100 anos da Revolução Russa / História e Cultura / 2017

É com grande satisfação que trazemos ao público o dossiê temático 100 anos da Revolução Russa. A efeméride desse importante processo histórico do século XX no ano de 2017 é uma bela oportunidade para a elaboração deste e de tantos outros dossiês, e eventos, que possam contribuir não apenas para trazer à luz um balanço dos estudos que pesquisadores profissionais vêm fazendo nos últimos anos sobre o tema, mas, também para apontar reflexões acerca da vida política contemporânea que, de alguma forma, possam remeter à tradição inaugurada no contexto da Revolução Russa. Na base deste interesse está o fato de que, ainda que o ano de 1917 continue a representar um incontornável marco para os estudos históricos da contemporaneidade, o evento sofreu uma relevante queda na atenção dos pesquisadores em geral. Esse fenômeno pode ser associado tanto à queda do bloco soviético; quanto à expressiva mudança nos horizontes historiográficos na academia, reflexo de uma cultura política também distante daquela do mundo bipolarizado.

Apesar da pouca tradição historiográfica no Brasil em tratar o tema, o que poderia ser explicado pela distância dos pesquisadores em relação aos documentos concernentes à revolução – eles mesmos colocados à disposição do público geral de maneira mais ampla apenas a partir da década de 1990 – e pela longa tradição nacionalista da historiografia em geral, propomos com este dossiê reunir trabalhos que se encontram dispersos, com a intenção de trazer ao leitor brasileiro estudos de autores brasileiros e estrangeiros que possam corresponder a esse interesse em debater a história a partir de uma reflexão de cultura política.

De maneira geral, a proposta foi a de reunir artigos que correspondessem a pesquisas finalizadas, ou em curso, que tivessem como eixo temático os impasses, os processos de constituição e perpetuação da Revolução de 1917 e da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, assim como suas representações e experiências de oposição política, econômica e bélica realizadas pelo chamado “bloco capitalista”.

De maneira geral, a vitória do partido bolchevique após o golpe de outubro de 1917 foi apresentada como a primeira revolução vitoriosa conduzida pelos trabalhadores, influenciando o movimento operário mundial nas décadas subsequentes. A imagem que ilustra a capa deste número da Revista História e Cultura remete a essa revolução vitoriosa e à criação de uma nova sociedade e de um novo homem que deveriam se desenvolver a partir dela. A forma organizativa do partido bolchevique passou a ser o modelo adotado pelos demais partidos comunistas mundo afora. Da mesma forma, as medidas adotadas para a construção da União Soviética tornou-se o programa político hegemônico do movimento operário mundial, e um dos polos do binômio societário que marcou o mundo após a segunda metade do século XX.

Essa narrativa que sustenta o processo histórico que culminou na Revolução com uma direção única e inconfundível, desprovida de contradições, por exemplo, é questionada pelo artigo do historiador português João Valente Aguiar, Do céu ao inferno da criatividade coletiva: acção autónoma, ambiguidades e a reconstrução das hierarquias na Revolução Russa de 1917-18, que abre o dossiê propondo uma interessante discussão a partir de bibliografia pouco consagrada sobre os momentos iniciais da Revolução. Trata-se de uma forma de narrar a deflagração do processo revolucionário e de sua consagração enquanto força política dominante que problematiza o engessamento do discurso, sempre contraditório, construído a partir da naturalização da construção do estado bolchevique. Aguiar aponta que a Revolução Russa de 1917-18 foi atravessada por um processo díspar e antagônico, tendo numa primeira fase massas de trabalhadores urbanos que desenvolveram formas sociais de organização coletiva inovadoras e criativas, os Comitês de Fábrica; para apenas numa segunda fase esse processo ter sido revertido brutalmente por via da passagem do controle do processo econômico de base (e protagonizado pelas bases de trabalhadores) para as mãos dos bolcheviques, neogestores estatais em formação. Este debate, nos parece, é central para a percepção das contradições e desafios inerentes à Revolução, e que redundaram na vitória e perpetuação da hetero-organização bolchevique, em detrimento da auto-organização dos trabalhadores que estava presente de maneira vital e determinante desde fevereiro de 1917.

