Vozes, vivências e significados. Mulheres africanas e perspectivas de gênero | AbeÁfrica – Revista da Associação Brasileira de Estudos Africanos | 2021

A ideia que esteve na origem do dossiê que aqui apresentamos foi gestada a partir de uma mesa coordenada por uma das coorganizadoras deste volume, Andréa Lobo, do título “Mulheres africanas vistas por mulheres brasileiras”, tendo integrado algumas das contribuidoras4 . A proposta da mesa foi a de reunir e confrontar experiências empíricas de estudiosas brasileiras e africanas, no continente africano, tendo como foco principal destacar os processos de produção e reprodução social efetivado por mulheres no cotidiano de suas sociedades, bem como refletir sobre a produção de conhecimento de mulheres (e homens) africanos/as sobre suas próprias dinâmicas sociais. Nesse sentido, o nosso objetivo foi o de debater sobre o “feminino”5 a partir das perspectivas das mulheres, tanto no ambiente doméstico quanto no espaço público e comunitário. Foi possível vislumbrar, a partir das discussões, a forma como se configuram as relações sociais e de poder a partir de dinâmicas de gênero em contextos específicos africanos, ressaltando dimensões importantes como a da emancipação, a da autoconsciência e a da capacidade de agenciamento das mulheres africanas.

Cabe salientar que as percepções e abordagens trazidas por essa mesa permitiram aprofundar a compreensão não apenas da complexidade que caracteriza o campo dos estudos africanos e de gênero, que envolvem vidas, cotidianos e o imaginário de mulheres e homens africanas/os, pelo olhar delxs própri@s e/ou de outr@s. A partir de uma perspectiva comparada, foi-nos possível estabelecer algumas conexões interessantes bem como vislumbrar possibilidades de agendas comuns e experiências partilhadas: questões como a construção da autonomia no espaço público, a luta antirracista e a participação histórica das mulheres nas construções dos estados africanos independentes, tendo em conta as narrativas das mulheres e suas experiências e trajetórias, nos demonstraram que existem diálogos possíveis e utopias que poderão se transformar em realidades, ainda que precisemos aprofundar amplamente nossos conhecimentos sobre as tantas histórias das mulheres e suas vivências, a partir de suas próprias vozes. Leia Mais

Mitos papais: política e imaginação na História – RUST (Topoi)

RUST, Leandro Duarte. Mitos papais: política e imaginação na História. Petrópolis: Vozes, 2015. Resenha de: MARTINS, William de Souza. A Santa Sé e os impasses da modernidade. Topoi v.17 n.32 Rio de Janeiro Jan./June 2016.

Há um século, o historiador Benedetto Croce elaborou uma análise que marcou posteriormente diversas interpretações. Afastando-se da perspectiva segundo a qual a História contemporânea abrangeria apenas o passado muito próximo (“os cinquenta últimos anos, o último decênio, o último ano, mês ou dia ou mesmo a última hora ou minuto”), o erudito italiano entendeu que os fatos do presente mantinham relações próximas com diferentes temporalidades históricas: “somente uma preocupação da vida presente pode nos impelir a fazer pesquisas sobre um fato do passado”. Ou, dito de modo mais claro: “a contemporaneidade não é própria de uma categoria de histórias (…), mas caracteriza intimamente toda a história”.1

As considerações desenvolvidas parecem adequadas para introduzir a discussão do novo livro de Leandro Duarte Rust, professor de História Antiga e Medieval da Universidade de Mato Grosso, e autor, entre outras obras, de as Colunas de São Pedro: a política papal na Idade Média Central (São Paulo: Annablume, 2011). Buscando atingir simultaneamente o público acadêmico e o leitor não especializado interessado nas investigações históricas, o autor se propõe a analisar o que designa como “mitos papais”, quais sejam: o suposto pontificado de São Pedro, o apóstolo; o Cristianismo Primitivo; a Reforma Gregoriana; o papado de Alexandre VI, da família Bórgia; e o pontificado de Pio XII, que recentemente recebeu o cognome de “papa de Hitler”.

Não se trata assim de uma história linear da Igreja, como muitas já disponíveis. O leitor tem em mãos uma obra construída em torno de um problema de pesquisa bem delimitado. Além disso, salta aos olhos a habilidade do autor em alternar diferentes temporalidades históricas, indo do cristianismo dos primeiros tempos até o século XX, sem perder o fio da narrativa. Este modo de narrar resulta da forma como os mitos papais foram construídos. Nos cinco casos analisados, trata-se de narrativas estruturadas aproximadamente entre 1870 e 2000, período em que a Igreja se viu diretamente desafiada pelos processos resultantes da Modernidade, conforme será detalhado. Um dos argumentos centrais do autor é que tais narrativas mitológicas cumpriram a função de redefinir de maneira positiva o lugar da Igreja católica em geral, e da Santa Sé em particular, em um período marcado pela perda da sua influência social e política. A produção das referidas narrativas não foi obra de erudição desinteressada, resultando antes da necessidade de assumir posições políticas para combater projetos de poder rivais. Os mitos papais foram construídos no calor dos acontecimentos dos séculos XIX e XX, deixando-se impregnar pela contemporaneidade de que Benedetto Croce falava.

Antes de passar ao comentário dos mitos escolhidos pelo autor, cada um ocupando um capítulo à parte no livro, deve-se dialogar com a definição de mito utilizada na obra. O autor se baseia na análise de Christopher G. Flood, para quem os

Mitos políticos são perspectivas assumidas sobre a autoridade e a dominação, a resistência e a exclusão, a unidade e a separação. Quando narrativas deste tipo surgem conectadas, circulando em uma mesma época como armas empregadas na luta pelo controle do comportamento coletivo, elas formam uma mitologia política. (p. 27)

Mais conhecida pela historiografia brasileira, a obra de Raoul Girardet, Mitos e mitologias políticas, aparece citada somente de maneira pontual, para tratar da importância do apelo à unidade em tempos de crise (p. 71-72). Não obstante, a análise do professor Leandro Rust ganharia amplitude caso tivesse recorrido com maior frequência à obra do estudioso francês. A interpretação que Girardet propõe do mito político, segundo a qual este cumpre uma tripla função, a de fabulação, a de explicação e a de mobilização, se torna basilar para compreender as tramas conspiratórias e os complôs produzidos em série ao longo dos séculos XIX e XX, de que constituem exemplo as perseguições promovidas contra os judeus e os jesuítas.2 Sem dúvida, a gênese da produção deste tipo de mitologia política se situa um pouco mais além, no âmbito do imaginário das Luzes e da Revolução Francesa. A apropriação de alguns elementos do primeiro por parte de algumas monarquias setecentistas levou-as a medidas contrárias à Companhia de Jesus, que culminaram com a supressão da Ordem em 1773 pela Santa Sé.3 Além disto, esta se viu ameaçada com o corte de relações diplomáticas, como o que foi praticado por Portugal, entre 1759 e 1770.4 No que tange à importância dos eventos políticos da França para a produção de mitos, pode-se assinalar a contribuição de François Furet, segundo a qual a temida “conspiração aristocrática”, denunciada pelas lideranças revolucionárias, tornava-se a imagem invertida da ideologia democrática e igualitária promovida pela própria Revolução.5 Na sequência do processo revolucionário, e tornando-se porta-voz dos ideais laicizantes e republicanos da França, Napoleão Bonaparte ensejou uma farta produção de leituras e imagens míticas, “ancoradas seja na luta entre o bem e o mal, seja na perspectiva da vinda de um salvador, seja no regresso a uma idade de ouro, seja ainda, especialmente, na visão do anticristo”.6

Parece válida a chave interpretativa proposta por José D’Assunção Barros no Prefácio da obra, segundo o qual os mitos papais se situam nas “tensões produzidas pelas relações do papado com a Modernidade” (p. 17). Esta última deve ser compreendida no seu significado histórico e filosófico mais amplo de ruptura com a tradição: “a modernidade não pode e não quer continuar a ir colher em outras épocas os critérios para a sua orientação, ela tem que criar em si própria as normas por que se rege”.7 Segundo a conhecida análise de Koselleck, as condições para a afirmação plena da Modernidade foram dadas na segunda metade do século XVIII, quando o horizonte de expectativas dos sujeitos históricos se distanciava cada vez mais do espaço de experiência em que tinham sido formados, criando uma dinâmica de aceleração e de descontinuidade do tempo histórico.8 Ainda que o próprio autor não tenha recuado até o século XVIII para situar a perda de poder político e social da Igreja de Roma, talvez seja útil reconstituir aqui este contexto mais amplo para aprofundar a compreensão dos “mitos papais”.

