes de transferência, isto é, testes que implicam em utilizar o conhecimento para resolver problemas novos/diferentes.

Cinco princípios visam reduzir o processamento desnecessário/alheio, evitando sobrecarga cognitiva. O princípio da coerência indica que as pessoas aprendem melhor quando informações (palavras, figuras, símbolos, sons, músicas etc.) desnecessárias/alheias são excluídas. O princípio da sinalização sugere que as pessoas aprendem melhor quando a organização do material é explicitada, pois o aprendiz poderia ser guiado ao que é essencial, favorecendo a organização mental. O princípio da redundância afirma que as pessoas aprendem melhor com desenhos e narração do que com desenhos, narração e texto escrito (legenda do que está sendo narrado) – caso que implicaria em sobrecarga do canal visual.

O princípio da contiguidade espacial indica que as pessoas aprendem melhor quando as palavras e as figuras correspondentes estão espacialmente próximas.

Já o princípio da contiguidade temporal sugere que as pessoas aprendem melhor quando palavras e imagens correspondentes aparecem ao mesmo tempo. Esses dois últimos princípios estão embasados na ideia de que a contiguidade espacial/ temporal favorece o estabelecimento de conexões entre as informações verbais e visuais (será gasto menos recurso cognitivo no estabelecimento dessas conexões).

Três princípios visam favorecer a administração do processamento essencial, isto é, o responsável por representar o material na memória de trabalho. Em caso de sobrecarga no processamento essencial, restariam poucos recursos cognitivos para realizar o processamento gerador, responsável por organizar e integrar as representações mentais produzidas. Segundo o princípio da segmentação as pessoas aprendem melhor quando o recurso é apresentado em unidades sequenciais nas quais o usuário pode definir o ritmo (ideia de que cada sujeito tem um tempo diferente de processamento). Segundo o princípio do pré-treinamento as pessoas aprendem melhor quando já sabem os nomes e as características dos principais conceitos antes de entrar em mais detalhes. O princípio da modalidade sugere que as pessoas aprendem melhor com figuras e textos falados do que com figuras e textos escritos.

A razão é que textos escritos podem competir com as figuras no canal visual.

Quatro princípios visam promover o processamento gerador. O princípio multimídia afirma que as pessoas aprendem melhor com palavras e figuras do que só com palavras. Trata-se de um princípio que justifica o livro como um todo.

O princípio da personalização sugere que as pessoas aprendem melhor quando as palavras estão em estilo conversacional do que em estilo formal. Por fim, os princípios da voz e da imagem são extensões do princípio da personalização e, segundo Mayer, quando da publicação do livro, ainda estavam em fase de estudos preliminares. Segundo o princípio da voz, as pessoas aprendem melhor quando a voz da narração é humana do que quando a voz é de máquina. Já segundo o princípio da imagem, as pessoas não necessariamente aprendem melhor quando a imagem de quem está falando/narrando está na tela.

Apontamos como os principais pontos positivos do livro: i) a forma didática e sistemática como o autor discute suas considerações, sempre fazendo recapitulações, explicitando seus objetivos de maneira clara e organizando as informações em tabelas quando possível; ii) a consideração de que os princípios da aprendizagem multimídia não são regras universais; iii) a fundamentação teórica e o amplo número de estudos empíricos que embasam os princípios. Nesse sentido, trata-se de um livro que oferece implicações relevantes para a área de pesquisa em ensino de ciências como um todo e, especificamente, para pesquisadores que atuam na produção de recursos didáticos multimídia (pesquisadores associados ao estudo das tecnologias de informação e comunicação, por exemplo) ou que buscam compreender o funcionamento, os limites e as possibilidades da utilização de recursos desse tipo no ensino e na aprendizagem de ciências.

De fato, é possível associar a temática do livro a, ao menos, duas das linhas temáticas do último Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências (XI ENPEC), realizado em julho de 2017: “Processos e materiais educativos em Educação em Ciências” e “Tecnologias da informação e comunicação em Educação em Ciências”. Entendemos que a presença dessas linhas temáticas no mais importante evento brasileiro da área de ensino de ciências evidencia que a produção, a validação e a utilização de recursos didáticos em situações de ensino e aprendizagem, seja em contextos de pesquisa ou não, costumam se constituir como atividades recorrentes na atuação dos professores e pesquisadores dessa área. Logo, sugerimos que os princípios caracterizados por Mayer podem funcionar como aporte teórico-metodológico para o desenvolvimento dessas atividades, especialmente no que se refere ao projeto e à construção de recursos didáticos multimídia.

Em contraposição aos muitos pontos positivos do livro, pensamos ser necessário apontar também que, embora comente sobre os testes empíricos realizados, Mayer não indica quantos alunos participaram de cada teste, tampouco detalha as condições de aplicação de cada um deles. Vale frisar ainda que os testes foram realizados utilizando a metodologia de grupos controle e grupos experimentais, a qual pode ser alvo de críticas tendo em vista a complexidade envolvida nos atos educacionais – desconsiderada por tal metodologia. Outro aspecto que talvez pudesse ser mais explorado no livro é a discussão de possíveis exceções individuais no que diz respeito aos testes empíricos realizados. Tal possibilidade, no entanto, parece não condizer com a abordagem quantitativaestatística adotada pelo autor na obra.

Em síntese, apesar de ter sido publicado em língua inglesa, a leitura do livro é agradável e simples. Recomendamo-la especialmente aos interessados em elementos associados à aprendizagem e ao uso/estudo de recursos multimídia no ensino.

Referências

MAYER, R. E. Applying the science of learning. Upper Saddle River: Pearson, 2011.

MAYER, R. E. Computer games for learning: An evidence-based approach. Cambridge: MIT Press, 2014.

MAYER, R. E. The Cambridge handbook of multimedia learning. New York: Cambridge University Press, 2014.

UCSB – UNIVERSITY OF CALIFORNIA, SANTA BARBARA. Richard Mayer. Department of Psychological & Brain Sciences, s/d. Disponível em: <https://www.psych. ucsb.edu/people/faculty/mayer>. Acesso em: 09 ago. 2016.

André Coelho da Silva – Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor do Instituto Federal de São Paulo (IFSP), campus Itapetininga. Grupo de Pesquisas sobre Formação de Professores para o Ensino Básico, Técnico, Tecnológico e Superior (FoPeTec). Itapetininga, SP – Brasil. E-mail:<[email protected]>

Acessar publicação original

[MLPDB]

Sala de aula invertida: uma metodologia ativa de aprendizagem – BERGMANN (EPEC)

BERGMANN, Jonathan; SAMS, Aaron. Sala de aula invertida: uma metodologia ativa de aprendizagem. (Tradução Afonso Celso da Cunha Serra). 1ª ed. Rio de Janeiro: LTC, 2016. 104 p. Resenha de: FEITOSA, Raphael Alves. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v.19, 2017.

A obra Sala de aula invertida: uma metodologia ativa de aprendizagem, de autoria dos estadunidenses Jonathan Bergmann e Aaron Sams ganhou uma versão para o português no ano de 2016. O livro é uma adaptação do original em língua inglesa, de título Flip your classroom: reach every student in every class day, publicado em 2012 nos Estados Unidos da América (EUA).

O livro é destinado a professores do ensino básico e superior, bem como a pesquisadores da área da Educação e do Ensino interessados em conhecer essa metodologia.

O produto é relevante para o campo do ensino de ciências, haja vista que ambos os autores ministravam a disciplina de Química no High School estadunidense (equivalente ao nosso Ensino Médio) na época em que desenvolveram as experiências com a sala de aula invertida.

No tocante aos autores da obra, destaca-se que ambos desenvolverem as experiências pedagógicas inovadoras descritas no livro, durante seu trabalho como educadores em uma escola da cidade de Woodland Park, estado do Colorado (EUA). Os dois autores lecionavam Química, área original de formação de ambos.

Bergmann e Sams obtiveram reconhecimento nacional por suas ações de ensino. O primeiro recebeu o Presidential Award for Excellence in Mathematics and Science Teaching (PAEMST) em 2002, premiação organizada pela The National Science Foundation. No ano de 2010, Bergmann foi semifinalista no certame Teacher of the Year, no Estado do Colorado. Em 2013, ele foi finalista do Brock International Prize for Education, administrado pela The Brock Family Community Foundation. É cofundador da Flipped Learning Network, uma organização sem fins lucrativos que busca e compartilha recursos acadêmicos ligados ao tema da sala de aula invertida. Atualmente, é facilitador em tecnologia de ponta da Joseph Sears School, em Illinois.

Aaron Sams recebeu da PAEMST o Presidential Award for Excellence in Mathematics and Science Teaching, em 2009. Recentemente, vem trabalhando como professor de Ciências em Woodland Park, no Colorado.

Além da obra objeto de análise da presente resenha, Bergmann e Sams também publicaram outros livros sobre o tema, como, por exemplo, Flip Your Classroom: Reach Every Student in Every Class Every Day (BERGMANN; SAMS, 2012), Flipped Learning for Science Instruction (BERGMANN; SAMS, 2015a) e Flipped Learning for Elementary Instruction (BERGMANN; SAMS, 2015b).

Quanto à organização, Sala de aula invertida: uma metodologia ativa de aprendizagem conta com um breve prefácio de Karl Fisch e está dividida em nove capítulos. No capítulo inicial, é apresentado um dilema enfrentado pelos autores, que contribuiu para o desenvolvimento das ações ligadas à sala de aula invertida. Dentro do contexto estadunidense, existem alunos que participam de competições desportivas e que acabam faltando a várias aulas seguidas. Igualmente, existem outros que, mesmo estando presentes em todas as aulas, não possuem bom rendimento escolar e, consequentemente, perdiam a oportunidade de aprender efetivamente o conteúdo outrora ministrado. Então, o que fazer para recuperar esse conteúdo ministrado? Bergmann e Sams (2016, p. 3) tentaram solucionar essa problemática e, a partir de 2007, “começamos a gravar nossas aulas ao vivo, usando o software de captura de tela. Postávamos as aulas on-line e os alunos as acessavam”. Nisso, perceberam através da experiência prática docente que muitos alunos assistiam aos vídeos das aulas antecipadamente, incluindo aqueles que não faltavam às aulas.

Nas aulas seguintes, eles tiravam dúvidas sobre o tema dos vídeos, gerando espaço para outras atividades em classe.

Assim, a organização da rotina escolar das aulas de Química foi se modificando: primeiro os alunos assistiam e faziam anotações dos vídeos postados, antes das aulas. No dia da aula regular, os professores realizam experimentos e demonstrações, orientavam pequenos grupos, resolviam exercícios e tiravam as dúvidas dos estudantes. Nisso, educadores realizavam apenas uma explicação rápida sobre o conteúdo ao invés de dedicarem a maior parte da aula a longas preleções.

Basicamente, o conceito de sala de aula invertida é o seguinte: o que tradicionalmente é feito em sala de aula, agora é executado em casa, e o que tradicionalmente é feito como trabalho de casa, agora é realizado em sala de aula. (BERGMANN; SAMS, 2016, p. 11).

Fundamentalmente, a sala de aula invertida se contrapõe ao ensino tradicional, no qual a sala de aula serve para o professor transmitir informações para o aluno. Esse último, após a aula, deve estudar o material que foi comunicado e realizar alguma atividade de avaliação para mostrar se esse material foi (ou não) assimilado.

Já a implementação da metodologia da sala de aula invertida se deu como resposta à percepção de Bergmann e Sams (2016) de que a metodologia tradicional não era compatível com alguns estilos de aprendizagem dos alunos.

Para realizar essa estratégia pedagógica, procede-se com a disponibilização prévia de vídeos, áudios, textos e outras mídias, para que todos os alunos tenham acesso ao conteúdo antes das aulas. Permitindo, assim, que cada aluno estude nos locais e horários que melhor lhe convém, seguindo seu próprio ritmo.

Além do estudo prévio em casa, a outra parte do método se direciona aos encontros presenciais, os quais ocorrem no horário convencional de aula na escola. Esses momentos são destinados a atividades que exijam o uso de níveis mais aprofundados de reflexão.

Nas atividades presenciais, o papel dos atores sociais protagonistas do espaço-tempo da sala de aula muda, quando comparado ao ensino tradicional.

Os estudantes passam a ter um papel ativo no processo de aprendizagem. Isso é possível devido ao fato do estudante ter tido, previamente, contato prévio com o conteúdo, abrindo espaço para que a aula se torne um lócus de aprendizagem ativa, com o auxílio e supervisão do professor.

Por sua vez, os educadores deixam de atuar como “transmissores” de conteúdo.

Onde outrora se predominava a modalidade de aula expositiva, com a sala de aula invertida, o professor pode usar o com mais propriedade o tempo disponível. Em sala, o docente pode propor e supervisionar discussões, atividades práticas/demonstrativas e dar respostas às perguntas que apareceram durante o estudo em casa.

No livro, os autores descrevem e exploram suas experiências didáticas nos EUA, dando exemplos para os leitores de como utilizar a ideia central da sala de aula invertida. Destarte, Bergmann e Sams (2016) dão sugestões de diversas ferramentas que podem ser utilizadas pelo professorado para implementar essa metodologia, por exemplo: plataformas, softwares, sistemas de gravação de voz e vídeo, aplicativos de celulares/tablets, mídias físicas (CD e DVD), etc.

Assim, os criadores do método indicam que essas ferramentas podem ser usadas nas aulas, por alunos e professores, devido também ao baixo custo financeiro envolvido. Os vídeos e áudios podem ser gravados/visualizados em aparelhos de telefone celular, computador ou tablet, por exemplo. Para aqueles que não dispõem dessas tecnologias, os autores aconselham a gravação em CD/DVD.

Ao longo do livro, especialmente no sétimo capítulo, os autores mostram a relação da sala de aula invertida com a avaliação da aprendizagem. Ao longo das aulas, o contato mais próximo com os estudantes permite que os professores façam “avaliações somativas” (BERGMANN; SAMS, 2016, p. 83).

Entre as ferramentas avaliativas usadas na experiência descrita no livro, os autores usaram trabalhos, testes escritos, perguntas orais e as avaliações do Estado do Colorado (EUA). Esse último exame, em alunos de Química da mesma escola, em quadro comparativo entre uma turma que utilizou a organização da sala de aula invertida, e outra, de ano anterior, de organização tradicional, os resultados dos exames estaduais apontaram para “pontuações médias quase idênticas às dos alunos do ano anterior, quando ainda seguíamos o método tradicional de preleções” (BERGMANN; SAMS, 2016, p. 97).

Tal resultado causou surpresa a esse resenhista, pois devido à firme defesa do método por parte dos autores da obra, eu esperava que o desempenho acadêmico dos estudantes que fizeram sala de aula invertida tivesse sido superior ao ensino tradicional. Certamente, diversos fatores podem estar envolvidos nos dados quantitativos dessas avaliações do estado, como aspectos do próprio teste (nível, procedimento), individuais dos alunos (familiares, sociais, afetivos) e sociais (estrutura física da escola, organização curricular), entre outros. No entanto, os autores pouco discutem esses resultados e suas interconexões estruturais, o que me parece ser uma limitação da obra.

Considerando que o assunto tem encontrado ressonância em países de língua inglesa (BRUNSELL; HOREJSI, 2011), no Brasil e em outros países de língua portuguesa (VALENTE, 2014; SUHR, 2016), entendo que existem diversos locais onde já há desenvolvimento de atividades dessa natureza.

Por outro lado, alguns pensadores importantes do campo do ensino e da pedagogia, como José Pacheco, vem tecendo críticas a esse modelo, temendo ser um novo “modismo” educativo advindo de terras estrangeiras.

Os brasileiros deveriam procurar alforria científica e maioridade educacional na obra de Milton Santos, ou Maria Nilde, mas insistem em comprar gato por lebre, desde que o gato venha do estrangeiro. (…) Por que não reagem os pedagogos brasileiros ao neocolonialismo pedagógico? Acaso os nossos professores universitários não leram Freire? (PACHECO, 2014).

Considerando a repercussão que o tema da sala de aula invertida vem gerando em nosso país, é oportuno analisar criticamente a mais nova obra publicada (BERGMANN; SAMS, 2016).

Destaco que esse modelo parece não ter sua origem, ou ato inédito, na experiência de Bergmann e Sams. Segundo Valente (2014, p. 86): “A ideia da sala de aula invertida não é nova e foi proposta inicialmente por Lage, Platt e Treglia (2000), concebida como ‘inverted classroom’ e usada pela primeira vez em uma disciplina de Microeconomia em 1996 na Miami University (Ohio, EUA)”.

Uma clara limitação da obra (BERGMANN; SAMS, 2016) é que ela não possui suporte teórico integrado às experiências pedagógicas descritas. O livro não conta sequer com uma seção de referências bibliográficas ou similar. Isso deixa a obra margeando o senso comum.

Talvez por isso, os autores do livro desconhecem (ou não denotam) os trabalhos de seus antecessores, como Lage, Platt e Treglia (2000). Bergmann e Sams (2016, p. 5) afirmam apenas que “não propusemos o termo sala de aula invertida. Ninguém é ‘dono’ dessa designação (…), embora ela tenha se popularizado nas diversas mídias”.

Considerando as limitações acima expostas, apesar disso, foi interessante ler uma obra recheada com relatos de professores que vêm utilizando e obtendo resultados positivos com a sala de aula invertida.

Para esse resenhista, o diferencial da abordagem contida em Sala de aula invertida: uma metodologia ativa de aprendizagem é a Aprendizagem para o Domínio, cujo pensamento fundamental “consiste em que os alunos alcancem uma série de objetivos no próprio ritmo” (BERGMANN; SAMS, 2016, p. 47). A logística envolvida nessa dinâmica consiste em três pontos, a saber: 1°) Pequenos grupos de estudantes trabalham em ritmo particular; 2°) é feita a avaliação formativa com os alunos, a qual estimula o grau de compreensão dos alunos; 3°) os aprendizes demonstram domínio sobre os objetivos e, aos que não atingiram todas as metas traçadas, são oferecidas formas de recuperar, para que todos aprendam os conteúdos, e não apenas o suficiente para a aprovação nos exames.

Considerando que nesta resenha destaquei os pontos fundamentais da obra analisada, convido agora o leitor a explorar o livro em questão, visando a tirar suas próprias conclusões sobre o título.

Referências

BERGMANN, J.; SAMS, A. Flip Your Classroom: reach every student in every class every day.

Arlington, VA: International Society for Technology in Education.: International Society for Technology in Education, 2012.

BERGMANN, J.; SAMS, A. Flipped Learning for Science Instruction. Arlington, VA: International Society for Technology in Education, 2015a.

BERGMANN, J.; SAMS, A. Flipped Learning for Elementary Instruction. Arlington, VA: International Society for Technology in Education, 2015b.

BERGMANN, J.; SAMS, A. Sala de aula invertida: uma metodologia ativa de aprendizagem.

(Tradução Afonso Celso da Cunha Serra). 1ª ed. Rio de Janeiro: LTC, 104 p, 2016.

BRUNSELL, E.; HOREJSI, M. “Flipping” Your Classroom. The Science Teacher, Washington, v. 78, n. 2, p. 10, 2011. Disponível em: <http://www.uwgb.edu/catl/files/pdf/flipscience.pdf>.

Acesso em: 07 ago. 2017 LAGE, M. J.; PLATT, G. J.; TREGLIA, M. Inverting the classroom: A gateway to creating an inclusive learning environment. The Journal of Economic Education, Lincoln-NE, v. 31, p. 30-43, 2000.

PACHECO, J. Sala de aula invertida: por que não reagem os pedagogos brasileiros ao neocolonialismo pedagógico? Revista Educação, São Paulo, SP, 2014. Disponível em: <http://www.revistaeducacao.com.br/sala-de-aula-invertida/>. Acesso em: 07 ago. 2017 SUHR, I. R. F. Desafios no uso da sala de aula invertida no ensino superior. Transmutare, Curitiba, v. 1, n. 1, p. 4-21, jan./jun. 2016. Disponível em: <https://periodicos.utfpr.edu.br/rtr/article/ view/3872>. Acesso em: 07 ago. 2017 VALENTE, J. A. Blended learning e as mudanças no ensino superior: a proposta da sala de aula invertida. Educar em Revista, Curitiba, n. 4, Edição Especial, p. 79-97, 2014. Disponível em: <www.scielo.br/pdf/er/nspe4/0101-4358-er-esp-04-00079.pdf>. Acesso em: 03 jan. 2017.

Raphael Alves Feitosa – Doutor em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor do Departamento de Biologia da UFC. Coordenador do Laboratório de Ensino de Biologia (Lebio-UFC). Integrante do grupo de pesquisa Ensino de Ciências e Matemática (IFCE) e do Grupo de Estudos e Pesquisa em Ensino de Ciências – GEPENCI (UFC). E-mail:<[email protected]>.

Acessar publicação original

[MLPDB]

O Freudismo: um esboço crítico – BAKHTIN (EPEC)

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. O Freudismo: um esboço crítico. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 2012. 110p. Resenha de: BIANCHI, Cristina dos Santos. Uma análise bakhtiniana/volochinoviana da psicanálise: reflexões necessárias para o estabelecimento de um novo paradigma em ensino de Ciências. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v.18, n. 2, p.201-210, mai./ago. 2016. Ensaio

Resenhar a visão dos autores do Círculo de Bakhtin sobre o freudismo é, no mínimo, uma tarefa complexa, haja vista as controvérsias relativas à obra e a possibilidade de explorar dentro de seu contexto um sem-número de discussões referentes a diversos campos do conhecimento. Nosso intento é aproximar a polêmica da discussão sobre a cientificidade da psicanálise à tensão entre o “científico” e o “humanístico” e suas implicações para o ensino de ciências, que no contexto da pós-modernidade busca sua democratização.

Comecemos pela discussão relativa à autoria de algumas obras do Círculo, como é o caso de O Freudismo: um esboço crítico e de Marxismo e Filosofia da Linguagem, que ainda dividem opiniões. Destacamos três principais, discutidas por Fiorin (2008).

A primeira é que ambas as obras são assinadas pelo amigo Valentin Nikolaevich Volochínov, o que se justifica para alguns autores por uma impossibilidade política de Bakhtin assumir a autoria. Outra é que Bakhtin só é autor dos textos publicados em seu nome ou encontrados em seus arquivos. Um terceiro grupo atribui essas obras aos dois autores, o que nos parece mais conveniente para esta resenha, uma vez que não desejamos nos aprofundar nas questões de pertença autoral.

Uma controvérsia também é situada em relação ao marxismo encontrado na obra – publicada em 1927. Uma vez que o panorama intelectual da época pertencesse a uma URSS sob a influência marxista onde se desenvolvia a sociologia, a filosofia, a psicologia e até a fisiologia da época, não é novidade que tenha imposto restrições a autores não marxistas. Uma orientação neokantiana do autor Bakhtin deflagra um problema para que os marxistas o reivindiquem (FIORIN, 2008). No próprio prefácio “Freud à Luz de uma Filosofia da Linguagem”, o tradutor Paulo Bezerra afirma o marxismo como um “fio condutor” para adentrar o “labirinto da psicanálise”, mas um marxismo “centrado especificamente em Marx, de quem assimila a ideologia como falsa consciência, ao contrário do conceito de ideologia como visão científica de uma classe, formulada por Lênin e transformada posteriormente em axioma.” (p. XIV). Sem a intenção deveras de ir a fundo nesse tema, o fato é que não podemos negar a influência marxista do panorama intelectual, contextualizando a obra à ideologia predominante da época.

Outro fato que precisamos ter em mente é que um mundo “Iluminado” e impulsionado pela ciência funcionava a pleno vapor de fábricas, corroborando a corrente biologicista em que se apoia a psicanálise freudiana e que faz transparecer uma nova categoria de discurso ressaltada pelos autores Bakhtin/Volochínov, o “discurso autoritário”, ratificado pelo próprio Freud (2011 [1925], p. 74) em sua declaração de que a verdade é o objetivo absoluto da Ciência.

No entanto, Freud resgata desse cenário inóspito e massacrante, obscurecido pelas fumaças industriais, o indivíduo, transformado exclusivamente em mão de obra, desafiando a ordem moral e lógica da sociedade moderna (PLASTINO, 2001 apud MORAES et al., 2008). Ainda assim, uma análise bakhtiniana/volochinoviana sobre a psicanálise se detém na dicotomia entre o “objetivismo abstrato” e o “subjetivismo idealista” (BAKHTIN, 1998) traduzida em uma tensão existente entre duas culturas (SNOW, 1995): de um lado a “científica”, de outro a “humanística”, que perdura nos dias atuais sob a forma de disputa entre pressupostos epistemológicos hegemônicos. A resistência dos autores ao inconsciente proposto por Freud, em sintonia com as ideias de Vigotski (EMERSON, 2002), é também uma tônica da obra que se encaixa nessa tensão. Temos então, em O Freudismo, a oportunidade de analisar a crítica bakhtiniana/volochinoviana por suas próprias lentes dialógicas, suscitando reflexões importantes para o ensino de ciências, na busca por superar a dualidade entre as duas culturas citadas.

Bakhtin/Volochínov dividem sua análise em três partes. Na primeira apresentam “O Freudismo e as correntes atuais do pensamento em Filosofia e Psicologia”, depois, fazem a “Exposição do Freudismo” e finalizam com sua “Crítica ao Freudismo”.

O cuidado de Bakhtin/Volochínov em situar histórico-filosoficamente o leitor antes de iniciar sua abordagem da teoria freudiana reflete a importância que dispensam ao marxismo como caminho, ratificada na epígrafe do primeiro capítulo atribuída a K. Marx: “A essência do homem não é algo abstrato, próprio de um indivíduo isolado. É, em sua realidade, o conjunto de todas as relações sociais.” (p. 3). Destacam, portanto, o “motivo central”, uma “dominante ideológica” do Freudismo: o que teria chamado a atenção da sociedade burguesa europeia para uma teoria proveniente da psicanálise? Teriam sido os êxitos do processo terapêutico? Ou acaso não foi senão a atenção voltada ao organismo biológico com destaque para o poder das pulsões sexuais na determinação do comportamento humano? A corrente biologicista predominante na teoria de Freud se contrapõe oportunamente, na visão do mundo burguês, à ideologia de classe predominante da época: “O ‘sexual’ em Freud é o polo extremo do biologismo em voga, reunindo e condensando numa imagem compacta e picante todos os momentos particulares do anti-historicismo atual.”(p. 10). E apesar da acusação de anti-historicista, não era como Freud enxergava o sujeito, um ser biológico em detrimento do social.

Usamos como exemplo as pulsões e o desejo. As pulsões estão relacionadas com instintos biológicos, contudo dirigida pelo desejo, que tem regulação social e é dirigida pelo princípio do prazer (LIMA; PERINI, 2009).

Mostram-nos também os autores a posição da psicanálise em relação às tendências psicológicas, subjetiva e objetiva. Para Bakhtin/Voloshinov, a diferença que Freud e seus discípulos tentam fazer de sua concepção de psíquico em relação à psicologia então vigente nada mais seria do que uma mudança de terminologia: “Já Freud tenta erigir com os velhos tijolos subjetivos um quase-edifício objetivo inteiramente novo do psiquismo humano. O que é o ‘desejo inconsciente’ senão o mesmo tijolo velho apenas com posição invertida?” (p. 70). Além disso, chamam à atenção de que a interpretação do psíquico é dada pelos enunciados verbalizados, o que não renuncia a introspecção como método, característico da psicologia subjetiva.

Apesar de reconhecermos a busca de Freud por uma legitimação científica – como verificamos em “Sobre Narcisismo: uma introdução”, em que declara que as teorias sobre a psicologia se basearão, um dia, em estruturas orgânicas (FREUD, 2006 apud MORAES et al., 2008) e também quando diz que “a psicanálise na realidade, é um método de pesquisa, um instrumento imparcial, à semelhança do cálculo infinitesimal.” (FREUD, [1910] 2011, p. 100) – seu trabalho muito se distancia do behaviorismo, como também representa avanços sobre a psicologia subjetiva, como por exemplo, sua originalidade referendada pelos próprios autores à sua dinâmica psíquica, a um novo mundo em movimento, em crise, em contraposição ao antigo mundo psíquico passivo e inerte. E é nessa dinâmica que Bakhtin/Volochínov apontam as projeções da realidade social da nova teoria: “Nenhuma enunciação verbalizada pode ser atribuída exclusivamente a quem enunciou: é produto da interação entre falantes e, em termos mais amplos, produto de toda uma situação social em que ela surgiu.” (p. 79, grifo do autor), que em nada contraria o freudismo. Freud busca o sujeito imerso em sua ligação com sua infância em relação à sua família e a toda sua vivência.

Assim, Bakhtin/Volochínov tentam comprovar o que não é negado, que a psicanálise possui uma orientação filosófica geral: “O pensamento humano nunca reflete apenas o ser de um objeto que procura conhecer; com este, ele reflete também o ser do sujeito cognoscente, o seu ser social concreto.” (p. 22), partindo do princípio de uma luta de status do freudismo, em que adeptos da neutralidade científica precisavam manter sua cientificidade. Um mal-estar causado no meio acadêmico-científico a respeito dessa sustentação para a psicanálise, criticada pelos autores, iria começar também a ser sentido em relação à objetividade da ciência em A lógica da pesquisa científica de Popper, um dos “traidores da verdade” – junto a Lakatos, Kuhn e Feyerabend (THEOCHARIS; PSIMOPOULOS, 1987).

Partindo à exposição do Freudismo, consciência, inconsciente e préconsciente são apresentados como campos em permanente luta, em interações interdependentes, em que para a compreensão da consciência, é necessário desvelar o inconsciente. O inconsciente, portanto, ocupa posição de relevo na teoria de Freud.

Os autores nos mostram as concepções sobre o inconsciente nos três períodos de Freud, com peculiaridades devidas a cada um. Explicam-nos o “Método catártico de tratamento da histeria”, fruto de conclusões do primeiro período, como também “A doutrina do recalque” como um dos conceitos mais importantes da psicanálise.

Explanam sobre o “Conteúdo do inconsciente” na teoria das pulsões, que evolui até o terceiro período de Freud. E uma das peculiaridades desse período, o “Ideal do Ego”, apresentado como o censor das atividades do “Ego” – o “agente do princípio da realidade”, “a razão e o senso comum” (p. 43). Este último também influenciado pelo “Id” – “elemento obscuro interior dos anseios e paixões que às vezes experimentamos tão intensamente em nós mesmos e contraria os nossos argumentos racionais e a boa vontade”. (p. 42, 43).

Porém, uma leitura estéril do cunho social das interações entre inconsciente, consciente, Ideal do Ego (superego) e Id é subentendida a partir do momento que interpretam que o freudismo supõe o indivíduo como um ser isolado, sendo os conflitos assinalados entre consciente e inconsciente pertencentes ao determinismo biológico. Não é o que Freud realmente considera: “A civilização se baseia, em geral, na renúncia aos instintos, e cada indivíduo tem que repetir pessoalmente, no seu caminho da infância à madureza, essa evolução da humanidade até a resignação razoável” (FREUD, [1910] 2011, p. 112-113).