O dossiê segue apresentando mais duas narrativas, ou formas de narrar o processo revolucionário. Uma delas, crucial na forma com que a população mundial viria a encarar a Revolução, é a narrativa da imprensa à época. Nesse sentido, Emmanuel dos Santos, no artigo Aqueles perigosos radicais socialistas: os Bolcheviques e a Revolução Russa na cobertura e nos discursos do The New York Times, reconstitui com esmero e de forma bastante instigante a narrativa do jornal norte-americano para a Revolução durante todo o ano de 1917, perfazendo os editoriais e colunas publicadas diariamente com uma importante tradução dessas fontes para a língua portuguesa. O mesmo trabalho é empreendido por Iamara Silva Andrade, que desenvolve pesquisa sobre os Ecos da Revolução Russa na imprensa brasileira.

Ainda sobre os impactos da Revolução Russa no Brasil, temos o artigo A Teoria da Revolução do P.C.B.: Octávio Brandão, a aliança de classes e o feudalismo (1922- 1935), de Danilo Mendes de Oliveira, no qual o autor apresenta a visão de um dos principais teóricos da origem do PCB sobre a revolução social no país e como o partido e a classe operária deveria atuar com outras classes sociais na condução do processo revolucionário brasileiro. O autor ainda apresenta a perspectiva histórica do autor analisado sobre a formação do Brasil à luz da teoria da História.

Na sequência, abrimos um bloco que propõe reunir artigos que orbitam o tema da revolução na cultura a partir da Revolução Russa. Retornamos a Rússia por uma escala de análise mais reduzida, e crucial para percebermos o processo de afirmação do poder estatal bolchevique, com o artigo de Thaiz Senna sobre A questão da representação feminina nos cartazes soviéticos. Senna apresenta o processo revolucionário pela afirmação de um ponto de vista de construção da chamada Nova Mulher, que deveria se identificar com uma perspectiva moderna sobre a mulher, emancipada e de alguma forma igual ao homem. A autora parte do pressuposto que as representações são sempre um ideal, e que as representações da mulher na União Soviética podem ser entendidas como ideais do que deveriam ser as mulheres, e não o que a mulher era na sociedade. Nesse sentido, busca perceber padrões e deslizes que sinalizam escolhas menos conscientes e carregadas de valores e juízos, o que permite a autora afirmar que, embora a representação buscasse criar a Nova Mulher, ao mesmo tempo os cartazes serviam como propaganda à afirmação do estado bolchevique, e eram perpassadas por uma visão ainda tradicional da mulher, além de nunca as colocar em posição política ou social central nas imagens, o que corroborava com a ausência delas em cargos centrais na burocracia estatal.

Ainda no campo cultural, e ao mesmo tempo em que nas artes plásticas, é sabido que a Revolução abriu caminho para a expansão das vanguardas artísticas, num primeiro momento, e posteriormente culminou no chamado realismo socialista. O dossiê propõe, na sequência, um breve e preciso compêndio dessas contribuições no campo do cinema, com dois artigos, Eisenstein, o cineasta da Revolução, de João Barreto Da Fonseca; e O Cinema Soviético e as representações da Revolução de outubro e da Guerra Civil, de Moisés Wagner Franciscon e Dennison de Oliveira. No campo da crítica dos movimentos culturais contemporâneos à revolução, com o artigo Leon Trotsky e a Arte na Revolução Russa, de Alex Alves Fogal. E por fim uma análise da literatura russa após a queda da URSS na década de 1990, com o texto De Chapaev Ao Vazio: Entre a Revolução Russa e seus Efeitos na Literatura Pós-Soviética, de Luciano Augusto Meyer.

