Desconstruindo a história – MUNSLOW (HH)

MUNSLOW, Alun. Desconstruindo a história. Petrópolis: Vozes, 2009, 271 p. Resenha de: CASTELO, Sander Cruz. O sublime, a narrativa e a história The sublime, the narrative and history. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 6, p.213-217 março 2011.

Alun Munslow, professor visitante de história da Universidade de Chichester (Inglaterra), é coeditor da Rethinking History: The Journal of Theory and Practice, publicação acadêmica vanguardista criada, em 1997, para expandir os limites de uma disciplina engessada em pressupostos modernistas por meio da divulgação de produções historiográficas experimentais e do debate teórico do assunto. Não surpreende, logo, que a obra analisada destoe das traduções que sumariam as teorias contemporâneas da história, correntemente, lançadas no Brasil.

Como? Basicamente, de duas formas interligadas: salientando a historiografia pós-moderna, pouco divulgada no país, excetuando-se a produção foucaultiana, e privilegiando a narrativa dentre os elementos envolvidos na produção historiográfica. Outra singularidade da obra, derivada das duas características anteriores, advém da publicização, no Brasil, da historiografia anglo-americana, cuja linhagem, originada na filosofia analítica, é, comumente, desconsiderada em prol daquela esteada na antropologia, de matriz francesa.

Por isso, a linguagem norteia as proposições do autor a favor da revisão da forma como os historiadores abordam o passado. Esses, grosso modo, resistiriam, não obstante alguns avanços (novo empirismo, Annales, etc), a abandonar uma ingenuidade epistemológica fundamental: a ideia de que a realidade do passado pode ser revelada. Essa crença na objetividade do saber derivou do método científico, erigido, na modernidade, para abordar a natureza e estendido ao mundo social com o Iluminismo, período em que o ideal civilizatório adquiriu matizes teleológicos. Compreende-se, logo, que a história estabeleça-se como disciplina, no século XIX, reproduzindo dualismos como sujeito-objeto, fato-ficção e progresso-atraso.

Para combater esse legado, elegendo a forma, e não o conteúdo, como âncora da história, Munslow mapeia as forças em negociação e em confronto no campo historiográfico. A mais tradicional ou a mais infensa às mudanças é devota do “reconstrucionismo”. Filho do historismo rankeano, para o “reconstrucionismo”, resumidamente, o passado pode ser desvelado mediante a reconstituição das intenções e das ações dos agentes históricos na sua sucessão no tempo. O “construcionismo”, por sua vez, reconhece, mais do que o anterior, o caráter apriorístico do conhecimento, fazendo uso, em decorrência, de modelos de análise provindos de disciplinas afins, como a sociologia, a economia e a antropologia. Sem descurar, contudo, dos vestígios históricos, por meio dos quais se escolhem e se testam as teorias utilizadas, passíveis, consequentemente, de abandono ou de reformulação. O “desconstrucionismo”, enfim, renega a possibilidade de acessar o pretérito, dada a impropriedade da teoria da correspondência ou da referencialidade. Sendo a relação entre significante, significado e signo, fundamentalmente, social e cultural – ou seja, a um tempo arbitrária e convencionada –, a “realidade do passado” (MUNSLOW, 2009, p. 12) apresentando-se, pois, mais como um “relato escrito” do que “como ele realmente foi, resta à história “não o estudo das mudanças através do tempo per se, mas o estudo das informações produzidas pelos historiadores ao se lançarem nesta tarefa”(Idem, Ibidem).

O autor verticaliza sua abordagem dirigindo quatro questionamentos a essas três correntes da historiografia contemporânea. O fato de que o faça aglutinando, nos mesmos capítulos, a história “reconstrucionista” e a “construcionista” demonstra, de imediato, que, para ele, elas mais se aproximam do que se distanciam. Somando-se a isso a existência de dois capítulos expondo as críticas mútuas entre elas e a linha “desconstrucionista” e de outros dois dedicados a Michel Foucault e a Hayden White, autores baluartes da história pós-moderna, evidencia-se a intenção de firmar e ampliar as posições conquistadas pelo “desconstrucionismo” na historiografia. Aliás, suas próprias respostas às questões explicitadas, no último capítulo do livro, arrimam-se em uma “estratégica combinação da concepção de infraestrutura tropológica/ epistêmica” do filósofo francês com o “modelo formalístico de imaginação histórica” do historiador estadunidense (Ibidem, p. 218).