Cabem também algumas palavras gerais sobre a composição da narrativa do autor. Em cada capítulo, é analisado um mito político particular a respeito da Santa Sé. O autor mostra convincentemente que narrativas míticas que evocavam pontificados da Antiguidade, da Idade Média e do Renascimento foram construídas muito tempo depois dos referidos acontecimentos ou, mais exatamente, entre 1870 e o pós-Segunda Guerra Mundial. Por trás da elaboração dos referidos relatos, situavam-se estudiosos e historiadores comovidos com o impacto das consequências da Modernidade sobre o poder da Igreja e do pontífice romano, como pilares dos valores da tradição e da cultura do Ocidente. Após a exposição das narrativas míticas, o autor promove a desconstrução das mesmas, valendo-se de farto material crítico, constituído por contribuições da historiografia especializada e por fontes de natureza muito variada. A partir das operações complementares de contextualização, de exposição dos mitos e da crítica, o autor fornece aos leitores valiosas pistas, que poderão levá-los a construir suas próprias visões sobre os papados em foco, atingindo o objetivo da obra historiográfica aberta a sucessivas contribuições e reinterpretações.

No primeiro capítulo, a autor discute o mito do pontificado de São Pedro. Ainda que os Evangelhos atribuam a Jesus a frase “também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei minha Igreja” (Mt, 16,18), está longe de consenso historiográfico a hipótese de que Pedro tenha sido o primeiro papa e fundador da Igreja de Roma. Não obstante, ao longo da Segunda Guerra Mundial, o papa Pio XII (1939-1958) promoveu escavações no subsolo da Basílica de São Pedro, a fim de obter informações que pudessem comprovar a atuação do apóstolo como primeiro pontífice. Em 1950, um relatório elaborado por uma equipe de arqueólogos e estudiosos convenceu o papa de que havia indícios suficientes sobre a descoberta da tumba e dos restos mortais do apóstolo. Esta última informação, bem mais difícil de auferir, foi encampada pela arqueóloga Margherita Guarducci, da Universidade de Roma. Para tanto, a estudiosa se baseou em diversas fontes, que são cuidadosamente apresentadas e contextualizadas pelo autor. Guarducci se apoiou também nos testemunhos das inscrições contidas na suposta tumba do apóstolo. Em diálogo crítico com a referida interpretação, o professor Leandro Rust mostra que as fontes citadas podem ser lidas de diversas maneiras, relativizando as conclusões da pesquisadora italiana. No pós-guerra, período marcado pela crise dos valores da civilização ocidental, a Santa Sé, amparada na pesquisa de diversos estudiosos, buscou se fortalecer por meio do mito do pontificado de São Pedro.

O conceito de “Cristianismo Primitivo” constitui o segundo mito analisado pelo autor. Ao longo do século XX, tanto na imprensa como em obras de natureza historiográfica, tornou-se corrente o uso daquela expressão para caracterizar o cristianismo dos primeiros tempos. De modo mais exato, o cristianismo dos três primeiros séculos, anteriores à ascensão de Constantino, que oficializou o culto cristão no âmbito do Império Romano. Além de encerrar definitivamente as perseguições dirigidas aos cristãos, o édito de Constantino teve o efeito de afastar os bispos da comunidade dos fiéis, acentuando as divisões hierárquicas na instituição eclesiástica, e de preparar o terreno para a posição central do bispo de Roma sobre toda a Igreja. Em contraste, segundo Max Weber, o “Cristianismo Primitivo” caracterizou-se pela “rejeição antipolítica do mundo”, isto é, “uma religiosidade voltada para a redenção através da fraternidade, da renúncia material, do repúdio à violência e da diferença perante o Estado” (p. 83).

O autor apresenta diversos elementos que matizam a tese weberiana, diminuindo os contrastes entre os períodos situados antes e depois da decisão de Constantino. Uma parte das elites imperiais já havia se cristianizado antes do ano 200. Outros indícios mostram que os cristãos tinham adotado previamente um código social mais pragmático, acomodado ao status quo. Em 197, o sacerdote Tertuliano defendeu a compatibilidade entre o cristianismo e a defesa dos poderes imperiais. De maneira complementar, o professor Leando Rust refuta a ideia de que o bispo de Roma teria assumido um poder centralizador sobre toda a Igreja, imediatamente depois das medidas de Constantino. Adotando o código moral das elites romanas, baseado na autoridade do pater familias e na exaltação da piedade, da castidade e da moderação, a autoridade dos pontífices romanos foi construída a partir de outras bases: “nos últimos séculos do mundo antigo, se outros bispos os obedeciam não era porque os enxergavam como líderes estatais ou soberanos, mas porque viam em suas ações e em sua retórica a patria potestas, ou seja, o poder paternal” (p. 103).

No terceiro capítulo, o autor traz à discussão o tema da Reforma Gregoriana, que foi primeiramente elaborado na tese de doutorado de Augustin Fliche, publicada na década de 1920. De acordo com este erudito, sob a ameaça dos poderes dos senhores feudais e o do imperador, que interferiam diretamente na escolha dos bispos, o papa Gregório VII (1073-1085) tomou uma série de decisões, estabelecendo que somente o pontífice romano possuía a autoridade para a investidura dos bispos. Esta e outras medidas estabeleceram o primado do poder espiritual sobre os poderes temporais, transformando a Igreja em um protótipo de monarquia centralizada, responsável pela ordem pública e pela moralização da sociedade. O professor Leandro Rust salienta que a tese da Reforma Gregoriana se tornou um poderoso mito papal, cuja repercussão se encontra presente em contribuições historiográficas recentes. Elaborada em um contexto marcado pela derrocada dos impérios russo, Habsburgo e Otomano, a tese traz a marca de um pensamento tradicionalista, temeroso diante de um quadro político em que “as instituições estavam desacreditadas; a ordem, espatifada; a lei, desacatada” (p. 115). O mito da Reforma Gregoriana vinha reforçar o papel da Igreja como guardiã da unidade e da tradição, em uma época conturbada. Além de situar o contexto de produção do mito, o autor desenvolve um exercício semelhante ao praticado nos capítulos precedentes, mostrando que a suposta “monarquia papal” do século XI era mais frágil e incerta do que se imagina: “o papado comandado por Gregório VII não foi uma monarquia centralizada capaz de inaugurar uma época inteiramente nova. Ele foi uma instituição feudal, repleta de tensões e de limitações, como o mundo que a abrigava” (p. 139).