Da mesma forma, o campo intelectual e científico nunca mais seria o mesmo após a Revolução Russa, tanto pelo impacto direto das reflexões filosóficas e pela produção de novas técnicas de pesquisa nas mais diversas ciências, quanto pela influência ideológica nos diversos institutos de ensino e pesquisa em todo o mundo. No campo educacional, por exemplo, foram várias as contribuições de pensadores soviéticos, como Lev Vigotsky, Moisey Pistrak, Anton Makarenko, dentre outros. Tendo esses campos de impacto na história contemporânea em mente, e seguindo essa divisão que leva em conta as narrativas sobre a Revolução como formas de debater a cultura política, é que fechamos o dossiê com o artigo de Ricardo Vidal Golovaty, A Pedagogia Socialista de Moisey Pistrak no centenário da Revolução Russa: contribuição pelo olhar da História e da Sociologia da Educação.

Nesse interessante artigo, feito a partir de uma investigação coletiva no Instituto Federal de Goiás dedicada às questões históricas envolvendo a politécnica e o centenário da revolução, Golovaty propõe uma reflexão crítica sobre a Pedagogia Socialista de Moisey Pistrak, preocupado em lançar questões para os impasses políticos da militância estudantil contemporânea. O autor faz um importante exercício de articulação entre a conjuntura política e econômica na qual Pistrak produziu as obras Fundamentos da Escola do Trabalho (1924) e Ensaios sobre a escola politécnica (1929), com o olhar sociológico, sobre as relações entre educação e estrutura social, escolarização e Revolução Russa. Esse exercício proporciona ao leitor, tal como João Valente Aguiar propõe no artigo que abre o dossiê, uma narrativa sobre a Revolução que se distancia da tradicional, ao mesmo tempo em que retoma a proposta de pedagogia socialista como cultura socialista, e não como uma mera prática naturalizada pelos agentes que renegue a difícil realidade da comunidade escolar nos dias atuais.

A todos (as), uma boa leitura!

Luiz Felipe Cezar Mundim – Professor temporário do Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada à Educação (CEPAE) da Universidade Federal de Goiás (UFG). Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS) e pela Université Paris 1 – Panthéon-Sorbonne. E-mail: [email protected]

Tales dos Santos Pinto – Doutorando e Mestre em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]


MUNDIM, Luiz Felipe Cezar; PINTO, Tales dos Santos. Apresentação. História e Cultura. Franca, v. 6, n. 1, mar., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Resistência e Dominação nas Relações Sociais Contemporâneas / Revista Mosaico / 2016

Um dossiê e uma dupla proposta

É com grande satisfação que trazemos ao público o dossiê temático Resistência e Dominação nas Relações Sociais Contemporâneas. A proposta, intencionalmente ampla, buscou contemplar em seu escopo trabalhos que de alguma maneira dialogassem com aspectos vinculados aos processos de dominar e resistir. Essas duas ações, a de dominar e a de resistir, são entendidas aqui como inerentes à nossa configuração social, fundamentalmente contraditória e conflituosa. Ao final deste trabalho, esperamos ter cumprido a missão de exibir um quadro com as novas perspectivas e ideias acerca dos temas clássicos da história social, assim como novas maneiras de se pensar a construção histórica sobre outros tantos novos temas.

Esta pretensão, por outro lado, decorre do entendimento comum de que está em curso certa renovação na historiografia no âmbito de temáticas, objetivos e técnicas de análise com a finalidade de aprofundar o conhecimento a respeito de como determinados sistemas sociais se constituem e se reproduzem em suas dinâmicas espaços-temporais. Uma nova vaga do tempo que, apesar de não mais fortemente constrangida pelos imperativos políticos das polarizações passadas, continua a demandar do historiador sensibilidade para perceber conflitos em locais antes insuspeitos, assim como altivez para alcançar aquilo que força os olhos visão adentro dos objetos. Tal situação cria um clima propenso a estudos que se esforçam em “desvelar” novos prismas que contribuam para criação e aprofundamento de olhares diferentes sobre as relações de trabalho, movimentos sociais, relações econômicas e de classe, estratégias de dominação e de resistência, constituição e disciplinamento do espaço urbano e da vida cotidiana, temas pretendidos para o dossiê, tal como elencado na sua chamada pública.