Continuando, Bakhtin/Volochínov explanam o método psicanalítico da “Interpretação de Sonhos”, através das “livres associações”. Para analisar o conteúdo do inconsciente, é necessário que este possa ser localizado e analisado na consciência. Os conteúdos manifestos dos sonhos são associados a pensamentos e imagens livres da consciência, método que se tornou clássico para toda a psicanálise.

Reforçam os autores o biologicismo de Freud: “Cada momento da construção ideológica é biologicamente determinado com rigor.” (p. 57, grifo do autor).

Esse aforismo é, para os autores, o pressuposto da “Filosofia da cultura em Freud” que explica além da origem dos sonhos, a criação de mitos, religiões manifestações artísticas e formas da vida social, encontrando sua expressão máxima na obra de Otto Rank, discípulo de Freud, que escreve o livro O trauma do nascimento. “Segundo Rank, toda a vida do homem e toda a criação cultural não são senão a erradicação e a superação do trauma do nascimento em vias diversas e por meios diversos.” (p. 62, grifo do autor). Bakhtin/Volochínov também trazem à tona a questão de um inconsciente capaz de operar com extrema sensatez moral, levando-nos a questionar sobre o que dizer de um mecanismo tão contextualizado, senão que se trata da expressão de um caráter ideológico. Os autores acreditam que uma volta consciente ao próprio passado, como meio de busca ao inconsciente, necessite de lentes polidas de olhos não influenciados pelo indivíduo, desconsiderando que uma retrospecção possua um potencial de reconstrução autônoma sobre si mesmo.

Certamente que não aproxima, de fato, a realidade psíquica de uma natureza material, concluem os autores, a exemplo da teoria das zonas erógenas, como poderiam pretender Freud e seus seguidores, já que “jamais operam diretamente com a composição material e com processos materiais do organismo corporal; procuram apenas reflexos do somático no psiquismo, isto é, acabam sujeitando todo o orgânico aos métodos da introspecção, psicologizando-o.” (p.

71, grifo do autor). Sendo assim, os autores se sentem autorizados a afirmar que a ideia de alguns partidários de Freud de que a biologia seria a base objetiva da psicanálise, “não se baseia em nada […] em tudo a psicanálise continua fiel ao ponto de vista da experiência subjetiva interior.” (p. 73, grifo do autor).

Pelo que já temos destacado sobre Freud, não é sua metodologia partir da materialização do psíquico. Ao contrário, Freud afirma que seu material de trabalho, o inconsciente, é de difícil tangência, deixando de ser objeto exclusivo de discussão filosófica e tornando-se objeto de experimentação a partir dos métodos hipnóticos experimentados entre 1880 e 1890, antes do nascimento de sua ciência.

Freud, assim, faz exatamente o oposto do que afirmam os autores, trazendo a possibilidade da compreensão de fenômenos antes tratados com a terapêutica de choques elétricos, vistos como disfunções de partes do cérebro.

O campo sexual, entendido pelos autores como o fio condutor capaz de atrair a sociedade burguesa para o freudismo, ao mesmo tempo gerador de conflitos, é visto como uma nova “‘interpretação’ aguda e nova de todos os aspectos da vida que perderam o sentido” (p. 91), ressignificando relações familiares no contexto da sociedade burguesa europeia. Acrescido a isso, os conflitos gerados são circunscritos a esta sociedade, sendo impraticável sua transposição histórica. Uma leitura do sexual em Freud como uma ressignificação e acomodação da vida burguesa deixa escapar sua real contribuição para a ressignificação do sujeito na sociedade. Um indivíduo massificado descobre que possui desejos e que é orientado pelo princípio do prazer, pode ser o primeiro passo na busca de uma vida, até então, negligenciada.

E é claro que a transposição histórica de uma situação referente à sexualidade não é pertinente em teoria alguma, depende da harmonia entre o discurso interior (indivíduo) e o exterior (sociedade), o que não é negado por Freud.

O polêmico “Complexo de Édipo” não poderia ter síntese mais reduzida: “O futuro coitus do homem é apenas uma compensação parcial do paraíso perdido do estado intrauterino.” (p. 39) e a “Vida sexual da criança” é apresentada como o símbolo da inocência e da pureza que passa a seguir instintos de libido como diretrizes de desenvolvimento psicossomático. Eis um ponto que encontrou, segundo o próprio Freud, “uma novidade contrária aos mais enérgicos preconceitos do homem”, e ainda que “são muito poucas as descobertas da psicanálise que esbarram com uma repulsa tão geral e provocam tanta indignação como a afirmação de que a função sexual tem início com a própria vida […]” (FREUD, 2011 [1925], p. 45). Freud é acusado de reducionismo biológico, sendo assim, uma negação de que sua teoria da libido se trata da teoria das energias psíquicas sem um equivalente empírico (FULGENCIO, 2002), pode refletir o próprio preconceito dos autores em relação ao tema, compreensível se considerarmos os tabus impostos pela sociedade até os dias de hoje.

O reducionismo sexual à genitalidade e com utilitarismo reprodutivo é ainda predominante dentro do ensino de ciências, mais preocupado com as doenças do que com a manutenção da saúde e bem-estar, em alusão a uma visão higienista.

Aqui sim imperam determinismos, mas que são socioculturais na construção da sexualidade. A incompreensão do conceito de sexualidade como elaborada por Freud tem em suas raízes as tensões assinaladas entre a legitimação científica em contraponto à validação do humanístico dentro das instâncias epistemológicas valorizadas. Em última análise, reflete a hegemonia de uma ciência racionalista que segmenta e compartimentaliza o indivíduo, separando-o de seus anseios e paixões.

O freudismo também é criticado pelos autores por enclausurar-se dentro de suas próprias teorias, não permitindo chances de permuta com as demais correntes da psicologia. Isso é considerado como uma das grandes falhas da teoria psicanalítica, já que uma escola de pensamento que se apropria de um pilar científico não se permite questionar ou compartilhar ideias com seus pares em potencial.

Porém, a falta de diálogo ocorre também na análise de Bakhtin/Volochínov. Uma preocupação demasiada dos autores em pontuar a teoria freudiana em contraposição à corrente filosófica predominante, e de contradizê-la em sua pretensa objetividade, pode ter lhes furtado a oportunidade de analisar e discutir pontos convergentes com a teoria linguística que se iniciava com o Círculo. Enquanto alguns autores apontam a falta da leitura de obras importantes para sua compreensão (EMERSON, 2002; LIMA; PERINI, 2009), há quem afirme que uma boa leitura da teoria elaborada até então (1927) teria permitido aos autores concluir que a importância da função da linguagem era de fato, concebida por Freud (NOVAES; RUDGE, 2007). Podemos considerar que a psicanálise trabalha com a linguagem, que ao ser expressa, representa o constituinte principal da investigação psicanalítica. E isso é apontado pelos autores como um ponto positivo, mesmo assim, encontramos uma análise freudiana contundente e voltada para a questão específica da comprovação de um sujeito histórico, que nem sequer foi negado por Freud.

Chegamos ao ponto em que devemos refletir sobre o cenário apresentado. Em que ponto a dialética se aproxima do dialogismo? Um discurso sofista em busca da persuasão contra um discurso filosófico em busca da verdade: a retórica como o instrumento privilegiado de poder para os detentores do saber é tão antiga quanto atual. A filosofia ocidental antiga é incorporada pela ciência tomista medieval e vai cedendo ao empirismo da revolução científica a partir do século XVI, até o racionalismo se estabelecer no topo de uma hierarquia epistemológica, basicamente no campo das ciências naturais. Até que no século XIX, os estudos humanísticos reclamam para si um reconhecimento científico, emergindo as ciências sociais. Um conhecimento com o status de científico é o que temos de mais respeitável. E o reconhecimento científico era importante para Freud.

Vemos assim uma disputa, de um lado, Freud na busca de legitimação científica de seu trabalho e de outro, a tentativa de Bakhtin/Volochínov (sem mencionar tantos outros) em provar que a psicanálise não merece a instauração neste pilar. Uma aporia se manifesta onde o discurso autoritário da ciência racionalista, criticado na análise bakhtiniana/volochinoviana, é utilizado pelos próprios autores na defesa de uma análise sociológica da linguagem e da cultura. Presenciamos a disputa em um jogo de forças que determina a hegemonia do discurso, dado através da linguagem. A ciência, mais do que uma construção sociocultural, é um discurso e precisa ser compreendida como tal. O início da contestação de sua autoridade em Popper provoca uma crise de estruturas, que encontra em Foucault (1979) a problematização de seu estatuto político e de funções ideológicas que poderia veicular. Entra em cena uma série de discussões que contestam a neutralidade e a superioridade científica, conhecidas como movimento CTS – Ciência, Tecnologia e Sociedade o que consideramos extremamente frutífero para o desenvolvimento de uma nova visão, uma reorientação almejada para o ensino de ciências, que considere o eixo sociedade, interpretado como a valorização do indivíduo no contexto social contemporâneo de produção científica e tecnológica.

Retomando a psicanálise, sua importância é fundamental para a superação do sujeito cartesiano. Dela emerge uma concepção do humano segundo o qual identidade, sexualidade e desejos “funcionam de acordo com uma ‘lógica’ muito diferente daquela da Razão, arrasa com o conceito de sujeito cognoscente e racional provido de uma identidade fixa e unificada – o ‘penso, logo existo’, do sujeito de Descartes” (HALL, 2011).

O que podemos concluir desta reflexão que nos auxilie em corroborar os novos rumos apresentados para um ensino de ciências democrático, capaz de formar cidadãos autônomos e ativos no processo de construção de uma sociedade consciente e justa? Em primeiro lugar, a compreensão de que a dinâmica social funciona no contexto das relações da vontade de poder, entendida por Nietzsche como desejo de superação, mantida em uma relação tensional com seu Outro. Todos os movimentos do desenvolvimento do saber se iniciaram e se mantêm como impulso de superação (HATAB, 2010). Em segundo, que a manutenção do status privilegiado tem um custo, o da resistência a movimentos concorrentes, manifesta em um discurso autoritário. Em terceiro, precisamos reconhecer em nós em que ponto temos nos apropriado do discurso autoritário a ponto de torná-lo autoritarista, quer dizer, em que ponto o discurso ciência/humanidade pode nos privar de uma visão holística importante para a superação deste mundo dual.

Tendo em mente este esclarecimento, podemos seguir uma saída para o nó górdio em que nos puseram os mitos das verdades e das necessidades pós-modernas: a construção de um paradigma, já emergente dada a crise do modelo de racionalidade dominante, embasado em uma cultura transdisciplinar (NICOLESCU, 2008), que supere a dicotomia das duas culturas de Snow. Preconizamos o paradigma “de um conhecimento prudente para uma vida decente” (SANTOS, 2010, p. 37), em que a dualidade “científico” x “humanístico” deixe de ter sentido e em que todo o conhecimento seja autoconhecimento. Por fim, que o conhecimento reconheça no senso comum uma forma de saber indispensável para a ressignificação do existir contemporâneo (MORIN, 2011; SANTOS, 2010).

Referências

BAKHTIN, M. M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1988.

EMERSON, C. O mundo exterior e o discurso interior: Bakhtin, Vigotski e a internalização da língua. In: DANIELS, H. Uma introdução a Vigotski. São Paulo: Loyola, 2002.

FIORIN, J. L. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2008.

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução. In: FREUD, S. A história do movimento psicanalítico. Artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos. (1914-1915b) Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. XIV).

FREUD, S. O esquema da Psicanálise. In: CLARET, Martin. Freud por ele mesmo. São Paulo: Ed Martin Claret, [1910] 2011.

FREUD, S. Autobiografia. In: CLARET, Martin. Freud por ele mesmo. São Paulo: Ed. Martin Claret, [1925] 2011.

FULGENCIO, L. A teoria da libido em Freud como uma hipótese especulativa. Ágora, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 101-111, 2002.

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Traduzido por Tomaz Tadeu Silva e Guacira |210| Cristina dos Santos Bianchi Revista Ensaio | Belo Horizonte | v.18 | n. 2 | p.201-210 | mai-ago | 2016 Lopes Louro. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2011.

HATAB, L. J. A genealogia da moral de Nietzsche: uma introdução. Tradução de Nancy Juozapavicius.

São Paulo: Madras, 2010.

LIMA, S. M. M.; PERINI, R. Bakhtin e Freud: aproximações e distâncias. Bakhtiniana, São Paulo, v.

1, n. 2, p. 80-99, 2009.

MORAES, L. A. G. de; GONÇALVES, L. R.; BRAGA R. de J.; GREGGIO, T. C.; PRUDENTE, R. C. A. C. A psicanálise entre a desconstrução do indivíduo e uma nova perspectiva cultural. CES Revista de Juiz de Fora, Juiz de Fora, v. 22, p. 239-253, 2008.

MORIN, E. Rumo ao abismo?: ensaio sore o destino da humanidade. Tradução de Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.

NICOLESCU, B. O manifesto da transdisciplinaridade. Tradução de Lúcia Pereira de Souza, 3. ed.

São Paulo: Triom, 2008.

NOVAES, B.; RUDGE, A. M. A função da linguagem em Bakhtin e Lacan. Tempo psicanalítico, Rio de Janeiro, v. 39, p. 157-178, 2007.

PLASTINO, C. A. O primado da afetividade: a crítica Freudiana ao paradigma moderno. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

SANTOS, B. de S. Um discurso sobre as ciências. 16. ed. Porto: Edições Afrontamento, 2010.

SNOW, C. P. As duas culturas e uma segunda leitura. São Paulo: Edusp, 1995.

THEOCHARIS, T.; PSIMOPOULOS, M. Where science has gone wrong. Nature, Grã-bretanha, v. 329, p. 595-598, 1987. Disponível em: <http://www.ivorcatt.co.uk/x1cp.pdf>. Acesso em: 31 maio 2014.

Cristina dos Santos Bianchi – Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Rio de Janeiro, RJ – Brasil Mestra em Biologia e integrante do Grupo de Pesquisa em Formação de Professores do Instituto de Física Armando Dias Tavares, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professora da Rede Estadual de Ensino do Rio de Janeiro (SEEDUC). E-mail: [email protected].

Acessar publicação original

[MLPDB]

O pensar complexo na educação: sustentabilidade, transdisciplinaridade e criatividade – MORAES; SUANNO (EPEC)

MORAES, Maria Cândida; SUANNO, João Henrique (Org.). O pensar complexo na educação: sustentabilidade, transdisciplinaridade e criatividade. Rio de Janeiro: Wak, 2014. Resenha de: BASSALOBRE, Janete Netto. A COMPLEXIDADE APLICADA À EDUCAÇÃO. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v.17, n. 3, p. 795-800, set./dez., 2015.

Vivenciamos hoje o paradoxo de, ao mesmo tempo em que nos utilizamos de extraordinários avanços tecnológicos, ressentimo-nos de caminhar aleatoriamente, sem um norte ético. Vivemos em uma sociedade cada vez mais globalizada, submetida à política neoliberal geradora de graves processos de exclusão: são muito mais atendidos os interesses de mercado do que os dos seres humanos. Os ideais de igualdade social transmutaram-se em competição e massificação e a liberdade que a modernidade conhece é a liberdade de todos pensarem da mesma forma, ignorando-se o núcleo central da questão que é, na verdade, o exercício do direito à desigualdade.

Dentro desse contexto, algumas reflexões no campo da educação tendem a buscar visibilidade para novas práticas educacionais: as que intentem o fortalecimento de um ser humano conectado com a humanidade e o planeta, cada vez mais pretendente ao direito de ser e de se expressar através de seus potenciais e suas diferenças e que, igualmente, possam contemplar na ação educativa o respeito e a valorização dessa diversidade.

E nesse sentido, a obra resenhada, organizada por Maria Cândida Moraes e João Henrique Suanno (respectivamente, coordenadora e pesquisador do Grupo de Pesquisa Ecologia dos Saberes e Transdisciplinaridade), vem exatamente ao encontro desses objetivos quando analisa um princípio epistemológico que contribui para uma metodologia que auxilia a renovação de práticas pedagógicas que privilegiem a multidimensionalidade humana e o indivíduo como autor e protagonista do seu próprio processo de construção do conhecimento – a complexidade.

No primeiro capítulo – “Educação e sustentabilidade: um olhar complexo e transdisciplinar”, Maria Cândida Moraes1 inicia os trabalhos abordando o atual cenário socioeducacional, sinalizando alguns dos problemas mais emergentes, tais como a globalização e a degradação ecossistêmica e ambiental, o que nos transformou em um modelo de sociedade em crise que vem gerando novas demandas sociais, econômicas, culturais e educacionais, uma vez que essas últimas caminham paralelas aos problemas globais. Todo esse panorama, somado às problemáticas relacionadas ao “estresse docente e ao sofrimento discente” (p. 24), revela uma cultura que compromete as relações dos indivíduos com o mundo que os cerca; exclui a subjetividade no processo de aprendizagem, ignorando as demandas pessoais de cada aluno e fragmenta o homem ao negar suas emoções e outros aspectos constitutivos, forjando uma razão deturpada que apenas disseca e classifica ao invés de integrar.

Daí, então, educar na sustentabilidade, transdisciplinarmente, oferecendo um potencial enorme de possibilidades para o desenvolvimento humano, zelando pela reunificação das dimensões emocionais intuitivas e espirituais dos indivíduos dentro de um enfoque pluralista do conhecimento que, por sua vez, através da articulação entre as muitas formas de apreensão do mundo, pretende unir as mais variadas disciplinas para que se torne possível um exercício mais amplo da cognição humana.

Em “Educación, transdisciplinaridad y pensamiento ecosistémico: uma aproximación a la prática” Juan Miguel Batalloso2 leva-nos a uma exposição detalhada do seu entendimento acerca do conceito de transdisciplinaridade, postulando- o não como uma nova ciência, mas sim como uma nova forma de abordar a realidade, a existência humana e a educação – uma atitude perante a vida, ou seja, uma forma de desenvolvimento integral pessoal interno, comprometida com valores de vida e responsabilidade social e política. O autor realiza uma consistente análise das implicações práticas desses conceitos em diferentes âmbitos educacionais, o que faz mediante muitos questionamentos que reconhecem a transdisciplinaridade como um posicionamento diante da construção do conhecimento vinculado à integração com os mistérios do universo e da existência humana.

Marilza Suanno3, no terceiro capítulo “Em busca da compreensão do conceito de transdisciplinaridade” apresenta-nos resultados parciais de sua pesquisa relacionada com as inovações na educação superior, sob a ótica da complexidade, junto a 25 professores universitários de pós-graduação provenientes de vários países, cujos trabalhos baseiam-se na epistemologia da transdisciplinaridade.

Caminhando por entre as explicitações dos conceitos de disciplinaridade, pluridisciplinaridade, multidisciplinaridade e interdisciplinaridade, a autora realiza suas reflexões a partir de documentos-síntese, formulados em importantes eventos científicos internacionais, e comenta suas principais contribuições para a construção dos conceitos fundamentados no paradigma emergente, concluindo que os entrevistados mostraram desejos de ruptura com a fragmentação cognitiva em favor da perspectiva complexa que visa, principalmente à articulação do conhecimento em uma visão multidimensional e multireferencial.

A seguir, o artigo de Izabel Petraglia4 “Entre o esgarçamento e a tessitura” ressalta a indispensabilidade tanto de uma educação com consciência, voltada para a vida em sociedade, quanto de uma prática docente universitária criativa como condição de substituir o modelo quantitativo e pradonizado. Conclui argumentando sobre a urgência de uma reforma no pensamento que vise uma mudança comportamental que dirija a educação no sentido de se edificar sobre a cultura humanística, que retém em seu bojo os ideais de complexidade e atitudes conscientes perante o universo, a natureza e a existência individual e coletiva.

O capítulo seguinte, por Cleide Silvério de Almeida5, tem como título a sugestiva questão “É possível exercer uma prática educativa baseada no pensamento complexo?”. A partir dessa pergunta e alicerçada nas postulações de Edgar Morin sobre a complexidade, a autora parte em uma viagem a partir de análises e reflexões para as diversas situações enfrentadas pelos muitos operadores da educação, enfatizando que o pensamento complexo não se configura como um produto finalizado e sim como uma possibilidade em constante movimento. Em sua totalidade, o texto, rítmico e objetivo, é um convite para o trabalho educacional a ser efetuado sob novas perspectivas, abarcando diferentes áreas do conhecimento e suas subjetividades (e não só através de “fórmulas já estabelecidas que se apresentam como um porto seguro” – p. 144), e ressalta o objetivo de “enriquecer” (p. 145) a educação e tentar fazer da escola e do saber que ela traz uma parte importante da existência dos indivíduos.

Olzeni Ribeiro6 e Maria Cândida Moraes, em “Criatividade sob a perspectiva da complexidade e da transdisciplinaridade”, procuram definir o conceito de criatividade, questionando os postulados de diferentes autores que trabalham com o tema e assertivando que outro referencial faz-se necessário para o estudo dessa temática. Buscam no pensamento complexo de Edgar Morin as bases para avançar no mencionado campo, através desse novo olhar que se fundamenta em outro paradigma que não o positivismo. A partir dessa conscientização, as autoras, por intermédio de considerações e análises a respeito, refletem sobre os equívocos conceituais no campo da investigação da criatividade (como, por exemplo, confundir objetivos com a própria conceitualização do tema), afirmando a ideia de que a investigação da criatividade baseada nesse paradigma emergente não pode ser realizada fora do contexto transdisciplinar.

Por sua vez, João Henrique Suanno oferece-nos o artigo intitulado “Ecoformação, transdisciplinaridade e criatividade: a escola e a formação do cidadão do século XXI”, onde trata de uma questão de extrema importância: o papel da escola na formação de indivíduos que possam vir a forjar novas formas de enfrentamento da realidade circundante e estar completamente cientes de suas responsabilidades perante eles próprios, a coletividade e o mundo em que habitam. Como instituição social, a escola tem a responsabilidade de promover a transformação e o crescimento da comunidade em que se insere. O autor enfatiza, inclusive, o fato de que essa tarefa, ou seja, a de formar cidadãos aptos a lidar com as demandas do seu momento, não é nova: períodos anteriores também assim o exigiram; entretanto, a novidade centra-se na consciência e na responsabilidade exigidas hoje para com o planeta em que vivemos, explorado e exaurido em seus recursos.

Para o autor, a consciência ecoformadora, transdisciplinar e criativa deve ser o suporte para a concretização de ações no rumo do resgate do humano e da cidadania planetária, a partir de uma educação e de práticas educacionais ressignificadas que possam garantir melhores espaços e condições para as gerações futuras.

Em sequência, Maria Dolores Alves7, no artigo “Psicopedagogia e transdisciplinaridade: a sabedoria da diversidade” trata da articulação entre a transdisciplinaridade e a psicopedagogia, demonstrando como a segunda, sob o olhar abrangente da primeira, pode contribuir para a libertação do pensamento e viabilizar os processos inclusivos e os encontros com a diversidade, trazendo existência e poder de expressão para cada ser humano em sua singularidade. A psicopedagogia integrada à transdisciplinaridade, segundo a autora, possibilita a edificação de um mundo onde toda a diversidade terá seu lugar, em um caminho para a “humanização do humano” (p. 191).

Em “El aprendizaje mediante el teatro: uma mirada compleja y transdisciplinar”, Montse González8 analisa os aspectos criativos e formativos da arte teatral sob o manto da complexidade e da transdisciplinaridade. Buscando rever os cenários educativos formativos, realiza uma leitura do teatro como local de aprendizagem, rico em estímulos para o conhecimento das alteridades e amplia nossa visão de mundo. Citando Jacques Delors (2014, p. 198, tradução nossa), a autora pensa que podemos conceber o teatro como um espaço “… para propagar os quatro pilares da educação: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser”.9 Em seguida, Álvaro Schmidt Neto10, em “A metáfora na perspectiva da didática transdisciplinar” enfoca a temática da metáfora e sua importância na didática transdisciplinar, para isso utilizando o conto infantil anônimo “A lição do papagaio”. Baseado na transdisciplinaridade e no pensamento complexo, o autor procura evidenciar a necessidade de superação do paradigma positivista.

Encerrando os artigos, temos “Os operadores cognitivos do pensar complexo na docência universitária: possibilidades e desafios”, no qual Michelle Machado11, Patrícia Nascimento12 e Deliene Leite13 nos trazem sua pesquisa com 118 docentes universitários a respeito de como o pensamento complexo, por meio de seus operadores cognitivos, pode colaborar no fazer pedagógico dos professores, auxiliando-os a ressignificar a prática docente. Ressaltam que o uso de ferramentas tecnológicas ajuda a melhor se dar conta das relações antes despercebidas; entretanto, é uma técnica complementar que jamais poderá substituir o olhar e a percepção do pesquisador.

Dessa maneira, a obra resenhada, que evidencia diferentes olhares de diversos autores, apresenta-se como uma importante contribuição no âmbito da educação, tanto quando reflete sobre as urgências de novas perspectivas paradigmáticas como resposta às muitas indagações e inquietudes relativas à eficácia das práticas educacionais atuais, como também quando enfoca a complexidade e a transdisciplinaridade como caminhos producentes na construção de novas ferramentas intelectuais, capaz de contribuir para uma reforma do pensamento que possa promover uma política de educação associada a novas políticas de civilização e humanização.

A escola não deve abandonar sua função primordial de transmissão de conhecimentos; entretanto, esses ensinamentos necessitam abranger mais do que a parte cognitiva. Precisam abarcar o conhecimento da realidade e do contexto dos alunos; compreender e transmitir a cultura existente nessa realidade concreta para que as crianças e os jovens possam adquirir um conhecimento real das suas condições de vida e uma consciência crítica e empenhada na transformação social (= consciência social), dentro de um clima incentivador da criatividade, da dúvida (ingrediente indispensável para o desenvolvimento da capacidade crítica), da autonomia de espírito, da empatia com todos os indivíduos e do amor à natureza e ao planeta.

Notas

1 Professora de Pós-Graduação na UCB/DF e do Master em Educação da Universidade de Barcelona.

2 Doutor em Ciências da Educação pela Universidade de Sevilha.

3 Professora das Universidades Federal e Estadual de Goiás – UFG e UEG.

4 Professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação da Universidade Nove de Julho – Uninove e Coordenadora do NIIC – Núcleo Interinstitucional de Investigação da Complexidade.

5 Professora e pesquisadora em Educação e Complexidade junto ao Núcleo Interinstitucional de Investigação da Complexidade e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Nove de Julho – Uninove.

6 Doutoranda em Educação e Especialista em gestão de instituições educacionais pela Universidade Católica de Brasília.

7 Pesquisadora dos Grupos Ecotrans/ UCB/ CNPq; GEPI/PUCSP/CNPq e Adeste, da Universidade de Barcelona.

8 Cofundadora da Companhia Teatral Barakas/Madrid e membro integrante do Grupo de Pesquisa GIAD, da faculdade de Pedagogia e Formação de Professores da Universidade de Barcelona.

9 No original: “… para propagar los cuatro pilares de la educación: aprender a conocer, aprender a hacer, aprender a vivir juntos y aprender a ser”.

10 Educador Corporativo da SPDM/Unifesp e membro do Grupo de Pesquisa Ecotransd/UCB/ CNPq.

|800| Revista Ensaio | Belo Horizonte | v.17 | n. 3 | p. 795-800 | set-dez | 2015 Janete Netto Bassalobre 11 Doutoranda em Educação. É diretora dos cursos de graduação à distância da Universidade Católica de Brasília.

12 Doutoranda em Educação foi professora da Universidade Católica de Brasília.

13 Professora do Curso de Pedagogia e coordenadora de Reconstrução das Práticas Docentes da Universidade de Brasília.

Janete Netto Bassalobre – Mestre em Educação pela Universidade Católica de Santos (UNISANTOS). Professora, psicóloga clínica pós-graduada em Neuropsicobiologia.

Acessar publicação original

[MLPDB]

Argumentação no ensino de ciências: tendências, práticas e  metodologia de análise – VIEIRA; NASCIMENTO (EPEC)

VIEIRA, Rodrigo Drumond; NASCIMENTO, Silvania Sousa do. Argumentação no ensino de ciências: tendências, práticas e  metodologia de análise. Curitiba: Appris, 2013. Resenha de: BERNADO, José Roberto da Rocha. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v. 17, n. 1, p. 277-280, jan./abr., 2015.

Nas duas últimas décadas, as pesquisas em Educação em Ciências vêm recomendando atenção às práticas argumentativas em sala de aula. Nesse sentido, Rodrigo Drumond Vieira e Silvania Sousa do Nascimento apresentam em sua obra Argumentação no ensino de ciências: tendências, práticas e metodologia de análise um texto de leitura obrigatória tanto para pesquisadores interessados em desen­volver trabalhos sobre o tema quanto para estudantes de graduação e professores da educação básica.

Em diálogo com referências consagradas e diversificadas, os autores de­senvolvem um texto de fácil compreensão, que traz uma boa discussão teórica, ao mesmo tempo em que apresenta exemplos de análises de situações argumentativas de salas de aula. As análises apresentadas se baseiam em uma metodologia

bem-fundamentada proposta pelos autores e discutida no texto.

O livro é dividido em oito capítulos. O primeiro é dedicado à apresen­tação do conceito de argumentação. Apoiados, principalmente, nas contribuições de Michael Billig, os autores procuram situar o leitor em relação às especificida­des que envolvem o processo argumentativo, sem deixar de dialogar com outros autores de diferentes nacionalidades. O capítulo avança em relação à discussão sobre “O que é uma argumentação?” identificando e destacando a importância do conceito de orientação discursiva, desenvolvendo uma explicação elucidativa a respeito dos aspectos que caracterizam as orientações discursivas explicativas e as diferenciam das argumentativas.

No segundo capítulo, os autores se dedicam a discutir “como identificar e caracterizar argumentações em sala de aula”. Mais uma vez, as ideias de Michael Billig, articuladas com outras referências que também embasam o primeiro capí­tulo, subsidiam o desenrolar do texto, sobretudo os conceitos de contraposição de ideias e de justificações, para fundamentar a proposição de dois importantes marcadores para identificar argumentações, adaptados dos conceitos anteriores.

São eles a contraposição de ideias (opiniões) e as justificações recíprocas dessas ideias. Os marcadores propostos são o embrião da base analítica para identificação dos aspectos que diferenciam a argumentação de outras orientações discursivas.

O segundo capítulo avança na discussão apresentando as caracterís­ticas de argumentações que são contempladas pelos marcadores, tais como: a persuasão, a disputa, certo grau de simetria entre os interlocutores, verossimi­lhança das declarações (opiniões), presença de mais de uma opinião e justifica­tivas para as opiniões.

