100 anos da Revolução Russa / História e Cultura / 2017

É com grande satisfação que trazemos ao público o dossiê temático 100 anos da Revolução Russa. A efeméride desse importante processo histórico do século XX no ano de 2017 é uma bela oportunidade para a elaboração deste e de tantos outros dossiês, e eventos, que possam contribuir não apenas para trazer à luz um balanço dos estudos que pesquisadores profissionais vêm fazendo nos últimos anos sobre o tema, mas, também para apontar reflexões acerca da vida política contemporânea que, de alguma forma, possam remeter à tradição inaugurada no contexto da Revolução Russa. Na base deste interesse está o fato de que, ainda que o ano de 1917 continue a representar um incontornável marco para os estudos históricos da contemporaneidade, o evento sofreu uma relevante queda na atenção dos pesquisadores em geral. Esse fenômeno pode ser associado tanto à queda do bloco soviético; quanto à expressiva mudança nos horizontes historiográficos na academia, reflexo de uma cultura política também distante daquela do mundo bipolarizado.

Apesar da pouca tradição historiográfica no Brasil em tratar o tema, o que poderia ser explicado pela distância dos pesquisadores em relação aos documentos concernentes à revolução – eles mesmos colocados à disposição do público geral de maneira mais ampla apenas a partir da década de 1990 – e pela longa tradição nacionalista da historiografia em geral, propomos com este dossiê reunir trabalhos que se encontram dispersos, com a intenção de trazer ao leitor brasileiro estudos de autores brasileiros e estrangeiros que possam corresponder a esse interesse em debater a história a partir de uma reflexão de cultura política.

De maneira geral, a proposta foi a de reunir artigos que correspondessem a pesquisas finalizadas, ou em curso, que tivessem como eixo temático os impasses, os processos de constituição e perpetuação da Revolução de 1917 e da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, assim como suas representações e experiências de oposição política, econômica e bélica realizadas pelo chamado “bloco capitalista”.

De maneira geral, a vitória do partido bolchevique após o golpe de outubro de 1917 foi apresentada como a primeira revolução vitoriosa conduzida pelos trabalhadores, influenciando o movimento operário mundial nas décadas subsequentes. A imagem que ilustra a capa deste número da Revista História e Cultura remete a essa revolução vitoriosa e à criação de uma nova sociedade e de um novo homem que deveriam se desenvolver a partir dela. A forma organizativa do partido bolchevique passou a ser o modelo adotado pelos demais partidos comunistas mundo afora. Da mesma forma, as medidas adotadas para a construção da União Soviética tornou-se o programa político hegemônico do movimento operário mundial, e um dos polos do binômio societário que marcou o mundo após a segunda metade do século XX.

Essa narrativa que sustenta o processo histórico que culminou na Revolução com uma direção única e inconfundível, desprovida de contradições, por exemplo, é questionada pelo artigo do historiador português João Valente Aguiar, Do céu ao inferno da criatividade coletiva: acção autónoma, ambiguidades e a reconstrução das hierarquias na Revolução Russa de 1917-18, que abre o dossiê propondo uma interessante discussão a partir de bibliografia pouco consagrada sobre os momentos iniciais da Revolução. Trata-se de uma forma de narrar a deflagração do processo revolucionário e de sua consagração enquanto força política dominante que problematiza o engessamento do discurso, sempre contraditório, construído a partir da naturalização da construção do estado bolchevique. Aguiar aponta que a Revolução Russa de 1917-18 foi atravessada por um processo díspar e antagônico, tendo numa primeira fase massas de trabalhadores urbanos que desenvolveram formas sociais de organização coletiva inovadoras e criativas, os Comitês de Fábrica; para apenas numa segunda fase esse processo ter sido revertido brutalmente por via da passagem do controle do processo econômico de base (e protagonizado pelas bases de trabalhadores) para as mãos dos bolcheviques, neogestores estatais em formação. Este debate, nos parece, é central para a percepção das contradições e desafios inerentes à Revolução, e que redundaram na vitória e perpetuação da hetero-organização bolchevique, em detrimento da auto-organização dos trabalhadores que estava presente de maneira vital e determinante desde fevereiro de 1917.

O dossiê segue apresentando mais duas narrativas, ou formas de narrar o processo revolucionário. Uma delas, crucial na forma com que a população mundial viria a encarar a Revolução, é a narrativa da imprensa à época. Nesse sentido, Emmanuel dos Santos, no artigo Aqueles perigosos radicais socialistas: os Bolcheviques e a Revolução Russa na cobertura e nos discursos do The New York Times, reconstitui com esmero e de forma bastante instigante a narrativa do jornal norte-americano para a Revolução durante todo o ano de 1917, perfazendo os editoriais e colunas publicadas diariamente com uma importante tradução dessas fontes para a língua portuguesa. O mesmo trabalho é empreendido por Iamara Silva Andrade, que desenvolve pesquisa sobre os Ecos da Revolução Russa na imprensa brasileira.