O quarto capítulo do livro analisa o pontificado de Alexandre VI (1492-1503), da família Bórgia. A fama negativa deste papado se deve à “lenda negra” construída em torno do cardeal Rodrigo Bórgia e de seu clã espanhol, que permanece arraigada até os dias atuais, a ponto de se considerá-lo “o pior papa da história” (p. 169). De acordo com o mito papal em questão, a corrupção da conduta moral da cúpula da Igreja e o favorecimento de parentes atingiram o clímax no pontificado de Alexandre VI. A própria eleição do papa foi marcada pela denúncia da compra de votos no colégio dos cardeais. Conforme assinala o autor, o mito em questão foi lavrado por Ferdinand Gregorovius. A obra A história de Roma na Idade Média foi redigida em 1870 pelo erudito alemão sob o impacto da perda dos territórios da Santa Sé para o Estado italiano e da proclamação do dogma da infalibilidade papal no Concílio Vaticano I, convocado por Pio IX (1846-1878). Adepto do ideal nacionalista, Gregorovius atribuía à “tirania” dos papas a ausência de unidade política na península italiana, colocando no mesmo plano o domínio estrangeiro dos Bórgia e o “despotismo” absoluto do papa Pio IX (p. 153 e 184).

Em contraste com as avaliações parciais do pontificado de Alexandre VI, o autor busca entendê-lo a partir dos condicionamentos coevos. Assim, “o favorecimento da própria família cumpria uma função política: redirecionando recursos da Igreja para filhos e parentes, o Papa Bórgia estruturava um grupo leal à sua autoridade” (p. 178). Ademais, estudos recentes a respeito do período do Renascimento e do Antigo Regime têm mostrado a importância dos vínculos de sangue na formação de redes de poder de famílias aristocráticas, em que a ocupação de posições no alto clero e na carreira eclesiástica em geral assumiam uma posição estratégica.9 Por fim, o autor mostra a ligação entre a imagem inteiramente negativa do pontificado de Alexandre VI com a “lenda negra” de tradicionalismo e obscurantismo associada à cultura ibérica (p. 185). Neste caminho, valeria a pena ter dialogado mais com a historiografia dos mitos políticos construídos em torno da Companhia de Jesus e da Inquisição, instituições eclesiásticas marcadas simultaneamente pela herança ibérica e pela vinculação à Santa Sé.10

No quinto capítulo, o autor discute o silêncio do papa Pio XII (1939-1958) diante das atrocidades cometidas pela Alemanha nazista. De acordo com o referido mito político, “traumatizado pelo envolvimento judaico com a luta política de 1918-1919, identificado com a cultura alemã e obcecado por fazer carreira no interior da Cúria Romana, Pacelli teria optado por uma conciliação com o nazismo” (p. 200). A tese foi difundida por John Cornwell na obra O papa de Hitler: a história secreta de Pio XII, publicada no Brasil em 2000. Pacientemente, o autor desmonta os argumentos do silêncio do papa. Sem exército e com um território mínimo, o Estado do Vaticano contava apenas com os canais diplomáticos como instrumentos de pressão externa. Em encíclicas publicadas em 1937 e em 1939, o papa condenou o antissemitismo, a exaltação da raça e a invasão da Polônia pelo exército de Hitler. Durante a Segunda Guerra, com a Itália ocupada pelas tropas alemãs, a Santa Sé mudou o tom das condenações formais, recorrendo à resistência indireta e fluida. Milhares de judeus foram poupados dos campos de concentração ao se abrigarem em estabelecimentos católicos, cuja imunidade tinha ficado assegurada pela concordata estabelecida em 1933 entre a Alemanha e o Vaticano, representado pelo cardeal Eugenio Pacelli, o futuro Pio XII.

Por trás dos mitos analisados, o autor mostra a existência de uma lógica simplista e maniqueísta que, derivada dos embates políticos, se revela incapaz de perceber as nuances e complexidades presentes no processo histórico. O livro constitui um ótimo exercício de como construir e descontruir histórias, e tem o mérito de se colocar ao alcance do público não especializado ou que está principiando os estudos na área.

1CROCE, Benedetto. Théorie et histoire de l’historiographie {1915}. Genève: Droz, 1968, p. 13-14. Grifos do autor.

2GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 9-62.

3A respeito dos discursos mitológicos envolvendo especificamente a Companhia de Jesus, ver FRANCO, José Eduardo. O mito dos jesuítas em Portugal, no Brasil e no Oriente (séculos XVI a XX). Lisboa: Gradiva, 2006, v. 1, p. 19-45; WRIGHT, Jonathan. Os jesuítas: missões, mitos e histórias. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006, p. 137-194.

4MILLER, Samuel J. Portugal and Rome, c. 1748-1830: An Aspect of the Catholic Enlightenment. Roma: Università Gregoriana Editrice, 1978, p. 232-245.

5FURET, François. Pensar a Revolução Francesa [1978]. Lisboa: Ed. 70, 1988, p. 80-84.

6NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Napoleão Bonaparte: imaginário e política em Portugal (c. 1808-1810). São Paulo: Alameda, 2008, p. 29.

7HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. Lisboa: Dom Quixote, 1990, p. 18. Grifos do autor.

8KOSELLECK, Reinhart. “Espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”: duas categorias históricas. In: KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006, p. 305-327.

9MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Poder senhorial, estatuto nobiliárquico e aristocracia. In: HESPANHA, António Manuel (Coord.). O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Estampa, 1993, p. 332-379; LAVEN, Mary. Virgens de Veneza: vidas enclausuradas e quebra de votos no convento renascentista. Rio de Janeiro: Imago, 2003, p. 67-83.

10PROSPERI, Adriano. Tribunais da consciência: inquisidores, confessores, missionários. São Paulo: Edusp, 2013, p. 189-211, a respeito da “lenda negra” da Inquisição. A respeito dos jesuítas, ver a nota 3 acima.

William de Souza Martins – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected].

História Comparada – BARROS (RTF)

BARROS, José D’Assunção. História Comparada. Petrópolis: Vozes, 2014. Resenha de: TEIXEIRA, Igor Salomão. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 7, n. 1, jan.-jun., 2014.

José D’Assunção Barros, professor na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e no Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC), é dono de vasta produção bibliográfica. Graduado em música e Doutor em história, o autor tem atuado intensamente na área de teoria e metodologia da história, como atestam algumas de suas publicações, como O campo da história (2004); O projeto de pesquisa em história (2005) e Teoria da História (2011).

Em 2014 veio a público um ensaio dedicado integralmente à História Com-parada. Primeira publicação do gênero no mercado editorial brasileiro. É, por esse motivo, uma contribuição significativa para a historiografia brasileira. Quando falamos “primeira publicação” estamos considerando-a como o primeiro livro dedicado a apresentar ao público – iniciantes, principalmente – o que significa abordar dois ou mais objetos simultâneos de análise. Essa não é, no entanto, a primeira publicação sobre o assunto no Brasil, pois, além de importantes livros já traduzidos para o português, como Comparar o Incomparável, de Marcel Detienne, temos uma revista dedicada ao à questão, a saber, a Revista de História Comparada, do PPGHC da UFRJ.1 O ensaio, como caracterizado pelo autor, é dividido em 15 itens. Não possui necessariamente uma introdução na qual costumam ser apresentados os objetivos da obra e suas características, pretensões e limitações. Ao final, o autor defende seu posicionamento a partir da conclusão propositiva “Por uma história relacional”. Pela amplitude dos tópicos enunciados, que vão desde a constituição da História Comparada como campo de estudo, sua “pré-história” e suas características atuais, chegando ao breve item sobre a História Comparada no Brasil, o livro de Barros oferece, de fato, uma gama introdutória de questões para o pensar a comparação. Porém, pela complexidade e diversidade de abordagens apontadas no livro, fazê-la em um texto curto é, desde o início, concebê-lo de forma superficial. Neste sentido, o livro peca por não oferecer análises. Apenas apresenta características dos debates.