Os autores concluem o segundo capítulo ilustrando a aplicabilidade dos marcadores em duas situações de ensino e aprendizado, que correspondem a pesqui­sas desenvolvidas por eles. Em um dos casos identifica-se uma situação argumen­tativa e no outro, uma situação de explicação.

No terceiro capítulo, os autores destacam a importância da multimoda­lidade para as pesquisas sobre os discursos em salas de aula de Ciências, consi­derando as múltiplas modalidades que os sujeitos em situações reais de interação discursiva utilizam para se comunicar, “desde fala, textos, diagramas, imagens, até gestos, variações de proxemia, dentre outros”. Apoiados em autores do cam­po da Sociolinguística, destacam ainda o papel das pistas de contextualização, que incluem pausas, prosódia, variações na proxemia e fixação do olhar, nos proces­sos argumentativos em sala de aula, e o quanto essas pistas sinalizam, para os sujeitos em interação e para os analistas, como interpretar os significados que emergem dessas interações. Mais uma vez, o terceiro capítulo traz exemplos ilustrativos retirados de pesquisas realizadas pelos autores, sobre as pistas de con­textualização discutidas no texto.

No quarto capítulo, os autores destacam a importância do padrão do ar­gumento de Toulmin para analisar argumentações no ensino de Ciências e a sua ampla utilização nos contextos nacional e internacional. Embora reconheçam as críticas em relação ao uso do padrão, defendem que sua associação com o método de análise proposicional por eles desenvolvido pode ser de grande utilidade conside­rando a compatibilidade entre os dois métodos. Assim, o capítulo apresenta uma discussão objetiva sobre o uso do padrão de argumento de Toulmin e introduz o método de análise proposicional de forma cuidadosa, visando deixar o leitor esclarecido sobre o método, que consiste basicamente na segmentação das falas dos parti­cipantes em proposições de acordo com critérios sociolinguísticos. A partir da identificação de “significados convergentes”, as proposições são agrupadas em Pro­cedimentos Discursivos. A aplicação do método ao discurso do professor, segundo os autores, possibilita identificar o que chamam de Procedimentos Discursivos Didá­ticos (PDD). A exemplo do capítulo anterior, o quarto capítulo procura contribuir para a compreensão do método lançando mão de exemplos obtidos de pesquisas realizadas pelos autores em situações reais de sala de aula.

No quinto capítulo, os autores retomam a discussão a respeito das di­ferenças entre orientação discursiva argumentativa e orientação discursiva explicativa para chamar a atenção sobre a necessidade de analisar e repensar os discursos em aulas de ciências. A estrutura analítica proposta possibilita esclarecer a natureza dos procedimentos discursivos dos professores e como eles se relacionam com o cum­primento de objetivos didáticos bem-estabelecidos. Nesse sentido, a metodologia coloca em destaque a importância da tríade “Orientação discursiva – Objetivos didáticos – Procedimentos Discursivos Didáticos (PDD)” nas ações do professor. As ações do professor são mapeadas pelo quadro de narrativas e os procedimentos discursivos, pelo quadro proposicional, ambos instrumentos de análise discutidos e exemplifi­cados ao longo do capítulo. Mais uma vez, os exemplos fazem parte da estratégia de elucidação da discussão trazida pelos autores.

O sexto capítulo é dedicado especialmente à ilustração do uso da meto­dologia proposta, por meio de uma “análise detalhada de uma argumentação” de duas ações: uma com orientação discursiva dialogal e outra com orientação discursiva ar­gumentativa, que se estabeleceram no contexto de uma aula da disciplina de Prática de Ensino de Física. Os autores recorrem ao padrão de argumento de Toulmin eventualmente, ao longo da análise realizada, com o objetivo de indicar a posição dos PDD na estrutura dinâmica discursiva. A partir do detalhamento das análises das duas ações, realizam o fechamento do sexto capítulo apresentando um esquema dinâmico da estrutura procedimental argumentativa do formador, no episódio de ensino analisado.

No sétimo capítulo, os autores apresentam, de forma objetiva, um modelo para a compreensão do “ritmo discursivo” em aulas de Ciências. O texto destaca a importância da análise em níveis como estratégia para lidar com a grande diversidade e densidade dos dados que caracterizam as pesquisas de análise do discurso de sala de aula.

No oitavo capítulo, os autores promovem um fechamento do livro a par­tir de uma discussão sobre a situação atual e as perspectivas futuras com relação à argumentação no ensino de Ciências no contexto brasileiro. Em suas reflexões, apontam as dificuldades dos professores para lidar com a argumentação em sala de aula, já que estas envolvem a associação de diversos campos do conhecimento. Além disso, há a questão da falta de familiaridade deles com práticas argumentati­vas em situações escolares. A resistência da própria escola e o engessamento dos currículos também são apontados pelos autores como mais uma dificuldade. Con­siderando o que essas dificuldades podem representar em termos de demandas por mais estudos, os autores defendem que a proposta metodológica apresentada no livro tem implicações para a pesquisa e para a prática docente, o que inclui os modos pelos quais argumentação e demais orientações discursivas oferecem oportunidades de aprendizagem e como os procedimentos discursivos didáticos dos professores se rela­cionam com o ensino e a aprendizagem de Ciências, sobretudo no que se refere à formação para a democracia e para a prática social.

Assim, a obra se caracteriza como um texto de fácil compreensão que traz a metodologia proposta de forma clara sem que os autores abram mão de uma consistente fundamentação teórica. Nesse sentido, é importante destacar o cuidado dos autores com os exemplos ilustrativos de situações reais que têm papel fundamental na elucidação do que é discutido. Sem dúvida, a metodologia propos­ta pode contribuir para o campo, com implicações para a pesquisa e para a prática docente. Assim, a obra se apresenta como leitura obrigatória para os envolvidos com investigações em argumentações no ensino de Ciências, inclusive estudantes de graduação e professores experientes em serviço interessados em compreender esses processos.

José Roberto da Rocha Bernardo – Professor da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected]  Acessar publicação original

[MLPDB]

Argumentation Schemes – WALTON et al (EPEC)

WALTON, D. N., REED, C.; MACAGNO, F. Argumentation Schemes. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. 443p. Resenha de: IBRAIM, Stefannie de Sá; MENDONÇA, Paula Cristina Cardoso. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v.15, n. 03, p. 255-262, set./dez./ 2013.

O livro “Argumentation Schemes”, escrito por Douglas Walton, Chris Reed e Fabrizio Macagno, publicado em 2008, apresenta uma análise sistemática de esque­mas argumentativos e um compêndio com 65 esquemas (por exemplo, argumento de opinião de especialistas, argumento de causa-efeito, argumento de sinal, argumento de analogias, etc.). Segundo os autores, os esquemas argumentativos representam es­truturas de argumentos que são tipicamente utilizados no discurso cotidiano, assim como em contextos de argumentação legal e argumentação científica.

Em 1996, Walton havia escrito um livro reunindo 25 esquemas argumen­tativos. Na obra de 2008, ele e seus colaboradores reuniram os principais tipos de argumentos originários de seus próprios trabalhos e de outros encontrados na literatura. Esses esquemas podem ter natureza descritiva, o que significa dizer que podem ser baseados em dados empíricos ou normativos, isto é, aquilo que se su­põe ser um bom argumento para determinado objetivo. Walton não deixa claro se determinado tipo de esquema foi derivado de observações empíricas ou se é ide­alizado, ou seja, ele não descreve a genesis de seus esquemas, apenas cita exemplos de argumentos reais para alguns e cria exemplos para outros (Blair, 2001).

Apesar de a obra não ter sido dirigida especificamente ao público da educação, em especial, da educação em ciências, é possível perceber a variedade de contextos em que ela pode ser utilizada – o que também pode ser justificado pela formação e atuação diversificada dos autores. Walton, PhD. em filosofia, é pesqui­sador do Centro de Pesquisas sobre Raciocínio, Argumentação e Retórica (CRRAR) na Universidade de Windsor, no Reino Unido; Reed é palestrante sênior e diretor de pesquisa da Escola de Computação da Universidade de Dundee, na Escócia; e Macagno é doutor em linguística pela Universidade Católica de Milão, na Itália.

Para melhor compreensão do livro analisado, é necessário que o leitor tenha uma noção da visão de argumentação adotada nos trabalhos de Walton (Walton, 1996, 2006). Por isso, optamos, antes de tudo, por pontuar algumas características da visão do autor, apresentadas, principalmente, em uma outra obra sua, que foi publicada em 2006.

Segundo uma visão mais tradicional de lógica formal, ao se avaliar a qualidade de um argumento, devem ser efetivadas as relações semânticas entre as proposições, ou seja, o argumento é entendido com um conjunto de propo­sições cuja relevância está presente na verdade ou falsidade delas, sendo que o contexto mais amplo do diálogo não é levado em consideração no julgamento da qualidade daquele argumento. A lógica informal, pelo contrário, enfatiza o uso que o argumentador faz das proposições para alcançar um objetivo. O argu­mento, nessa perspectiva, é uma alegação que, de acordo com os procedimentos adequados do diálogo racional, deve ser pertinente à conclusão do argumentador, contribuindo para prová-la ou esclarecê-la. Sua avaliação se dá no contexto de uso das proposições: o diálogo.

Em consonância com as bases da lógica informal, a nova dialética, sob o ponto de vista de Walton (1999), ocupa-se principalmente dos tipos mais comuns de argumentos do dia a dia, que são fundamentados no raciocínio presuntivo, em vez de ocupar-se dos raciocínios indutivos (a partir de casos específicos se chega a uma generalização) ou dedutivos (a partir de premissas gerais se chega a um caso particular). Além disso, a nova dialética leva em consideração as características contextuais do discurso.

Segundo Walton et al. (2008), a avaliação do argumento no domínio da lógica informal está centrada em argumentos que se configuram como tentativas, na plausibilidade da conclusão e no balanço das evidências em relação às possíveis resoluções. O raciocínio presuntivo se encontra presente em argumentos dessa natureza. Esse raciocínio apoia a inferência sob condições de incompletude e per­mite que dados desconhecidos sejam presumidos. A conclusão é um tipo pressupo­sição, aceita em uma base tentativa e sujeita à retratação, caso novas informações estejam disponíveis no processo. Argumentos baseados em raciocínio presuntivo foram, durante muitos anos, caracterizados pelos livros clássicos de lógica como falácias, pela alegação de este ser um tipo de raciocínio muito subjetivo. Entretanto, recentemente, as falácias informais têm sido reconhecidas como formas válidas de raciocínio, dependendo da situação contextual.

Segundo Walton (1999), a nova dialética pode ser utilizada como forma de analisar argumentos falaciosos por se basear em estruturas proposicionais não válidas (pois não se derivam de raciocínio dedutivo e indutivo), mas que repre­sentam uma forma coerente de pensar. Na nova dialética, cada caso é único, e um dado argumento necessita ser julgado com relação ao discurso disponível, ou seja, é importante observar qual o objetivo do argumento, pois um mesmo argumento pode não ser relevante em um contexto, mas o ser em outro. De acordo com o autor, o objetivo do argumento se relaciona à sua relevância dialética.

É no contexto da nova dialética que devemos compreender os esque­mas argumentativos apresentados na publicação de 2008. Segundo o livro, eles podem envolver quatro tipos de raciocínio principais: indutivo, dedutivo, presuntivo ou abdutivo e falsificável ou anulável. Os três primeiros tipos já foram caracterizados anteriormente. O último tipo é aquele que implica em a conclusão ser retirada de um conjunto de dados válidos, mas que pode ser modificada ou abandonada caso esses dados se tornem falhos.

Um exemplo de esquema argumentativo apresentado no livro é o de ana­logia, cuja estrutura é apresentada no quadro 1.

Quadro 1: Argumento de analogia. ( p. 256)

Outro tipo de esquema argumentativo é o de sinal, cujo exemplo apresen­tado na obra é “Isso parece pegada de urso, portanto, um urso deve ter passado por aqui.” (Walton, Reed, & Macagno, 2008, p. 329).

“Argumentation Schemes” é dividido em 12 capítulos. O capítulo 1 con­siste em um estudo da arte no qual os autores apresentam o que são os esquemas argumentativos. Por exemplo, o esquema de analogia sustenta que para dois casos similares, as ações ou conclusões afirmadas a partir de um caso também são ver­dadeiras para o caso similar. Ainda é discutido o papel das questões críticas, que são formuladas para avaliar a força de um argumento em determinado contexto. No caso de esquemas para argumentos presuntivos, apesar de a inferência não ser válida dedutivamente ou indutivamente, ela tem suporte respaldado pela estrutura lógica do esquema argumentativo e pelas questões críticas. Portanto, o esquema argumentativo e as questões críticas são utilizados para avaliar um dado argumento em um caso particular em relação ao contexto do diálogo no qual o argumento ocorre. Um argumento proposto em um caso particular é avaliado pelo julgamento das evidências com relação às possíveis perspectivas de resolução. Se todas as pre­missas são sustentadas por evidências, a aceitabilidade se move para conclusão, que está sujeita a refutações a partir de questões críticas apropriadas (Walton, 1999). As questões críticas referentes ao esquema de analogia estão apresentadas no quadro 2.

Quadro 2: Questões críticas relativas ao argumento de analogia. (p.256)

Os aspectos presentes no capítulo 1 são fundamentais para a compre­ensão dos próximos, pois neles os autores aprofundam as discussões de todos osesquemas e das teorias presentes no campo da argumentação. No capítulo 2, é discu­tido detalhadamente como seria o tratamento do esquema de analogia pensando-se nas diversas linhas de raciocínio; por exemplo, como seria a análise desse esquema pelos livros de lógica e como seria sua ocorrência em situações do cotidiano.

Nos capítulos 3, 4 e 5, são descritos os esquemas tidos como os mais falaciosos, que seriam aqueles nos quais a conclusão está mais relacionada ao ape­lo emocional ou nos quais a conclusão não é, necessariamente, justificada pelas evidências. São fornecidos exemplos de situações do cotidiano nas quais esses tipos de esquemas estão presentes. Um exemplo é o argumento do tipo posição de conhecimento (A tem razão de presumir que B tem conhecimento de, ou acesso à informação, que A não tem. Então, quando B opinar, A tratará a informação como verdadeira ou falsa).

O capítulo 6 discute a inadequação do tratamento baseado na lógica para os argu­mentos do tipo enthymemes1 e aborda o uso dos esquemas para análise de argumentos e as suas limitações. No capítulo 7, são apresentados os esquemas argumentativos que possuem caráter de refutação. Um exemplo é o esquema de opinião de especialista (referência a uma fonte externa de opinião especialista que fornece informações), no qual a conclusão advém de uma fonte confiável de conhecimento.

No capítulo 8, é apresentada uma visão longitudinal dos estudos no campo da argumentação, desde a teoria de Aristóteles até as teorias modernas para os esquemas argumentativos, que são aquelas que aceitam os argumentos baseados na lógica informal. Isso permite ao leitor observar como, a partir desses tipos de estudos, os argumentos considerados falaciosos passam a ser aceitos (o que é con­siderado pelos autores como mudança de paradigma). O capítulo 9 é constituído pelos 65 esquemas argumentativos reunidos a partir da literatura. Eles são apre­sentados nas formas de suas premissas e conclusões que as seguem.

Os autores trazem, no capítulo 10, um refinamento da classificação dos esquemas, ao buscarem propor um sistema provisório como um dispositivo inicial de triagem para organizar a classificação dos esquemas. O objetivo do capítulo 11 é mostrar uma maneira de formalizar os esquemas por meio de uma comparação entre eles, em forma de estruturas de inferências, e as estruturas da lógica dedutiva e do raciocínio indutivo. No capítulo 12, é discutido como os esquemas podem ser explorados ou trabalhados em quatro diferentes áreas (linguagem, comunicação, raciocínio automatizado e aplicações na computação). Além disso, o software cha­mado “Araucária” é apresentado. Seu objetivo é mapear as premissas e conclusões para tornar clara a classificação do argumento em um tipo de esquema.

O leitor pode estar se questionando sobre a relação da obra com a educa­ção em ciências. Nesta parte da resenha, buscamos trazer algumas contribuições do trabalho de Walton e colaboradores para o campo de educação em ciências a partir de leituras e de pesquisas que já realizamos. Acreditamos que isso possa contribuir para o uso da obra e para favorecer a reflexão sobre ela.

Verificamos que a aplicação das ideias de Walton na área de educação em ciências é recente. Isso pode ser evidenciado pela ausência de análise dessa

ferramenta por Sampson e Clark (2008) no trabalho de revisão das principais ferramentas metodológicas sobre argumentação empregadas nessa área. Assim, parece-nos que Duschl e colaboradores (Duschl, 2008; Duschl, Ellenbogen, & Erduran, 1999) e Jimenéz-Aleixandre e Pereiro-Munõz (2002) são os precursores do uso dos esquemas argumentativos propostos por Walton. Para Duschl (2008), apenas os esquemas argumentativos de Walton são capazes de atender aos cinco critérios propostos por Sampson e Clark (2008) para examinar a qualidade de argumentos científicos:

  1. Examinar a natureza e qualidade das conclusões. Instrumentos analíticos de­vem se focar nos tipos de conclusões propostas pelos estudantes e na habilidade de coordenar as conclusões com as evidências disponíveis.
  2. Examinar como (ou se) as conclusões são justificadas. Estudantes necessitam aprender a prover evidências empíricas, bem como perceber qual tipo de evidência é necessária para justificar um argumento.
  3. Examinar se uma conclusão apresenta evidências necessárias. Estudantes ten­dem a focar em padrões de dados, sendo que costumam dar prioridade a partes de evidências que sustentam suas crenças pessoais.
  4. Examinar como (ou se) o argumento tenta levar alternativas em consideração. Como mais de uma conclusão pode explicar um fenômeno, estudantes necessitam aprender a como desafiar a fraqueza de explicações alternativas.
  5. Examinar como referências epistemológicas são usadas para coordenar conclusões e evidências. Estudantes necessitam aprender a como justificar/avaliar os caminhos pelos quais as evidências são coletadas e interpretadas.

De acordo com Duschl (2008), um exame mais minucioso do discurso argumentativo revela que afirmações frequentemente fazem “apelos” para proposi­ções específicas, como apelos para autoridade ou para analogia. Segundo o pesquisador, a análise do conteúdo ou foco dos “apelos” levaria a uma aproximação dos cri­térios epistêmicos utilizados para estabelecer e justificar a qualidade e força do argumento (‘o que conta’) – o que justifica a afirmativa do autor apresentada no parágrafo anterior.

Duschl (2008) utilizou nove dos 25 esquemas propostos por Walton (1996) para analisar a instrução de estudantes imersos no projeto SEPIA2 e um grupo controle. Os esquemas selecionados por ele foram aqueles que, em sua opinião, apresentavam relação com características do raciocínio científico (sinal, compromisso, posição de conhecimento, opinião de especialista, evidência-hipótese, causa-efeito, correlação-causa, analogia). A partir dos gráficos apresentados por Duschl (2008), é possível perceber que o projeto SEPIA estimulou o desenvolvimento de raciocínio presuntivo dos estudantes. Isso foi evidenciado a partir de maior número de argumentos desenvolvidos pelos estudantes participantes do projeto SEPIA e de maior número de apelos a todos os esquemas. Esses resultados são bastante favoráveis, pois evidenciam que o projeto SEPIA atingiu um de seus objetivos: favorecer o desenvolvimento de um tipo de raciocínio inerente à ciência.

Jiménez-Aleixandre e Pereiro-Munõz (2002) trabalharam com o uso con­jugado das ferramentas de Toulmin e Walton. Elas apresentam um estudo de caso envolvendo a tomada de decisão e argumentação no contexto de gerenciamento ambiental de um pântano em um curso de Geologia e Biologia ministrado a alu­nos de 17 a 21 anos pela segunda autora do trabalho. O objetivo geral era analisar se estudantes podiam atuar como produtores de conhecimento em processos de tomada de decisão. Para isso, seus argumentos foram comparados aos produzidos por um especialista (engenheiro responsável pelo projeto) no sentido de perceber se os estudantes utilizavam (i) conhecimento conceitual relevante (em termos de justificativas); (ii) diferentes fontes de informação e autoridade; e (iii) critérios para julgamento de opiniões.

Ao utilizar a ferramenta de Walton, as autoras procuraram explorar o pro­cessamento crítico de diferentes fontes de informação e autoridade. Para tal, elas usaram as questões críticas introduzidas por Walton (Qual é o status do especia­lista? Há consistência da proposição do especialista com proposições de outros especialistas e evidências?) que seriam mais relevantes para avaliação de esquemas de argumentos de especialistas.

Observou-se, nesse trabalho que, nas primeiras aulas, os alunos não acre­ditavam que podiam ser capazes de contestar a posição de especialistas devido ao status de autoridade dessas figuras, ou devido ao não domínio de conhecimentos relevantes ao tema. Porém, à medida que as aulas foram transcorrendo e que dados, tanto sobre a área quanto sobre o projeto, foram apresentados, os estudantes pas­saram a se sentir capazes de contestar a opinião das autoridades à luz de evidências e opiniões de outros especialistas. Nesse caso, a ferramenta se mostrou adequada para avaliar ‘o que conta’ para esses alunos como uma boa fonte de informação e uma autoridade digna de confiança. Ao mesmo tempo, a ferramenta parece ter auxiliado os alunos a perceber que as ideias de especialistas não são “verdades absolutas”, podendo ser contestadas, desde que essa contestação seja adequada­mente fundamentada.

No Brasil, Correa, Mozzer e Justi (2010), fundamentados no esquema e em questões críticas de argumento de analogia de Walton (1996), tinham como objetivo perceber a validade dos argumentos elaborados por um grupo de alunos solicitados a explicar os aspectos submicroscópicos do processo de dissolução de permanganato de potássio em água, sob agitação. A análise realizada nesse traba­lho exemplifica como uma questão crítica associada a um esquema argumentativo de analogia (por exemplo, “existe alguma diferença entre as situações que minaria a situação pensada?”) pode ser utilizada para perceber se há necessidade de refor­mular o argumento ou o raciocínio analógico. Segundo esses autores:

“Ao estimular estudantes a utilizar as questões críticas de Walton quando envolvidos num processo de argumentação, podemos possibilitar-lhes um ensino sobre o “pensar bem” em oposição ao ensino sobre “o que pensar”.” (Correa, Mozzer, & Justi, 2010, p.12)

Recentemente, desenvolvemos um trabalho (Ibraim, Mendonça, & Justi, 2013) em que utilizamos os 65 esquemas argumentativos propostos por Walton et al. (2008) para analisar argumentos de estudantes de Ensino Médio que foram entrevistados quanto a um problema de caráter científico. Nesse trabalho, catego­rizamos os 65 esquemas e apresentamos exemplos de cada um dos 27 esquemas encontrados nos argumentos dos estudantes. A partir da análise de dados, cons­tatamos que os argumentos se relacionavam diretamente ao contexto no qual eles eram formulados. Percebemos a viabilidade do uso dos esquemas argumentativos de Walton para analisar argumentos em relação à distinção dos componentes do argumento segundo o padrão de Toulmin (2006). Atualmente, estamos utilizando os esquemas argumentativos para analisar argumentos de professores de Química em formação inicial.

Considerando que nesta resenha conseguimos destacar os principais as­pectos da obra analisada e evidenciar como as ideias apresentadas por ela podem ser utilizadas na área de educação em ciências, convidamos o leitor a explorar a obra em questão visando aumentar os subsídios teórico-metodológicos para aná­lise de situações argumentativas ocorridas no contexto de ensino de ciências.

Referências

Blair, A. (2001). Walton’s Argumentation Schemes for Presumptive Reasoning: a Critique and Development. Argumentation, 15, 365-379.

Correa, H. L., Mozzer, N. B., & Justi, R. (2010, 20 a 23 de abril). A nova dialética e os esquemas de argumento de Walton: um estudo sobre sua aplicabilidade no estudo de argumentação em sala de aula de ciências. Artigo apresentado no XV Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino, Belo Horizonte.

Duschl, R.A. (2008). Quality Argumentation and Epistemic Criteria. In: S. Erduran & M. P. Jiménez- Aleixandre (Eds.), Argumentation in Science Education: Perpectives from Classroom-Based Research (pp. 159-170). Dordretch: Springer.

Duschl, R.A., Ellenbogen, K., & Erduran, S. (1999, 11 a 15 de Abril). Understanding dialogic argumentation among middle school sience students. Artigo apresentado no The Annual Conference of American Educational Research Association, Montreal.

Ibraim, S. S., Mendonça, P.C.C., & Justi, R. (2013). Contribuições dos esquemas argumentativos de Walton para análise de argumentos no contexto de ensino de ciências. Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências, 13(1), 187-216.

Jiménez-Aleixandre, M. P., & Pereiro Muñoz, C. (2002). Knowledge producers or knowledge consumers? Argumentation and decision making about environmental mangement. International Journal of Science Education, 24(11), 1171-1190.

Toulmin, S. (2006). Os usos do argumento (2. ed.). São Paulo: Martins Fontes.

Walton, D. N. (1996). Argumentation Schemes for Presumptive Reasoning. Mahwah: Erlbaum.

Walton, D. N. (1999). The new dialetic: a method of evaluating an argument used for some purpose in a given case. Protosociology, 13, 70-91.

Walton, D. N. (2006). Lógica Informal: manual de informação crítica. São Paulo: Martins Fontes.

Walton, D. N., Reed, C., & Macagno, F. (2008). Argumentation Schemes. Cambridge: Cambridge University Press.

Notas

1 São esquemas argumentativos nos quais a conclusão é inferida tanto pelas premissas explícitas quanto pelas implícitas. Por exemplo, dizer que Bob não tem telefone fixo porque seu nome não está na lista telefônica, pressupõe que é sabido que o nome de todas as pessoas que possuem telefone fixo constam da lista telefônica (premissa implícita).

2 Avaliação da educação em ciências através de portfólios. O objetivo geral do projeto é o desenvol­vimento de raciocínio científico.

Stefannie de Sá Ibraim – Licenciada em Química pela Universidade Federal de Ouro Preto, Mestranda do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Minas Gerais E-mail: [email protected]

Paula Cristina Cardoso Mendonça – Licenciada em Química, Mestre e Doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais, Professora do Departamento de Química da Universidade Federal de Ouro Preto. E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

[MLPDB]

The Semantic Sphere 1. Computation, Cognition and Information Economy – LÉVY (EPEC)

LÉVY, Pierre. The Semantic Sphere 1. Computation, Cognition and Information Economy. Canadá: Wiley Iste, 2011. Resenha de: ZENHA, Luciana. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v.15, n. 02, p. 193-196, maio/ago. 2013.

Pierre Lévy, filósofo e sociólogo, dedicou sua vida acadêmica para compreender as implicações cognitivas e culturais das tecnologias digitais, promover os usos sociais e para estudar o fenômeno de inteligência coletiva humana. Atualmente, atua como professor e pesquisador no Departamento de Comunicação da Universidade de Ottawa, no Canadá, na Cátedra de Investigação em Inteligência Coletiva. Ele é autor de vários livros: As Tecnologias da Inteligência (1990), Inteligência Coletiva (1994), O que é o Virtual? (1995), Cibercultura (1997), Cyberdemocracia (2002) e Esfera Semântica 1 (2011).

O autor segue produzido o segundo volume, no qual irá aprofundar o programa e o desdobramento da Esfera Semântica.

O livro apresenta uma justificativa filosófica e uma explicação científica de um programa de metalinguagem computacional chamado IEML – Information Economy Metalanguage, ou seja, informações da economia da metalinguagem – que já se encontra em seu décimo ano de desenvolvimento. O IEML é uma linguagem de programação com interface intuitiva que resolverá o problema de interoperabilidade semântica na web e auxiliará a modelar futuros processos de inteligência coletiva online.

Sabemos que as novas mídias digitais nos oferecem uma capacidade de memória sem precedentes, um canal de comunicação onipresente e um crescente poder de comunicação baseado na computação. Em Esfera Semântica, o autor se propõe a explorar essa capacidade de comunicação para aumentar o processo cognitivo à serviço do desenvolvimento humano. Lévy discorre sobre essa capacidade combinando o conhecimento das ciências humanas e sociais com as questões relacionadas à lógica e à informática.

Trilhando esse caminho, Lévy propõe, nessa obra, a construção colaborativa de um hipercórtex global coordenado por uma metalinguagem computacional, pois, para ele, ao reconhecer plenamente a natureza simbólica da cognição humana, podemos transformar o nosso cérebro em uma inteligência reflexiva e coletiva.

Quanto à organização, o volume 1 divide-se em 3 partes. A primeira destina- se à introdução geral com a descrição contextual da pesquisa. A segunda, parte para a Filosofia da Informação, na qual são discutidas a natureza da informação, a cognição simbólica, a conversa criativa, a mutação das ciências humanas e sociais, a informação da economia. A terceira apresenta a Modelagem da Cognição, que aborda a introdução a uma compreensão científica da mente; a perspectiva computacional rumo a uma inteligência reflexiva; a visão geral do IEML – Esfera Semântica; o IEML metalinguagem; o IEML como máquina semântica; a memória hermenêutica; o hipercórtex; a perspectiva humanista para o conhecimento explícito; e a observação da inteligência cognitiva.

A introdução descreve como Lévy chegou às ideias atuais e a sua trajetória de pesquisador por meio da narrativa de alguns anos de trabalho, em que demonstra o desenvolvimento lento de suas reflexões e comprovações. Nessa parte, há uma ampla abordagem informacional que apresenta os campos estudados por ele e sua equipe de pesquisadores, de maneira inter e transdisciplinar, com o olhar profundo e ao mesmo tempo difuso nas áreas da cibernética, ciências humanas, economia, matemática, biologia molecular, filosofia, história, ciências cognitivas, linguística, computação, e até cosmologia.

A memória participativa digital comum a toda a humanidade é limitada e apresenta problemas de opacidade, a incompatibilidade dos sistemas de classificação e linguística. Ele inicia o primeiro capítulo apresentando a filosofia da informação, discutindo aspectos como cognição simbólica e conversa criativa.

Após a apresentação desses conceitos, ele aprofunda na cognição de modelagem com capítulos sobre o conhecimento científico da mente, o programa IEML proveniente da Esfera Semântica, o hipercórtex, observado da conexão, e construção da inteligência coletiva.

Dessa forma, a segunda e terceira partes do livro tratam do IEML (Information Economy Metalinguage) como um sistema simbólico que se constitui em: (1) uma linguagem artificial que se traduz automaticamente em línguas naturais, (2) um idioma de metadados para a marcação de colaborativa semântica de dados digitais, (3) uma nova camada de endereçamento do meio digital (conceptual endereçamento) apto a resolver o problema da interoperabilidade semântica, (4) uma linguagem de programação especializada na concepção de redes semânticas, (5) um sistema de coordenadas semânticas da mente (a esfera semântica), que permite a modelagem computacional da cognição humana e a auto-observação de inteligências coletivas.