A primeira indagação, de cunho epistemológico, versa sobre a suficiência do empirismo para legitimar o estatuto autônomo da história. A resposta de Munslow é negativa. A disciplina é, na verdade, uma variante da literatura que almeja produzir conhecimento. Logo, a epistemologia da história dista do indutivismo, na medida em que reconhece a existência do efeito de realidade e não a noção fantasiosa da verdade histórica; nega que possamos descobrir a intencionalidade do autor; aceita a cadeia de significação interpretativa e não o significado original recuperável; recusa as seduções de um referente fácil; debate a objetividade do historiador em seu trabalho com a estrutura figurativa da narrativa; aceita a natureza sublime do passado imaginada como o sentido do “outro” e admite que a relação entre forma e conteúdo é mais complexa do que como é frequentemente concebida nas duas tendências similares principais [construcionismo e reconstrucionismo] (Ibidem, p. 221).

A segunda trata do caráter e da função da evidência ou das fontes primárias. Inicialmente, Munslow afirma que as evidências são recontextualizadas a cada época: “[…] por exemplo, a evidência do Império se tornou, para a próxima geração de historiadores, a evidência para uma nova interpretação pós-colonial (Ibidem, p. 224). Em seguida, afirma não crer que a proximidade da evidência equivalha à verdade: Não discuto que a correspondência da evidência com a realidade funciona de forma razoavelmente satisfatória no nível básico da sentença única que tem como suporte a evidência (o presidente dos Estados Unidos, Abraham Lincoln, foi baleado em 14 de abril e morreu no início da manhã de 15 de abril de 1865). Porém, tal correspondência não existe quando passamos para o nível da interpretação através da imposição de um enquadramento ou um argumento (Abraham Lincoln foi assassinado antes que pudesse colocar seus planos de reconstrução em ação). É preciso repetir: a narrativa histórica não é o passado, é a história” (Ibidem, p.224).

A terceira, com escopo na teoria, diz respeito ao imposicionalismo [sic] do historiador, especificamente, com o uso de teorias sociais como suportes explicativos. Apoiado em Vico e Foucault, o autor receita ao historiador uma conceitualização distinta do dedutivismo. Este, formulado para estudar a natureza, é insuficiente para a análise da sociedade ao longo do tempo, o que exige atenção ao discurso (episteme). A história depende mais da retórica do que da lógica para gerar a ilusão de transparência do passado: A maneira complexa como usamos a linguagem e a linguagem nos usa para mediar a realidade do passado sugere que nenhuma quantidade de sofisticada verificação hipotética da ciência social pode evitar a relação interativa entre o historiador, a palavra e o mundo. A narrativa não é simplesmente uma representação do mundo da realidade do passado, uma reprodução das coisas e das relações que subsistem entre elas. Embora a linguagem seja usada pelos principais historiadores como se ela tivesse a capacidade de reprodução, ela é principalmente um meio inovador que tem o poder de inventar e criar nosso conhecimento do passado (Ibidem, p. 230).