Na caracterização oferecida pelo autor, a relação entre a comparação e pro-postas de análise no século XIX pode ser definida como a tentativa do estabeleci-mento de diferenças. Nos processos constitutivos de diferenciação, havia uma espécie de modelo e o objeto comparado era definido na medida em que se distanciava ou se aproximava desse modelo. No geral, essas propostas embasaram perspectivas evolucionistas e etnocêntricas. No século XX, no entanto, Barros apresenta a im-portância que as consequências dos nacionalismos exacerbados na Europa, principalmente, tiveram em relação às defesas pela comparação nas ciências humanas. Segundo o autor, a possibilidade de comparar sociedades distintas e/ou separadas no tempo e no espaço remetia a “estabelecer uma comunicação possível entre vá-rias histórias que até então pareciam fundar-se no isolamento…”.2 Sobre a história comparada no início do século XX o autor também apresenta que as abordagens eram realizadas considerando escalas de análise amplas, como as “civilizações”. O autor cita obras de Oswald Spengler (1879-935) e Arnold Toynbee (1889-1975). O primeiro buscava nas diferenças entre as civilizações as especificidades de cada uma. O segundo buscava nas possibilidades de estabelecer analogias a explicação sobre processos históricos mais amplos.3 Trabalhos da sociologia e da antropologia também foram fundamentais para essas reflexões. Barros cita contribuições de Karl Marx, Max Weber e Émile Durkheim.

Um dos pontos altos da obra é o lugar de destaque dado por Barros à obra Os Reis Taumaturgos, de 1924, escrita por Marc Bloch (1886-1944). Segundo o texto, Bloch identificou dois caminhos para a comparação em história: a) a análise com-parada de sociedades sem contiguidade temporal e espacial e b) a análise compara-da de sociedades com contiguidade temporal e espacial. Na primeira situação, Bar-ros cita a possibilidade de se comparar o “feudalismo europeu” com o “feudalismo no Japão”. A principal característica seria a busca por analogias. Neste caso, o au-tor alerta que o principal risco que corre um historiador ao se dispor a tal empreita-da é o anacronismo e a leitura forçada levando a “uma ficção estabelecida pelo próprio historiador”.4 Na segunda situação, abordagem mais eficaz para Bloch, a proximidade temporal/espacial entre as sociedades proporciona ao historiador a possibilidade de analisar as influências múltiplas que essas sociedades podem exercer umas sobre as outras. E, nesse caso, não apenas as semelhanças são identificáveis. As diferenças na vivência de um fenômeno ajudariam a colocar o foco sobre uma sociedade a partir das especificidades de outra sociedade, como fez Bloch em Os Reis Taumaturgos. Segundo o autor: O material histórico adequa-se, portanto, ao caminho proposto pe-lo modelo preconizado por Bloch: duas sociedades sincrônicas que guardam entre si relações interativas, e que juntas oferecem uma visão clara de um problema comum que as atravessa. Sem uma ou outra, no mero âmbito de uma história nacional, não poderia ser compreendida a questão da apropriação política do imaginário taumatúrgico que se desenvolve nas monarquias europeias, das origens em comum deste mesmo imaginário, das intertextualidades que se estabelecem, do confronto do modelo taumatúrgico com outros modelos de realeza.5 Nessa longa citação podemos também perceber, além da importância da sin-cronia e contiguidade entre as sociedades analisadas por Bloch, a necessidade de um problema que possibilite o trânsito do historiador entre uma sociedade e outra. A partir desta leitura Barros apresenta a importância dos Annales na constituição de uma história comparada problematizada a partir do presente para propor explicações sobre o passado.

O autor também evidencia a “ausência de cercas” na história comparada re-velando que, em geral, para se realizar uma empreitada de comparação é preciso conectar a análise com outros campos do conhecimento histórico. No item 7 do livro, totalmente dedicado a essa questão6, Barros identifica a demografia e a eco-nomia como terrenos propícios à comparação. A possibilidade de analisar grupos sociais distintos em uma mesma sociedade também pode proporcionar análises comparadas. Outros objetos, como as cidades, também foram trabalhados em perspectivas comparadas.7 Para além das diversidades de objetos, e daquela visão geral que o autor apresenta das perspectivas evolucionistas e etnocêntricas do século XIX, às propos-tas de rompimento das barreiras nacionais do mundo ocidental pós-guerra no século XX, de um modo geral, Barros define, no início do livro, a História Comparada – em maiúsculo, com pretensões de um campo constituído – como um método: Trata-se de iluminar um objeto ou situação a partir de outro, mais conhecido, de modo que o espírito que aprofunda essa prática comparativa dispõe-se a fazer analogias, a identificar semelhanças e diferenças entre duas realidades, a perceber variações de um mesmo modelo. Por vezes, será possível ainda a prática da iluminação recíproca, um pouco mais sofisticada, que se dispõe a confrontar dois objetos ou realidades ainda não conhecidos de modo a que os traços fundamentais de um ponham em relevo os aspectos do outro…8 As diferenças na iluminação recíproca pretendida é que possibilitam o entendimento mais contemporâneo da História Comparada. De um modo geral, Bar-ros situa a produção historiográfica até a primeira metade do século XX como abordagens que não entrelaçavam e/ou cruzavam as sociedades estudadas. A com-paração resultava na caracterização separada de cada sociedade a partir de um de-terminado fenômeno “problematizado”. Para os últimos anos daquele século e início do século XXI, no entanto, o autor identificou diferentes propostas: as de história global; a história interconectada; a transnacional e a história cruzada. No primeiro caso, a principal questão é não trabalhar com uma relação centro-periferia na qual o centro já está pré-definido. No segundo, a proposta é fazer com que o historiador deixe-se conduzir “criativamente por seu tema, o qual … pode deslocar-se através de diferentes grupos sociais, identidades étnicas, definições de gênero, minorias, classes ou categorias profissionais.9 Na perspectiva da história transnacio-nal, diferentemente da história global (que se definiria mais pelo recorte), a aborda-gem se caracteriza pelo desafio de enfrentar “a noção arraigada de que o nacional” é uma categoria emoldurante. Nessa perspectiva a nação é algo a ser estudado, e não o espaço que enquadra o estudo.10 A última das propostas elencadas por Barros, a história cruzada, é caracterizada como uma abordagem que não ilumina uma sociedade a partir de outra, e sim, como uma abordagem que analisa uma sociedade através de outra. Nessa proposta, Barros utiliza amplamente as “defesas” apresentadas por Bénédicte Zimmermann e Micahel Werner, Eliga H. Gould e Jürgen Kocka. Os principais elementos dessa proposta são as aberturas geradas tanto para as possibilidades de análises compara-das de escalas (um historiador pode observar um fenômeno numa perspectiva ma-cro e micro), as possibilidades narrativas propriamente ditas (que o autor chama de “historiografias cruzadas”) e o diálogo “com as possibilidades polifônicas” em dife-rentes abordagens.11 Barros também dedica o item 9 às abordagens baseadas na comparação de sociedades sem contiguidade temporal e espacial. O principal elemento observado pelo autor é a possibilidade para o delineamento de diferenças.12 Porém, assim co-mo item 13 sobre trabalhos realizados no Brasil sobre História Comparada, Barros não oferece muitas informações e análises ao leitor. Neste item e pela vinculação do autor ao PPGHC o livro poderia ser mais propositivo.13 Os três últimos itens do livro, a saber, “Delineamentos para estabelecer a História Comparada em sua especificidade”, “A História Comparada e sua instância coletiva” e “Considerações Finais – Por uma História Relacional” tendem a sintetizar o que autor apresenta anteriormente. Vale destacar o alerta que o autor reforça sobre as propostas de grandes sínteses econômicas e sociais. Segundo o texto, esses projetos não são de história comparada, pois oferecem panoramas descritivos. A característica marcante é “examinar sistematicamente como um mesmo problema atravessa duas ou mais realidades histórico-sociais distintas…Faz-se por mútua iluminação de dois focos distintos de luz, e não por mera superposição de peças”.14 A partir dessa característica a história comparada pode ser aplicada tanto na narrativa quanto na escala de observação. Esses elementos levam à reflexão sobre como realizar o trabalho. Para Barros, a realização de projetos coletivos “atravessados por um ‘problema’” é defendida por pesquisadores, como Marcel Detienne, que tem consciência da dificuldade de analisar duas sociedades (contíguas ou não) simultaneamente. Outra perspectiva presente no livro é a de Jürgen Kocka, que destaca que o historiador deve dispor de uma erudição e disposição disciplinar e interdisciplinar. A diferença entre Detienne e Kocka, sobre este aspecto, está na defesa que este último faz da possibilidade de realização de trabalhos individuais. Porém, nessa concepção, o historiador dependerá cada vez mais dos trabalhos rea-lizados pelos seus pares.15 Ao final do livro o autor retorna aos tópicos anteriores sobre as reflexões recentes que dão nomes como “história transnacional”, “global”, “cruzada”, “inter-conectada”. Para Barros, o que está em questão não é uma disputa para saber qual termo sairá “vencedor”. O desafio aos historiadores contemporâneos é se está nascendo uma “família historiográfica” de “História Relacional”.16 A obra História Comparada, tema desta resenha, é um instrumento válido para os que estão iniciando nas leituras sobre diferentes perspectivas teórico-metodológicas. Como ponto de partida, oferece uma espécie de guia historiográfico de diferentes abordagens sobre a comparação. Mesmo sem muitas análises permite ao leitor seguir adiante e, com isso, cumpre um importante serviço à iniciação científica.