O autor defende que o desenvolvimento e o uso de IEML poderiam levar a uma revolução epistemológica em ciências humanas e sociais (em frente, atualmente, uma avalanche de “big data”). O IEML poderia se tornar uma importante ferramenta nas mãos de comunidades humanas para criar, assimilar e “gerir” o conhecimento. Tudo isso com foco e na direção de um aumento da inteligência coletiva humana ligada a uma aprendizagem contínua social e generalizada.

É assim que Lévy e sua equipe de pesquisadores apresentam um método prático científico com um modelo social de processos cognitivos dos fluxos de expressão em uma lógica não linear que se apresenta em uma linha digital de informações.

Usando o IEML, o meio digital poderia ser transformado por meio das funções cerebrais que integram hipertextos, leitura e navegação web e integração de pessoas com foco na inteligência coletiva. O IEML permite um novo tipo de com putação semântica que, segundo o autor, vai revolucionar a internet da maneira que a conhecemos e consequentemente uma revolução na pesquisa das ciências sociais.

Uma imagem futurista e otimista da linguagem e da metalinguagem conectada por meio das tecnologias digitais.

Em Esfera Semântica 1, Lévy defende a ideia de que a espécie humana pode ser definida pela sua capacidade especial de manipular símbolos. Para ele, essa capacidade demonstra aumento devido à manipulação dos símbolos ter apresentado alterações sociais relativas às esferas econômica, política, religiosa, epistemológica e educacional, dentre outras. O autor compartilha sua reflexão a partir da análise de quatro dessas marcantes mudanças: (1) a invenção da escrita, quando os símbolos se tornaram permanentes marcas de tribos e grupos sociais; (2) a invenção do alfabeto, numerais indianos e outros pequenos grupos de símbolos capazes de representar “quase tudo” por combinação; (3) a invenção da imprensa e (4) a invenção posterior dos meios de comunicação eletrônicos, em que os símbolos são reproduzidos e transmitidos em tempo real. Estamos, segundo o autor, presenciando o início de uma outra grande mudança que está sendo realizada: a antropológica, que acontece por meio de símbolos que podem ser transformados em autômatos massivamente distribuídos na forma digital.

A principal contribuição de Lévy em Esfera Semântica 1 é a criação e o desenvolvimento de um sistema simbólico de comunicação pelo novo meio digital capaz de explorar o poder computacional, a capacidade da memória e expressão onipresente por meio digital. O IEML (Information Economy Metalinguage) promove uma inovação radical na notação e processamento da semântica, uma vez que programa é uma linguagem regular que proporciona novos métodos para a interoperabilidade semântica, navegação, a categorização referencial de inteligência coletiva. Ainda é preciso dizer que o IEML programa é compatível com os principais padrões da web de dados e está em sintonia com as tendências atuais da computação social.

Há um documento em anexo ao livro, elaborado por Lévy, que ele denomina como Documento de Visão. Nele, o autor explica a relevância filosófica dessa nova linguagem, expõe suas estruturas sintáticas e semânticas, e pondera as suas possíveis implicações para o crescimento da inteligência coletiva no ciberespaço.

Lévy finaliza o livro com a premissa de que a comunicação e a capacidade de análise semântica potencializarão a inteligência coletiva humana no ciberespaço e contribuirão para desenvolvimento humano em geral. O processo será realizado pela categorização social da memória digital global, resolvendo o problema da interoperabilidade semântica, proporcionando um sistema semântico transparente de endereçamento (tanto significativo como computável). Além disso, ampliarão o impacto da escrita colaborativa e a leitura no ciberespaço, preparando o terreno (simbólico) para inteligência coletiva.

Referências

Biografia completa de Pierre Lévy (Fonte: site da IEML ).

http://www.ieml.org/spip.php?article28&lang=fr http://p2pfoundation.net/Semantic_Sphere http://bit.ly/vwTUgi http://www.monde-diplomatique.fr/1995/10/LEVY/1857 http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:http://julien.lecomte.over-blog.com/article-medias-culture-et-cognition-entretien-avec-le-philosophe-pierre-levy-103876764.html&hl=pt-BR&prmd=imvns&strip=1

http://www.ieml.org/IMG/pdf/2009-Levy-IEML.pdf http://www.ieml.org/IMG/pdf/IEML_Semantic_Topology.pdf http://www.ieml.org/IMG/pdf/IEML-Dictionary.pdf Luciana Zenha – Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) Doutoranda UFMG E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

[MLPDB]

Why Cats Land On Their Feet: And 76 Other Physical Paradoxes and Puzzles – LEVI (EPEC)

LEVI, Mark. Why Cats Land On Their Feet: And 76 Other Physical Paradoxes and Puzzles. New Jersey: Princeton University Press, 2011. 190p. Resenha de: CLADEIRA, Pedro Zany. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v.15, n. 01, p. 209-210, jan./abr., 2013.

Em Why Cats Land On Their Feet: And 76 Other Physical Paradoxes and Puzzles, Mark Levi, professor de matemática na Pennsylvania State University e autor do livro The Mathematical Mechanic: Using Phisical Reasoning to Solve Problems ( publicado pela mesma editora), apresenta 77 paradoxos e enigmas da Física (que de fato correspondem a mais de uma centena de problemas), seguindo uma estrutura simples de exploração de cada um deles: Problema / Questão, (Pista), Resposta e Explicação (por vezes mais de uma). Como o próprio autor afirma, “um bom paradoxo físico é (1) uma surpresa, (2) um enigma e (3) uma lição, tudo embrulhado num pacote divertido. Um paradoxo em muitas ocasiões apresenta um argumento muito convincente que conduz a uma conclusão errada que parece certa, ou a uma conclusão certa que parece errada ou surpreendente” (p. 1). E os paradoxos e enigmas não são apenas divertidos, eles também treinam a intuição, a lógica e o pensamento crítico (seja qual for a área de estudo ou ensino).

Os paradoxos e enigmas explorados por Mark Levi resultam de um desafio colocado a ele por seu pai, após o próprio autor ter apresentado a ele um que ocorreu, após uma aula no Ensino Médio, sobre o efeito de capilaridade (paradoxo esse também presente no livro).

Mark Levi tem a capacidade de apresentar problemas complexos de Física associando-os a situações do cotidiano e sem a necessidade de os explorar por meio da matemática, usando apenas (ou sobretudo) a intuição física (quase totalmente ausente nos conteúdos escolares, segundo o autor): É possível a navegação espacial sem propulsores? Os icebergs sentem a rotação terrestre? Conseguimos perder peso numa fração de segundo? Podemos usar nossa respiração como propulsor? Como conseguimos nadar? Se uma pedra cai com aceleração constante, por que, então, para as mesmas distâncias (digamos, 1 metro), numa mesma sequência os ganhos de velocidade vão decrescendo? Como controlar a direção de um carro no gelo? Como mudamos de direção quando estamos a andar de bicicleta? Um dos incentivos que o autor fornece ao leitor logo de início está, precisamente, na incapacidade de muitas pessoas inteligentes (também) não conseguirem encontrar a resposta certa para muitos dos paradoxos e enigmas explorados no livro (o que torna ainda mais divertida a sua experiência de leitura).

O livro é constituído por quatro partes interdependentes: (1) indicação de outros livros que também apresentam problemas de Física sem a necessidade de (muita) matemática: The Flying Circus of Physics (de J. Walter), Thinking Physics (de L. Epstein), Mad about Physics (de C. P. Jagordzki e F. Potter), Physics for Entertainment (de Y. Perelman) e The Nature of Light and Color in the Open Air (de M. Minnaert); (2) os 77 paradoxos e enigmas; (3) o apêndice, que apresenta de forma simples e didática as leis e temáticas da Física envolvidas em diversos paradoxos e teoremas e regras de cálculo aplicados em esses mesmos paradoxos: i. Leis de Newton, ii. Energia Cinética, Energia Potencial e Trabalho (e Conservação de Energia), iii. Centro da Massa, iv.

Momento Linear, v. Torção, vi. Momento Angular, vii. Velocidade Angular e Velocidade Centrípeta, viii. Força de Coriolis, Força Centrífuga e Exponenciais Complexos e o ix. Teorema Fundamental do Cálculo; (4) a bibliografia completa.

Muitos dos paradoxos e enigmas (ou todos) se relacionam a temáticas exploradas nas disciplinas de Física do Ensino Médio, podendo se tornar bons auxiliares para a preparação de aulas e exercícios a serem desenvolvidos em sala de aula.

Why Cats Land On Their Feet: And 76 Other Physical Paradoxes and Puzzles é um livro que pode ser explorado não apenas por professores de Física, mas por professores de outras áreas das ciências, pois vai muito além da simples sugestão de uso de atividades em sala de aula ao apontar que a atração pelo que é surpreendente é um instinto básico na maioria dos mamíferos, e que esse instinto pode ser usado pelo sistema educacional potencializando as aprendizagens dos alunos (principalmente se eles não se detiverem apenas na matematização dos problemas).

Pedro Zany Caldeira – Doutor em Gestão de Informação pela Universidade Nova de Lisboa (UNL). Membro da Unidade de Investigação em Educação e Desenvolvimento (UIED) da UNL e do consórcio NEEMM – Núcleo de Estudos de Espaços em Mutação e Mídia (UFMG / UFTM / UFU). Professor do Instituto Superior de Educação e Ciências – Lisboa E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

[MLPDB]

As coisas são assim: pequeno repertório científico do mundo que nos cerca – BROCKMAN; MATSON (EPEC)

BROCKMAN, J; MATSON, K. (Orgs.). As coisas são assim: pequeno repertório científico do mundo que nos cerca. Diogo Mayer, Suzana Sturlini Couto (Trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 308 páginas. Resenha de: SIMÕES, Ceane Andrade. As coisas são assim? Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v.14, n. 02, p. 187-192, ago./nov., 2012.

UMA APROXIMAÇÃO À “TERCEIRA CULTURA” E À SUA TENTATIVA DE SÍNTESE

Se você estivesse numa sala repleta de cientistas famosos e pudesse formular apenas uma pergunta a cada um deles, quais seriam essas perguntas? É a partir dessa provocação que John Brockman e Katinka Matson organizam a obra de divulgação científica As coisas são assim: pequeno repertório científico do mundo que nos cerca. Ela é uma escritora e artista que vem empregando a tecnologia nas suas obras para estudar a nossa intrincada relação com a natureza e com mundo2. Brockman é um agente literário nova-iorquino bastante requisitado por personalidades prestigiadas no meio científico.

Em função dessa relação íntima com pensadores e cientistas, ele foi capaz de criar diversas maneiras de estimular a manifestação destes, especialmente por meio eletrônico. Habitualmente, Brockman formula diversos questionamentos e provocações aos seus autores e os envia por correio eletrônico ou cria listas de discussão em sua página na internet3. As respostas obtidas são organizadas em livros, tal como a obra que apresentaremos.

O espaço virtual de interlocução entre cientistas, escritores, filósofos, sociólogos e investigadores criado por Brockman, no Edge Foundantion, é chamando de The World Question Center. Representa a ponte entre o pensamento científico e o pensamento filosófico-sociológico, ou seja, a tentativa de junção da cultura humanística com a científica, a qual Brockman prefere chamar de Terceira Cultura4. Segundo ele, The Third Culture “consiste nos cientistas e outros pensadores no mundo empírico que, através do seu trabalho e dos seus ensaios, estão a tomar o lugar do intelectual tradicional na tarefa de tornar visíveis os significados mais profundos das nossas vidas, redefinindo quem e o que somos” (extraído do site www.edge.org, tradução nossa).

Os colaboradores de Brockman, que ele classifica como as mentes mais interessantes do mundo, são verdadeiros intelectuais em ação e a exposição de suas ideias significa o reconhecimento das capacidades especulativas daqueles a que estamos mais habituados a ver como representantes do rigor e da exatidão.

A proposta de uma terceira cultura não é, necessariamente, uma novidade. Snow, na obra As Duas Culturas, publicada originalmente em 1959 – ampliada em 1963 sob o título The two Cultures: a Second Look, e editada no Brasil sob o título As Duas Culturas e uma segunda leitura: Uma Versão Ampliada das Duas Culturas e a Revolução Científica -, já criticava o distanciamento entre as ciências naturais e as humanidades. Tal distanciamento, resultante da especialização excessiva existente nesses dois campos, provocaria o empobrecimento da visão dos intelectuais5, tornando- os ignorantes ou nas ciências naturais ou na cultura humanística, o qual poderia ser superado com o surgimento de uma outra cultura capaz de fazer confluir vários campos do conhecimento. Essa nova cultura, ou Terceira Cultura, prevista por Snow, surgiria para reduzir o fosso de comunicação entre literatos e cientistas.

A polêmica instaurada por Snow sobre o desconhecimento de conceitos básicos da ciência pelos humanistas (ou literatos) e, por outro lado, a ignorância das dimensões sociais, éticas e psicológicas dos problemas científicos pelos próprios cientistas, pode sugerir os impactos gerados no campo educacional. Para ele, a educação deveria se ocupar com o cultivo de mentes criativas e de indivíduos que usufruam e produzam ciência e arte, assumindo o dever de minorar o sofrimento de seus contemporâneos (KRASILCHIK, 1992).

É nesse espírito de superação das dicotomias culturais que Brockman e Matson organizam As coisas são assim, uma coletânea de ensaios escritos por trinta e quatro renomados cientistas e pensadores, em abordagem sucinta e instigante.

Engana-se quem, assim como eu inicialmente, faz uma breve incursão pelo livro e acredita estar diante de um manual ao estilo “tudo que é preciso saber sobre a ciência” ou de um guia de explicitação de conceitos científicos. Os artigos presentes nessa obra ultrapassam esse lugar comum e permitem um inquietante interesse sobre a ciência e seus usos e métodos de construção de conhecimentos. Como os próprios autores afirmam na introdução, são apresentadas contribuições que funcionam como ideias elementares, conceitos básicos ou como ferramentas para o pensamento. Esse intento fica bem claro no título original do livro, publicado em 1995, “How Things Are: A Science Tool – Kit for the Mind”, que pode ser traduzido como “As coisas são assim: uma ferramenta científica – kit para a mente”.

A obra está dividida em seis partes: Pensando sobre ciência; Origens; Evoluções; A mente; O cosmos e o futuro. Os artigos são acompanhados, ao final, por uma breve descrição sobre seus autores, do que se ocupam e de suas principais pesquisas e obras. Essa síntese é bastante elucidativa e serve para situar os leitores, especialmente aqueles que têm pouca intimidade com nomes como os de Richard Dawkins, Daniel Dennet, Niles Eldredge, entre outros.

Na parte I (Pensando sobre ciência) encontramos os ensaios “Só isso ou tudo isso?”, em que a zoóloga Marian Stamp Dawkins, ao tratar das explicações científicas, lembra aos que julgam que elas retirariam a beleza dos “mistérios do mundo”, que a ideia é justamente o contrário e afirma: (…) explicar algo de modo científico não o diminui. Intensifica-o. (p.17). No ensaio “Sobre a naturalidade das coisas”, a antropóloga Mary Catherine Bateson fala das constantes confusões criadas em torno dos conceitos de natureza e natural. A forma como muitas vezes empregamos o sentido de natureza faz com que ela possa parecer algo a ser contornado. Outras vezes ela é colocada como o oposto de cultura ou como aquilo que é não influenciado por atos humanos. Então, a autora alerta: (…) o mais grave de tudo é que a visão da comunidade humana como algo separado da (e em oposição à) natureza se tornou natural.

(p.28). Em “Boas e más razões para crer”, o evolucionista Richard Dawkins fala das diferenças entre as provas encontradas pelos cientistas e as crenças. Muitas crenças são incutidas secularmente pelas tradições, por uma ação de autoridade, ou surgem por uma suposta “revelação”. Os fatos da ciência parecem ter a mesma conotação.

A diferença, segundo ele, é que os que anunciam fatos científicos viram as provas e estas podem ser examinadas.

Na parte II (Origens), estão os ensaios: “O que aconteceu antes do Big Bang?”, escrito pelo físico teórico e professor de Filosofia Natural Paul Davies, que concebe a ideia de que pensar, por exemplo, por que o Big Bang aconteceu, também pode levar a questionamentos como o que intitulou esse ensaio, em uma espécie de regressão infinita. Tal problema é enfrentado com frequência pelos cientistas.

“O fascínio da água”, escrito pelo Físico-Químico Peter Atkins, faz uma descrição sobre como, a partir de uma estrutura molecular tão simples, pode surgir a água.

Ele fala que o prazer de contemplar a água é reforçado quando sabemos de sua essencialidade para o surgimento e manutenção da vida. “De onde viemos?”, escrito por Robert Shapiro – professor de Química da New York University -, trata das origens da vida e questiona: “Como é que a vida surgiu pela primeira vez, neste ou em qualquer outro lugar do universo onde possa existir?” (p.58). “Quem culpamos pelo que somos?” escrito pelo biólogo reprodutivo Jack Cohen, fala sobre o DNA como princípio organizador da vida e desconstrói alguns mitos sobre ele, como aqueles contidos em perguntas como “Como é que o DNA faz a mosca?”. A resposta é simples, ele não faz. O que faz a mosca ou qualquer outro ser vivo é o processo de desenvolvimento no todo. “O triunfo do embrião”, de Lewis Wolpert – pesquisador da área de biologia celular –, questiona, por exemplo, “Como algo tão pequeno e sem graça quanto um ovo pode originar um complexo ser humano?” e “Como os genes, o material hereditário, podem controlar esses processos de gerar a espantosa variedade de formas vivas? (p.75).

“Do kefir à morte”, da bióloga Lynn Margulis, fala da morte e sobre o que significa “morte programada”. Ela afirma: “A morte significa a perda das fronteiras nítidas de um indivíduo; com a morte, o ser se dissolve”. (p.83).

Na parte III (Evolução), estão os ensaios: “Três aspectos da evolução”, escrito pelo evolucionista e paleontólogo Stephen Jay Gould, que trata do que a evolução não é, o que ela é e que diferença isso faz para nós. “Nossa gangue”, escrito pelo antropólogo Milford Wolpoff, trata de esclarecer as relações entre os seres humanos e o macaco e sobre o papel da Paleoantropologia em desenvolver teorias sólidas sobre a evolução humana. “E o incesto?”, escrito por Patrick Bateson – antropólogo -, fala que o desenvolvimento do tabu do incesto está historicamente relacionado ao controle do abuso sexual dentro das famílias. “Porque algumas pessoas são negras?”, escrito pelo biólogo Steve Jones, lembra que a falta de explicações simples para uma pergunta tão simples revela algumas fraquezas da teoria da evolução e daquilo que a ciência é capaz de dizer sobre o passado ou daquilo que ela já não pode verificar diretamente, ainda que ela nem sempre requeira provas experimentais diretas. Em “O acaso e a história da vida”, o paleontólogo Peter Ward questiona por que os mamíferos, incluindo os humanos, dominaram a Terra e “(…) por que os dinossauros não estão mais por aqui, se eram tão bem adaptados?” (p.138). “Ninguém gosta de mutantes”, escrito pela bióloga evolucionista Anne Fausto-Sterling, trata sobre o que é o normal e o natural na relação com o anormal e o artificial. Ela diz: “O não-natural, o natural, o normal, o anormal, o moral, o imoral se misturam. Ao discuti-los, tentemos pelo menos ser os mais claros possível.” (p.146).

Na parte IV (A Mente), estão os ensaios: “Como cometer erros”, escrito pelo filósofo Daniel Dennett, que lembra que cometer erros é a chave para o progresso.

E diz: “Você deveria procurar oportunidades para cometer grandes erros, só para então se recuperar deles”. (p.151). “A mente pode fazer mais do que o cérebro?”, escrito pelo lógico Hao Wang, questiona se essa é realmente uma pergunta científica, pois atualmente filósofos e cientistas entendem que mente e cérebro se equivalem. “Como pensar sobre o que ninguém jamais pensou?”, escrito pelo neurofisiologista William Calvin, sintetiza a interessante ideia de pensar sobre o próprio pensamento. “O quebra-cabeça das médias”, escrito pelo neurobiólogo Michael Gazaniga, discute que cada cérebro possui um padrão único, apesar de que no decorrer do “treinamento científico” as médias estarão sempre presente. “Ceteris Paribus (Tudo o mais sendo invariável)”, do antropólogo Pascal Boyer, defende que a ciência tem sido o empreendimento intelectual mais bem sucedido entre todos, até o momento. “Dar mais uma olhada”, escrito pelo psicólogo Nicholas Humphrey, trata da ilusão, do improvável e do impossível.

“O que saber e como aprendê-lo”, escrito pelo psicólogo Roger Shank, argumenta sobre a importância de aprender fazendo. “Como nos comunicamos?”, escrito pelo antropólogo Dan Sperber, discute aspectos essenciais da comunicação humana.

“A mente, o cérebro e a pedra de Roseta”, do neurocientista Steven Rose, traz elementos para a discussão sobre a dicotomia mente-cérebro e ressalta as outras diversas dicotomias presentes em nossa linguagem. “Estude o Talmude”, escrito pelo cientista da computação David Gelernter, trata sobre aprender a ler e apresenta o Talmude como um modelo importante para isso. “Identidade na Internet”, da psicóloga Sherry Turkle, faz uma análise sobre as personalidades assumidas pelos usuários de chats e sobre como os computadores mudam a nossa maneira de pensar.

Na parte V (O Cosmos), estão os ensaios: “O que é o tempo?”, em que o físico Lee Smolin lembra que qualquer criança sabe o que é o tempo, mas em algum momento terá que lidar como os paradoxos que estão por trás dessa noção. Ele explica como o mistério do tempo foi se aprofundando para ele e lança questões como: os relógios medem o tempo real? Existirá uma forma de medir o tempo real do mundo? O tempo absoluto existe?. “Aprendendo o que é através do que não pode ser”, escrito pelo físico Alan Guth, remete a pensar sobre a importância do impossível para a ciência, embora ela seja, a princípio, o estudo das coisas possíveis. “Simetria: o fio da realidade”, escrito pelo matemático Ian Stewart, fala dos padrões de simetria na natureza, lembrando que ela pode parecer apenas uma repetição de estruturas sem maior importância, mas que influencia a visão científica no universo. “Relatividade especial: porque não podemos nos mover mais rápido do que a velocidade da luz”, escrito pelo cientista da computação Daniel Hillis, discute sobre a impossibilidade de não se poder viajar mais rápido que a velocidade da luz.

Na última parte (O Futuro), estão os ensaios: “Quanto tempo durará a espécie humana?”, escrito pelo professor de Física Freeman Dyson, que trata dos prognósticos da ciência, lembrando inicialmente das previsões sombrias de Robert Malthus sobre o aumento geométrico da população e o aumento aritmético da produção de alimentos. “A singularidade do atual crescimento da população humana”, escrito pelo matemático de populações Joel Cohen, fala sobre o atual crescimento populacional na Terra. O autor lembra que a espécie humana está passando por um pico transitório e breve de crescimento populacional que, além de não ter precedentes, provavelmente será o único. “Quem herdará a Terra? Carta aberta a meus filhos”, escrito pelo paleontólogo Niles Eldredge, questiona as previsões sobre o fato de o mundo estar indo “por água abaixo”, apesar de todos os impactos negativos causados pela nossa forma de existência e pelo crescimento populacional. “A ciência consegue responder a todas as perguntas?”, em que – tomando o exemplo da desconfiança de Auguste Comte sobre a possibilidade de a ciência responder a tudo, mediante a pergunta “Do que são feitas as estrelas?” – o astrofísico Martin Rees demonstra como os astrônomos responderam sobre o que são as estrelas.

A visão trazida por essa obra remete à ciência como uma forma de entender o mundo. Aliás, uma das características que perpassa os ensaios é a do alto poder explicativo da ciência. A perspectiva é notadamente a das Ciências Naturais, por isso, apesar da intencionalidade dos autores em buscar uma via alternativa à dicotomia entre as culturas humanística e científica, temos aqui uma bela exposição dos modos de produção desse campo específico. Tal fato não lhe tira o mérito, pois como é anunciado na “orelha” dessa obra, “Ouvir o que os cientistas têm a dizer é fascinante e muitas vezes surpreendente. Um jeito novo de ver as coisas é oferecido”.

Pensar a ciência como uma lente que nos permite enxergar a realidade de uma determinada maneira, implica em compreendê-la como uma cultura, tal como uma linguagem. Ou seja, percebê-la como uma forma de consenso compartilhado por um grupo social, que afeta as suas práticas e em que a produção e intercâmbio de significados são negociados entre os seus membros. Nesse caso, a ciência não poderia ser analisada como algo que se orienta independentemente de uma matriz sociocultural, mas sim como algo em que a implicação da relação entre cognição com tempos históricos, culturas e sociedades específicas lhe é constitutiva (ZARUR, 1994).

De qualquer modo, a obra nos oferece a visão de que o exercício da indagação e do questionamento é, por si mesmo, muito precioso, e sugere, mesmo que indiretamente, uma importante reorientação para o ensino de ciências.

Notas

1 Esta resenha foi elaborada no âmbito de uma disciplina de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Campinas, cuja tônica era a discussão sobre o papel ocupado pela Ciência em nosso contexto cultural. Nessa altura, a obra As coisas são assim foi selecionada como um texto representativo do gênero divulgação científica e antes de optar por trabalhar com ela, foram realizadas algumas buscas na internet, não sendo encontrada nenhuma resenha publicada nos meios em que se discute a educação em ciências. Entendemos que isso justifica o fato de resenharmos uma obra de publicação não tão recente.

2 Em sua técnica de fotografia, Katinka emprega scanner de mesa que, na captura das imagens, dá ritmo e profundidade às pétalas, caules e pistilos. Assim, luz e sombra contribuem para realçar, de uma forma vívida, detalhes do desenho e as suas cores. Procurar mais detalhes em http://www.katinkamatson.com. Ela é presidente da agência literária Brockman Inc. e co-fundadora e diretora da Edge Foundation.

3 Uma das perguntas anuais lançadas por Brockman no seu site (www.edge.org) foi “Qual é a maior invenção dos últimos 2 mil anos?”. A organização das respostas deu origem ao livro As Maiores Invenções dos Últimos 2 Mil Anos, publicado no Brasil em 2000, pela Editora Objetiva. Em outra lista de discussão, que alcançou 120 contribuições de cientistas, intelectuais e artistas, foi perguntado “What do you believe is true even though you cannot prove it?” (O que você acredita que seja verdade mesmo que não possa provar?). Estas ideias foram organizadas no livro Grandes idéias impossíveis de provar, publicado em Lisboa em 2008, pela Editora Tinta da China.

4 Conferir artigo de Nuno Crato na Revista da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. Disponível em http://nautilus.fis.uc.pt/cec/arquivo/Nuno%20Crato/ 1998/19980711%20A%20terceira%20cultura.pdf 5 Os intelectuais (tradicionais) seriam os literatos, “homens das letras” ou críticos literários, colocados em oposição aos cientistas ou pessoas com formação científica. Para Brockman, os intelectuais da Terceira Cultura, os terceiro-pensadores, teriam o papel de comunicadores. Eles seriam “sintetizadores” da ciência, pessoas que não apenas conhecem coisas, mas que moldam o pensamento de sua geração e, para isso, estabelecem uma via de comunicação direta com seu público. Essa via tem sido conhecida hoje sob o rótulo de literatura de divulgação científica. A chamada do público para os debates científicos coloca a ciência em uma posição central na vida cultural moderna.

Referências

KRASILCHIK, M. Resenha As duas culturas e um segundo olhar. Em Aberto, ano 11, nº 55, jul./ set. 1992. Disponível em: <http://www.rbep.inep.gov.br/index.php/emaberto/article/view/823>.

Acesso em: 12 de agosto de 2009.

SNOW, C. P. As Duas Culturas e uma segunda leitura: uma versão ampliada das duas culturas e a revolução científica. Renato Rezende Neto (Trad.). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: 1995.

ZARUR, G. I. A arena científica. Campinas, SP: Editora Autores Associados, 1994.

Ceane Andrade Simões – Mestranda em Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professora da Universidade do Estado do Amazonas (UFAM). E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

[MLPDB]

A estrutura das revoluções científica – KUHN (EPEC)

KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 5. ed. São Paulo: Editora Perspectiva S.A, 1997. Resenha de: BARTELMES, Roberta Chiesa. Resenhando as estruturas das revoluções científicas de Thomas Kuhn. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v.14, n. 03, p. 351-358, set./dez., 2012.

PORQUE AINDA THOMAS KUHN

Apesar de já se passarem mais de 30 anos da publicação da obra A estrutura das revoluções científicas, ela permanece atual em termos de discussões epistemoló­gicas e estruturais da constituição das ciências. A importância de qualquer cientista conhecer tal obra se deve ao fato de que ela descaracteriza o mito que se criou em torno das ciências e dos cientistas com o advento da era científica e tecnológica. Kuhn demonstra que, além de serem construções humanas, as ciências são também, e consequentemente, construções sociais e históricas. Disso resulta uma nova compreensão acerca dos processos científicos, e por que não dizer, de alfabetização científica. A atualidade da obra é justificada também por seu caráter inovador. Sem pretensões de ser uma obra de referência mundial, Kuhn apenas fez de seu rela­tório de pesquisas e das suas inquietações um objeto de estudo que cada vez mais cresceu diante de suas pesquisas. Eis um modelo de compreensão da prática da fi­losofia das ciências: a pesquisa em busca de saberes que desvelem as verdades que se estabelecem sem questionamento. Isso vale para qualquer campo de estudos, seja nas ciências sociais, humanas, naturais ou exatas.

SOBRE THOMAS KUHN

Kuhn é um físico que, durante seu engajamento no processo de pós­-graduação, intrigou-se com algumas afirmações à respeito da ciência e da história da ciência. Como ele mesmo refere-se no prefácio de sua obra, foi durante o envolvimento com o ensino de Física experimental para não cientistas que ele teve contato com a história da ciência. Foi nessa oportunidade que Kuhn percebeu di­ferenças entre o que dizia a história da ciência e o que ocorria durante as atividades experimentais para o público leigo.

Foi desse interesse incomum que surgiram os estudos “arqueológicos” na história da ciência de Kuhn. Na maioria das vezes, quando realizamos atividades experimentais para públicos de não cientistas, não nos questionamos sobre a vali­dade de nossos argumentos ou sobre a forma como a ciência é apresentada. Para Kuhn, o contato com diferentes áreas do conhecimento, como a epistemologia, a psicologia e as ciências naturais e sociais, permitiu um olhar mais atento e mais complexo sobre a história da ciência. E não apenas isto, mas esse contato lhe permitiu compreender como se dá a construção e a validação de uma ciência, bem como sua manutenção e superação. Assim, como o próprio autor defende, sua inserção na história da ciência está mais interessada em processos epistemológicos do que contextuais ou sociais, o que não significa que estes nãos estejam presentes em seus estudos, pois, como veremos adiante, em cada época há um conjunto de saberes que permitem fazer esta ou aquela leitura da realidade à qual estamos submetidos.