A quarta, por fim, diz respeito à significação da narrativa na explanação histórica. Apresentando o pensamento de White, Munslow assevera que a narrativa é o dispositivo por excelência da história, funcionando primeiro no plano da linguagem e da consciência, através da articulação de quatro níveis de explanação, seguidamente, implicados: tropo, enquadramento, argumento e ideologia. O tropo (metáfora, metonímia, sinédoque, ironia) refere-se à prefiguração mental do objeto de estudo, ou seja, sua base poética. O enquadramento (romântico, trágico, cômico e satírico) diz respeito ao poder do protagonista da trama em relação ao meio, gerando o efeito estético. O argumento (formista, mecanicista, organicista e contextualista) consiste na inter-relação de eventos, de personagens e de ações, produzindo o efeito cognitivo. A ideologia (anarquismo, radicalismo, conservadorismo e liberalismo), por fim, desvelando as opções políticas do historiador, homem situado no presente, atesta os efeitos éticos da disciplina.[1] Pode-se, logo, afirmar, resumidamente, que a função do historiador é […] oferecer uma estória que seja possível de ser acompanhada. Tal possibilidade de ser acompanhada emerge da coerência e da plausibilidade da estória que o historiador conta, à luz da evidência disponível. A realidade do passado não existe em um mármore bruto, necessitando apenas da habilidade do historiador de desbastá-lo para revelar o objeto existente dentro dele (Ibidem, p. 230).

Para finalizar, duas questões, ainda referentes à narrativa, permanecem não resolvidas pelo autor (e os desconstrutivistas em geral). Haveria uma narrativa pré-existente àquela inventada pelo historiador, ou melhor, os historiadores recontariam uma história já explanada pelos personagens históricos? Finalmente, é suficiente saber que a história é um empreendimento que envolve, ao mesmo tempo, estética, lógica e ética; que a “vontade de saber” (lógica) deriva da “vontade de poder” (ética), como disse Foucault; que White, mesmo, aventou a possibilidade de situar a ideologia como primeiro nível trópico; para afirmar, como o faz Munslow, que se “a estética precede à história, então a ética precede à estética” (Ibidem, p. 212).

Acredita-se que é necessário prudência aqui. O desejo de distinguir o bem do mal é, certamente, o motor do conhecimento (BLOOM 1989, pp. 49-50).  Mas a vontade imperativa de saber não resulta, por vezes, de uma vontade de morrer, como alertava Nietzsche? A árvore do conhecimento não abriga uma serpente? Babel não atesta a benignidade de um pouco de relativismo, impedindo que bem e mal se irmanem em razão do dogmatismo? Por esse prisma, a história não podia servir à vida prezando, igualmente, o esquecimento, o incognoscível, a beleza, o mistério, o sublime, como o próprio autor intui, em algumas passagens da obra? Referência bibliográfica BLOOM, Allan David. O declínio da cultura ocidental. 2 ed. São Paulo: Best Seller, 1989.

1 Esses quatro tropos corresponderiam a quatro epistemes que se sucederam na modernidade, identificadas por Foucault: a da Renascença (até o final do século XVI), baseada na semelhança; a Clássica (séculos XVII e XVIII), ancorada na diferença; a Moderna ou Antropológica (final do XVIIIinício do XX), amparada no homem; e a Pós-Moderna (em andamento), fundada nas transformações da linguagem.

Sander Cruz Castelo – Professor assistente Universidade Estadual do Ceará [email protected] Rua Marechal Deodoro, 1395/322 B 60020-061 – Fortaleza – CE Brasil.

Desconstruindo a história – MUNSLOW (HH)

MUNSLOW, Alun. Desconstruindo a história. Tradução de Renata Gaspar Nascimento. Petrópolis: Vozes, 2009, 272 p. Resenha de MELLO, Ricardo Marques. Um desconstrucionista desconstruindo a história. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 05, p.232-238, setembro 2010.

Alun Munslow é professor visitante de teoria da história da universidade inglesa de Chinchester. É também editor de Rethinking History: The Journal of Theory and Practice, um dos principais periódicos internacionais dedicado a publicar textos inseridos nas discussões a respeito das condições cognitivas do saber histórico a partir de perspectivas comumente nomeadas pós-modernas, que, em certo sentido, são desdobramentos de considerações nietzschianas, de insights da linguística saussuriana e de discussões oriundas da filosofia da linguagem.