1 http://www.hcomparada.historia.ufrj.br/revistahc/revistahc.htm. Acesso em maio de 2014.

2 BARROS, José D’Assunção. História Comparada.Petrópolis: Vozes, 2014. p. 47.

3 Ibidem, p. 33-38.

4 Ibidem, p. 49.  8 Ibidem, p. 17.

9 Ibidem, p. 90.

10 Ibidem, p. 92 11 Ibidem, p. 135.

12 Ibidem, p. 82-84.

13 Ibidem. p. 136-141.

14 Ibidem. p. 143.

15 Ibidem. p. 157-162.

16 Ibidem. p. 163-166.

Igor Salomão Teixeira – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Correspondência: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Departamento de História – Av. Bento Gonçalves, 9500. Prédio 43311, Sala 116. E-mail: [email protected].

Desconstruindo a história – MUNSLOW (HH)

MUNSLOW, Alun. Desconstruindo a história. Petrópolis: Vozes, 2009, 271 p. Resenha de: CASTELO, Sander Cruz. O sublime, a narrativa e a história The sublime, the narrative and history. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 6, p.213-217 março 2011.

Alun Munslow, professor visitante de história da Universidade de Chichester (Inglaterra), é coeditor da Rethinking History: The Journal of Theory and Practice, publicação acadêmica vanguardista criada, em 1997, para expandir os limites de uma disciplina engessada em pressupostos modernistas por meio da divulgação de produções historiográficas experimentais e do debate teórico do assunto. Não surpreende, logo, que a obra analisada destoe das traduções que sumariam as teorias contemporâneas da história, correntemente, lançadas no Brasil.

Como? Basicamente, de duas formas interligadas: salientando a historiografia pós-moderna, pouco divulgada no país, excetuando-se a produção foucaultiana, e privilegiando a narrativa dentre os elementos envolvidos na produção historiográfica. Outra singularidade da obra, derivada das duas características anteriores, advém da publicização, no Brasil, da historiografia anglo-americana, cuja linhagem, originada na filosofia analítica, é, comumente, desconsiderada em prol daquela esteada na antropologia, de matriz francesa.

Por isso, a linguagem norteia as proposições do autor a favor da revisão da forma como os historiadores abordam o passado. Esses, grosso modo, resistiriam, não obstante alguns avanços (novo empirismo, Annales, etc), a abandonar uma ingenuidade epistemológica fundamental: a ideia de que a realidade do passado pode ser revelada. Essa crença na objetividade do saber derivou do método científico, erigido, na modernidade, para abordar a natureza e estendido ao mundo social com o Iluminismo, período em que o ideal civilizatório adquiriu matizes teleológicos. Compreende-se, logo, que a história estabeleça-se como disciplina, no século XIX, reproduzindo dualismos como sujeito-objeto, fato-ficção e progresso-atraso.

Para combater esse legado, elegendo a forma, e não o conteúdo, como âncora da história, Munslow mapeia as forças em negociação e em confronto no campo historiográfico. A mais tradicional ou a mais infensa às mudanças é devota do “reconstrucionismo”. Filho do historismo rankeano, para o “reconstrucionismo”, resumidamente, o passado pode ser desvelado mediante a reconstituição das intenções e das ações dos agentes históricos na sua sucessão no tempo. O “construcionismo”, por sua vez, reconhece, mais do que o anterior, o caráter apriorístico do conhecimento, fazendo uso, em decorrência, de modelos de análise provindos de disciplinas afins, como a sociologia, a economia e a antropologia. Sem descurar, contudo, dos vestígios históricos, por meio dos quais se escolhem e se testam as teorias utilizadas, passíveis, consequentemente, de abandono ou de reformulação. O “desconstrucionismo”, enfim, renega a possibilidade de acessar o pretérito, dada a impropriedade da teoria da correspondência ou da referencialidade. Sendo a relação entre significante, significado e signo, fundamentalmente, social e cultural – ou seja, a um tempo arbitrária e convencionada –, a “realidade do passado” (MUNSLOW, 2009, p. 12) apresentando-se, pois, mais como um “relato escrito” do que “como ele realmente foi, resta à história “não o estudo das mudanças através do tempo per se, mas o estudo das informações produzidas pelos historiadores ao se lançarem nesta tarefa”(Idem, Ibidem).

O autor verticaliza sua abordagem dirigindo quatro questionamentos a essas três correntes da historiografia contemporânea. O fato de que o faça aglutinando, nos mesmos capítulos, a história “reconstrucionista” e a “construcionista” demonstra, de imediato, que, para ele, elas mais se aproximam do que se distanciam. Somando-se a isso a existência de dois capítulos expondo as críticas mútuas entre elas e a linha “desconstrucionista” e de outros dois dedicados a Michel Foucault e a Hayden White, autores baluartes da história pós-moderna, evidencia-se a intenção de firmar e ampliar as posições conquistadas pelo “desconstrucionismo” na historiografia. Aliás, suas próprias respostas às questões explicitadas, no último capítulo do livro, arrimam-se em uma “estratégica combinação da concepção de infraestrutura tropológica/ epistêmica” do filósofo francês com o “modelo formalístico de imaginação histórica” do historiador estadunidense (Ibidem, p. 218).