A HISTÓRIA DA CIÊNCIA

Um dos objetos de estudos dessa obra de Kuhn é a história da ciência. Para ele, é nessa disciplina que se encontram os detalhes da produção científica de uma determinada comunidade:

(…) a História da Ciência torna-se a disciplina que registra tanto esses aumentos sucessivos como os obstáculos que inibiram sua acumulação. Preocupados com o desenvolvimento cientifico, o historiador parece então ter duas tarefas principais. De um lado deve deter­minar quando e por quem cada fato, teoria ou lei cientifica contemporânea foi descoberta ou inventada. De outro lado, deve descrever e explicar os amontoados de erros, mitos e superstições que inibiram a acumulação mais rápida dos elementos constituintes do mo­derno texto científico. (p.20)

Essas tarefas do historiador, no entanto, são complexas e remetem a dife­rentes entendimentos do que seja ciência. Kuhn argumenta que: “Talvez a ciência não se desenvolva pela acumulação de descobertas e invenções individuais …” (p.21). Assim, quando os historiadores dedicam-se ao estudo de uma concepção ou teoria científica percebem que para a época eram tão científicas quanto as teo­rias e concepções que temos hoje:

Quanto mais cuidadosamente estudam, digamos, a dinâmica aristotélica, a química flogís­tica ou a termodinâmica calórica, tanto mais certos tornam-se de que, como um todo, as concepções de natureza outrora correntes não eram nem menos cientificas, nem menos o produto de idiossincrasias do que as atualmente em voga. (p.21)

É nesse sentido que podemos perceber o entendimento de ciência para Kuhn. Ao contrário do que sempre vimos nos manuais científicos, a ciência não é o acúmulo gradual de conhecimentos, mas é a complexa relação entre teorias, dados e paradigmas. Tampouco a Ciência é neutra. Mesmo em seus métodos, como a observação e a experimentação, ela define de antemão o que é ou não possível de ser realizado: “A observação e a experiência podem e devem restringir drasticamente a extensão das crenças admissíveis, porque de outro modo não haveria ciência. Mas não podem, por si só, determinar um conjunto específico de semelhantes crenças.” (p. 23) Ou seja, a observação é feita sobre aquilo que é possível “ver” dentro de um paradigma. Se tomarmos como exemplo a astronomia, veremos que, para Ptolomeu, em seu Almagesto2, a Terra tinha de ser o centro do universo. Isso por­que toda a conformação teórica tinha de derivar da perfeição geométrica, produto dos sólidos de Platão. Além disso, a representação do universo estava baseada na teoria de Aristóteles de que o mundo supra lunar era perfeito e imutável e o mundo sub lunar era imperfeito e mutável. Se nos remetermos a essas concepções teóricas, veremos que de fato o mundo supra lunar aparentemente é perfeito e imutável, uma vez que as estrelas “fixas” não mudam suas posições no céu. Elas surgem e ressurgem periodicamente “no mesmo lugar”. Quando surge alguma anomalia, como o movimento de Marte, que parece retrógrado em determinado momento de sua translação, o que vai contra os pressupostos do movimento circular perfeito, adequações são feitas, e o uso de epiciclos retoma a ideia da perfeição e da harmonia do mundo supra lunar. É nesse sentido também que a ciência normal e o paradigma delimitam aquilo que pode ou não ser “visto” na natureza ou nos fenômenos que submetemos à pesquisa dentro de uma comunidade cientifica.

O CONCEITO DE PARADIGMA

O conceito de paradigma vai atravessar toda essa obra de Kuhn com um sentido muito específico. Já na introdução, Kuhn apresenta a seguinte definição: “Considero “paradigmas” as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência”. (p. 13). Ou seja, o paradigma é um conjunto de saberes e fazeres que garantam a realização de uma pesquisa científica por uma comunidade. O paradigma determina até onde se pode pensar, uma vez que dados e teorias, sempre que aplicados a uma pesquisa, irão confirmar a existência desse paradigma. Extrapolando a leitura para o campo da educação, podemos pensar que estamos submetidos também a um paradigma, isto é, a uma forma de entender e fazer ciência na educação que leva em consideração um aspecto dos fenômenos de ensino e de aprendizagem. Nosso paradigma atual na educação é o ensino. Todas as pesquisas, todas as dissertações e teses têm alguma relação com esse paradigma. Todos querem melhorar o ensino. Toda a preocupação de nossas últimas produ­ções tem sido a tarefa de ensinar mais e melhor. Mesmo quando estudamos o outro pólo da relação, a aprendizagem, é para garantirmos um melhor ensino. A formação dos profissionais em educação está muito mais interessada na qualidade do ensino do que na aprendizagem. Mui­to embora também possamos defender que esses processos não sejam separáveis, há uma nítida diferença entre formar para ensinar e formar para possibilitar aprendizagens. No entanto, no campo da educação, percebemos que existem rupturas e alianças com outras áreas que movem novos entendimentos dessa ciência. Perguntas e dados que não podem mais ser respondidos ou compreendidos pelo paradigma do ensino passam agora a desafiar os cientistas da educação. A isto, Kuhn chama de crise de paradigmas. Essa crise de paradigmas é a responsável pelas mudanças conceituais e procedimentais dentro de um campo do saber. Ela surge dentro da chamada ciên­cia normal, por meio de anomalias que não se conformam as formas tradicionais de conceber o processo e o produto científico. Conforme Kuhn:

E quando isto ocorre – isto é, quando os membros da profissão não podem mais esquivar­-se das anomalias que subvertem a tradição existente da prática científica – então come­çam as investigações extraordinárias que finalmente conduzem a profissão a um novo conjunto de compromissos, a uma nova base para a prática da ciência. (p. 25)

Ou seja, quando as formas tradicionais de pesquisa já não respondem às necessidades que novos dados ou novos fatos impõem, as investigações extraordi­nárias permitem o surgimento de novidades na pesquisa e na ciência. Isso conduz a comunidade científica a novas formas de praticar sua ciência.

A CIÊNCIA NORMAL

Outro conceito específico da obra de Kuhn é o de ciência normal. Para ele, ela se desenvolve junto com a ideia de paradigma, ou seja, podemos com­preender que a ciência normal é produto e produtor de um paradigma. Isso fica evidenciado no seguinte trecho: Invenções de novas teorias não são os únicos acontecimentos científicos que tem um im­pacto revolucionário sobre os especialistas do setor em que ocorrem. Os compromissos que governam a ciência normal especificam não apenas as espécies de entidades que o universo contém, mas também, implicitamente, aquelas que não contém. (p. 26) A ciência normal é o estado de uma ciência na qual suas pesquisas e seus resultados são previsíveis, isto é, ela acontece adequando a realidade às teorias e esquemas conceituais que os cientistas aprendem na sua formação profissional. Diante disso, podemos dizer que a comunidade científica sabe como é o mundo, e as pesquisas servem para comprovar ou aperfeiçoar esses saberes. Para Kuhn:

Neste ensaio, “ciência normal” significa a pesquisa firmemente baseada em uma ou mais realiza­ções passadas. Essas realizações são reconhecidas durante algum tempo por alguma comunidade científica específica como proporcionando os fundamentos para sua prática posterior. (p.29)

Uma metáfora que Kuhn utiliza para a ciência normal é a montagem de quebra-cabeças. Ou seja, a realidade seria uma porção de peças que, ao serem corretamente unidas, nos daria uma visão real de como a natureza ou os fenôme­nos estudados funcionam. Além disso, quando montamos um quebra-cabeça, em geral já sabemos aonde vamos chegar, isto é, já sabemos qual o produto final que o encaixe das peças vai nos proporcionar ver. Nisto não há espaço para a novidade. Na ciência normal, não há espaço para o inusitado ou para o inesperado. Assim como na montagem do quebra­-cabeça, já se sabe aonde se quer chegar. Se houver um encaixe de peças errado, o que se deverá fazer não é questionar o motivo pelo qual isso ocorreu, mas sim retirá-la e colocá-la no seu devido lugar. À ciência, e ao cientista, caberia a função de encaixar a peça certa no local correto com base nas evidências que as demais peças lhe dão, ou seja, aquilo que já foi feito por outros cientistas ante­riormente e que funcionou. A ciência normal não está preocupada em criar novidades, mas em se especializar naquilo que já está posto pelo paradigma vigente. As experiências não criam novidades (intencionalmente), mas desejam especificar melhor o que já se sabe: “O resultado já é sabido de antemão, o fascínio está em como se vai chegar até ele”. (p. 60).

DAS REVOLUÇÕES CIENTÍFICAS: POR QUE COPÉRNICO REVOLUCIONOU?

Com o avanço da ciência normal, vemos surgir novos problemas e novas questões. Conforme Kuhn: “Mas os problemas extraordinários não surgem gratui­tamente. Emergem apenas em ocasiões especiais, geradas pelo avanço da ciência normal”. (p 55). Quando uma anomalia perturba o andamento da pesquisa na ciência normal, surgem novos e reforçados movimentos de adequação dos dados às teorias exis­tentes. Como no já citado caso da astronomia grega, as anomalias eram condicio­nadas àquilo que se dispunha de conceitos e teorias da época. Quando uma novidade surgiu no céu, logo se tratou de adequá-la à teoria existente. No entanto, essas anomalias nem sempre são percebidas, uma vez que a ciência normal (como vimos anteriormente) não está preocupada em criar no­vidades, mas em se especializar naquilo que já está posto pelo paradigma vigente. As experiências não criam novidades (intencionalmente), mas desejam especificar melhor o que já se sabe. No entanto, as anomalias persistem. Elas podem gerar o que Kuhn chama de crise de paradigma:

De forma muito semelhante (ao que ocorre nas revoluções políticas), as revoluções cien­tíficas iniciam-se com um sentimento crescente, também seguidamente restrito a uma pequena subdivisão da comunidade científica, de que o paradigma existente deixou de funcionar adequadamente na exploração de um aspecto da natureza, cuja exploração fora anteriormente dirigida pelo paradigma. […] o sentimento de funcionamento defeituoso, que pode levar à crise, é um pré-requisito para a revolução. (p. 126).

Portanto, as anomalias provocam desajustes nas teorias vigentes, o que leva a um sentimento de “funcionamento defeituoso” da teoria que promove uma crise no paradigma vigente e serve de pré-requisito à revolução. Retomando o caso da astronomia, quando Galileu aponta a luneta para a Lua, percebe que esta não se parece nem um pouco com uma esfera perfeita, con­forme julgaram os aristotélicos. Das suas observações criteriosamente anotadas em Sidereus Nuncius3, Galileu descreve que:

Do seu exame (da Lua) muitas vezes repetidos, deduzimos que podemos discernir com certeza que a superfície da Lua não é perfeitamente polida, uniforme e exatamente esfé­rica, como um exército de filósofos acreditou, acerca dela e de outros corpos celestes […] (2010, p.156)

Nesse momento, Galileu anuncia uma anomalia a qual não pode se en­caixar nas teorias vigentes e no paradigma da época. O fato de haver montanhas, crateras e irregularidades na superfície da Lua contrariava e muito as ideias aristo­télicas acerca da natureza dos corpos celestes. No entanto, conforme assegura Kuhn, “A transição de um paradigma em crise para um novo, do qual pode surgir uma nova tradição e ciência normal, está longe de ser um processo cumulativo obtido através de uma articulação do velho paradigma” (p. 116) Aqui é preciso fazer um esclarecimento. Antes de Galileu utilizar a luneta para observar a Lua e os objetos celestes com maior precisão, houve outro astrô­nomo que possibilitou essa “abertura” ao inusitado e à novidade. Podemos dizer mesmo que através da resistência de um grupo de astrônomos foi possível causar crise no paradigma vigente e permitir que se instalasse uma revolução. Esse astrônomo é Nicolau Copérnico. Ele é tido como o responsável por colocar a Terra em movimento. Para a época, e para o paradigma vigente, era impossível conceber que a Terra se movia, uma vez que isso não era “observável” no cotidiano. Caso a Terra se movesse, pássaros, pessoas, objetos deveriam “sair” da Terra, ou seja, seriam deixados para trás. Esses eram os entendimentos permitidos pelo paradigma vigente. E como os dados empíricos, da natureza das observações e experimentos feitos até então, não contradiziam essa teoria, ela era tida como verdadeira e científica. No entanto, Copérnico, em sua obra De revolutionibus orbium coelestium4, coloca a Terra em movimento e a retira do centro do universo. No entanto, esse feito não é apenas um simples deslocamento de posições em mapas ilustrativos do universo. Muito além disso, trata-se de conceber novas concepções para as ideias até então desenvolvidas sobre todo o universo, conforme afirma Kuhn:

[…] a inovação de Copérnico não consistiu simplesmente em movimentar a Terra. Era an­tes uma maneira completamente nova de encarar os problemas da Física e da Astronomia, que necessariamente modificava o sentido das expressões “Terra” e “movimento”. Sem tais modificações, o conceito de Terra em movimento era uma loucura. (p. 190)

Portanto, Copérnico é, de fato, responsável por uma revolução tanto na Física quanto na Astronomia. No entanto, é ilusão pensar que essa revolução instalou-se e foi bem sucedida em pouco tempo. Copérnico não foi aceito du­rante quase um século, haja vista que alguns adeptos de suas teorias foram colo­cados à duras provas pelos “cientistas” da época da Inquisição. Giordano Bruno e Galileu são exemplos claros da morosidade e da complexidade que compõem mudanças de paradigmas.

PARA ENTENDER A NATUREZA DA CIÊNCIA, ENTÃO!

Chama atenção, logo no prefácio desse texto de Kuhn, a seguinte colocação:

A pesquisa eficaz raramente começa antes que uma comunidade cientifica pense ter adqui­rido respostas seguras para perguntas como: quais são as entidades fundamentais que compõem o universo? Como interagem essas entidades umas com as outras e com os sentidos? Que questões podem ser legitimamente feitas a respeito de tais entidades e que técnicas podem ser empregadas na busca de soluções? (p.23)

Percebemos que teorias sempre sustentam as buscas científicas de uma comunidade de pesquisadores. Nunca os dados serão analisados de forma neutra e isenta de teorias. Na tentativa de explicar este ou aquele fenômeno, estamos sempre propensos a fazer uso das teorias que nos constituem. Nosso olhar nunca é isento de julgamentos. Somos constituídos do para­digma vigente. Embora isso limite nossa visão para o novo (conforme vimos na ciência normal), é possível que anomalias surjam em nossas pesquisas. Nosso pri­meiro movimento certamente será o de adequá-las o mais rápido possível àquilo que temos como verdade científica. Caso isso não se dê, ou seja, caso as anomalias persistam, o caminho certamente será o da mudança. Só que esse caminho não se dá de forma isolada, nem se dará de maneira imediata. Isso pode ser visto claramente no campo da educação. Diversos peque­nos grupos à margem do paradigma vigente buscam soluções para problemas nas teorias atuais. Como falamos anteriormente, irregularidades estão ocorrendo. Por melhor que sejam os métodos de ensino aplicados pelas melhores didáticas, as aprendizagens não ocorrem sempre, tampouco da maneira esperada. É possível que dessas anomalias os pequenos grupos de cientistas da edu­cação consigam mobilizar novas possibilidades, que o inusitado e o criativo surjam e demonstrem novas possibilidades de compreensão para fazer pesquisas e desen­volver estudos na área da educação.

Notas

1 O Almagesto (que significa O grande livro) é a publicação magna de Cláudio Ptolomeu. Nela, o autor pretendeu reunir todo o conhecimento da humanidade sobre a astronomia.

2 Sidereus Nuncius, ou O mensageiro das estrelas, é a publicação na qual Galileu inicialmente apresenta as observações feitas com o auxílio do telescópio, instrumento por ele aperfeiçoado. Nessa obra, Galileu dedica-se a relatar suas observações acerca da Lua, de Júpiter e de suas luas.

3 De revolutionibus orbium coelestium, ou Da revolução das esferas celestes, foi publicado no ano da morte de Copérnico. Nessa obra, o autor faz uma série de apontamentos sobre a Terra, retirando-a do centro do universo e colocando-a em movimento com os demais planetas. Além disso, ele faz referências às estações do ano e aos equinócios, desenvolvendo explicações para tais fenômenos baseado nas evidências empíricas e matemáticas de que dispunha.

Referências

GALILEI, Galileu. Sidereus Nuncius: O mensageiro das estrelas. 2ª Ed. Fundação Calouste Gul­benkian: Lisboa, 2010. KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 5. ed. São Paulo: Editora Perspectiva S.A, 1997.

Roberta Chiesa Bartelmebs – Mestre em Educação em Ciências pela Fundação Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Professora do Núcleo de Estudos em Epistemologia e Educação em Ciências (NUEPEC/FURG). Colaboradora do Núcleo de Pesquisa e Extensão sobre o Bebê e a Infância (NUPEBI).

Acessar publicação original

[MLPDB]

Leitura e escrita em aulas de ciências: Luz, calor e fotossíntese nas mediações escolares – OLIVEIRA (EPEC)

ALMEIDA, Maria José P. M. de.; CASSIANI, Suzani; OLIVEIRA, Odisséa Boaventura de. Leitura e escrita em aulas de ciências: Luz, calor e fotossíntese nas mediações escolares. Florianópolis: Ed Letras contemporâneas, 2008. Resenha de: CARVALHO, Bárbara Elisa Santos. Leitura e escrita em aulas de Ciências um convite à reflexão sobre a importância da leitura e da escrita na prática docente. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v.14, n. 02, p. 193-195, maio/ago., 2012.

O livro Leitura e escrita em aulas de ciências: Luz, calor e fotossíntese nas mediações escolares faz parte de uma coleção que possui três outros volumes os quais tratam de temas como a Educação nas relações étnico-raciais, os processos escolares para crianças, jovens e adultos e as práticas pedagógicas escolares. O conteúdo da obra, organizado a partir de investigações realizadas por importantes grupos de pesquisa da UNICAMP, UFSC e da UFPR, instiga os leitores a reflexões sobre a leitura e a escrita na escola. O livro consiste basicamente em um olhar crítico de experiências escolares vivenciadas pelas próprias autoras como educadoras e pesquisadoras na referida área, e tem como principal objetivo compartilhar reflexões sobre o ensino escolar de ciências com professores e com formadores desses professores nas universidades.

Na apresentação feita pelo pesquisador Roberto Nardi, a emergência, nas últimas décadas, da pesquisa em Educação em ciências no Brasil é destacada. Ele aponta como fatores para tal crescimento o surgimento de centros de ciências e a expansão do ensino superior a partir da década de 60, seguidos pela implantação de políticas oficiais que induziram a formação dos primeiros grupos de pesquisa nessa área no Brasil. Nardi sinaliza o caráter multidisciplinar da pesquisa em ensino de ciências, destacando a compreensão da interface entre o discurso científico e o discurso escolar como fator fundamental na capacitação de professores.

Na primeira parte do livro, as autoras apresentam e refletem sobre pontos teóricos utilizados por elas como apoio na compreensão de questões escolares e do processo de ensino que ocorre na escola. Elas apontam possíveis interfaces entre o discurso científico e o discurso escolar no intuito de contribuir com o professor leitor que deseja ensinar aspectos do conhecimento científico na escola para seus alunos. Após reflexões ancoradas na literatura relacionada ao discurso científico, ao discurso escolar e à análise do discurso propriamente dita, e obviamente na relação entre esses, as autoras se voltam para um discurso específico que é denominado por elas de“discurso escolar relativo à ciência”.

A segunda parte do livro traz, inicialmente, uma reflexão teórica sobre a análise do discurso com o intuito de incentivar o leitor a pensar sobre o uso da leitura e da escrita nas ciências e na escola. Em seguida, são apresentados os dados de pesquisa usados nas análises, e como esses foram coletados. As atividades de investigação aconteceram ao longo de um ano letivo com uma turma de oitava série do Ensino Fundamental a qual foi submetida a uma série de solicitações, dentre elas a elaboração de pequenos textos relacionados a tópicos da matéria estudada em diferentes etapas do ano letivo.

Para análise dos textos produzidos pelos alunos, as pesquisadoras adotaram como base teórica a obra “Interpretação”, de Eni Orlandi, que trabalha a ideia de autoria relacionada à repetição, podendo esta ser repetição empírica, histórica ou formal, e também ao duplo conceito de continuidade e ruptura proposto por Gaston Bachelard. Os resultados apontaram que em um nível ideal, todos os estudantes realizam a repetição histórica, mas em condições reais, o mais provável é que alguns alunos fiquem somente na repetição empírica, outros na repetição formal e muitos apresentem os três tipos, variando de acordo com o conteúdo e solicitação do educador.

Mesmo assim, as autoras apontam o ato de escrever em aulas de ciências como um exemplo a ser seguido e julgam ter apresentado um quadro favorável à utilização da escrita, uma vez que sinalizaram a possibilidade de a condução do aluno ter manifestações próprias a partir do conteúdo mediado em aula.

A partir disso, as autoras refletem sobre a construção de significados durante a leitura de um texto, que para elas é entendido como a construção de sentidos, sendo essa atividade indispensável nas atividades escolares. Concluindo a parte central do livro, é apresentada uma série de atividades específicas ocorridas em diferentes salas de aula, vivenciadas por elas próprias na docência e que serviram de subsídio para a análise feita anteriormente. A presença desses relatos tem objetivo de possibilitar que o leitor faça sua própria interpretação, tirando suas conclusões; e sendo esse leitor um professor, o objetivo seria auxiliá-lo a trilhar o próprio caminho tanto na interpretação quanto, posteriormente, na sala de aula.

Por último, é apresentado um texto de uma das autoras intitulado “Fotossíntese: a história da construção de um conhecimento”, feito a partir de textos didáticos, de divulgação científica e de originais científicos. O referido texto trata de aspectos biológicos, bioquímicos e ecológicos relacionados à fotossíntese, assim como aspectos da evolução no conhecimento científico sobre ela, além de curiosidades sobre o tema em foco.

A obra mostra a importância e a necessidade da realização de atividades de leitura e escrita em diversas disciplinas escolares, desmistificando a ideia generalizada que tal função compete apenas aos professores de português e demais línguas. As autoras propõem que a leitura, a escrita e a experimentação, trabalhadas sob mediação, podem levar o estudante a se interessar pelo conhecimento científico e, quem sabe, a partir desse ponto buscar por si próprio a complementação dessas informações fora do ambiente escolar.

Um importante questionamento sobre o livro refere-se à possível dificuldade que tais conhecimentos e apontamentos delineados possam ter para serem compreendidos pelo professor que é, nesse caso, o sujeito-ação na escola. Tal barreira pode existir devido à dificuldade de acesso não somente a essa obra, mas a diversas outras, podendo ocorrer por uma série de motivos, dentre eles a desmotivação profissional, a dificuldade encontrada na realização de atividades que se afastem da normalidade em função da indisciplina e da falta de interesse dos alunos, ou até mesmo da falta de tempo para investir na própria atualização. Obras com dados tão densos como essa deveriam ter mais caminhos possíveis e mais diretos até a sala de aula de modo a enriquecer as atividades pedagógicas e contribuir para o processo educativo escolar, seja em ciências, em português ou em qualquer disciplina.

Bárbara Elisa Santos Carvalho – Licenciada em Ciências Biológicas pela UFMG. E-mail: barbaraecarvalho@ hotmail.com

Acessar publicação original

[MLPDB]

Conversa sobre a fé e a ciência: com Waldemar Falcão – BETTO; GLEISER (EPEC)

BETTO, F.; GLEISER, M. Conversa sobre a fé e a ciência: com Waldemar Falcão. Rio de Janeiro: Agir, 2011. 334 p. Resenha de: RAZERA, Júlio César Castilho. Uma conversa a considerar no ensino de Ciências? Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v. 14, n. 01, p.285-288, jan./abr., 2012.

Ciência versus religião é tema que não se ausenta na literatura da área de ensino de ciências. Seja em relatos de pesquisa ou ensaios teóricos, sob diferentes referenciais ou linhas de pensamento, não são poucas as discussões que recaem sobre esse tema. Então, pode-se previamente imaginar que uma conversa sobre fé e ciência entre um religioso dominicano e um cientista agnóstico tenha inf luências formativas e ideias tão divergentes e consolidadas que, no mínimo, constitua-se em algo contraproducente, inútil e, portanto, não traga contribuições de relevo para o ensino de ciências.

Isso seria realidade se não fossem os atores dessa conversa quem são e o tipo de diálogo ético travado entre ambos. Por certo, contra-producente e inútil não são adjetivos aplicáveis à Conversa sobre a fé e a ciência entre Frei Betto e Marcelo Gleiser.

Transformada em livro, essa conversa mediada por Waldemar Falcão ocor reu no Rio de Janeiro, durante quatro dias, em meados de 2010. A conversa é inteligente e inst igante, pois não são po ucas as vezes que no seu percu rso mob iliza o le itor, fazendo-o usar a memória pa ra resgatar pe rsonagens, fatos históricos ou algum as situações apontadas em obras diversas da literatura, da cinematografia, das artes plásticas e, até mesmo, de histórias em quadrinhos. Personag ens da ciência, como Descartes, Einstein, Fer mi, Hawking, Galileu, Newton, Kepler e Plank, de modo pertinente na conversa de ambos, dividem espaço com persona- lidades diversas, como Marx, Paulo Freire, Jacques Maritain, Tristão de Athayde, Santo Ag ostinho, Santo Tomás de Aquino, Santa Teresa de Ávila, Dalai Lama, Isaac Asimov, Arthur Clarke, Lula e Obama. As menções sobre literatura (Drácula, de Bram Stoker; 1968 – o ano que não terminou, de Zuenir Ventura; O pequeno príncipe, de Saint Exupér y; O li vro que ninguém leu, de Owen Gingerich; Minor ity Report e Caçador de Androi des Blade Runner –, de Philip K. Dick; Frankenstein, de Mary Shelley; Contato, de Carl Sagan; 2001e 2010, de Arthur C. Clarke) também dividem espaço com menções a peças teatrais (Hair ; O rei da vela), filmes (Batismo de Sangue, de Helvécio Ratton; Entrevista com o vampir o; 2001, uma odissei a no esp aço, de Kubrick, Contato, de Zemeckis) e histórias em quadrinhos (Asterix; Abraracurcix). Quem proporciona isso à conversa, auxiliando para tor ná-la ainda mais ag radável, são os dois protag onistas, que apresentam conhecimentos de áreas diversas das suas, conseguindo fazer interessantes conexões nos argumentos que constroem, sem cair em relativismos ou desordens nas ideias.

O conteúdo do livro mantém, na íntegra, um formato de diálogo que flui sem desgastes e cujo desenho estrutural perpassa os seguintes tópicos do sumário: “Apresentação” (p. 9 – 17); “Trajetórias” (p. 19 – 79); “Ciência e Fé” (p. 81 – 155); “O poder” (p. 157 – 257); “Até o Fim (do Mundo, do Universo) (p. 259 – 334)”.

No entanto, como se trata de uma conversa, não há um percurso unidirecional, pois um assunto puxa outro, e as conexões temáticas vão se formando também pela retomada de assuntos mencionados – às vezes, prévia e superficialmente – em momentos anteriores.

Os assuntos tratados são diversificados. Não necessariamente nesta ordem, e com graus distintos de aprofundamento, fazem parte da conversa o big bang, o poder e a hegemonia da religião e da ciência na linha histórica, conceito de vida, criação, clonagem, células-tronco, campo magnético da Terra, fenômenos paranormais e meditação. Em certo momento, também pós-modernidade e modernidade entram na discussão de forma sutil (como pano de fundo), quando Frei Betto e Marcelo Gleiser se posicionam sobre o avanço da ciência e as respectivas relações de felicidade e melhora de vida das pessoas.

Nas concordâncias ou discordâncias, o diálogo se mantém aberto, crítico e sem preconceitos. Nos argumentos difundidos por todo o texto acerca de diferentes questões, como foi citado em exemplos anteriores, ambos apresentam suas ideias utilizando as áreas que atuam, além de se manifestarem sobre outras áreas (filosofia, literatura, arte), que, afinal, no conjunto, constituem as diferentes formas como o ser humano constrói os seus conhecimentos.

Pode-se dizer que o diálogo entre Frei Betto e Marcelo Gleiser não se reduz a um conjunto de ideias que leve a uma mera classificação, ou seja, a uma determinação a respeito de ciência e religião, se são metodológica e epistemologicamente incompatíveis, complementares ou incomensuráveis. Ainda que isso possa ser feito pelo leitor, a síntese do diálogo extrapola tal categorização, ou seja, traz outras contribuições na maneira simples, mas balizada e crítica, com que os enunciadores falam de ciência e fé um para o outro: “No fundo, ambas, a fé e a ciência, estão servindo como um veículo de transcendência da condição humana, de ir além, de explorar uma dimensão desconhecida” (Marcelo Gleiser, p. 87); “De intenção, de intencionalidade, exato! E a ciência não lida com isso, é uma narrativa que explica como funciona o mundo, e não por que o mundo funciona” (Marcelo Gleiser, p. 98); “Pois é, mas a religião não pode ter a pretensão de expli-car o como” (Frei Betto, p. 99); “Há que se admitir que ciência e fé são duas visões do mundo. Melhor dizendo, duas mundividências. A ciência procura compreender a natureza desse mundo em que vivemos, como ele se originou, quais os seus elementos e as leis que o regem. Já a fé nos induz ao Transcendente, nos faz ‘apalpar’ o Mistério e concede-nos os óculos sobrenaturais que nos permitem compreender a relação de Deus conosco e com o Universo” (Frei Betto, p. 327); “Seria atestado de suprema ignorância negar o papel da ciência nas nossas vidas […]. Não podemos ignorar também o papel da fé. Ela oferece uma outra ótica de encarar o mundo e a vida” (Frei Betto, p. 328); “Eu gosto de dizer que o ateísmo radical é logicamente inconsistente, […] prefiro adotar a posição agnóstica: mesmo que não veja evidências para a existência de entidades sobrenaturais, não posso descartá-las a priori. Sabemos pouco sobre o mundo” (Marcelo Gleiser, p. 333).

As divergências de ideias, de posicionamentos sobre algumas questões polêmicas e os aspectos formativos de ambos não atrapalham a conversa. Pelo contrário, enriquecem as discussões de tal maneira que, às vezes, o leitor fica com a impressão de que também um debatedor está aprendendo com o outro.

Apesar de haver interessantes pontos convergentes, ambos expõem suas divergências em uma perspectiva que nos faz pensar na ética discursiva habermasiana.