Desconstruindo a história, cuja primeira edição data de 1997, insere-se nesse debate. Especificamente, Munslow questiona-se sobre as possibilidades de recuperação e representação precisa do conteúdo do passado por meio da narrativa. Ele é adepto da tese de que a linguagem, diferentemente do que acreditam muitos historiadores, não é um meio transparente para descrever e explicar a realidade pretérita, mas um fator que impõe ao passado um dado formato que não lhe é próprio, criando, destarte, um significado para os indivíduos do presente.

O livro de Munslow, porém, não se reduz à defesa de uma perspectiva teórica sobre o conhecimento historiográfico. Nele, seu autor identifica e descreve três abordagens, coexistentes contemporaneamente, sobre o saber historiográfico, o reconstrucionismo, o construcionismo e o desconstrucionismo, de modo que o leitor possa situar-se a respeito dos principais argumentos usados pelos praticantes dessas três vertentes.

Na Introdução, Munslow apresenta as quatro questões que nortearam os sete capítulos e a conclusão do livro: 1) O empirismo pode constituir-se como uma epistemologia? 2) Qual o caráter e a função da evidência? 3) Qual o papel do historiador e como ele usa as teorias sociais para compreender e explicar a história? 4) Qual a importância da forma narrativa para a explanação histórica? (MUNSLOW 2009, p. 12). Toda a estrutura de Desconstruindo a história gira em torno de uma estratégia: colocar essas quatro questões a cada uma das três abordagens. Em outros termos, Munslow pretende expor como as perspectivas reconstrucionista, construcionista e desconstrucionista responderiam, cada uma a sua maneira, a esses quatro questionamentos.

No capítulo um, o autor apenas apresenta cada uma das três abordagens de modo breve. Além disso, identifica o estruturalismo, o pós-estruturalismo e o que denomina de novo historicismo (estadunidense) como origens das atuais revisões sobre o estatuto da história como disciplina.

No capítulo dois, Munslow caracteriza as abordagens reconstrucionista e construcionista da história, tendo em conta os quatro pontos supracitados que nortearam seu trabalho (epistemologia, evidência, teorias sociais, narrativa).

Epistemicamente, ambas compartilham a crença geral na capacidade do historiador em conhecer o que realmente ocorreu no passado por meio da análise do material empírico. Ademais, seus praticantes acreditam que há uma separação nítida entre fato e valor, história e ficção, sujeito e objeto, e de que a verdade, fim último de um trabalho historiográfico, não é uma perspectiva (MUNSLOW 2009, p. 57). O mecanismo que assegura a verdade pretérita é a referenciação. Crê-se, portanto, na relação de correspondência entre o que ocorreu no passado e o que é descrito sobre ele, entre os significados de então e os apresentados pelos historiadores do presente. A evidência, dessa perspectiva, assume o caráter de fonte comprobatória. Para os reconstrucionistas, essa característica da evidência emerge por um processo indutivo: é a análise do material empírico que permite as descobertas sobre o acontecimento pesquisado. Para os construcionistas, porém, a verdade pretérita não surge apenas das evidências, mas pode ser combinada com teorias sociais em um processo, também, dedutivo. O uso de teorias sociais na compreensão do passado pelos construcionistas é justamente o que os diferenciam dos reconstrucionistas, avessos a qualquer tipo de apreensão a priori. Os reconstrucionistas conservadores (termo do autor) criticam o uso de teorias, pois elas dizem respeito a situações universais de comportamento e, por isso, são impróprias para entender realidades e agentes históricos singulares. Os construcionistas, por sua vez, contra-argumentam dizendo que seus modelos são “conceitos” que emergem das evidências como um auxílio para a própria compreensão da evidência. Além disso, toda teoria poderia ser colocada à prova pelo material empírico. Na questão da narrativa, em linhas gerais, os reconstrucionistas conservadores sustentam que ela funciona apenas como um veículo para conclusões inferidas a partir das fontes. Os reconstrucionistas moderados e os construcionistas sustentam que a narrativa constrói significado, mas permanece como uma dimensão secundária (MUNSLOW 2009, p. 79- 80).