A primeira indagação, de cunho epistemológico, versa sobre a suficiência do empirismo para legitimar o estatuto autônomo da história. A resposta de Munslow é negativa. A disciplina é, na verdade, uma variante da literatura que almeja produzir conhecimento. Logo, a epistemologia da história dista do indutivismo, na medida em que reconhece a existência do efeito de realidade e não a noção fantasiosa da verdade histórica; nega que possamos descobrir a intencionalidade do autor; aceita a cadeia de significação interpretativa e não o significado original recuperável; recusa as seduções de um referente fácil; debate a objetividade do historiador em seu trabalho com a estrutura figurativa da narrativa; aceita a natureza sublime do passado imaginada como o sentido do “outro” e admite que a relação entre forma e conteúdo é mais complexa do que como é frequentemente concebida nas duas tendências similares principais [construcionismo e reconstrucionismo] (Ibidem, p. 221).

A segunda trata do caráter e da função da evidência ou das fontes primárias. Inicialmente, Munslow afirma que as evidências são recontextualizadas a cada época: “[…] por exemplo, a evidência do Império se tornou, para a próxima geração de historiadores, a evidência para uma nova interpretação pós-colonial (Ibidem, p. 224). Em seguida, afirma não crer que a proximidade da evidência equivalha à verdade: Não discuto que a correspondência da evidência com a realidade funciona de forma razoavelmente satisfatória no nível básico da sentença única que tem como suporte a evidência (o presidente dos Estados Unidos, Abraham Lincoln, foi baleado em 14 de abril e morreu no início da manhã de 15 de abril de 1865). Porém, tal correspondência não existe quando passamos para o nível da interpretação através da imposição de um enquadramento ou um argumento (Abraham Lincoln foi assassinado antes que pudesse colocar seus planos de reconstrução em ação). É preciso repetir: a narrativa histórica não é o passado, é a história” (Ibidem, p.224).

A terceira, com escopo na teoria, diz respeito ao imposicionalismo [sic] do historiador, especificamente, com o uso de teorias sociais como suportes explicativos. Apoiado em Vico e Foucault, o autor receita ao historiador uma conceitualização distinta do dedutivismo. Este, formulado para estudar a natureza, é insuficiente para a análise da sociedade ao longo do tempo, o que exige atenção ao discurso (episteme). A história depende mais da retórica do que da lógica para gerar a ilusão de transparência do passado: A maneira complexa como usamos a linguagem e a linguagem nos usa para mediar a realidade do passado sugere que nenhuma quantidade de sofisticada verificação hipotética da ciência social pode evitar a relação interativa entre o historiador, a palavra e o mundo. A narrativa não é simplesmente uma representação do mundo da realidade do passado, uma reprodução das coisas e das relações que subsistem entre elas. Embora a linguagem seja usada pelos principais historiadores como se ela tivesse a capacidade de reprodução, ela é principalmente um meio inovador que tem o poder de inventar e criar nosso conhecimento do passado (Ibidem, p. 230).

A quarta, por fim, diz respeito à significação da narrativa na explanação histórica. Apresentando o pensamento de White, Munslow assevera que a narrativa é o dispositivo por excelência da história, funcionando primeiro no plano da linguagem e da consciência, através da articulação de quatro níveis de explanação, seguidamente, implicados: tropo, enquadramento, argumento e ideologia. O tropo (metáfora, metonímia, sinédoque, ironia) refere-se à prefiguração mental do objeto de estudo, ou seja, sua base poética. O enquadramento (romântico, trágico, cômico e satírico) diz respeito ao poder do protagonista da trama em relação ao meio, gerando o efeito estético. O argumento (formista, mecanicista, organicista e contextualista) consiste na inter-relação de eventos, de personagens e de ações, produzindo o efeito cognitivo. A ideologia (anarquismo, radicalismo, conservadorismo e liberalismo), por fim, desvelando as opções políticas do historiador, homem situado no presente, atesta os efeitos éticos da disciplina.[1] Pode-se, logo, afirmar, resumidamente, que a função do historiador é […] oferecer uma estória que seja possível de ser acompanhada. Tal possibilidade de ser acompanhada emerge da coerência e da plausibilidade da estória que o historiador conta, à luz da evidência disponível. A realidade do passado não existe em um mármore bruto, necessitando apenas da habilidade do historiador de desbastá-lo para revelar o objeto existente dentro dele (Ibidem, p. 230).

Para finalizar, duas questões, ainda referentes à narrativa, permanecem não resolvidas pelo autor (e os desconstrutivistas em geral). Haveria uma narrativa pré-existente àquela inventada pelo historiador, ou melhor, os historiadores recontariam uma história já explanada pelos personagens históricos? Finalmente, é suficiente saber que a história é um empreendimento que envolve, ao mesmo tempo, estética, lógica e ética; que a “vontade de saber” (lógica) deriva da “vontade de poder” (ética), como disse Foucault; que White, mesmo, aventou a possibilidade de situar a ideologia como primeiro nível trópico; para afirmar, como o faz Munslow, que se “a estética precede à história, então a ética precede à estética” (Ibidem, p. 212).

Acredita-se que é necessário prudência aqui. O desejo de distinguir o bem do mal é, certamente, o motor do conhecimento (BLOOM 1989, pp. 49-50).  Mas a vontade imperativa de saber não resulta, por vezes, de uma vontade de morrer, como alertava Nietzsche? A árvore do conhecimento não abriga uma serpente? Babel não atesta a benignidade de um pouco de relativismo, impedindo que bem e mal se irmanem em razão do dogmatismo? Por esse prisma, a história não podia servir à vida prezando, igualmente, o esquecimento, o incognoscível, a beleza, o mistério, o sublime, como o próprio autor intui, em algumas passagens da obra? Referência bibliográfica BLOOM, Allan David. O declínio da cultura ocidental. 2 ed. São Paulo: Best Seller, 1989.

1 Esses quatro tropos corresponderiam a quatro epistemes que se sucederam na modernidade, identificadas por Foucault: a da Renascença (até o final do século XVI), baseada na semelhança; a Clássica (séculos XVII e XVIII), ancorada na diferença; a Moderna ou Antropológica (final do XVIIIinício do XX), amparada no homem; e a Pós-Moderna (em andamento), fundada nas transformações da linguagem.

Sander Cruz Castelo – Professor assistente Universidade Estadual do Ceará [email protected] Rua Marechal Deodoro, 1395/322 B 60020-061 – Fortaleza – CE Brasil.

Desconstruindo a história – MUNSLOW (HH)

MUNSLOW, Alun. Desconstruindo a história. Tradução de Renata Gaspar Nascimento. Petrópolis: Vozes, 2009, 272 p. Resenha de MELLO, Ricardo Marques. Um desconstrucionista desconstruindo a história. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 05, p.232-238, setembro 2010.

Alun Munslow é professor visitante de teoria da história da universidade inglesa de Chinchester. É também editor de Rethinking History: The Journal of Theory and Practice, um dos principais periódicos internacionais dedicado a publicar textos inseridos nas discussões a respeito das condições cognitivas do saber histórico a partir de perspectivas comumente nomeadas pós-modernas, que, em certo sentido, são desdobramentos de considerações nietzschianas, de insights da linguística saussuriana e de discussões oriundas da filosofia da linguagem.

Desconstruindo a história, cuja primeira edição data de 1997, insere-se nesse debate. Especificamente, Munslow questiona-se sobre as possibilidades de recuperação e representação precisa do conteúdo do passado por meio da narrativa. Ele é adepto da tese de que a linguagem, diferentemente do que acreditam muitos historiadores, não é um meio transparente para descrever e explicar a realidade pretérita, mas um fator que impõe ao passado um dado formato que não lhe é próprio, criando, destarte, um significado para os indivíduos do presente.

O livro de Munslow, porém, não se reduz à defesa de uma perspectiva teórica sobre o conhecimento historiográfico. Nele, seu autor identifica e descreve três abordagens, coexistentes contemporaneamente, sobre o saber historiográfico, o reconstrucionismo, o construcionismo e o desconstrucionismo, de modo que o leitor possa situar-se a respeito dos principais argumentos usados pelos praticantes dessas três vertentes.