Haber mas (1999) coloca a argumentação no lug ar da ação teleológica, ou seja, por meio da linguagem, busca-se o consenso de uma forma livre de toda coação externa e interna. Nesse caso, a base da ética discursiva habermasiana está na autenticidade dos participantes, entendimento mútuo pela argumentação, simetria de participação e ausência de coação. Essa é uma colocação superficial e recortada da teoria de Habermas, mas serve como um indicativo de que “Conversa sobre a fé e a ciência” se dá numa dimensão da ética discursiva.

Quanto à mediação do diálogo, cumpre-se bem o seu papel. Ainda que algumas interferências dispensáveis tenham aparecido pelo meio do caminho, no geral, a condução é positiva.

Por fim, cabe dizer que o exposto nesta resenha é intencionalmente uma resposta afirmativa ao título questionador que escolhemos (Uma conversa a considerar no ensino de Ciências?). Conteúdo e for ma, além da concordância ou não concordância com as ideias apresentadas na conversa, po r si só, já abrem interessantes e diferentes possibilidades para o ensino de ciências (educação básica, licenciatura, formação continuada). No entanto, se a resposta de outros leitores for negativa, ainda assim, valerá a leitura.

Referências

HABERMAS, J. Comentários à ética do discurso. Lisboa: Instituto Piaget, 1999.

Júlio César Castilho Razera – Doutor em Educação para a Ciência pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Professor do Departamento de Ciências Biológicas, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, campus de Jequié. E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

[MLPDB]

Iniciação científica no ensino superior: funcionamento e contribuições – MASSI; QUEIROZ (EPEC)

MASSI, Luciana; QUEIROZ, Salete Linhares. Iniciação científica no ensino superior: funcionamento e contribuições. Campinas, SP: Editora Átomo, 2010. Resenha de: FERREIRA, Luciana Nobre de Abreu. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v.13, n. 03, p. 285-286, set./dez. 2011.

No livro Iniciação Científica no Ensino Superior: Funcionamento e Contribuições, Luciana Massi e Salete Linhares Queiroz apresentam um importante trabalho que engloba diferentes aspectos ligados à atividade de Iniciação Científica (IC), com ênfase para sua evolução, principais características e contribuições. No entendimento das autoras, a IC trata-se de um “conjunto de experiências vivenciadas por alunos de graduação, vinculadas a um projeto de pesquisa, elaborado e desenvolvido sob a orientação de um docente, com ou sem financiamento de agências de fomento”. Dessa forma, destacam a relevância de tal atividade em favorecer a formação do graduando, especialmente no que toca ao conhecimento em pesquisa e ao direcionamento profissional.

A obra encontra-se estruturada em seis capítulos, os quais são resultantes de pesquisas desenvolvidas pelas autoras e integram um considerável conjunto de informações sobre a atividade de IC, revelando-se um guia valioso para os atores envolvidos nessa prática.

O primeiro capítulo traz inicialmente definições sobre a IC, além de menções a projetos desenvolvidos em diversos níveis de ensino. Na sequência, as autoras passam a apresentar um histórico do desenvolvimento da IC nas universidades brasileiras. Neste têm destaque os principais marcos da IC, como a criação da Universidade de São Paulo (USP), do Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento (CNPq) – pioneiro no fomento às atividades de IC –, e do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), concebido pela mesma agência como um instrumento adicional de apoio.

Com o intuito de mostrar um panorama a respeito das pesquisas realizadas sobre IC no Brasil, no segundo capítulo as autoras apresentam considerações resultantes de um levantamento bibliográfico abrangente em confiáveis bases de dados e obras bibliográficas brasileiras sobre o tema. Embora tenham constatado uma quantidade relativamente escassa de pesquisas na área, estas evidenciam diversas contribuições das atividades de IC realizadas nas instituições de ensino superior.

Com a finalidade de melhor explicitar essas contribuições, nos capítulos 3, 4 e 5 as autoras abordam, respectivamente, a IC como atividade de formação do universitário, apresentam as principais considerações sobre o PIBIC e fazem uma caracterização de algumas particularidades do funcionamento da IC. Com respeito à IC como atividade de formação do universitário, as autoras exploram, no terceiro capítulo, as influências desta atividade no desempenho dos graduandos, no seu desenvolvimento pessoal, além de possibilitar-lhes uma nova visão de ciência e socialização profissional.

Discussões a respeito do PIBIC, especialmente com relação a seu amparo à formação de pesquisadores e ao encaminhamento profissional são relatadas no quarto capítulo. Segundo as autoras, o PIBIC, além de auxiliar no fortalecimento da pesquisa e na qualificação do corpo docente, permite que a prática de IC seja parte da própria concepção do que é a universidade.

No quinto capítulo as autoras, com base nos relatos das pesquisas estudadas a respeito do tema, evidenciam certas peculiaridades da IC, como os tipos de atividades desenvolvidas, as motivações para as pesquisas realizadas, o processo de seleção do orientador e do orientando em IC, bem como as expectativas, decepções e dificuldades vivenciadas nesta atividade.

O sexto capítulo traz os resultados de estudos empíricos desenvolvidos pelas autoras a respeito da IC em cursos de graduação em Química. Tendo como sustentação aportes teórico-metodológicos da Análise do Discurso de Linha Francesa e da Sociologia e Antropologia da Ciência, apresentam as contribuições da IC para a apropriação da linguagem científica por graduandos em Química. As pesquisas desenvolvidas apontaram a atividade de IC como uma forma de apropriação do discurso científico, propiciada pela troca com os pares, a imitação de modelos e a vivência de pesquisa, além de uma formação humanística desejável a graduandos, expressa principalmente por meio do “desenvolvimento da autonomia e senso crítico, compreensão e domínio do conteúdo científico particular do laboratório, além da articulação entre esses temas e aqueles abordados na graduação”.

Portanto, a obra aqui descrita configura-se um relevante material para o conhecimento dos mais variados âmbitos da atividade de IC e um instrumento de estímulo à prática da pesquisa por estudantes de graduação e ao desenvolvimento de novas pesquisas na área.

Luciana Nobre de Abreu Ferreira – Mestre em Ciências pelo Instituto de Química de São Carlos da Universidade de São Paulo Professora Assistente do Centro de Ciências da Natureza da Universidade Federal do Piauí E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

[MLPDB]

A busca pela compreensão cósmica. São Carlos: EdUFSCar, 2010. Resenha de: VIEIRA, Rodrigo – OLIVEIRA (EPEC)

OLIVEIRA, Adilson J. A. A busca pela compreensão cósmica. São Carlos: EdUFSCar, 2010. Resenha de: VIEIRA, Rodrigo Drumond. A busca pela compreensão cósmica. Crônicas para despertar o interesse pela Física e a Ciência em geral. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v.13, n.02, p.189-192, mai./ago., 2011.

O livro em análise foi escrito por Adilson J. A. de Oliveira, professor do Departamento de Física da Universidade de São Carlos e responsável por vários projetos referentes à divulgação científica. O autor apresenta, logo nas primeiras páginas do prefácio, o fascínio que a Astronomia e a Ciência em geral lhe despertaram desde tenra idade. Carl Sagan, reconhecidamente um dos maiores divulgadores da Ciência do século XX, tem sua série para televisão “Cosmos” apontada como uma grande fonte de incentivo e estímulo para o autor na sua relação com o conhecimento científico.

Ainda no prefácio, o autor destaca que muitas vezes estamos sujeitos a um volume enorme de informações oriundas da mídia, internet, etc. O autor reconhece que a publicação deste livro de divulgação é importante pela possibilidade que oferece para uma leitura mais pausada e reflexiva sobre Ciência, favorecendo e complementando o entendimento das pessoas sobre o que é e para que serve este empreendimento humano, tão presente e necessário no cotidiano de todos.

A obra é composta por “crônicas” sobre diversos temas de Ciência, em especial sobre Astronomia e Física, que foram publicadas originalmente em sites do AOL, Web São-Carlos e ClickCiência. As “crônicas” foram publicadas e escritas em épocas diferentes e a sua organização neste livro segue um padrão recursivo, em que uma mesma ideia é abordada segundo diferentes contextualizações, como é o caso da Teoria da Relatividade Especial. Essa “recursividade contextualizada” facilita a compreensão do leitor das temáticas abordadas. As crônicas foram agrupadas segundo campos específicos, como em “Crônicas sobre o Saber”, “Crônicas sobre a Matéria”, “Crônicas sobre o Cosmos”, “Crônicas sobre o Espaço e Tempo” e “Crônicas sobre a Vida”. Apesar dessa estrutura, as crônicas são independentes e podem ser lidas em qualquer ordem.

Em “Crônicas sobre o Saber”, o autor inicialmente desenvolve argumentos a favor da importância do entendimento do conhecimento científico por todas as pessoas. O caráter essencialmente humano da Ciência é discutido com exemplos, inclusive de fraudes, as quais resultam de ambições pessoais dos cientistas.

O autor prossegue fazendo apologia ao conhecimento básico como forma de evitar engodos na navegação da web, em um momento em que temos a disposição uma vastidão de conhecimentos sem, entretanto, que todo esse conhecimento tenha compromisso com a sua confiabilidade. As mecânicas newtoniana, relativística e quântica são introduzidas segundo seus campos de aplicação e a teoria das supercordas é apresentada como uma possível síntese de “tudo”. O autor adverte ainda que, apesar da coerência interna dessa nova abordagem teórica, ela ainda carece de comprovação empírica. Com o exemplo da teoria heliocêntrica, o autor aborda a questão da temporalidade que uma ideia ou teoria necessita para ser aceita, tendo como obstáculos os dogmas da igreja e outras constrições. Esse conjunto de crônicas é finalizado com a opinião de que o conhecimento pode ser uma solução para medos, apesar de sempre lidarmos com incertezas, inclusive na Ciência, como é apontado para o caso do princípio da incerteza na mecânica quântica.

Em “Crônicas sobre a Matéria”, são abordados inicialmente temas como o papel da imaginação na Ciência, a revolução tecnológica atual com o advento da nanotecnologia e as supercordas como suposta teoria unificadora. O autor discute a importância do Sol para a manutenção do ciclo da vida na Terra, introduzindo elementos de conhecimento do campo da Biologia. A natureza dual da luz e a importância dos elétrons na vida contemporânea são alguns dos exemplos que o autor utiliza para introduzir elementos da Física do século XX.

O magnetismo e o spin são apresentados como promissores de novas tecnologias em processamento e armazenamento de dados. Na sequência o autor aborda a questão do aumento constante da entropia do universo, o que resulta em uma concepção sobre o seu destino. O histórico de descoberta dos planetas e seu batismo com nomes de deuses é traçado e a lenda de Ícaro é apresentada como metáfora para os riscos inerentes à conquista espacial, a qual é comparada com o advento das grandes navegações. Na sequência, o autor explica como as estrelas podem ser usadas como fontes de referência, além de apresentar os diversos estágios que as estrelas percorrem ao longo de sua vida. A origem do universo sob as perspectivas da mecânica newtoniana e relativística são discutidas e descobertas do século XX são apresentadas como evidência para a solução relativística. Finalizando essas crônicas, o autor apresenta a problemática do mistério da escuridão noturna, a qual é atribuída à finitude e inflação do universo.

Em “Crônicas sobre o Espaço e Tempo”, o autor mostra como as ideias de Newton foram influentes, posteriormente questionadas, e, não obstante o seu questionamento, é salientado que elas ainda possuem um amplo campo da aplicação na sociedade contemporânea. Os cinco artigos que Einstein publicou no início do século XX são introduzidos, e o autor dá ênfase à Teoria da Relatividade Especial e suas consequências para o nosso entendimento sobre espaço e tempo. Ainda referindo-se ao trabalho de Einstein, o autor apresenta as implicações da revolucionária equação E=mc2, e a sua aplicabilidade no entendimento dos processos de fusão e fissão nuclear. A seguir, são apresentados os princípios básicos da Teoria da Relatividade Geral, dando-se destaque ao princípio de equivalência. O autor explica que essa teoria foi validada em 1919 com observações de estrelas em uma situação de eclipse solar, as quais foram realizadas em Sobral, Ceará, e nas Ilhas Príncipe, África. Finalizando esse conjunto de crônicas, as incríveis velocidades atingidas por naves espaciais são comparadas com a intangível velocidade da luz; o tempo contínuo e a possibilidade de discretizá-lo são apresentados; a motivação para discretizar o tempo é traçada tendo em conta a tentativa de obter uma descrição mais completa dos fenômenos físicos, superando a incompatibilidade no nível microscópico entre mecânica quântica e relatividade.

Em “Crônicas sobre a Vida”, o autor foca inicialmente a Física das competições esportivas, explicando como o entendimento de Física ajuda a superar os limites humanos. Tais limites também são explorados quando o autor aborda a questão dos super-heróis e a implausibilidade física dos seus superpoderes no universo em que vivemos. A importância da água para a criação e manutenção da vida é abordada, juntamente com a necessidade de consumo de energia de alta qualidade. Finalizando esse conjunto de crônicas, a estrutura e função do DNA são apresentadas como condição para a emergência da vida tal como a conhecemos.

Em “Uma Última Crônica”, o autor reflete sobre os capítulos precedentes e advoga que o saber científico é um dos mais bem sucedidos empreendimentos da humanidade. O autor finaliza o livro reforçando a ideia de que o acesso ao conhecimento científico, mesmo que parcial, é importante para todas as pessoas.

O conjunto da obra é acessível ao público universitário iniciante e a pessoas que já têm inclinação e interesse por Ciências. Devido ao seu linguajar simples, à recursividade e à contextualização dos temas abordados, o livro permite também que professores do Ensino Médio o utilizem como fonte complementar de referência para suas aulas. Nesse sentido, o livro avança o campo de divulgação de ideias consideradas “contrasensuais” e de difícil entendimento, como os princípios da mecânica quântica e da relatividade, e suas consequências para o nosso entendimento do universo e da nossa relação com ele.

Resta questionar se o Ensino Fundamental e a Educação de Jovens e Adultos, devido às suas peculiaridades, podem também se favorecer com o livro.

Esse questionamento é relevante, já que os trabalhos de divulgação científica sempre pressupõem um público específico. Ideias como o “princípio da incerteza” e “dilatação do tempo” são desafiadoras e carecem de divulgação apropriada para o Ensino Fundamental e jovens e adultos que deixaram os estudos há muito tempo e estão novamente retomando sua formação básica.

Rodrigo Drumond Vieira – Doutorando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação (FaE) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

[MLPDB]

Formação ética: do tédio ao respeito de si – LA TAILLE (EPEC)

LA TAILLE, Y. Formação ética: do tédio ao respeito de si. Porto Alegre: Artmed, 2009. 315 p. (ISBN 978-85-363-1692-5). Resenha de: RAZERA, Júlio César Castilho. O ensino de Ciências entre a cultura do tédio e do sentido. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v.13, n.01, p.157-164, jan./abr., 2011.

A BUSCA DA VERDADE: ESPERANÇA DE UM MUNDO MELHOR

A preocupação com os rumos tomados pela sociedade contemporânea é observada na literatura em diversas discussões. Dentre elas, incluem-se aquelas que inserem o relevante papel da educação como referencial de esperança para um mundo mais justo, digno e harmonioso. Dentro dessa perspectiva, na qual a Educação é inserida na construção de um futuro ética e moralmente modificado para melhor, encontramos nos argumentos e reflexões de Jares (2005) e La Taille (2009) subsídios de interesse para o ensino de Ciências, porque ambos colocam a verdade como valor a ser buscado na dimensão educativa escolar. Ao analisar o atual panorama sócio-político mundial, com seus sérios problemas e conflitos, Jares (2005, p. 126) coloca a Educação como sede principal da promoção de esperança, justiça e dignidade em virtude do potencial de seu trabalho sobre a busca da verdade. “Educar a partir da e para a verdade” é um de seus pressupostos. Para Jares (2005, p. 196), “precisamos de uma pedagogia de esperança que nos guie na direção do crítico caminho da verdade”. E complementa, afirmando que “a esperança se constrói por meio da busca da verdade”. A obra de La Taille, que é objeto desta resenha, também trilha por esse mesmo caminho, mas com o diferencial de conter consistentes argumentos, análises e reflexões fundados na Psicologia. Yves de La Taille é professor titular do Instituto de Psicologia da USP. O conjunto de suas pesquisas e teorias constitui um referencial relevante, extrapolando a área da Psicologia Moral em que atua. “Formação ética: do tédio ao respeito de si” tem essa característica abrangente, pois encontramos nessa obra subsídios de interesse que também podemos trazer para o ensino de Ciências.

De modo especial, provoca nossa atenção quando as abordagens e reflexões do autor enfatizam a verdade como um importante valor a ser buscado na dimensão educacional, a fim de evitar a cultura do tédio. Nesse caso, o ensino de Ciências também tem o seu papel na construção daquilo que La Taille chama de cultura do sentido, cuja expectativa é de um futuro ética e moralmente modificado para melhor. Com o embasamento da Psicologia Moral, podemos encontrar neste livro argumentos proveitosos que dirigem nossa atenção para uma efetiva aproximação entre o ensino escolar de Ciências e a formação ético-moral. Uma aproximação teoricamente orientada pela autonomia que, por exemplo, pode atuar em prol do processo de compreensão crítica da Ciência e da atividade científica por parte do aluno em sala de aula. Vejamos.

O QUADRO DA FORMAÇÃO ÉTICO-MORAL EM LA TAILLE

“Formação ética: do tédio ao respeito de si” divide-se em duas partes que, respectivamente, são assim denominadas: “Plano ético” (pp. 13-156) e “Plano moral” (pp. 157-310). Cada parte é constituída por dois capítulos. No conjunto dessa obra, que tem como referência teórica e fonte inspiradora um outro trabalho seu anterior (LA TAILLE, 2006), o autor faz abordagens correlativas entre o plano ético e o plano moral, isto é, entre a “vida boa” e “os deveres” de ser justo, generoso, digno. No plano ético entram em discussão a dimensão contextual contemporânea, intitulada de “Cultura do tédio” (capítulo 1) por causa de sua característica de predominância pessimista, e a dimensão educacional, chamada de “Cultura do sentido” (capítulo 2). O plano moral segue com o mesmo formato, cujas abordagens passam pela “Cultura da vaidade” (capítulo 3) e, posteriormente, pela “Cultura do respeito de si” (capítulo 4). Nas discussões que faz de ambos os planos, La Taille segue a mesma lógica de contraposição: primeiro analisa as características da sociedade atual, nos capítulos ímpares, depois discute os aspectos educacionais para mudanças do status quo, nos capítulos pares. Em suma, o autor nos apresenta uma leitura do presente em que sobressai na nossa sociedade a cultura do tédio, da vaidade, do pessimismo. A persistir esse panorama, configurado pela cultura do tédio, não encontramos expectativa de um futuro modificado para melhor, pois essa expectativa somente é possível na cultura do sentido, por meio da Educação ético-moral. Pesquisas diversas mostram que a maioria das pessoas é heterônoma, isto é, tendem a apenas aderir às idéias e valores que circulam no meio social em que vivem. Nesse caso, uma mudança de perspectiva para um futuro melhor implica a formação moral para a autonomia: “somente uma cultura do sentido pode vencer uma cultura do tédio” (LA TAILLE, 2009, p. 79). Para tanto, a formação moral no contexto da escola e das disciplinas torna-se relevante e, até mesmo, imprescindível. Essas ideias passam pelo  potencial das escolas e das disciplinas escolares na perspectiva de mudanças, pois em qualquer cenário de futuro a Educação aparece como atividade inconteste para que a cultura do sentido seja manifestada. Concordamos com La Taille ao dizer que cabe à escola tomar parte na formação moral de seus alunos e não apenas ficar restrita a transmitir conhecimentos, sem aproveitar-se deles com vistas à melhoria do futuro. Afinal, “os próprios conhecimentos transmitidos na escola são portadores de sentido que transcendem a especificidade de cada matéria. A escola é uma verdadeira usina de sentidos, […] e não há outra instituição social de que se possa dizer o mesmo” (LA TAILLE, 2009, p. 81). Para a escola e, em especial, para a busca da verdade como valor, devemos nos voltar para a construção daquilo que La Taille chama de “cultura do sentido”, pois ela não existe sem Educação para o sentido. E para falar de uma Educação para o sentido, o autor enfatiza a relevância da busca de um valor em especial: a verdade. Ainda que haja limitações, erros e ilusões quando mencionamos o termo “verdade”, o empenho nessa busca é investimento para a cultura do sentido, ou seja, a formação moral também perpassa por esse valor (da verdade).

Em suma, eleger a verdade como valor não somente é um bem em si mesmo para a procura de sentido para a vida: a capacidade de a ela chegar é também ferramenta necessária para se situar com um mínimo de precisão em um universo político de tantas mensagens dúbias, de tantas afirmações imprecisas, de tantas análises confusas, de tantas promessas duvidosas, e também de claras tentativas de enganação. Para sobreviver em tal ambiente equívoco, se faz necessário a chamada capacidade de crítica, não entendida como disposição a julgar negativamente, mas sim como vontade de passar o que se ouve, se vê, se pensa e se diz pelo crivo da razão, para debelar possíveis erros, possíveis mentiras, possíveis ilusões. Não há crítica honesta sem amor à verdade (LA TAILLE, 2009, p. 91, grifo nosso).

PARA BUSCAR A VERDADE

Baseado em Williams (2006), La Taille aponta dois obstáculos que dificultam a busca da verdade: os interiores e os exteriores. Os obstáculos exteriores são inerentes aos objetos e os interiores são inerentes ao sujeito. Sobre a superação dos obstáculos exteriores, que se referem a objetos de pesquisa, a psicologia não tem o que auxiliar. Esse auxílio pode ser dado, no entanto, na superação dos obstáculos interiores, relacionados ao sujeito. Sobre esses obstáculos, La Taille diz que podem ser de três tipos, os quais a Educação pode ajudar a superá-los: lacunas no conhecimento, fragilidade ou insipiência das ferramentas intelectuais e ausência de determinadas virtudes.

a) Lacunas no conhecimento: Para que um sujeito busque a verdade (ou confirme o que é transmitido) sobre algum evento ou fenômeno, ele precisa lidar com informações e dados diversos, ou seja, há necessidade não apenas de apropriar-se de conhecimentos específicos, mas também correlacioná-los e observálos de maneira crítica para resolver o seu problema. Para La Taille (2009, p. 97), compete essencialmente às instituições educacionais a tarefa de trabalhar com essas lacunas e “fazer que as pessoas possuam conhecimentos variados”, especialmente no campo científico e filosófico.

b) Ferramentas intelectuais: Ter somente conhecimentos não é suficiente para desvendar verdades. De acordo com La Taille, além de conhecimentos (conteúdos) é necessário que os indivíduos também mobilizem formas precisas de raciocínio. “Para raciocinar, ou seja, para produzir conclusões fiáveis, o ser humano dispõe de duas ordens de ferramentas intelectuais: as operações e os procedimentos”. Sobre as operações, o autor baseia-se no sentido piagetiano de “ações interiorizadas reversíveis, […] porque todo pensar é uma ação”. As operações são ferramentas da mente que usamos para estruturar e promover ajustes na lógica de nosso raciocínio. “Não houvesse operações, não haveria critérios que nos permitissem afirmar que um raciocínio é válido ou não. A lógica […] garante consistência, objetividade e possibilidade de comunicação” (LA TAILLE, 2009, p. 101). Nesse caso, trabalhar operacionalmente com a verdade implica aprendizagem sobre as possibilidades de falhas nas nossas observações e conclusões para que não sejam precipitadas e falhas ou contaminadas, por exemplo, por ilusões de óptica ou por equívocos de construção de lógica. Em discussões que envolvem a natureza da Ciência temos diversos exemplos ilustrativos desses problemas. Sobre os procedimentos, são sequências de ações para se chegar a determinados resultados, que podem ou não ser interiorizadas. Podemos dizer que, enquanto a operação corresponde à lógica interna do pensamento, os procedimentos correspondem aos passos por ele percorridos. Para auxiliar o entendimento entre ambos, pode-se fazer uma analogia interessante ao dizer que “a operação está para a teoria como o procedimento está para o método”, pois, como sabemos, os métodos de pesquisa são criados e utilizados para verificar a validade de teorias. “Logo, se não há busca da verdade possível sem postura teórica, tampouco é possível chegar a ela sem procedimentos adequados” (LA TAILLE, 2009, p. 104). Isso posto, La Taille insere aspectos compreendidos por nós como úteis aos propósitos correlacionais que vislumbramos para o ensino de Ciências.

[…] embora variados procedimentos possam ser criados pelos alunos para dar vida prática a suas operações e chegar a verdades múltiplas, na maioria das vezes eles são ensinados pela escola. Melhor dizendo: aqueles atinentes à ciência são apresentados pela escola. Ou deveriam. […] para que os alunos não sejam coagidos a se limitarem a acreditar nas verdades produzidas pelos cientistas, é preciso que tenham acesso aos variados procedimentos por intermédio dos quais os pesquisadores colocam à prova suas teorias. Não se trata de desconfiança em relação a eles, mas sim da necessidade de se apoderar, na medida do possível, dos procedimentos que eles criam e empregam para chegar a suas respectivas verdades (LA TAILLE, 2009, p. 105).

Para La Taille (2009, p. 105), não existe procedimento geral possível de ser aplicado a todos os problemas. Cada um deles tem um correspondente. Contudo, quando é implementado um trabalho com o aluno que envolve busca da verdade, não há como excluir o ensino de procedimentos. “Trata-se de mostrar a ele [aluno] que a busca da verdade depende de uma ‘disciplina’ da reflexão, disciplina essa que se traduz pela criação e emprego de procedimentos”. Acaba-se demonstrando, então, que a busca da verdade não é tarefa fácil e que sua realização leva em conta a lógica e os procedimentos correspondentes dessa busca. Para reforçar esses argumentos, o autor fala sobre os resultados positivos obtidos da iniciação à pesquisa científica que dá a seus alunos, pois eles trabalham com teoria, métodos e procedimentos. E complementa dizendo que as escolas básicas, guardando as devidas proporções, poderiam fazer o mesmo.

c) Virtudes: A tese é de que sem determinadas virtudes, mesmo tendo mobilizado conhecimentos, operações e procedimentos, a pessoa não se dispõe a buscar a verdade, satisfazendo-se mais facilmente “com ideias prontas, com fatos não comprovados, com preconceitos de toda ordem, com reflexões brumosas e afirmações peremptórias”. (LA TAILLE, 2009, p. 106). Nesse caso, a verdade entendida como valor requer virtudes de boa-fé, exatidão, paciência, simplicidade e humildade para buscá-la. Apoiando-se em Comte-Sponville (1995), La Taille diz que uma pessoa dotada de boa-fé busca e respeita a verdade. As virtudes decorrem de desenvolvimento pela aprendizagem, porque não são inatas e nem correspondentes a traços de personalidade biológica. O que coloca a escola em evidência, porque é instituição em que o amor e o respeito pela verdade são (ou deveriam ser) fundamentais, desde o nível infantil até a universidade. “Um professor que não seja inspirado pelo mesmo amor [à verdade, que também os cientistas devem ter] é, além de pessoa inconsequente e alienada, um possível cúmplice de possíveis imposturas: como pode ele sem critérios de veracidade, ensinar o que quer que seja?” (LA TAILLE, 2009, p. 109). De acordo com os argumentos de La Taille (2009, p. 110), a verdade implica exatidão. Exatidão entendida “como apreço pela clareza, pela precisão, pelo rigor, pelo controle”. Portanto, quem se inspira na verdade sabe que ideias vagas, raciocínios lacunares, frases obscuras são obstáculos à sua busca. Pode-se ter uma opinião, mas que não se confunde com verdade. Nesse ponto, o autor chama nossa atenção para algumas estratégias de aula que tanto podem corresponder a ricos modelos de exatidão como permanecerem somente no nível de troca de opiniões e, nesse caso, ajudando a fortalecer o relativismo em detrimento da verdade. Vê-se, portanto, que a forma, a estratégia de aula tem papel de destaque nessa questão da busca da verdade e, ainda, que as aulas de Ciências encaixam-se igualmente nesse papel por causa das características de seu objeto, ou seja, a Ciência. Ao discutir as estratégias de aula, La Taille retoma as ideias de Piaget acerca das relações de coação e de cooperação, com a ressalva de que as relações de cooperação defendidas por Piaget não excluem aulas expositivas. Da mesma forma que o método ativo envolvendo as relações de cooperação não é garantido, por si só, no simples fato de promover discussões entre alunos. Relações de cooperação, na perspectiva piagetiana, devem apresentar as seguintes características que convergem para a participação simétrica dos membros: saber ouvir os outros; procurar expressar-se de forma clara; avisar sobre possíveis mudanças de ideia; usar os mesmos conceitos. Essa perspectiva, aliás, contém similaridades com as ideias apresentadas na teoria habermasiana da ética do discurso. Então, fica esclarecido que convencimento é diferente de imposição e, consequentemente, ambos implicam aspectos antagônicos em relação à moralidade. Ainda que tenhamos priorizado aspectos pontuais, deve ter ficado ao leitor – pelo menos essa foi nossa intenção – uma percepção de relevância dessa obra, que é completa e provocadora de muitas reflexões. Embora trabalhe com um conteúdo complexo e de certa especificidade na área da Psicologia, o conjunto de argumentos trazidos por La Taille acaba implicando importantes subsídios referenciais e de reflexão, tanto para investigadores da área de Educação em Ciência como para o trabalho do professor em sala de aula.

Referências

COMTE-SPONVILLE, A. Petit traité des grandes vertus. Paris: PUF, 1995.

JARES, X. R. Educar para a verdade e para a esperança: em tempos de globalização, guerra preventiva e terrorismos. Porto Alegre: Artmed, 2005.

LA TAILLE, Y. Moral e ética: dimensões intelectuais e afetivas. Porto Alegre: Artmed, 2006.

LA TAILLE, Y. Formação ética: do tédio ao respeito de si. Porto Alegre: Artmed, 2009.

WILLIAMS, B. Vérité e véracité. Paris: Gallimard, 2006.

Júlio César Castilho Razera – Doutorando em Educação para a Ciência pela Universidade Estadual Paulista (UNESP, Bauru, SP). Professor do Departamento de Ciências Biológicas da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB, Jequié, BA). E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

[MLPDB]

Computadores e Linguagens nas aulas de Ciências: uma perspectiva sociocultural para compreender a construção de significados – GIORDAN (EPEC)

GIORDAN, Marcelo. Computadores e Linguagens nas aulas de Ciências: uma perspectiva sociocultural para compreender a construção de significados. Ijuí: Ed. Unijuí, 2008. 308 p. Resenha de: COSTA, Alberto Luiz Pereira da. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v.12, n.03, p.153-156, set./dez. 2010.