No pano de fundo destas questões, subjaz, por outro lado, uma compreensão inicialmente não confessada, mas que urge vir a público no momento onde este número temático se torna objeto de escrutínio de seus leitores. É notório como nos últimos 20 anos a produção historiográfica brasileira tem trilhado os caminhos de uma maior profissionalização, impulso este decorrente da grande pressão exercida pela expansão e pelo alargamento dos vários programas de pós-graduação em âmbito nacional. Esta situação inaugura uma série de novas tendências que, dentre as mais positivas, merece destaque o aumento do volume de publicações na área de história, elemento acompanhado de uma maior preocupação e cuidado com as técnicas empregadas para esta produção. A contrariedade inerente a qualquer processo social nos faz perceber que esta mesma situação também enseja o risco de corporativização do pensamento e das reflexões sobre a área. Este tópico merece um exemplo para sua ilustração.

Imaginemos – nos como investigadores em uma casa repleta de espelhos. Alguns maiores, outros menores, todos com alguma distorção do objeto original. Dependendo do ângulo do observador, o objeto – entendido aqui como sinônimo de universo social – só pode ser apreendido através das muitas imagens refletidas por eles. Estas imagens são parte significativa da matéria-prima da história, já que o ângulo do historiador o obriga a trabalhar com imagens que ficaram gravadas nestes espelhos. A outra parte é a experiência do investigador, que sabe que quase sempre os espelhos gravados refletem aspectos parciais do objeto, que o distorcem, muitas vezes simultaneamente em menor e maior grau.

Gerações de investigadores pensam e realizam registros sobre as múltiplas formas de ter uma compreensão mais precisa sobre o objeto gravado nos espelhos, fazendo com que o próprio ato de refletir se torne parte significativa do conjunto de investigadores daquelas imagens. Na ausência do objeto original refletido e gravado nos espelhos, alguns cedem ao impulso de se dedicar exclusivamente ao estudo das imagens gravadas nos espelhos, perdendo de vista o próprio objeto original. Outros irão além, professando abertamente a inexistência de um objeto original, tornando o processo de pensar a melhor forma de entender o objeto original em um exercício de investigar os investigadores da imagem do objeto gravado no espelho. Este não é um problema em si, pois não duvidamos tratar- -se de uma chave possível de entendimento da humanidade que pode anteceder o ato de investigar.

Apesar disso, entender o objeto, o universo social, é também parte deste conjunto de questões, e quando se abdica desta área se perde uma parte importante daquilo que justificava o investimento social em se ter investigadores profissionais de objetos. Quando se chega a este ponto é que se fecha o círculo próprio ao corporativismo, tornando necessário criar barreiras institucionais para que outros, mesmo não especializados na área, não possam investir sobre o antigo campo de investigação abandonado. Como na observação prosaica do longevo historiador Hobsbawm, apesar de só termos os nossos sentidos para apreender o mundo e de isto fazer parte da reflexão do campo, não devemos em condições normais deixar de acreditar que sim, há uma montanha lá fora e que ela existe, independentemente de nós.

Os artigos deste dossiê têm em comum esse entendimento da pesquisa histórica para a qual gostaríamos de chamar a atenção. Todos buscam, de alguma forma, investigar os objetos originais para além (ou apesar) das imagens marcadas pelo espelho da fortuna historiográfica. Em que pese toda a tradição de crítica da sociedade, e autocrítica de suas próprias técnicas e métodos, a perspectiva da história social que mobiliza as pesquisas que tratam das relações de resistência e dominação neste dossiê se direciona a pensar o passado e seus processos como exercício constante de reconstrução e reavaliação dos problemas e, portanto, da busca por uma concretude dos próprios objetos. Longe de serem artigos “empiristas”, são trabalhos que, iniciais ou bastante avançados, e mesmo aqueles resultados de pesquisas já concluídas – como é o caso do artigo Memórias da exploração: uma análise da constituição da consciência política dos trabalhadores das empresas recuperadas na Argentina – se lançam abertamente sobre as fontes a partir de percursos investigativos que têm em comum a afirmação de uma relação constante entre os sujeitos sociais (os atores, as instituições), e estruturas não menos concretas, que apontam para determinados processos históricos.