No capítulo três, Munslow caracteriza a abordagem da qual é adepto, o desconstrucionismo. E o faz marcando as diferenças entre este, o reconstrucionismo e o construcionismo. No quesito epistêmico, o desconstrucionismo nega o pressuposto teórico que atribui à historiografia condições de conhecer o passado como realmente aconteceu, seja pela análise empírica, seja por meio do uso de teorias sociais. Entre os resquícios pretéritos e sua representação narrativa no presente, existe uma série de elementos que se interpõem, como a ideologia, a linguagem, as preferências pessoais e as discussões historiográficas, impedindo, assim, de haver imparcialidade e objetividade. Para os desconstrucionistas, os significados do passado são antes criações circunstanciadas que descobertas reveladas pelos historiadores. A evidência a partir dessa perspectiva, não reflete e/ou representa o passado, mas serve ao historiador na composição de sua narrativa. Munslow, contudo, ressalta que a abordagem desconstrucionista não é antirreferencialista, mas ela nos adverte sobre as fronteiras e o papel que a evidência exerce no trabalho do historiador: a evidência não emite os significados do passado, por um lado, nem permite que qualquer coisa seja escrita sobre ele, restringindo, destarte, a poiesis historiográfica. Em outros termos, nem primazia nem insignificância.

Em relação às teorias sociais, ele limita-se a mencionar que a discussão a respeito do uso ou não de teorias como um recurso é irrelevante. No aspecto relativo à narrativa, porém, o autor de Desconstruindo a história despende uma longa descrição, uma vez que as principais diferenças entre as três abordagens são oriundas justamente da forma como cada uma compreende a narrativa.

Com base em Roland Barthes, Michel Foucault, Stephen Bann, Frank Ankersmit, Paul Ricoeur e, sobretudo, Hayden White, Munslow afirma que no desconstrucionismo a narrativa historiográfica não é apenas um meio de apresentação dos resultados de pesquisa. O historiador, ao reunir, selecionar e usar informações pretéritas na elaboração de um texto coerente, vale-se da imaginação figurativa, impondo um enredo ao passado a fim de criar e constituir um significado ao presente. Não há, portanto, uma relação precisa de correspondência entre o passado e sua representação narrativa.

Baseado nos argumentos dos reconstrucionistas e dos construcionistas, Munslow ocupa-se, no quarto capítulo, em assinalar o que há de errado com a história desconstrucionista. Em linhas gerais, o grupo dos contendores radicais, representados por Geoffrey Elton, Michael Stanford e Arthur Marwick, reitera os pressupostos mais conservadores do reconstrucionismo. O grupo dos denominados reconstrucionistas moderados ou realistas-práticos, baseados nas obras de Edward Carr e Robin G. Collingwood, e representados, principalmente, por Joyce Appleby, Lynn Hunt, Margaret Jacob, James Kloppenberg, James Winn, James Mcmillan, Frederick Olafson e Behan McCullagh, aceitam parcialmente as proposições desconstrucionistas, sem, contudo, se desprenderem dos princípios empiricistas: eles admitem certas limitações da linguagem, a presença da subjetividade, certo grau de manipulação das evidências, a construção social da verdade e até um apriorismo – com a pergunta inicial apresentada pelos historiadores às suas fontes. Porém, insistem que alguma objetividade há de existir: e ela provém da referenciação, a qual permite a vinculação entre presente e passado. Os moderados fogem, assim, do absolutismo do reconstrucionismo conservador, por um lado, e do desconstrucionismo relativista, por outro.

No quinto capítulo, Munslow faz o caminho inverso, perguntando-se o que há de errado com o reconstrucionismo/construcionismo, reiterando as críticas feitas pelos adeptos do desconstrucionismo. O argumento geral consiste em, uma vez mais, defender a parcela de imposição e criação do historiador em relação ao passado. Nesse sentido, o desconstrucionismo renega, entre outras, a crença dos reconstrucionistas na relação de correspondência entre a evidência e a verdade histórica; reafirma que a construção do significado dos eventos pretéritos é fruto da adoção de uma dada estrutura narrativa; contesta a convicção de que é possível encontrar a estória, sentido, significado dos fatos pretéritos, simplesmente por que eles não têm um sentido em si; e refuta o argumento dos construcionistas, os quais posicionam o arcabouço teórico em primeiro plano e a narração como algo secundário.