Na Introdução, Munslow apresenta as quatro questões que nortearam os sete capítulos e a conclusão do livro: 1) O empirismo pode constituir-se como uma epistemologia? 2) Qual o caráter e a função da evidência? 3) Qual o papel do historiador e como ele usa as teorias sociais para compreender e explicar a história? 4) Qual a importância da forma narrativa para a explanação histórica? (MUNSLOW 2009, p. 12). Toda a estrutura de Desconstruindo a história gira em torno de uma estratégia: colocar essas quatro questões a cada uma das três abordagens. Em outros termos, Munslow pretende expor como as perspectivas reconstrucionista, construcionista e desconstrucionista responderiam, cada uma a sua maneira, a esses quatro questionamentos.

No capítulo um, o autor apenas apresenta cada uma das três abordagens de modo breve. Além disso, identifica o estruturalismo, o pós-estruturalismo e o que denomina de novo historicismo (estadunidense) como origens das atuais revisões sobre o estatuto da história como disciplina.

No capítulo dois, Munslow caracteriza as abordagens reconstrucionista e construcionista da história, tendo em conta os quatro pontos supracitados que nortearam seu trabalho (epistemologia, evidência, teorias sociais, narrativa).

Epistemicamente, ambas compartilham a crença geral na capacidade do historiador em conhecer o que realmente ocorreu no passado por meio da análise do material empírico. Ademais, seus praticantes acreditam que há uma separação nítida entre fato e valor, história e ficção, sujeito e objeto, e de que a verdade, fim último de um trabalho historiográfico, não é uma perspectiva (MUNSLOW 2009, p. 57). O mecanismo que assegura a verdade pretérita é a referenciação. Crê-se, portanto, na relação de correspondência entre o que ocorreu no passado e o que é descrito sobre ele, entre os significados de então e os apresentados pelos historiadores do presente. A evidência, dessa perspectiva, assume o caráter de fonte comprobatória. Para os reconstrucionistas, essa característica da evidência emerge por um processo indutivo: é a análise do material empírico que permite as descobertas sobre o acontecimento pesquisado. Para os construcionistas, porém, a verdade pretérita não surge apenas das evidências, mas pode ser combinada com teorias sociais em um processo, também, dedutivo. O uso de teorias sociais na compreensão do passado pelos construcionistas é justamente o que os diferenciam dos reconstrucionistas, avessos a qualquer tipo de apreensão a priori. Os reconstrucionistas conservadores (termo do autor) criticam o uso de teorias, pois elas dizem respeito a situações universais de comportamento e, por isso, são impróprias para entender realidades e agentes históricos singulares. Os construcionistas, por sua vez, contra-argumentam dizendo que seus modelos são “conceitos” que emergem das evidências como um auxílio para a própria compreensão da evidência. Além disso, toda teoria poderia ser colocada à prova pelo material empírico. Na questão da narrativa, em linhas gerais, os reconstrucionistas conservadores sustentam que ela funciona apenas como um veículo para conclusões inferidas a partir das fontes. Os reconstrucionistas moderados e os construcionistas sustentam que a narrativa constrói significado, mas permanece como uma dimensão secundária (MUNSLOW 2009, p. 79- 80).

No capítulo três, Munslow caracteriza a abordagem da qual é adepto, o desconstrucionismo. E o faz marcando as diferenças entre este, o reconstrucionismo e o construcionismo. No quesito epistêmico, o desconstrucionismo nega o pressuposto teórico que atribui à historiografia condições de conhecer o passado como realmente aconteceu, seja pela análise empírica, seja por meio do uso de teorias sociais. Entre os resquícios pretéritos e sua representação narrativa no presente, existe uma série de elementos que se interpõem, como a ideologia, a linguagem, as preferências pessoais e as discussões historiográficas, impedindo, assim, de haver imparcialidade e objetividade. Para os desconstrucionistas, os significados do passado são antes criações circunstanciadas que descobertas reveladas pelos historiadores. A evidência a partir dessa perspectiva, não reflete e/ou representa o passado, mas serve ao historiador na composição de sua narrativa. Munslow, contudo, ressalta que a abordagem desconstrucionista não é antirreferencialista, mas ela nos adverte sobre as fronteiras e o papel que a evidência exerce no trabalho do historiador: a evidência não emite os significados do passado, por um lado, nem permite que qualquer coisa seja escrita sobre ele, restringindo, destarte, a poiesis historiográfica. Em outros termos, nem primazia nem insignificância.

Em relação às teorias sociais, ele limita-se a mencionar que a discussão a respeito do uso ou não de teorias como um recurso é irrelevante. No aspecto relativo à narrativa, porém, o autor de Desconstruindo a história despende uma longa descrição, uma vez que as principais diferenças entre as três abordagens são oriundas justamente da forma como cada uma compreende a narrativa.

Com base em Roland Barthes, Michel Foucault, Stephen Bann, Frank Ankersmit, Paul Ricoeur e, sobretudo, Hayden White, Munslow afirma que no desconstrucionismo a narrativa historiográfica não é apenas um meio de apresentação dos resultados de pesquisa. O historiador, ao reunir, selecionar e usar informações pretéritas na elaboração de um texto coerente, vale-se da imaginação figurativa, impondo um enredo ao passado a fim de criar e constituir um significado ao presente. Não há, portanto, uma relação precisa de correspondência entre o passado e sua representação narrativa.

Baseado nos argumentos dos reconstrucionistas e dos construcionistas, Munslow ocupa-se, no quarto capítulo, em assinalar o que há de errado com a história desconstrucionista. Em linhas gerais, o grupo dos contendores radicais, representados por Geoffrey Elton, Michael Stanford e Arthur Marwick, reitera os pressupostos mais conservadores do reconstrucionismo. O grupo dos denominados reconstrucionistas moderados ou realistas-práticos, baseados nas obras de Edward Carr e Robin G. Collingwood, e representados, principalmente, por Joyce Appleby, Lynn Hunt, Margaret Jacob, James Kloppenberg, James Winn, James Mcmillan, Frederick Olafson e Behan McCullagh, aceitam parcialmente as proposições desconstrucionistas, sem, contudo, se desprenderem dos princípios empiricistas: eles admitem certas limitações da linguagem, a presença da subjetividade, certo grau de manipulação das evidências, a construção social da verdade e até um apriorismo – com a pergunta inicial apresentada pelos historiadores às suas fontes. Porém, insistem que alguma objetividade há de existir: e ela provém da referenciação, a qual permite a vinculação entre presente e passado. Os moderados fogem, assim, do absolutismo do reconstrucionismo conservador, por um lado, e do desconstrucionismo relativista, por outro.

No quinto capítulo, Munslow faz o caminho inverso, perguntando-se o que há de errado com o reconstrucionismo/construcionismo, reiterando as críticas feitas pelos adeptos do desconstrucionismo. O argumento geral consiste em, uma vez mais, defender a parcela de imposição e criação do historiador em relação ao passado. Nesse sentido, o desconstrucionismo renega, entre outras, a crença dos reconstrucionistas na relação de correspondência entre a evidência e a verdade histórica; reafirma que a construção do significado dos eventos pretéritos é fruto da adoção de uma dada estrutura narrativa; contesta a convicção de que é possível encontrar a estória, sentido, significado dos fatos pretéritos, simplesmente por que eles não têm um sentido em si; e refuta o argumento dos construcionistas, os quais posicionam o arcabouço teórico em primeiro plano e a narração como algo secundário.