Essa perspectiva, tradicionalmente atribuída a um determinado modo de fazer história entre os chamados historiadores sociais, entretanto, não se restringe aos chamados historiadores profissionais. Nesse ponto chamamos a atenção, por exemplo, para o artigo Poéticas de resistência: a representação do Outro nas fotografias de Claudia Andujar e Miguel Rio Branco do artista visual Rafael Castanheira, encontrado entre os artigos livres deste número e que cumpre esse itinerário de investigação e autorreflexão diante dos traços do passado que portam o seu objeto, no caso as fotografias de Claudia Andujar e Miguel Rio Branco e os relatos desses fotógrafos sobre os seus trabalhos. Percorremos um exercício de busca por um contexto histórico correspondente ao objeto ao mesmo tempo em que o autor estabelece contato direto com suas fontes a partir da sua especialidade, que é a análise das fotografias com base em procedimentos próprios da análise de imagem, ambiente intelectual tão caro à própria historiografia contemporânea.

O dossiê, tendo em vista essa relação com o universo social, se apresenta formalmente a partir da variação temática fornecida pelo conjunto dos artigos, distinguidos entre pensamento social, instituições e trabalhadores. O artigo Dominação e resistência nos Estados Unidos dos anos 1960: Zbigniew Brzezinski entre duas eras escrito por Rejane Carolina Hoeveler, abre o dossiê com tema original e ao mesmo tempo crucial à compreensão do posicionamento do governo dos EUA em relação a sua população e aos demais países, especialmente os da América Latina durante a Guerra Fria. O artigo se debruça sobre a atuação do ideólogo Brzezinski, alto funcionário de Estado no período, destacando em suas ideias a expressão de uma reformulação do discurso político que visava não apenas a impulsionar a ação expansionista e hegemônica dos EUA na segunda metade do século XX, mas, também fundamentar esse mesmo discurso como ferramenta ideológica de dominação de classe. Brzezinski elaborou a ideia de uma sociedade próxima, a nova “era tecnetrônica”, sem conflitos de classe e tensões sociais, como uma sociedade harmônica e caracterizada pela despersonalização do poder econômico, ao mesmo tempo em que há maior preocupação com a “preservação dos valores humanos”, e defendeu, diante dessa sociedade, a busca contínua pela contenção dos conflitos.

Ainda entre os artigos que se voltam à história intelectual, na sequência temos o texto de André Vargas, O posicionamento político de Henrique Galvão exilado no Brasil (1961-1965), que tem como objeto a atuação de Henrique Galvão no período em que se asilou no Brasil. Antigo administrador colonial a serviço de Salazar na década de 1930, Galvão se voltou contra o governo e, após liderar um levante com o sequestro do paquete (barco) Santa Maria, se exilou no Brasil. O autor português colaborou, então, com artigos antisalazaristas para o jornal “O Estado de São Paulo” já a partir de 1961, tratando dos temas do colonialismo, da política colonial de Salazar e dos movimentos de independência dos países africanos que estavam sob o domínio português. São esses textos as principais fontes de André Vargas.

Dentre os diversos pontos de discordância com seus colegas da Oposição a Salazar – entre eles Humberto Delgado foi a personalidade de maior destaque –, Galvão continuou a afirmar o nacionalismo que marcava seus escritos da década de 1930 e, mesmo que contra Salazar, sempre defendendo a permanência do jugo colonial sobre os países que ainda não eram independentes de Portugal. Defendia, para isso, a perspectiva de uma ação civilizatória necessária frente aos povos tribais da África, não preparados ainda para a independência. O artigo expressa bem o que chamamos a atenção no início desta apresentação, em termos de uma necessária revisita a objetos originais considerados esgotados pela historiografia profissional. Estamos diante de um tema, e um objeto, há muito cristalizado pela historiografia portuguesa, que tradicionalmente sublinhou a fase opositora de Galvão ao regime de Salazar, seu trabalho pela retomada democrática de Portugal.