No sexto e sétimo capítulos, Munslow comenta as contribuições dos dois principais autores que fornecem suporte teórico para as proposições desconstrucionistas, Michael Foucault e Hayden White. De acordo com Munslow, o pensador francês rejeita a relação de correspondência entre as palavras e as coisas ou, em outros termos, a correspondência entre o mundo empírico e os discursos a seu respeito: a evidência, por exemplo, não expressa a realidade em si, mas ela mesma é uma representação/interpretação historicamente determinada: pelas disputas por poder, pela episteme dominante de uma época, pelas forças constitutiva e formativa que a linguagem exerce. O historiador, portanto, não tem acesso direto ao passado. Ele seria alguém que faz uma interpretação das representações pretéritas, que não é objetiva, imparcial e linguisticamente transparente. A linguagem usada por ele molda os dados do passado – a partir de uma dada episteme, isto é, uma forma específica de produção do conhecimento – de tal modo que estes façam sentido e tenham significado para os indivíduos do presente: em vez de refletir a realidade, a linguagem, na tentativa de apreendê-la, a constitui.

Depois da análise das contribuições de Foucault, Munslow interpreta os princípios teóricos de Hayden White “provavelmente o mais radical desenvolvimento na metodologia histórica nos últimos trinta anos” (MUNSLOW 2009, p. 187). Alguns pressupostos whiteanos ressaltados são relevantes para compreendermos a base das argumentações dos desconstrucionistas. Entre eles, o de que os eventos em si não trazem consigo uma dada história originária: isto é, os acontecimentos não são inerentemente trágicos, cômicos, satíricos, etc. Não existe um enredo a descobrir nos acontecimentos pretéritos. Estes são, em termos de enredo, neutros e amorfos. É o historiador, no presente, que organiza as informações de uma determinada maneira a fim de que a narrativa tenha um dado significado, impondo ao passado um enredo de um tipo específico. Essa organização é condicionada pelo uso, consciente ou não, de um tropo (metáfora, metonímia, sinédoque e ironia), que, por sua vez, condiciona as opções éticas, estéticas e epistêmicas do discurso historiográfico.

Outro pressuposto relevante refere-se à relação entre parte e todo: os enunciados de uma obra historiográfica podem ser verdadeiros; porém, uma narrativa historiográfica, considerada um todo integrado, não é a mera soma de suas partes. Trata-se de outro nível do discurso dos historiadores, no qual se constrói e atribui significado ao seu objeto. Esse significado é, em grande medida, uma consequência do tropo escolhido e não das próprias fontes. Esses dois pressupostos sustentam as afirmações de White, e as apropriações de Munslow, sobre o caráter imposicionalista do historiador, por meio da linguagem, na construção das narrativas sobre o passado e, consequentemente, de seus significados.

Na conclusão do livro, Munslow refuta a ideia de que a aceitação dos argumentos desconstrucionistas possa acarretar algum descrédito para o status da história como disciplina. A exemplo do que fez no capítulo cinco, ele sugere que reconhecer o papel da narrativa não é um novo tipo de essencialismo, isto é, algo que substitui o empirismo. Mas um princípio que abre espaço para novas maneiras de descrever o passado, com maior consciência do processo de produção do discurso historiográfico. Ter conhecimento do papel que a formalização da linguagem exerce no estudo do passado e pôr em questão a verdade/imparcialidade/objetividade da historiografia “pode levar a uma forma mais abrangente de análise histórica, menos provável de excluir o marginalizado e ‘o outro’” (p. 225). Depois da conclusão, Munslow ainda incluiu um glossário com parte dos principais verbetes usados no livro, bem como um “Guia para leituras adicionais”, no qual cita obras ligadas às três formas de abordagens descritas por ele.