No sexto e sétimo capítulos, Munslow comenta as contribuições dos dois principais autores que fornecem suporte teórico para as proposições desconstrucionistas, Michael Foucault e Hayden White. De acordo com Munslow, o pensador francês rejeita a relação de correspondência entre as palavras e as coisas ou, em outros termos, a correspondência entre o mundo empírico e os discursos a seu respeito: a evidência, por exemplo, não expressa a realidade em si, mas ela mesma é uma representação/interpretação historicamente determinada: pelas disputas por poder, pela episteme dominante de uma época, pelas forças constitutiva e formativa que a linguagem exerce. O historiador, portanto, não tem acesso direto ao passado. Ele seria alguém que faz uma interpretação das representações pretéritas, que não é objetiva, imparcial e linguisticamente transparente. A linguagem usada por ele molda os dados do passado – a partir de uma dada episteme, isto é, uma forma específica de produção do conhecimento – de tal modo que estes façam sentido e tenham significado para os indivíduos do presente: em vez de refletir a realidade, a linguagem, na tentativa de apreendê-la, a constitui.

Depois da análise das contribuições de Foucault, Munslow interpreta os princípios teóricos de Hayden White “provavelmente o mais radical desenvolvimento na metodologia histórica nos últimos trinta anos” (MUNSLOW 2009, p. 187). Alguns pressupostos whiteanos ressaltados são relevantes para compreendermos a base das argumentações dos desconstrucionistas. Entre eles, o de que os eventos em si não trazem consigo uma dada história originária: isto é, os acontecimentos não são inerentemente trágicos, cômicos, satíricos, etc. Não existe um enredo a descobrir nos acontecimentos pretéritos. Estes são, em termos de enredo, neutros e amorfos. É o historiador, no presente, que organiza as informações de uma determinada maneira a fim de que a narrativa tenha um dado significado, impondo ao passado um enredo de um tipo específico. Essa organização é condicionada pelo uso, consciente ou não, de um tropo (metáfora, metonímia, sinédoque e ironia), que, por sua vez, condiciona as opções éticas, estéticas e epistêmicas do discurso historiográfico.

Outro pressuposto relevante refere-se à relação entre parte e todo: os enunciados de uma obra historiográfica podem ser verdadeiros; porém, uma narrativa historiográfica, considerada um todo integrado, não é a mera soma de suas partes. Trata-se de outro nível do discurso dos historiadores, no qual se constrói e atribui significado ao seu objeto. Esse significado é, em grande medida, uma consequência do tropo escolhido e não das próprias fontes. Esses dois pressupostos sustentam as afirmações de White, e as apropriações de Munslow, sobre o caráter imposicionalista do historiador, por meio da linguagem, na construção das narrativas sobre o passado e, consequentemente, de seus significados.

Na conclusão do livro, Munslow refuta a ideia de que a aceitação dos argumentos desconstrucionistas possa acarretar algum descrédito para o status da história como disciplina. A exemplo do que fez no capítulo cinco, ele sugere que reconhecer o papel da narrativa não é um novo tipo de essencialismo, isto é, algo que substitui o empirismo. Mas um princípio que abre espaço para novas maneiras de descrever o passado, com maior consciência do processo de produção do discurso historiográfico. Ter conhecimento do papel que a formalização da linguagem exerce no estudo do passado e pôr em questão a verdade/imparcialidade/objetividade da historiografia “pode levar a uma forma mais abrangente de análise histórica, menos provável de excluir o marginalizado e ‘o outro’” (p. 225). Depois da conclusão, Munslow ainda incluiu um glossário com parte dos principais verbetes usados no livro, bem como um “Guia para leituras adicionais”, no qual cita obras ligadas às três formas de abordagens descritas por ele.

Em termos gerais, compreendo que o livro como um todo apresenta alguns problemas. O primeiro é relativo às categorias usadas para designar as três abordagens (reconstrucionismo, construcionismo e desconstrucionismo): qualquer tentativa de delimitar autores tão distintos entre si em apenas três modalidades tende a abreviar a complexidade de posições. Roger Chartier, por exemplo, ora é colocado ao lado de autores desconstrucionistas, como White – o que é, no mínimo, curioso –, ora é incluído, juntamente com outros historiadores da École des Annales, na plêiade de construcionistas. O segundo diz respeito à falta de discussão e/ou conceituação do que se compreende por termos como objetividade, verdade histórica, imparcialidade, entre outros.

Embora possa parecer, essa não é uma discussão vã, contemplação vazia ou fuga do que realmente interessa. Mas um ponto de partida que não deve ser ignorado. Outro problema teórico refere-se ao uso do termo desconstrucionismo como uma forma de abordar a história, isto é, uma prática da mesma natureza do reconstrucionismo e do construcionismo. Apesar de alguns historiadores aceitarem as proposições ditas desconstrucionistas, essa maneira de conceber a produção do conhecimento histórico não se consubstanciou ainda como uma forma de investigar o passado, mas, até o momento, como uma reflexão teórica sobre a forma como os historiadores transformam os fragmentos do passado em historiografia. De outro modo, é, antes, uma teoria a respeito das possibilidades cognitivas do saber historiográfico (metateoria) e não propriamente uma abordagem da história em seu acontecer. E, por fim, o autor usa, por vezes e indistintamente, a palavra história para designar tanto a disciplina como os acontecimentos no tempo, dificultando o entendimento de determinados trechos.

Todavia, Desconstruindo a história tem muitos méritos. Conquanto a originalidade de ideias não seja um atributo a ser destacado, sobretudo por ser baseado nas proposições de Foucault e White, o livro de Munslow organiza didaticamente complexas maneiras de se entender o conhecimento histórico em três termos e apresenta ao leitor importantes tópicos e pressupostos das discussões atuais sobre teorias da história, que, em certo sentido, são muito úteis para aqueles que se interessam pelo tema. Outro ponto a ser ressaltado é que, por ter o foco em uma discussão que é encaminhada majoritariamente em ambiente anglo-saxão, Desconstruindo a história torna visível autores pouco citados entre pesquisadores nacionais. Além disso, embora Munslow seja adepto do desconstrucionismo, ele, a rigor, não reduziu totalmente as outras duas abordagens (reconstrucionismo e construcionismo) a esquematismos simplistas.

Diferentemente disso, ele cita e apresenta um número razoável de autores alinhados com essas duas “correntes”, mostrando-se, inclusive, simpático com algumas “soluções” encontradas pelos realistas-práticos (reconstrucionistas moderados), ainda que tenha enfatizado, o que é compreensível, determinadas ideias e encaminhado o debate de modo que o desconstrucionismo, ao final, fosse considerado a melhor maneira (senão única) de se conceber a produção do conhecimento historiográfico.

Embora repetitivo e com uma tradução problemática, Desconstruindo a história, enfim, pode ser considerado um livro que introduz o leitor em um ambiente intelectual bem delimitado, defende uma perspectiva no debate contemporâneo acerca do fazer historiográfico e estimula-nos a refletir sobre o ofício de historiador. Ainda que não se concorde com os pressupostos e ideias do “desconstrucionismo”, conhecê-lo por um de seus defensores parece ser uma maneira astuta de discordar, com fundamento, das proposições dessa vertente. Por isso, Desconstruindo a história pode ser um ponto de partida proveitoso àqueles que pretendem pesquisar e escrever a respeito da história e/ou pensar sobre esse complexo e atraente processo.

Ricardo Marques de Mello Doutorando Universidade de Brasília (UnB) [email protected] Campus Darcy Ribeiro, ICC Norte, Subsolo, Sala 679 Brasília – DF 70910-900 Brasil.