Em seguida temos os artigos que tratam da dominação no campo institucional. O artigo New Deal e origens do Eximbank, de Thiago Reis Marques Ribeiro , apresenta a formação do Export-Import Bank (Eximbank) durante o governo de Roosevelt nos EUA, os debates internos entre ideólogos e assessores do presidente, iniciados com a implementação da política do New Deal. O percurso entre as fontes bibliográficas e documentação, realizado de maneira muito sólida pelo autor, apontam para o crescimento da perspectiva financeira por trás das políticas de expansão e domínio econômico norte-americano, com reflexos decisivos na formação de instituições centrais no capitalismo brasileiro, como o financiamento da Companhia Siderúrgica Nacional CSN e da Companhia Vale do Rio Doce. O tema das relações econômicas entre Brasil e Estados Unidos, embora muito citado, tanto pela historiografia, quanto por uma bibliografia política e militante, é pouquíssimo estudado, sendo quase sempre tratado de forma apriorística. Trata-se de um objeto de pesquisa inédito, o que destaca sua relevância para o dossiê.

O artigo A autonomia dos trabalhadores russos e os bolcheviques: 1917 – 1921, de Danilo Mendes de Oliveira, faz a passagem para o tema da resistência dos trabalhadores, mas, ainda tratando os aspectos institucionais da relação dominação-resistência. O assunto tratado é um clássico da historiografia mundial, a Revolução Russa, e é perseguido com coragem pelo autor, que se debruça sobre uma questão específica e controversa na tradicional historiografia marxista, que diz respeito aos primeiros momentos da revolução e o problema da autonomia dos trabalhadores e sua relação com os bolcheviques entre 1917 e 1921. O autor, mesmo que através apenas das fontes bibliográficas, elabora um itinerário crítico a respeito dos comitês de fábrica, da Oposição Operária e da Revolta de Kronstadt, problematizando como a questão da autonomia foi tratada pelo Partido Bolchevique. Notamos no artigo como os bolcheviques, por meio da repressão estatal e da implantação da gestão nas fábricas, impediram que a ideia de controle operário direto evoluísse. Esta é uma questão que nunca perde a sua urgência e atualidade para o campo da política e da resistência dos trabalhadores, que corresponde ao histórico distanciamento entre vanguardas políticas e base de trabalhadores durante qualquer processo de contenda política. Notamos aí o deslocamento do campo da resistência para o da dominação, amparado estruturalmente pela institucionalidade que a Revolução rapidamente proporcionou.

Na sequência, Matheus Germano nos apresenta os resultados preliminares sobre as estratégias cotidianas de resistência dos trabalhadores na década de 1940 com o texto Para além de jagunços e coronéis: trabalho e cotidiano em Catalão-Go de 1940. A abordagem dialoga com as proposições metodológicas de variação de escala e investigação da história regional e “dos de baixo”, formuladas na história social durante a segunda metade do século XX como estratégias de pesquisa que visassem restabelecer o diálogo entre o sujeito e a estrutura, entre o sincrônico e o diacrônico, perdidos pelo forte investimento na ideia de totalidade do estruturalismo. Aqui teríamos elemento de uma história profissionalizada, que a princípio poderia afastar os leitores não introduzidos, porém, a apresentação desta e de tantas outras pesquisas que se preocupam em ter esses aspectos em mente, invariavelmente nos fornece quadros históricos marcados por releituras e reinterpretações de grandes temas, por exemplo o trabalhismo na Era Vargas que é o caso do artigo em questão, que só poderiam ser proporcionadas a partir do trabalho com a diversificação das fontes.

O uso das fontes judiciais e relatórios de polícia utilizados por Matheus Germano proporciona essa construção, sem deixar de lado os elementos processuais de um contexto maior, de reelaboração das estratégias de dominação do patronato diante a legislação trabalhista, que por sua vez também se torna ferramenta cotidiana – ainda que fragmentada no caso abordado pelo autor – de resistência de trabalhadores das charqueadas de Catalão-GO. Ficamos na expectativa de conferir o resultado final do pesquisador, que pretende avançar com as leituras consideradas clássicas sobre o tema em Goiás, estabelecidas por autores como Luis Palacín Gomes, Nasr Chaul e Barsanulfo Gomide Borges.