Em termos gerais, compreendo que o livro como um todo apresenta alguns problemas. O primeiro é relativo às categorias usadas para designar as três abordagens (reconstrucionismo, construcionismo e desconstrucionismo): qualquer tentativa de delimitar autores tão distintos entre si em apenas três modalidades tende a abreviar a complexidade de posições. Roger Chartier, por exemplo, ora é colocado ao lado de autores desconstrucionistas, como White – o que é, no mínimo, curioso –, ora é incluído, juntamente com outros historiadores da École des Annales, na plêiade de construcionistas. O segundo diz respeito à falta de discussão e/ou conceituação do que se compreende por termos como objetividade, verdade histórica, imparcialidade, entre outros.

Embora possa parecer, essa não é uma discussão vã, contemplação vazia ou fuga do que realmente interessa. Mas um ponto de partida que não deve ser ignorado. Outro problema teórico refere-se ao uso do termo desconstrucionismo como uma forma de abordar a história, isto é, uma prática da mesma natureza do reconstrucionismo e do construcionismo. Apesar de alguns historiadores aceitarem as proposições ditas desconstrucionistas, essa maneira de conceber a produção do conhecimento histórico não se consubstanciou ainda como uma forma de investigar o passado, mas, até o momento, como uma reflexão teórica sobre a forma como os historiadores transformam os fragmentos do passado em historiografia. De outro modo, é, antes, uma teoria a respeito das possibilidades cognitivas do saber historiográfico (metateoria) e não propriamente uma abordagem da história em seu acontecer. E, por fim, o autor usa, por vezes e indistintamente, a palavra história para designar tanto a disciplina como os acontecimentos no tempo, dificultando o entendimento de determinados trechos.

Todavia, Desconstruindo a história tem muitos méritos. Conquanto a originalidade de ideias não seja um atributo a ser destacado, sobretudo por ser baseado nas proposições de Foucault e White, o livro de Munslow organiza didaticamente complexas maneiras de se entender o conhecimento histórico em três termos e apresenta ao leitor importantes tópicos e pressupostos das discussões atuais sobre teorias da história, que, em certo sentido, são muito úteis para aqueles que se interessam pelo tema. Outro ponto a ser ressaltado é que, por ter o foco em uma discussão que é encaminhada majoritariamente em ambiente anglo-saxão, Desconstruindo a história torna visível autores pouco citados entre pesquisadores nacionais. Além disso, embora Munslow seja adepto do desconstrucionismo, ele, a rigor, não reduziu totalmente as outras duas abordagens (reconstrucionismo e construcionismo) a esquematismos simplistas.

Diferentemente disso, ele cita e apresenta um número razoável de autores alinhados com essas duas “correntes”, mostrando-se, inclusive, simpático com algumas “soluções” encontradas pelos realistas-práticos (reconstrucionistas moderados), ainda que tenha enfatizado, o que é compreensível, determinadas ideias e encaminhado o debate de modo que o desconstrucionismo, ao final, fosse considerado a melhor maneira (senão única) de se conceber a produção do conhecimento historiográfico.

Embora repetitivo e com uma tradução problemática, Desconstruindo a história, enfim, pode ser considerado um livro que introduz o leitor em um ambiente intelectual bem delimitado, defende uma perspectiva no debate contemporâneo acerca do fazer historiográfico e estimula-nos a refletir sobre o ofício de historiador. Ainda que não se concorde com os pressupostos e ideias do “desconstrucionismo”, conhecê-lo por um de seus defensores parece ser uma maneira astuta de discordar, com fundamento, das proposições dessa vertente. Por isso, Desconstruindo a história pode ser um ponto de partida proveitoso àqueles que pretendem pesquisar e escrever a respeito da história e/ou pensar sobre esse complexo e atraente processo.

Ricardo Marques de Mello Doutorando Universidade de Brasília (UnB) [email protected] Campus Darcy Ribeiro, ICC Norte, Subsolo, Sala 679 Brasília – DF 70910-900 Brasil.