Subo uma ladeira contra o vento Volto a esquina e encontro o tempo Já não tem porque correr E fico ali olhando e vendo Revivendo1 Marcelo Giordan em sua obra Computadores e linguagens nas aulas de ciências: uma perspectiva sociocultural para compreender a construção de significados, apresenta um relevante trabalho que ainda hoje foi pouco divulgado pelos pesquisadores do ensino de ciências. Neste trabalho o autor busca indícios sobre questões mediadas a partir de construtos teórico-metodológicos utilizando a perspectiva sociocultural com intuito de analisar as elaborações de significados na sala de aula e suas possíveis interações discursivas com o uso de ferramentas computacionais.

O livro é dividido em oito capítulos em que retratam um programa de pesquisa que vem sendo desenvolvida nos últimos dez anos pelo professor Giordan e seu grupo de pesquisa em Educação em Ciências e Tecnologias Educativas na área de formação de professores pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

No primeiro capítulo discutem-se as questões socioculturais baseada nos estudos de Vigotski e Bakhtin, este capítulo é dividido em duas partes, a primeira parte o autor apresenta uma relação de face a face em sala de aula presencial, com o objetivo de compreender a aprendizagem por meio da fala, do gesto e dos textos escritos. Na segunda parte Marcelo Giordan busca focar suas atividades em um ambiente on-line, em que “as linguagens verbal, escrita e iconográfica são os principais sistemas semióticos empregados” (GIORDAN, 2008, p.

25). Para o autor, a formação do pensamento e da linguagem pode ser articulada para observar como o estudante e o docente interage diante do computador em situações de ensino.

Para reforçar o estudo Giordan (2008), no segundo capítulo apresenta contribuições da Teoria da Ação Mediada, proposta por James Wertsch, que além de inserir a busca pelo sociocultural como responsável pela metodologia também interfere na construção de significados com a mediação do computador.

O pesquisador Giordan descreve que a Teoria da Ação Mediada realizada por Wertsch é uma síntese sobre o pensamento de Vigostski e Bakhtin. Wertsch observa que Vigostski não se dispôs a discutir “conceitos marxistas, como mercadoria, alienação e consciência de classe, preferindo se inspirar nos métodos marxistas de análise e nas proposições sobre a origem social dos processos psicológicos” (GIORDAN, 2008, p. 77). Nesta citação observamos que as questões que Giordan busca apresentar são voltadas para as práticas socioculturais.

O capítulo três tem por objetivo mostrar pesquisas que são desenvolvidas com a presença do computador nas aulas de ciências. O autor fez um estudo sobre as experiências com o uso do computador e da internet. Giordan (2008) apresenta neste capítulo uma breve revisão crítica sobre o uso de ferramentas tecnológicas na educação em ciências, tendo como base os conceitos da Teoria da Ação Mediada. O autor expõe seis formas da utilização do computador na sala de aula de ciências, são elas: linguagem de programação, sistemas tutoriais, caixas de ferramentas, simulação e animação, comunicação mediada por computador, e as dinâmicas das interações diante do computador. Neste momento, Giordan discorre sobre os seis temas por ele apresentado, mostrando com relevância cada uma das seis formas, e como estas podem ser uteis nas aulas de ciências.

Algumas questões técnicas e metodológicas sobre o registro da ação na sala de aula: aplicativos, captação e armazenamento digitais, este é o quarto capítulo da obra em que o autor faz uma apresentação da mediação do computador com referência a dados que foram coletados e posteriormente escritos nos correios eletrônicos.

Questões de tutoria on-line que foi desenvolvida no laboratório de pesquisa da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo – FEUSP – com parceria com o laboratório de engenharia de software da USP, também fazem parte deste capítulo. Buscando ressaltar as interações discursivas entre os personagens envolvidos no ambiente on-line, o foco são os registros do armazenamento e do tratamento dos dados no Tutorial de Química Orgânica.

No capítulo cinco, o autor discute a linha de pesquisa desenvolvida por ele e seu grupo em que utiliza a “teoria do conhecimento químico, como experimentação, simbologia, natureza particulada da matéria com questões sobre a organização do ensino desde a perspectiva sociocultural e das contribuições da Teoria da Ação Mediada” (GIORDAN, 2008, p. 55). O autor ainda discute a particularidade da Química no que diz respeito às dimensões espaço – temporais das realidades investigadas. Apresenta um projeto de ambiente virtual de aprendizagem, cujo objetivo é representar simulações de experimentação que o grupo de pesquisa em Educação em Ciências e Tecnologias Educativas propôs para a aplicação nas salas de aula do ensino médio.

Já o capítulo seis, tem como objetivo mostrar a introdução da internet em uma comunidade escolar, com a utilização de ferramentas computacionais para contribuir com a formação continuada de professores que lecionam no ensino médio. Segundo Giordan (2008), os ambientes informatizados demonstram como ocorrem as modalidades discursivas por meio da escrita, e os diálogos neste cenário são importantes para as ações dos docentes, e como este elabora significados em sua comunicação nas aulas de ciências.

No capítulo sete Giordan mostra com propriedade a importância da tutoria pela internet, relacionando os aspectos da interação na elaboração de significados com o uso do correio eletrônico. Marcelo Giordan comenta os fundamentos da tutoria, para mediar o conhecimento a ser estudado entre os alunos e o professor/tutor e como o serviço de tutoria pela internet auxilia na orientação no planejamento de tarefas escolares. Neste mesmo capítulo o autor divulga dois episódios ocorridos em sua pesquisa, os episódios envolveram alunos do ensino médio que faziam perguntas sobre o tema de Química por um ambiente virtual de aprendizagem on-line, em que seu professor/tutor deveria sanar suas dúvidas, neste momento a pesquisa esta sendo aplicada na comunidade escolar.

A conclusão é o capítulo oito em que Marcelo Giordan apresenta uma possível investigação com a utilização da Teoria da Ação Mediada, que atribui neste capítulo o nome de Modelo Topológico de Ensino. O autor encerra a obra voltando assinalar a essência que as contribuições da perspectiva sociocultural podem promover para a formação inicial e continuada de professores de Química e Ciências das escolas de ensino fundamental e médio e nos cursos de licenciatura e de extensão que são promovidos pela instituição a qual o autor atua.

Finalizando é um livro que destaca o computador e a linguagem como prática para o desenvolvimento da educação em ciência, relacionando a experiência e o conhecimento em interações on-line. A leitura é recomendada para alunos do curso de ciências em geral, professores, profissionais da educação, pesquisadores e estudiosos em educação, preocupados com as questões do ensino de ciência e as modalidades de ensino por ambientes virtuais de aprendizagem on-line.

Nota

1 Epígrafe extraída do disco de Francis Hime (1978), Se porém fosse portanto.

Alberto Luiz Pereira da CostaMestre em Educação para a Ciência e a Matemática pelo Centro de Ciências Exatas da Universidade Estadual de Maringá – (UEM/PR). Docente do Projeto de Educação Novo Telecurso. E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

[MALPDB]

The Shallows: what the internet is doing to our brains – CARR (EPEC)

CARR, Nicholas. The Shallows: what the internet is doing to our brains. [sn]: W. W. Norton & Company, 2010. 276p. Resenha de: CALDEIRA, Pedro Zany. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v.12, n.03, p.157-158, set./dez. 2010.

O livro de Nicholas Carr The Shallows (Os superficiais, numa tradução rápida do título original) é uma das grandes provocações deste ano sobre o modo como os computadores e sobretudo a internet influenciam a nossa vida e como, no limite, afetam fisiologicamente o funcionamento do nosso cérebro. E que provocação! O ponto de partida deste livro é a evolução da experiência de leitura e acesso à informação escrita nas últimas décadas por parte do próprio autor e de três outras pessoas (com relatos na primeira pessoa). Se na época pré-internet o processo de leitura destas quatro pessoas se baseava no livro e no modo sequencial como a informação é lida no suporte escrito tradicional, nesta época da internet omnipresente o processo de leitura transformou-se radicalmente, pois estas pessoas começaram a ter muita dificuldade em ler livros tradicionais e os seus processos de leitura passaram a basear-se na própria forma como a internet apresenta informação: muito fragmentada e sempre ligada a outros pedaços de informação.

Os relatos iniciais tornam-se ainda mais interessantes quando algumas destas pessoas confessam que abandonaram completamente a leitura de livros. E a questão que o autor coloca e à qual pretende responder é: por que este abandono? E as respostas que encontra são sustentadas em pesquisa científica nas mais diversas áreas das neurociências (e este é mesmo o ponto forte do livro, pois o autor leu e entrevistou muitos dos autores mais proeminentes desta área científica) e deveras surpreendentes. E apontam todas para o mesmo “culpado”: a internet.

O formato tradicional de apresentação de informação escrita, o livro, obriga a um processo extensivo de leitura sequencial, de um certo recolhimento e isolamento e com a existência de momentos de reflexão, enquanto o formato actual de apresentação de informação escrita mais usual, a internet, obriga a um processo de leitura em saltos rápidos entre pedaços de informação, com a procura de palavras-chave que deem coerência ao significado que está rapidamente a ser extraído pelo leitor e que pode ser ou é sistematicamente interrompido por outras tarefas que concorrem pela sua atenção: um mail que entra na caixa de correio e que é imediatamente respondido, um torpedo que chega ao celular e que é lido (e muitas vezes respondido), enquanto a televisão continua a debitar imagens e sons… E, assim, a leitura deixou de ser um processo de digestão lento, com a possibilidade de absorção dos seus elementos nutritivos mais importantes, para um processo de digestão rápida, com uma meta-absorção de factos muitas vezes pitorescos, romanescos, mas… muitas vezes irrelevantes.

Já em 1882 Friedrich Nietzsche tinha percebido que a ferramenta usada para escrever tem impacto na forma de escrita. Com crescentes dificuldades de visão, Nietzsche comprou uma máquina – uma Bola de Escrita Malling-Hanse – que lhe permitiu continuar a escrever. Quando dominou o uso desta ferramenta, Nietzsche permitia-se escrever de olhos fechados, usando apenas as pontas dos dedos. Mas a máquina teve um efeito subtil no seu trabalho, pois o seu estilo de escrita tornou-se ainda mais telegráfico: deixou de usar argumentos e passou a fazer aforismos, passou dos pensamentos elaborados para os jogos de palavras.

Se esta descrição do processo de leitura actual (especialmente dos processos de leitura online) coincide com muitas das nossas experiências de leitura (superficiais, anedóticas, com interrupções sistemáticas e sem conduzir a grande reflexão), e que no mínimo nos deverá fazer questionar sobre o impacto da internet nas nossas vidas, torna-se mais preocupante quando o autor procura perceber melhor por que quando enveredamos por processos de leitura deste tipo dificilmente conseguimos voltar a processos mais tradicionais. E a resposta reside na forma como os processos actuais de leitura transformaram os nossos cérebros, passando de processadores por excelência de informação sequencial a processadores de informação multissensorial, fragmentada e ligada entre si.

E de quanto tempo é que a internet necessita para transformar os nossos cérebros? Segundo a pesquisa mais actual, muito pouco: dias, horas ou mesmo minutos. E quais as consequências? Não são somente em relação à leitura, pois também ocorrem em relação à escrita (a microescrita, típica das mensagens instantâneas) e, certamente, em relação à capacidade de analisar fenómenos complexos… Mas sobre isso prefiro deixar à exploração de quem ficou suficientemente curioso para ler este livro.

Nicholas Carr escreve sobre as implicações da tecnologia em âmbito social, econômico e dos negócios. É membro da comissão editorial de Enciclopédia Britânica e foi editor executivo da Harvard Business Review e consultor sênior na Mercer Management Consulting. Este livro vem na sequência do ensaio “Is Google Making Us Stupid?”, publicado no número de verão (julho/agosto) de 2008 da Atlantic Monthly.

Pedro Zany CaldeiraDoutor em Gestão da Informação pela Universidade Nova de Lisboa (UNL) Instituto Superior de Educação e Ciências – Lisboa. E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

[MLPDB]

Estudo de caso no ensino de química – SÁ; QUEIROZ (EPEC)

SÁ, Luciana Passos; QUEIROZ, Salete Linhares. Estudo de caso no ensino de química. Campinas: Editora Átomo, 2009. Resenha de: OLIVEIRA, Jane Raquel Silva de. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v.12, n.02, p.279-280, mai./ago. 2010.

Luciana Passos Sá e Salete Linhares Queiroz abordam em sua obra “Estudo de casos no ensino de química” os resultados de seus estudos teóricos e empíricos sobre a produção e aplicação do método de estudo de casos, o qual, segundo as autoras, “consiste da utilização de narrativas sobre dilemas vivenciados por pessoas que necessitam tomar decisões importantes a respeito de determinados problemas” (p. 12). Sob essa perspectiva, um aspecto central permeia todo o livro: a importância do método para o aprimoramento da capacidade de tomada de decisões diante de problemas que envolvem questões sócio-científicas e para o desenvolvimento da prática da argumentação – ambos aspectos essenciais para a formação da cidadania. Dessa forma, a obra apresenta-se como leitura essencial para professores em formação ou em exercício que se preocupam com uma educação na qual o aprendizado de conceitos não seja o fim em si, mas uma ferramenta para sua utilização em contextos mais amplos e significativos na vida dos educandos, isto é, uma educação científica que propicie espaços para debates e reflexões sobre aspectos econômicos, sociais, políticos, éticos etc.

O livro é divido em seis capítulos, dos quais dois são especialmente dedicados a relatar as pesquisas das autoras nessa área. O primeiro capítulo aborda brevemente as origens do método Problem Based Learning (PBL) – do qual deriva o método de estudo de caso – em faculdades de medicina no exterior e sua posterior difusão para outras instituições e outras áreas do conhecimento, bem como relata a utilização do método em algumas universidades brasileiras. Nesse capítulo também são descritos alguns sites e materiais didáticos que disponibilizam casos “prontos” para o ensino de química. Tais informações, além de confirmarem a popularização do método no meio acadêmico, são bastante úteis àqueles que buscam fontes de exemplos de casos para aplicação em sala de aula.

Parte extremamente prática do livro, o segundo capítulo pode ser considerado uma espécie de guia para a elaboração e aplicação de casos em sala de aula, pois fornece uma série de informações úteis ao professor no planejamento e utilização do método. Para tal, as autoras apresentam como produzir um caso, destacando e exemplificado as principais características de um bom caso, relatando as principais fontes de inspiração para a sua elaboração e ressaltando algumas considerações importantes nas etapas que precedem a elaboração do mesmo.

Nesse capítulo as autoras também descrevem e exemplificam algumas estratégias didáticas para utilização dos casos no ensino de ciências, e discutem a estreita relação entre as questões propostas e o estímulo à tomada de decisões, ressaltando alguns modelos que auxiliam o professor na elaboração de questões sobre ele.

O terceiro capítulo traça um panorama geral de trabalhos da literatura que versam sobre a aplicação do método de estudo de caso no ensino de química, com destaque para alguns pontos-chave, como as subáreas da química nas quais são mais utilizados. Esse capítulo destaca também os principais objetivos dos educadores quanto à utilização dos casos, as diferentes maneiras empregadas pelos professores de química na aplicação do método e as impressões de alunos e professores sobre esses estudos de casos.

Os capítulos quatro e cinco trazem os resultados das pesquisas realizadas pelas autoras na produção e implantação de estudos de caso no ensino superior de química. No quarto capítulo as autoras relatam a aplicação do método no ensino superior de química, descrevendo os casos produzidos, as fontes de inspiração para a produção dos mesmos, as etapas de aplicação da proposta e as impressões dos alunos sobre as diversas habilidades que desenvolveram com a proposta aplicada. No quinto capítulo as autoras, com base nas análises dos argumentos produzidos pelos alunos na apresentação da solução dos casos propostos na pesquisa, destacam como a aplicação de estudo de casos pode estimular a prática da argumentação em sala de aula – aspecto cada vez mais valorizado na educação em ciências.

Trazendo informações complementares sobre a literatura da área, no sexto capítulo as autoras apresentam uma bibliografia anotada de 29 artigos internacionais, citados na revisão bibliográfica do terceiro capítulo, os quais abordam a aplicação de estudo de casos no ensino de química.

Dessa forma, as considerações apresentadas pelas autoras nesta obra ratificam a importância do método de estudo de caso tanto para o aprendizado de conteúdos informativos quanto formativos, e, por esse motivo, recomenda-se sua leitura a professores de diversas áreas do conhecimento, pois o método pode ser empregado em debates sobre os mais variados problemas que permeiam o cotidiano dos estudantes. Embora as pesquisas das autoras sobre os estudos de caso tenham sido desenvolvidas apenas no ensino superior de química, os resultados indicam sua aplicabilidade também no ensino básico – o que deixa em aberto importante espaço para novas pesquisas na área.

Jane Raquel Silva de Oliveira – Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Química da Universidade Federal de São Carlos. E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

[MLPDB]

Astronomia em Camões – MOURÃO (EPEC)

MOURÃO, Ronaldo Rogério de Freitas. Astronomia em Camões. São Paulo: Lacerda Editores, 1998. 166 p. Resenha de: RIBEIRO, Juliana. Os vários céus de Camões. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v.12, n.02, p.281-286, mai./ago. 2010.

Abre parênteses: In(certezas) Tudo indica que tenha nascido em Portugal, entre 1517-1525. Alguns registros apontam, veementemente, que o ano exato do seu nascimento é 1524.

Sem muita clareza, acredita-se que tenha pertencido à pequena nobreza, que estudou Humanidades em Coimbra, que perdeu o olho direito em um combate – depois de ter ofendido certa dama da corte.

Foi preso, embarcou em uma expedição para a Índia e, ao tentar regressar, foi vítima de um naufrágio na foz do Rio Mecom. Sobreviveu às suas impetuosas correntezas, nadando com apenas um braço – já que o outro se manteve erguido, incansavelmente, velando pela ode que o imortalizou.

Viveu miseravelmente em Moçambique, até ser encontrado pelo amigo Diogo do Couto, que deixou registrado: “tão pobre, que vivia de amigos”.

Retornou a Lisboa e, após alguns contatos com o rei D. Sebastião, publicou Os Lusíadas, em 1572.

Faleceu em 1580, tornando-se o Príncipe dos Poetas.

Fecha parênteses: Veracidades Apesar do vasto imaginário que existe em torno da vida de Luís Vaz de Camões, com toda fidúcia, pode-se afirmar que sua obra transgride a égide de seu tempo.

Com linguagem prodigiosa e singular, o poeta estabelece uma relação indissociável entre as mais diferentes instâncias de sua época: o povo português, os amores, as misérias, as guerras, os desbravamentos, as descobertas científicas – tudo está intrínseco em seu discurso: ora heroico e extasiado, ora empolgante e profético, ora lastimoso e melancólico.

Ficção e realidade mesclam-se perfeitamente e, juntas, abrolham uma linguagem que reflete – acima de tudo – um recorte da história de uma estação, com todas as suas mazelas, conquistas e descobertas.

Sustentação: Camões e a Astronomia “O melhor método para conhecer a cultura científica de uma determinada época é estudar as obras literárias e/ou as publicações não especializadas que se utilizavam do conhecimento científico ensinado nas universidades daquele período”. Com essas palavras, o pesquisador e astrônomo Ronaldo Rogério de Freitas Mourão inicia seu paralelo sobre os pormenores do principal poema épico da contemporaneidade – Os Lusíadas, em A astronomia em Camões –, e o conhecimento que especialistas daquele tempo detinham acerca do universo.

A epopeia, estruturada em dez cantos, apresenta uma linguagem vigorosamente metafórica, que reflete uma perspectiva bastante singular e embasada nas ideias astronômicas que vigoravam no século XVI.

Camões, assim como a maior parte dos cientistas daquele momento, possuía visão cosmogônica do mundo, que corroborava com a premissa de que a origem do universo estava associada às lendas, religiões, mitologias e teorias científicas. Talvez seja este o motivo que o levou a adotar, em sua principal obra, os preceitos instituídos pelo sistema proposto pelo astrônomo grego Ptolomeu – benquisto pela igreja, pelos teólogos e pela corte europeia renascentista, com seus 11 céus e o inseparável vínculo com a astrologia.

Ptolomeu propôs um sistema cosmológico, onde a Terra estaria no centro do universo e os outros corpos celestes descreveriam movimentos circulares uniformes ao seu redor. Esses movimentos eram perfeitos, sempre idênticos, fechados sobre si mesmos e, sobretudo, sem início e fim.

Tais movimentos – principalmente os realizados pelos planetas, que também eram chamados de estrelas – constituem objetos de estudo dos astrônomos.

Assim, eles instituíram os sistemas de círculos ou esferas, que compreendiam uma esfera principal, associada às secundárias. Era a esfera principal – ou céu, como Camões descreve em Os Lusíadas, a base para os movimentos dos círculos menores que compunham todo o universo.

Céus de Camões A morada do criador, dos espíritos virtuosos, dos justos, santos e anjos era chamada de Céu Empírio – o maior e mais distante. Impossível de ser visto da Terra, foi revelado ao ser humano pelos textos sagrados.

Referência contínua nas explanações dos poetas, teólogos e filósofos, este céu envolvia todos os outros. De maneira eloquente, é apresentado no Canto X do poema camoniano, como o destino dos merecedores da salvação eterna.

Este orbe que, primeiro, vai cercando Os outros mais pequenos que em si tem, Que está com luz tão clara radiando Que a vista cega e a mente vil também, Empíreo se nomeia, onde logrando Puras almas estão daquele Bem Tamanho, que Ele só se entende e alcança, De quem não há no mundo semelhança. (Lus., X)

Já o abrigo dos doze signos e do Zodíaco, chamado Primeiro Móvel, era grande, veloz e virtuoso. Capaz de mover todos os outros céus que estavam situados abaixo, ficou conhecido como a mais nobre de todas as esferas.

Enfim que o sumo Deus, que por segundas Causas obra no Mundo, tudo manda.

E, tornando a contar-te das profundas Obras da Mão Divina veneranda:

Debaixo deste círculo, onde as mundas Almas divinas gozam, que não anda, Outro corre, tão leve e tão ligeiro, Que não se enxerga: é o Móbile primeiro. (Lus., X)

Transparente e límpido era o Cristalino e, na maior distância onde os olhos alcançam, estava o Firmamento. Repleto de estrelas – fruto da dádiva divina.

A mais importante era o Sol – claro olho do céu e repleto de luz própria.

Debaixo deste grande Firmamento Vês o céu de Saturno, Deus antigo; Júpiter logo faz movimento, E Marte abaixo, bélico inimigo; O claro Olho do céu, no quarto assento, E Vênus, que os amores traz consigo; Mercúrio, de eloquência soberana; Com três rostos, debaixo vai Diana. (Lus., X 89).

Em contrapartida, havia a Lua. Há quem acredite, ainda hoje, que sobre uma grande colina, é possível tocá-la. Majestosa, tornou-se inspiração de poetas. Instigante, é símbolo de culto e adoração de diversos povos. Apesar de os avanços científicos terem-na reduzido a satélite – sem luz própria – a pujança de sua existência se entrelaça aos destinos humanos.

Em Os Lusíadas, a Lua media o intervalo de tempo. Suas fases apontavam, com precisão, a saga portuguesa a caminho das Índias. Seus intervalos elucidavam partidas e chegadas.

No Canto V, Camões narra a partida da armada no dia 8 de julho de 1947, em Lisboa, até o desembarque na Baía de Santa Helena, no dia 4 de novembro. Nos quatro meses decorridos, a Lua passou cinco vezes de quarto crescente à cheia – passando “de meio rosto para rosto inteiro”, e estabelecendo o tempo da viagem de Vasco da Gama.

Mas já o Planeta que no céu primeiro Habita, cinco vezes apressada, Agora meio rosto, agora meio inteiro, Mostrara, enquanto o mar cortava a armada, Quando da etérea gávea um marinheiro Pronta coa vista: “Terra! Terra!” brada: Salta no bordo alvoroçada a gente Cós olhos no Horizonte do Oriente (Lus., V) Entre os proeminentes estudiosos e admiradores da obra camoniana, o pesquisador e astrônomo Ronaldo Rogério de Freitas destaca-se por essas e outras referências que apontam que o poeta quinhentista não poderia ter se baseado apenas em sua experiência e em leituras secundárias para associar – com tanta magnitude e acuidade – as descobertas astronômicas da época com sua narrativa.

A precisão com que construiu, no Canto X, a grande Máquina do Mundo aponta difíceis conceitos astronômicos. As constelações conhecidas – ainda hoje – já estavam presentes, de maneira magistral, na obra do poeta.

Olha por outras partes a pintura Que as Estrelas fulgentes vão fazendo: Olha a Carreta, atenta a Cinosura, Andrómeda e seu pai, e o Drago horrendo; Vê de Cassiopeia a formosura E do Oriente o gesto turbulento; Olha o Cisne morrendo que suspira, A Lebre e os Cães, a Nau e a doce Lira.

(Lus., X) Seria o Príncipe dos Poetas também um astrônomo? Esta pergunta, assim como tantas outras, irão complementar o imaginário que é traçado acerca da vida deste que foi, indiscutivelmente, um dos maiores escritores de todos os tempos.

Juliana RibeiroMestranda em Estudos de Linguagens pelo Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET/MG).

Acessar publicação original

[MLPDB]

Teorias da verdade – KIRKHAM (EPEC)

KIRKHAM, Richard L. Teorias da verdade. São Leopoldo-RS: Unisinos, 2003, 482 p. Resenha de: OLIVEIRA, Caroline Barroncas; GHEDIN, Evandro. Juntando as peças do quebra-cabeça: projetos de teorias da verdade. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v.12, n.01, p.171-176, jan./abr, 2010.

Richard L. Kirkham1 trabalha no Departamento de Filosofia da Georgia State University, University Plaza, Atlanta, GA, USA. Também é Professor Assistente de Filosofia na Universidade de Oklahoma. Dentre suas publicações podemos citar: What Dummett says about Truth and Linguistic Competence (1989); On Paradoxes and a Surprise Exam (1991); In Progress, Tarski’s Physicalism. Esta obra resenhada foi publicada originalmente pelo MIT Press em 1992, e em 1995 outra edição foi publicada pela mesma editora. E agora, em 2003, traduzida por uma pequena editora universitária brasileira.

O livro é estruturado em dez capítulos, sendo eles: Projetos de teoria da verdade; Justificação e portadores de verdade; Teorias não-realistas; A teoria da correspondência; A teoria semântica de Alfred Tarski; Objeções à teoria de Tarski; O projeto da justificação; Davidson e Dummett; O paradoxo do mentiroso; O projeto dos atos-de-fala e a tese deflacionária. Estes capítulos, cada qual acompanhado de resumo, são com-postos por vários subcapítulos, alguns mais estendidos que outros, porém todos organizados da mesma forma.

O livro relata a existência de várias dimensões de confusão na história, tal como: imprecisão, significando a falta de clareza ao responder “o que é verdade?”; e a ambiguidade, onde algumas descrições podem ser entendidas de várias maneiras (ex: encontrar critério de verdade). A partir dessas várias dimensões de confusão, temos uma confusão quadridimensional. Davison (apud KIRKHAM, 2003, p. 15) achou a situação tão confusa que a considerou ‘fútil’.

Para se resolver esta confusão, Kirkham (2003), diz que em primeiro lugar é preciso formar um quadro das várias concepções do problema ou, uma lista das diferentes questões sobre a verdade, cada qual estabelecida com precisão e sem ambiguidade, que os vários teóricos têm tentado responder. Não se podem juntar todas as peças do quebra-cabeça a menos que se postulem três projetos diferentes: O projeto dos atos-de-fala – tenta descrever os propósitos locucionários2 ou ilocucionários3 de declarações, que pela sua aparência gramatical, parecem atribuir a propriedade da verdade a algumas afirmações. Este projeto possui duas subdivisões: Projeto do ato ilocucionário – é seguido por aqueles que estão convencidos de que as declarações em questão não têm um propósito locucionário.

Esse projeto tenta descrever o que fazemos quando declaramos algo.

Projeto assertivo – é seguido por aqueles que estão convencidos de que as declarações em questão têm sim um propósito locucionário. Esse projeto tenta descrever o que dizemos quando declaramos algo, ou seja, tenta fixar a intensão do predicado ‘é verdadeiro’. Dentro deste projeto existem duas subdivisões: Projeto da atribuição – é seguido por aqueles que estão convencidos de que a aparência gramatical de tais declarações é um guia seguro a respeito do que estamos dizendo quando fazemos. Presumivelmente, incorpora a perspectiva comum a respeito do que dizemos quando fazemos tais declarações.

Projeto da estrutura profunda – é seguido por aqueles que estão convencidos de que a aparência gramatical de tais declarações é enganadora.

O projeto metafísico – tenta identificar em que consiste a verdade, existindo três ramos deste projeto.

Projeto extencional – tenta identificar as condições necessárias e suficientes para uma afirmação, ou seja, fixar a referência do predicado ‘é verdadeiro’.

Projeto naturalista – tenta encontrar condições que, em todo mundo naturalmente possível, sejam individualmente necessárias e conjuntamente suficientes para uma afirmação ser verdadeira em tal mundo, isto é, tentam produzir uma teoria científica da verdade.

Projeto essencialista – tenta encontrar condições que, em qualquer mundo possível, sejam individualmente necessárias e conjuntamente suficientes para uma afirmação ser verdadeira em tal mundo.

O projeto da justificação – tenta identificar algumas características, possuídas pela maior parte das afirmações verdadeiras e não possuídas pela maior parte das afirmações falsas, em relação às quais a provável verdade ou falsidade de uma afirmação pode ser julgada. Assim, uma teoria que realiza esse projeto é uma que nos conta que tipo de evidência e raciocínio nos dará direito a acreditar na verdade de uma dada proposição. Fica claro que, as teorias da justificação não são teorias da verdade, isto é, elas não são sobre a verdade, mas sim, fornecem uma condição suficiente para justificarmos nossa crença numa proposição baseada em um critério prático de verdade.

Mas, para entender esses projetos faz-se necessário compreender os conceitos de extensão e intensão. Desde Gottlob Frege (1892), dizem que o significado de uma expressão tem pelo menos dois componentes: sentido e referência. O sentido de uma expressão é geralmente chamado de conotação de intensão da expressão, e a referência é geralmente chamada denotação ou extensão da expressão. A extensão de uma expressão é o objeto ou conjunto de objetos referidos apontados ou indicados pela expressão. A tentativa de produzir tal descrição não circular do conjunto de todas as coisas verdadeiras é o que se chama de projeto extensional. Quando dois termos têm extensões idênticas, dizemos que são extencionalmente equivalentes.

Assim, uma maneira alternativa de conceber o projeto extensional é pensá-lo como a busca por uma expressão extensionalmente equivalente ao predicado ‘é verdadeiro’. Duas expressões podem ser extensionalmente equivalentes e ainda não significar a mesma coisa. Isso acontece sempre que suas intensões, o outro componente do seu significado, não forem idênticas.