O artigo Notas sobre nacionalização, autonomia e controle operário em Portugal (1974-1975), de Tales dos Santos Pinto, também se insere no campo de investigação a respeito da resistência dos trabalhadores, mas, em um sentido metodológico e temático diverso do apresentado por Matheus Germano. O artigo, também resultado preliminar da pesquisa do autor, apresenta algumas experiências de organização dos trabalhadores na Revolução Portuguesa (1974-1975) em grandes empresas, observando o processo de nacionalização e de controle operário da produção, relacionando com a autonomia dos trabalhadores mobilizados. O autor parte da análise de entrevistas presentes no jornal Combate, importante veículo comunicacional da militância durante a revolução, além de estabelecer o diálogo com a bibliografia pertinente. Da mesma forma que o texto de Danilo Mendes de Oliveira sobre a relação entre os trabalhadores russos e os bolcheviques, o texto se volta às experiências autônomas de ocupação das fábricas próprias do dinamismo inicial do processo revolucionário, mas que são minadas e impossibilitadas pelo Estado que se forma a partir das vanguardas políticas da Revolução. Trata-se de um objeto inédito, embora a Revolução já tenha sido extensamente estudada.

O último artigo do dossiê, Memórias da exploração: uma análise da constituição da consciência política dos trabalhadores das empresas recuperadas na Argentina (anos 1990 e 2000), de Renake Bertholdo David das Neves, tem a mesma preocupação apresentada por Tales dos Santos Pinto: como se formam e o porquê de falharem as experiências de resistência do trabalhador baseadas em auto- -organização e autogestão do processo produtivo. Ainda que partam de processos históricos distintos, essa reflexão marca a luta dos movimentos sociais internamente, e se colocam como assunto para debate incontornável, tanto no âmbito acadêmico quanto no mundo militante. Nesse artigo sobre as empresas recuperadas, a autora toma por objeto o caso da Argentina nos anos 1990, onde houve mais ocorrências desse tipo de experiência na América Latina. Expressões de uma consciência de classe em pleno desenvolvimento, segundo a autora, a recuperação das empresas se apresentou como alternativas ao desemprego e avanço das políticas de flexibilização das leis trabalhistas.

São esses esforços de investigação e interpretação dos autores com seus objetos, sempre buscando refletir sobre os mecanismos de dominação e resistência, que justificam a segunda proposta deste dossiê. Pensar os dias atuais – marcados pela constante ameaça às conquistas da resistência dos trabalhadores no mundo contemporâneo, bem como pela eficiente forma de se reformular a dominação – a partir da compreensão da nossa realidade como resultado histórico de fenômenos políticos construídos a partir de relações sociais concretas e que, portanto, são passíveis de serem investigadas e questionadas.

Ao final, apresentamos ainda uma breve e instigante entrevista com Benito Bisso Schmidt, professor do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS na linha de pesquisa que leva o mesmo nome que este dossiê, “Relações sociais de dominação e resistência”, e ex-presidente da ANPUH nacional. São tratadas na entrevista questões acerca da profissionalização do trabalho do historiador; questões sobre o lugar da biografia enquanto método na história; um pequeno histórico do Grupo de Trabalho “Mundos do Trabalho”; e tantos outros assuntos, fechando o presente dossiê com a perspectiva de que o tema escolhido enseje um debate estimulante e necessário tanto aos profissionais da história quanto ao público em geral.

Luiz Felipe Cezar Mundim – Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pela Université Paris 1 – Panthéon-Sorbonne

Rodrigo Oliveira de Araújo – Doutorando em História pela Universidade Federal Fluminense

Organizadores


MUNDIM, Luiz Felipe Cezar; ARAÚJO, Rodrigo Oliveira de. Apresentação. Revista Mosaico. Goiânia, v.9, n.1, jan. / jun., 2016. Acessar publicação original [DR]

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