Ainda sobre os impactos da Revolução Russa no Brasil, temos o artigo A Teoria da Revolução do P.C.B.: Octávio Brandão, a aliança de classes e o feudalismo (1922- 1935), de Danilo Mendes de Oliveira, no qual o autor apresenta a visão de um dos principais teóricos da origem do PCB sobre a revolução social no país e como o partido e a classe operária deveria atuar com outras classes sociais na condução do processo revolucionário brasileiro. O autor ainda apresenta a perspectiva histórica do autor analisado sobre a formação do Brasil à luz da teoria da História.

Na sequência, abrimos um bloco que propõe reunir artigos que orbitam o tema da revolução na cultura a partir da Revolução Russa. Retornamos a Rússia por uma escala de análise mais reduzida, e crucial para percebermos o processo de afirmação do poder estatal bolchevique, com o artigo de Thaiz Senna sobre A questão da representação feminina nos cartazes soviéticos. Senna apresenta o processo revolucionário pela afirmação de um ponto de vista de construção da chamada Nova Mulher, que deveria se identificar com uma perspectiva moderna sobre a mulher, emancipada e de alguma forma igual ao homem. A autora parte do pressuposto que as representações são sempre um ideal, e que as representações da mulher na União Soviética podem ser entendidas como ideais do que deveriam ser as mulheres, e não o que a mulher era na sociedade. Nesse sentido, busca perceber padrões e deslizes que sinalizam escolhas menos conscientes e carregadas de valores e juízos, o que permite a autora afirmar que, embora a representação buscasse criar a Nova Mulher, ao mesmo tempo os cartazes serviam como propaganda à afirmação do estado bolchevique, e eram perpassadas por uma visão ainda tradicional da mulher, além de nunca as colocar em posição política ou social central nas imagens, o que corroborava com a ausência delas em cargos centrais na burocracia estatal.

Ainda no campo cultural, e ao mesmo tempo em que nas artes plásticas, é sabido que a Revolução abriu caminho para a expansão das vanguardas artísticas, num primeiro momento, e posteriormente culminou no chamado realismo socialista. O dossiê propõe, na sequência, um breve e preciso compêndio dessas contribuições no campo do cinema, com dois artigos, Eisenstein, o cineasta da Revolução, de João Barreto Da Fonseca; e O Cinema Soviético e as representações da Revolução de outubro e da Guerra Civil, de Moisés Wagner Franciscon e Dennison de Oliveira. No campo da crítica dos movimentos culturais contemporâneos à revolução, com o artigo Leon Trotsky e a Arte na Revolução Russa, de Alex Alves Fogal. E por fim uma análise da literatura russa após a queda da URSS na década de 1990, com o texto De Chapaev Ao Vazio: Entre a Revolução Russa e seus Efeitos na Literatura Pós-Soviética, de Luciano Augusto Meyer.

Da mesma forma, o campo intelectual e científico nunca mais seria o mesmo após a Revolução Russa, tanto pelo impacto direto das reflexões filosóficas e pela produção de novas técnicas de pesquisa nas mais diversas ciências, quanto pela influência ideológica nos diversos institutos de ensino e pesquisa em todo o mundo. No campo educacional, por exemplo, foram várias as contribuições de pensadores soviéticos, como Lev Vigotsky, Moisey Pistrak, Anton Makarenko, dentre outros. Tendo esses campos de impacto na história contemporânea em mente, e seguindo essa divisão que leva em conta as narrativas sobre a Revolução como formas de debater a cultura política, é que fechamos o dossiê com o artigo de Ricardo Vidal Golovaty, A Pedagogia Socialista de Moisey Pistrak no centenário da Revolução Russa: contribuição pelo olhar da História e da Sociologia da Educação.

Nesse interessante artigo, feito a partir de uma investigação coletiva no Instituto Federal de Goiás dedicada às questões históricas envolvendo a politécnica e o centenário da revolução, Golovaty propõe uma reflexão crítica sobre a Pedagogia Socialista de Moisey Pistrak, preocupado em lançar questões para os impasses políticos da militância estudantil contemporânea. O autor faz um importante exercício de articulação entre a conjuntura política e econômica na qual Pistrak produziu as obras Fundamentos da Escola do Trabalho (1924) e Ensaios sobre a escola politécnica (1929), com o olhar sociológico, sobre as relações entre educação e estrutura social, escolarização e Revolução Russa. Esse exercício proporciona ao leitor, tal como João Valente Aguiar propõe no artigo que abre o dossiê, uma narrativa sobre a Revolução que se distancia da tradicional, ao mesmo tempo em que retoma a proposta de pedagogia socialista como cultura socialista, e não como uma mera prática naturalizada pelos agentes que renegue a difícil realidade da comunidade escolar nos dias atuais.

A todos (as), uma boa leitura!

Luiz Felipe Cezar Mundim – Professor temporário do Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada à Educação (CEPAE) da Universidade Federal de Goiás (UFG). Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS) e pela Université Paris 1 – Panthéon-Sorbonne. E-mail: [email protected]

Tales dos Santos Pinto – Doutorando e Mestre em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]


MUNDIM, Luiz Felipe Cezar; PINTO, Tales dos Santos. Apresentação. História e Cultura. Franca, v. 6, n. 1, mar., 2017. Acessar publicação original [DR]

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