Dito de forma muito generalizada pelo autor, a intensão de uma expressão é o conteúdo informacional da expressão, enquanto distinto do conjunto de objetos denotado pela expressão (p.23). Portanto, embora “a estrela da manhã” e a “estrela da tarde” sejam extensionalmente equivalentes, não são intensionalmente equivalentes. A tarefa de descobrir o conteúdo informacional, a itensão é o que o autor vai chamar de projeto assertivo, sendo este uma subdivisão do projeto dos atos-de-fala.

O projeto extensional é a busca por uma expressão extensionalmente equivalente a “é verdadeiro” e o projeto assertivo é a busca por uma expressão intensionalmente equivalente a “é verdadeiro”. Kirkham (2003, p.24), afirma que a seguinte regra é universal: se dois termos são intensionalmente equivalentes, então eles são também extensionalmente equivalentes. O contrário, não é o caso.

É nesse sentido que a equivalência intensional é uma relação mais forte que a mera equivalência extensional. A conexão lógica mais forte é chamada de implicação essencial e é a expressão colocando-se a palavra ‘necessariamente’ antes da asserção da implicação meramente material.

De forma similar, uma afirmação que é verdadeira em todos os mundos naturalmente possíveis é uma verdade naturalmente necessária; logo, as leis naturais são todas as verdades naturalmente necessárias. O autor denominou a tentativa de encontrar uma sentença que seja naturalmente equivalente a “x é verdadeiro” de projeto naturalista.

Kirkham (2003) explicita que a lição geral, entre uma análise intensional ou extensional, é que alegações de equivalência material são mais difíceis de refutar que as correspondentes alegações de equivalência essencial ou equivalência intensional. O autor afirma ainda que a maioria dos filósofos, na maior parte do tempo, não deixa claro que tipos de análise estão seguindo.

O autor tenta esclarecer que as preocupações intelectuais motivam a epistemologia e por que o projeto metafísico e o projeto da justificação são importantes para o programa epistemológico. Pois, as tentativas de inverter a ordem de prioridade e definir a verdade em termos de uma noção de justificação anteriormente alcançada são: circulares; ininteligíveis; baseiam-se na alegação duvidosa de que possuímos um conceito primitivo e não-analisável de justificação ou de princípio correto de justificação, ou; são apenas maneiras metafóricas de rejeitar a verdade como um valor.

Kirkham (2003) explicita que as nossas questões sobre os portadores de verdade surgem dos nossos interesses que começa com certa escolha valorativa; nós valorizamos ter crenças justificadas, e essa escolha faz com que o ceticismo seja um problema, e resolver o problema do ceticismo nos leva ao projeto de justificação, e esse, por sua vez, exige uma solução para o projeto metafísico, e nesse ponto surge a questão a respeito de que tipo de coisa pode ser portadora de verdade ou, mais corretamente, nesse ponto postula-se que certos tipos de entidades podem ser verdadeiras ou falsas. O filósofo C.J.F.

Williams alega que não há tal coisa como portador de verdade. Kirkham (2003) argumenta que identificar o portador de verdade “correto” é uma questão de decisão e, que as objeções feitas a que se tomem ocorrências de sentenças como portadores de verdade estão baseados em suposições facilmente refutadas.

Kirkham (2003) descreve as diferenças entre as respostas Realistas e Não-Realistas ao projeto metafísico. Uma teoria Realista da verdade é que o fato em questão seja independente da mente, isto é, que nem sua existência nem sua natureza dependam puramente da existência de alguma mente, mas poderá ser considerada Realista mesmo que permita que se considere o fato, cuja existência ela inclui entre as condições necessárias para a verdade, como derivativamente dependente da mente. Já as teorias Não-Realistas não exigem tal condição, e isso segundo o autor, acaba se revelando sua maior fraqueza potencial. Uma teoria Não-Realista pura não pode realmente distinguir o conjunto das proposições ou crenças verdadeiras de nenhum outro conjunto aleatório de proposições.

É explicitada a Teoria Semântica de Alfred Tarski (1902-1983), um dos grandes lógico-matemáticos do século XX que, por volta dos seus vinte e oito anos, inventou a primeira semântica formal para a lógica dos predicados quantificados, a lógica de todos os raciocínios matemáticos. E a sua grande realização é a teoria da verdade, denominada de teoria semântica da verdade, embora Tarski prefira usar a expressão ‘concepção semântica da verdade’, a fim de denominar o que ele acredita ser a concepção da verdade que é a essência da teoria da correspondência. Assim, conforme sua própria maneira de ver as coisas, ele é um teórico da correspondência.

Para que se possa compreender a teoria de Tarski, é necessário um entendimento dos programas mais amplos a serviço ao que ele se propõe. Sob a influência da doutrina do fisicalismo4, tem como objetivo principal reduzir todos os conceitos semânticos a conceitos físicos e lógico-matemáticos e, ao fazer isso, tornar a semântica uma ciência, isto é, estabelecer o estudo da semântica como uma disciplina respeitável cientificamente. Esse objetivo obriga Tarski a rejeitar qualquer definição de verdade em que apareça um termo semântico nãoreduzido.

Sua estratégia era definir todos os conceitos semânticos, exceto satisfação, em termos de verdade. Isso, por sua vez, a verdade era então definida em termos de satisfação, e, finalmente, satisfação era definida somente em termos de conceitos físicos e lógico-matemáticos.

Finalmente, o autor encerra esta obra retornando ao projeto metafísico, especificamente ao projeto essencialista, de modo a poder fazer um exame crítico da teoria minimalista da verdade de Horwich. Horwich alega que sua teoria é tudo o que precisamos na forma de um conceito de verdade para explicar todas as coisas que qualquer teoria da verdade poderia explicar. Kirkham (2003) argumenta que um conceito mais substancial de verdade pode explicar as regras e axiomas da lógica clássica, enquanto a teoria minimalista, como Horwich reconhece, não pode. Também, reconhece que a teoria minimalista não pode explicar suas próprias partes conjuntas, e Horwich tem três argumentos que tentam mostrar que nenhuma outra teoria seria capaz de explicá-las.

O autor não faz conclusões ao final de sua obra ou de cada capítulo ou parte, como ocorre comumente. No entanto, no decorrer da obra, alguns argumentos são levantados a respeito das teorias de verdade que estão sendo analisadas e discutidas, pois afirma que, muitos teóricos da verdade têm sido negligentes em explicar que questão eles supõem estar respondendo e qual a relevância de sua resposta à questão para problemas intelectuais mais amplos.

A questão da verdade, um dos temas mais controversos e estimulantes da filosofia, cuja importância se estende aos problemas da teoria do conhecimento, da lógica, da linguística e das ciências, é esmiuçada por Kirkham.

Incluem-se as discussões de tais teorias como a correspondência, coerência, pragmatismo, semântica, performatividade, redundância, de apreciação, de verdade.

Também estão abrangidos o paradoxo mentiroso, a lógica, o campo da crítica de Tarski, a satisfação, bem como a forma como as teorias de justificação, bem compreendidas, diferem das teorias da verdade.

O livro apresenta estilo coeso, sua linguagem é objetiva e minuciosa.

No aspecto organizacional observou-se uma sistematização, o que demonstra a preocupação do autor em ser o mais esclarecedor possível. Muito embora, para leitores leigos no assunto, isso se torne uma tarefa árdua. A obra é indicada pelo autor para estudantes dos últimos anos da graduação, estudantes de pósgraduação dos cursos de Epistemologia, Filosofia da Linguagem, Lógica e Semântica, como também, filósofos, linguistas e outros. Portanto, mesmo estando voltada para a grande área da Filosofia, não se considera que a obra seja indicada apenas para os filósofos e linguistas, mas sim para todos os interessados em uma nova perspectiva teórica que viabilize uma introdução das teorias de verdade.

Por esse ponto de vista, entende-se que a teoria de verdade não trata de pseudoproblemas, não produz pseudoteorias, não é uma atividade, não pode ser reduzida a uma mera questão de linguagem. A filosofia influencia profundamente a ciência, pois sua natureza é resolver problemas, os quais se encontram fora de seu campo. O ser humano está incessantemente buscando a verdade, não se aceita as certezas e crenças estabelecidas, quer sempre ir além delas. Estamos continuamente procurando explicações, interpretações e significados para a realidade que nos cerca. Desta forma, percebemos a contribuição deste autor para o Ensino de Ciências, pois possibilita o desenvolvimento da criticidade do aluno para que possa avaliar um discurso científico, a flexibilidade, a prudência e a coerência para não colocar o conhecimento como algo estático e como verdade absoluta, uma vez que existem linhas de pensamentos divergentes.

Notas

1 Não foi encontrado nenhum elemento de sua biografia.

2 É o que dizemos (emissão de palavras em uma estrutura sintática), ou seja, nomeações, ordens, promessas, declarações, perguntas etc., ou os que querem produzir algum efeito no ouvinte, uma expressão com denotação e conotação (ABBAGNANO, 2000; MENDES, 2004).

3 O que se faz dizendo, execução (perguntamos, respondemos, informamos, mandamos, anunciamos, pronunciamos…), ou seja, afirmações com valores semânticos de verdade ou falsidade; enunciados performativos, cujo desempenho pode ser qualificado de felizes ou infelizes, falhas ou abusos e descrevem um estado de coisas, porém realiza uma ação no mundo, mais precisamente uma ação que não é normalmente descrita como um simples “dizer algo” (ABBAGNANO, 2000; MENDES, 2004).

4 O fisicalismo pode ser definido, de forma mais tosca, como a crença de que todos os conceitos intelectualmente respeitáveis podem ser definidos, no final das contas e exaustivamente, em termos dos conceitos da lógica, da matemática e da física. Assim, para assegurar que a semântica conforme-se aos ditames do fisicalismo, Tarski precisou reduzir todos os conceitos da semântica a conceitos físicos e lógico-matemáticos (KIRKHAM, 2003, p.204).

Referências

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

Caroline Barroncas de Oliveira – Graduada em Normal Superior pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Aluna do Mestrado Profissional em Ensino de Ciências na Amazônia pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA). E-mail: [email protected]

Evandro Ghedin – Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professor, pesquisador e líder do Grupo de Estudo Formação de Professores da Universidade do Estado do Amazonas (UEA).

Acessar publicação original

[MLPDB]  

Leitura e escrita em aulas de ciências: luz, calor e fotossíntese nas mediações escolares – ALMEIDA et al (EPEC)

ALMEIDA, M. J. P. M.; CASSIANI, S. e OLIVEIRA, O. B. Leitura e escrita em aulas de ciências: luz, calor e fotossíntese nas mediações escolares. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2008. Resenha de: DIAS, Ricardo Henrique Almeida. Leitura e escrita em aulas de ciências: luz, calor e fotossíntese nas mediações escolares. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v.11, n.02, p.373-375, jul./dez 2009.

Esse livro possui gênese em recentes pesquisas desenvolvidas pelo Grupo de Estudos e Pesquisa em Ciência e Ensino (gepCE), um dos grupos de pesquisa da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas. Tais investigações envolveram atividades escolares relacionadas à temática energética através da prática da leitura e da escrita.

O objetivo do livro é compartilhar com professores de ciências e disciplinas afins, bem como os formadores desses professores nas universidades, algumas experiências vividas pelas autoras como professoras e pesquisadoras na área de educação em ciências.

Elas buscaram repartir com os leitores alguns acontecimentos e reflexões que julgaram significativos no ensino escolar dessa área através de histórias pessoais e coletivas, considerando também que a obra possa servir como suporte de atividades escolares semelhantes às narradas no livro ou como inspiração para registro e divulgação de outras relações de ensino em sala de aula.

O livro conta com diversos episódios de ensino que ocorreram em classes de oitavas série do ensino fundamental em escolas públicas. O foco temático das atividades escolares analisadas no livro se refere à noção de energia, sendo que esse tema foi pensado pelas autoras como um conteúdo de ensino propício à constituição de saberes escolares pertinentes às ciências a partir de aspectos do saber produzidos em diferentes campos científicos, como na biologia, na física, na química e em tecnologias associadas a essas disciplinas. Com esse tópico, elas elaboraram atividades que envolveram a organização de situações favoráveis ao diálogo em sala de aula, ao trabalho prático, à leitura e à escrita. Estas últimas, leitura e escrita, são discutidas pelas autoras dentro de uma perspectiva na qual ensinar a ler e escrever não é privilégio ou dever apenas do professor de português, mas também de outras disciplinas, dentre elas as ciências.

As autoras procuraram evidenciar o funcionamento da linguagem no ensino escolar de determinados conteúdos e elegeram como ponto de partida para o trabalho e para as análises posteriores uma perspectiva discursiva plasmada pela não-transparência da linguagem e pelas condições de produção dos sentidos pelos estudantes. Assim, como subsídio para a elaboração e a análise das atividades, as autoras julgaram pertinente a utilização da análise de discurso iniciada na França com trabalhos de Michel Pêcheux.

Nessa vertente, a linguagem é pensada como efeito de um processo histórico e, assim considerada, dela não se pode esperar a transparência, não sendo possível assumir que haja uma relação direta entre palavras e coisas.

Da análise de discurso as autoras também aproveitaram a noção de autoria, buscando nas interpretações dos estudantes indícios da passagem da repetição empírica, ou “efeito papagaio”, quando o estudante exercita a memória para dizer apenas aquilo que o professor ou o livro já havia dito, para a repetição histórica, quando há incorporação de sentido próprio do aluno com base numa rede de filiações em que sentido, memória e história se entrelaçam. Entre essas interpretações existe uma intermediária: a repetição formal. Nela o estudante conta as mesmas ideias das aulas, mas com suas próprias palavras, em um exercício gramatical que também não historiciza.

Quanto a leitura, as autoras consideram que sem um estudo apropriado e sem uma reflexão mais aprofundada sobre ela na formação inicial ou continuada dos professores muitas vezes ocorre o uso de um modelo de leitura que é baseado naquilo que eles vivenciaram como estudantes. Isso pode ocasionar um espaço restrito para outras interpretações, priorizando apenas um sentido sobre o conteúdo científico e assim silenciando, por exemplo, as interpretações equivocadas que podemos encontrar na história da ciência durante a busca de explicações sobre os fenômenos. Desse modo, os conteúdos são “limpos” dessas interpretações diferenciadas e/ou errôneas do ponto de vista atual e que, na época, faziam sentido e vistas como corretas. As autoras consideram que deixando esses conflitos apagados do ensino de ciências o ato de ensinar pode passar a ser a imposição de apenas uma maneira de ler um texto, sendo que permeados por essas expectativas os alunos podem buscar somente as interpretações que interessam ao professor, pois em outra oportunidade isso será lhe solicitado em uma avaliação. Elas apontam como decorrência desse controle de significados uma possível inibição e um certo impedimento, ocasionando um desestímulo perante a leitura.

Escapando dessa perspectiva as autoras consideram que os sentidos esperados pelo professor devem ser trabalhados como um dos constituintes da produção do texto, levando mais em conta a interação do sujeito com o texto do que propriamente o dizer do autor, pois todo texto pode ser passível de interpretação. Isso tem correspondência na análise de discurso, já que esta considera ser própria da natureza da linguagem a possibilidade da multiplicidade dos sentidos.

Com o objetivo de trabalhar com uma forma mais pessoal da linguagem científica as autoras utilizaram nas atividades de leituras com os estudantes trechos de textos originais de pesquisadores de séculos passados que escreviam em primeira pessoa do singular. Esses textos antigos traziam as interpretações sobre os fenômenos, as dúvidas e incertezas de seus autores, apresentando, muitas vezes, equívocos e conflitos os quais na época eram considerados verdades. As autoras consideram que essas leituras podem possibilitar uma noção de processo, fazendo sentido quando pensadas na época em que foram escritos. Esses textos trazem a voz do cientista num outro momento da história, promovendo um certo entendimento de como a ciência é uma construção humana, portanto sujeita a erros e um produto cultural inacabado.

De acordo com as autoras essa forma de olhar a leitura envolve outros mediadores da linguagem, como a escrita, a experimentação e a discussão, trazendo outros sentidos e vozes dos alunos para um mesmo texto e possibilitando diferentes interpretações. Dessa maneira, a leitura e a escrita quando trabalhadas como mediadores culturais permitem que se possa ter a pretensão de que o estudante tome gosto pelo conhecimento, criando condições para que ele possa continuar a se informar sobre ciências mesmo fora da escola.

Boa leitura a todos!

Ricardo Henrique Almeida Dias – E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

[MLPDB]

A profissionalização dos formadores de professores – ALTET; PERRENOUD (EPEC)

ALTET, Marguerite; PERRENOUD, Phillipe; PAQUAY, Léopold e colaboradores. A profissionalização dos formadores de professores. São Paulo: Artmed Editora S.A, 2003. (Tradução do original francês “Formateurs d’enseignants: quelle professionnalisation? Copyrigth by: De Boeck & Larcier S. A., 2002, por Fátima Murad). Resenha de: VILLANI, Carlos Eduardo Porto. A profissionalização dos formadores de professores. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v.11, n.01, p.192-196, jan./ jun. 2009. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências (EPEC)

Nesse texto, apresenta-se uma resenha crítica do livro “A profissionalização dos formadores de professores” de autoria de Marguerite Altet, Philippe Perrenoud, Léopold Paquay e colaboradores. No livro estão reunidos onze trabalhos de importantes especialistas originários de três países francófonos: Bélgica, França e Suíça. Os trabalhos surgiram como resultado da articulação das pesquisas empíricas e reflexões teóricas produzidas pelos autores, sobre as questões que envolvem a profissionalização, a identidade e o papel dos sujeitos responsáveis pela formação dos professores: os formadores de professores. Muitas dessas questões guardam similaridades com a situação dos formadores de professores de outros países, o que torna esta obra uma referência internacional para a área de educação.

No livro, os trabalhos estão organizados em três partes. Na primeira, “a formação contínua” (mais conhecida no Brasil como formação continuada), estão reunidos três trabalhos que investigam a profissionalização dos formadores de professores que atuam junto a professores já habilitados que lecionam no ensino fundamental e médio em diversos níveis de escolaridade.

O primeiro trabalho da primeira parte do livro, “Formadores de professores uma identidade balbuciante” de autoria da suíça Mireille Snoeckx, aborda as questões da constituição da identidade dos formadores de professores a partir da reconstrução da história de vida desses sujeitos. Snoeckx procurou evidenciar as diferentes manifestações que o processo de profissionalização desses sujeitos assumiu no decorrer dos últimos vinte anos em Genebra, para compreender melhor a identidade do formador de professores de hoje. Seu trabalho nos permite fazer uma série de analogias com a realidade dos formadores de professores brasileiros e é um convite instigante para professores e pesquisadores realizarem investigações com abordagens históricas e estudos comparativos entre o contexto da profissionalização dos formadores de professores dos países francófonos e do Brasil.

Em “Dispositivos de formação de formadores de professores: para qual profissionalização?”, o Francês Maurice Lamy apresenta uma reflexão teórica do pronto de vista de um especialista não-universitário sobre a constituição de um dispositivo de “formação de formadores de professores”. O dispositivo é cuidadosamente analisado levando-se em consideração suas referências cronológicas, seus princípios de base e seus referenciais conceituais e metodológicos. Em suas conclusões, Lamy questiona a eficácia

do dispositivo analisado e de outros dispositivos de formação. O autor nos alerta que, embora seja indispensável haver uma mediação para a formação dos formadores de professores, sua profissionalização é mais uma questão de postura e de atitude do que matéria de dispositivos e de ferramentas de formação. Nesse sentido, o texto sugere implicitamente a necessidade de estudos que investiguem a dimensão moral presente nos processos de formação de professores, assim como sua inclusão nos cursos de formação continuada.

Finalmente, o terceiro e último texto da primeira parte do livro, “Qual (quais) profissionalidade (s) dos formadores em formação contínua? Por um perfil poliidentitário” é de autoria de Marguerite Altet, uma pesquisadora francesa professora de ciências da educação da Universidade de Nantes. Nesse texto, Altet apoiou-se em uma pesquisa realizada por questionário a 117 formadores da MAFPEN1 em 1997. A maior parte dos formadores da MAFPEN são professores experientes que dedicam um terço ou meio período de seu serviço às atividades de formação. As questões suscitadas, na situação investigada sobre a profissionalidade dos formadores de professores, justificam a escolha deste texto para o fechamento desta primeira parte do livro. A natureza do instrumento utilizado para a obtenção dos dados permitiu a Altet uma análise na qual ela mesclou os resultados quantitativos advindos dos questionários com a constituição da profissionalidade específica do formador de professor a partir do seu próprio discurso. A autora buscou identificar o tipo de formação seguida pelo professor que se tornou formador de professores para compreender o modo como se constitui sua profissionalização. Em suas conclusões, a autora delineia um quadro mais otimista quanto a uma possível constituição da profissionalização dos formadores de professores que, segundo ela, já se encontra no nível de um principio de profissionalização de formadores de professores, no sentido da evolução da profissionalidade, como testemunha o perfil poliidentitário circunscrito na pesquisa.

Na segunda parte do livro, “a formação inicial”, estão reunidos seis trabalhos que abordam as questões associadas à profissionalização dos formadores que atuam nos cursos de formação inicial de professores nos institutos universitários.

O primeiro trabalho desta segunda parte “Formadores no IUFM: um mundo heterogêneo” apóia-se na idéia de que a profissionalização dos formadores de professores deve ser vista como uma dinâmica em curso, cujo resultado é sempre incerto. Vincent Lang, um professor conferencista na Universidade de Nantes, na França, é quem assina este interessante trabalho que apresenta a evolução das profissionalidades dos formadores de professores dos Institutos Universitários de Formação Inicial (IUFM). Lang investigou a dinâmica de profissionalização dos formadores a partir do olhar que os formadores lançam sobre si mesmos, sobre seu ofício e sobre suas evoluções. Em suas conclusões, o autor agrupa seus resultados em três séries de observações que, segundo ele, servem de “conclusões provisórias”: 1 – Embora, à primeira vista, os formadores do IUFM possam parecer constituir um mundo relativamente homogêneo, este mundo é na verdade bastante heterogêneo. 2 – O grupo de formadores investigados: a) insere-se em uma dinâmica de profissionalização dos ofícios de ensino b) reivindica uma imagem de professores especialistas c) tenta profissionalizar a formação em seu conteúdo. 3 – A evolução das

profissionalidades e das identidades dos formadores provém essencialmente de políticas de formação de professores.

O segundo e o terceiro trabalhos procuram evidenciar as especificidades da formação inicial de professores na Bélgica. No trabalho intitulado “A profissionalidade dos formadores de professores na Bélgica: um contexto, um dispositivo” Jacqueline Beckers, professora da universidade de Liège, expõe o contexto de formação no qual se inserem estes dois trabalhos, em um quadro-resumo sintético que facilita seu entendimento por leitores não-belgas. O quadro evidencia a persistência de um duplo sistema de formação de professores caracterizado por duas categorias de formadores: os especialistas-matéria também conhecidos como “didatas” e os psicopedagogos. O trabalho de Beckers está dividido em duas partes. Na primeira ela procura situar o contexto belga propriamente dito. Na segunda, a autora analisa e estabelece um olhar reflexivo sobre um dispositivo de profissionalização destinado aos psicopedagogos. O dispositivo constitui um módulo de formação obrigatória de 60 horas, inserido na licenciatura em ciências da educação da Universidade de Liège, articulado com base em um período de estágio de futuros professores do “ensino secundário inferior no segundo ano de formação”. As conclusões de Beckers incidem diretamente sobre recomendações para se melhorar a compreensão e o êxito do dispositivo analisado.

Já o trabalho de Léopold Paquay “Abordagem da construção da profissionalidade dos psicopedagogos formadores de futuros professores” investiga empiricamente um importante conjunto de questões associadas à profissionalização dos psicopedagogos. Segundo Paquay a formação inicial dos psicopedagogos (a licenciatura em psicopedagogia ou a licenciatura em ciências da educação) não os preparou necessariamente para todas as tarefas requeridas. Dessa forma, o conjunto de questionamentos levantados nesta pesquisa focaliza o desenvolvimento da capacidade desses sujeitos em fazer face às exigências profissionais reais em situação, ou seja, o desenvolvimento de sua profissionalidade. Em suas conclusões o autor destaca a corroboração de resultados de pesquisas anteriores sobre o desenvolvimento profissional que ocorre ao longo da carreira: os práticos desenvolvem suas competências pela experiência e pela reflexão sobre a experiência. A organização do artigo, a metodologia de investigação, e a forma de exposição dos resultados são muito interessantes, o que torna a leitura do artigo uma importante referência sobre como desenvolver uma pesquisa e produzir um relato consistente desta pesquisa.

No quarto trabalho, “Os formadores como vetor essencial na reforma dos sistemas de formação. Perfis de atores e vias de uma formação profissionalizante” Olivier Maradan, então diretor de projeto para a Escola de Altos Estudos Pedagógicos de Friburgo, apresenta um relato sobre um projeto de constituição de um dispositivo de formação de formadores de professores. Nesse trabalho o autor se abstém de analisar o dispositivo enquanto pesquisador, mas assume seu lugar como idealizador e militante de um projeto de “reforma da profissionalização dos formadores de professores” na Suíça nos proporcionando uma visão ampla do referido processo.

O quinto trabalho apóia-se em 15 anos de pesquisa sobre a identidade e o trabalho dos formadores de professores da França. Patrice Pelpel, um professor conferencista no IUFM de Créteil, analisa alguns elementos da identidade dos formadores de campo (os conselheiros pedagógicos) e os fatores que se interpuseram como obstáculo ao seu processo de profissionalização em “Qual profissionalização para os formadores de campo?”. Em suas conclusões Palpel constata que a formação de professores desenvolve-se de uma maneira relativamente incoerente em relação às mudanças associadas à profissionalização

dos formadores observadas na França, e apresenta três fortes questionamentos que provavelmente aparecerão em futuras investigações sobre este tema que são: 1- Como formar professores profissionais com formadores amadores? 2- Como recusar o empirismo em matéria de formação e convocar os práticos em função de sua experiência? E, finalmente 3 – Como se pode anunciar episodicamente o interesse pela formação de professores sem se preocupar com as condições que a tornariam possível?

O último trabalho desta parte é de autoria de Nadine Faingold, uma professora conferencista no IUFM de Versailles. Em seu trabalho “professores-tutores: quais práticas qual identidade profissional?” a autora investiga os processos a serem privilegiados no âmbito de uma formação de formadores de professores. Os professores-tutores são todos os sujeitos que se enquadram no conjunto dos profissionais encarregados do acompanhamento individualizado da formação prática dos professores. Os papéis de tais profissionais podem ser comparados aos dos professores que, no Brasil, recebem os alunos de graduação, de licenciatura ou pedagogia, em suas classes e que são encarregados de acompanhá-los nos seus respectivos estágios. Uma diferença marcante destes formadores com relação ao contexto brasileiro é que alguns deles recebem um certificado de aptidão para a função de professores formadores, o que lhes permite manter uma prática de classe exercendo suas novas funções de formador durante um terço de seu tempo de serviço. Essa especificidade é investigada no trabalho de Faingold que identifica as dificuldades encontradas por esses professores-tutores (inexperientes) no momento de sua passagem a essa nova identidade profissional de formador de adultos, e a compara com um estudo sobre o modo de intervenção por um conselheiro pedagógico experiente. A metodologia utilizada para construir suas conclusões sobre as práticas e as identidades desses profissionais foi a da “entrevista de explicitação” que permite acessar as dimensões da vivência e da ação que não estão imediatamente presentes na consciência da pessoa.

Finalmente, a terceira e última parte do livro reúne os trabalhos de dois pesquisadores suíços que envolvem temas que são comuns às questões discutidas sobre a profissionalização dos formadores que atuam tanto na formação inicial quanto na formação continuada de professores. A terceira parte é denominada de “questões transversais” e é composta pelos trabalhos intitulados “A divisão do trabalho entre formadores de professores: desafios emergentes” do sociólogo Philippe Perrenoud e “A profissionalização: entre competência e reconhecimento social” de Guy Jobert.

Perrenoud reflete sobre os papeis que os formadores desempenham analisando a divisão do trabalho entre eles e os desafios emergentes que podem constituir um sinal de profissionalização dos formadores de professores. Em suas conclusões, o autor apresenta um paradoxo: Se por um lado os formadores se recusam a reconhecer sua identidade enquanto formadores de professores, por outro lado, atualmente, é inegável o reconhecimento da existência da sua função de formador de professores. Diante da problemática da profissionalização dos formadores de professores, o autor sugere que uma possível (e talvez única) saída fosse a aproximação do ensino e da formação. Para Perrenoud “A evolução da didática como organização de situações de aprendizagem vai nesse sentido, assim como todos os trabalhos de orientação construtivistas. Um dia talvez os professores orgulhem-se de ser antes de tudo formadores, especialistas em processos de transformação de um aprendiz. Mas hoje ainda há uma distância enorme entre essa perspectiva e a identidade predominante de professores do ensino médio e do ensino superior”.

Jobert discute os significados atribuídos ao termo profissionalização concentrando-se particularmente na sua associação como desenvolvimento da competência e como luta social. Ele utiliza as considerações realizadas para examinar três questões práticas: a) Os formadores de professores são atores importantes da profissionalização dos professores? b) Como os formadores de professores podem contribuir para o desenvolvimento das competências dos professores? c) Os formadores de professores podem esperar um avanço de seu reconhecimento profissional? Como resposta a estas questões, o autor destaca que a profissionalização dos formadores de professores depende da emergência de um grupo social, profissional de formadores, fato este que ainda se encontra distante da realidade exposta nos contextos investigados.

Além dos trabalhos agrupados nas três partes detalhadas acima, Altet, Paquay e Perrenoud apresentam um capítulo de introdução, onde são colocadas as questões centrais abordadas (1 – Existe uma profissionalidade específica dos formadores de professores? Qual é? Como é construída? e 2 – Observa-se um processo de profissionalização da função e até mesmo do ofício dos formadores dos professores? Quais são os indicadores disso?) e outro de conclusão, onde estas questões são sintetizadas em termos das idéias expostas nos 11 trabalhos do livro. Nesse capítulo de conclusão fica evidenciado a existência de uma profissionalidade dinâmica caracterizada por uma grande diversidade de tarefas e pela existência de perfis variados e heterogêneos de representações de identidade dos formadores de professores. Além disso, as competências em construção, específicas aos formadores de professores identificadas em vários artigos, e as descrições, por meio de quais procedimentos elas se constroem, são indicadores consistentes da profissionalização da função de formador de professor. Entretanto, os autores deixam claro que ainda resta um longo caminho a percorrer até a constituição de uma futura profissão de “formador de professor”.

Nota

1 Mission Académique de Formation des Personnels de l’Éducation Nationale, criada em 1982 por Alain Savary e encarregada da formação contínua de todos os professores de cada academia; vinculada em 1982 a cada IUFM – Institut Universitaire de Formation des Maîtres.

Carlos Eduardo Porto Villani – E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

[MLPDB]