Nação, Comércio e Trabalho na África Atlântica / Varia História / 2013

É visível o crescimento do campo dos estudos africanos no Brasil ao longo da última década. Cada vez mais eventos dedicados ao tema ocorrem em diversos espaços no país, as agências de fomento investem no desenvolvimento de projetos vinculados à área, as traduções e publicações de livros de pesquisadores brasileiros também aumentaram significativamente nos últimos anos. O diálogo internacional, já em andamento, é mais um objetivo a ser perseguido e consolidado nos próximos anos.

Este dossiê é mais um passo nesta direção tendo sido originalmente pensado para trazer novas reflexões ou releituras acerca dos temas relacionados à história do trabalho no continente africano. Trata-se de tema caro e fundamental para a compreensão dos desenrolares históricos das formações sócio políticas da África, inclusive por sua centralidade na própria tradição historiográfica. Estudos sobre a escravidão, o tráfico atlântico de escravos e as formas de trabalho forçadas produziram verdadeiros clássicos cujas influências extrapolaram as áreas de estudo relativas apenas à história do trabalho.

Se por um lado os desenvolvimentos historiográficos das últimas décadas fizeram muito para ultrapassar as velhas dicotomias que nortearam as pesquisas sobre história da África por boa parte da segunda metade do século XX, mostrando as complexidades das condições sociais para muito além dos binômios escravo-livre, colonizado-colonizador, vítima-algoz, colonial-pós-colonial, entre outros, por outro, não é possível desprezar as relações violentas que se impuseram em diversos níveis sobre as várias regiões do continente africano desde o contato com a Europa em estágio inicial da expansão capitalista. Como pensar as mudanças nas formas de escravidão no interior do continente sem levar em consideração as dinâmicas atlânticas das épocas moderna e contemporânea? Como considerar as condições extremas de exclusão e opressão no continente sem atentar para as lógicas coloniais derivadas da expansão imperial europeia a partir de meados do século XIX? Boa parte destas questões estão, direta ou indiretamente, abordadas nos textos do dossiê, escritos por historiadores brasileiros, africanos e europeus, num esforço de ampliar os debates do campo crescente em searas brasileiras e estimular um produtivo diálogo internacional.

Antes porém, apresentamos um texto de José da Silva Horta, que chegou-nos por ocasião de sua eleição para o PROGRAMA CÁTEDRAS do Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares / IEAT / UFMG e patrocinado pela Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa – FUNDEP. Nações”, marcadores identitários e complexidades da representação étnica nas escritas portuguesas de viagem: Guiné do Cabo Verde (séculos XVI e XVII) foi o texto original apresentado na Grande Conferência, atividade primeira desenvolvida no âmbito do programa de Catedrático Residente da UFMG que teve parcerias transdisciplinares com vários grupos de pesquisa, centros e laboratórios da UFMG e PUC-Minas.1

O texto de José da Silva Horta apresenta análise singular ao defender o uso de etnônimos para compreender as “nações” enquanto identidades étnicas das sociedades do Noroeste africano subsaariano a partir das pistas fornecidas por três dos mais importantes tratados do corpus documental para a região, escritos entres fins dos séculos XVI e XVII, por André Álvares de Almada, André Donelha e Francisco de Lemos Coelho. O autor enfrenta não apenas o desafio conceitual da historiografia mas também avança ao apresentar metodologias de leituras para compreender como pensavam os oeste-africanos em relação aos seus marcadores identitários, que variavam conforme as sociedades. As lógicas identitárias oeste-africanas, por vezes, foram bem captadas pelos discursos antropológicos dos viajantes / comerciantes, e em outras foram reconstruídas pela matriz de pensamento ocidental destes. Este foi o escopo da análise de Horta – mostrar que as sociedades se identificavam a partir do sentimento de pertença não restrito a um território ou a uma língua.

Voltando, portanto, ao tema original do dossiê, a organização dos outros artigos se deu por sequência temática e temporal. No artigo Biografia como História Social, Roquinaldo Ferreira apresenta a trajetória incrível de duas gerações da família Ferreira Gomes com o objetivo de explicar o funcionamento das redes transatlânticas que deram sustento ao comércio ilegal de escravos entre Angola e o Brasil. Assim como as estratégias utilizadas pelos comerciantes de Benguela, como o empresário Gomes Júnior, filho do carioca Ferreira Gomes e de mãe africana (Benguela), para driblar o controle do comércio ilegal de escravos. As trajetórias familiares mostram como comerciantes brasileiros e angolanos instalados ao sul de Luanda tentaram driblar as autoridades britânicas e portuguesas na costa angolana no contexto da proibição do tráfico de escravos e do comércio de urzela. A decadências das famílias angolana-brasileiras em Benguela, como ocorreu com o clã Ferreira Gomes, foi marcada pela independência do Brasil, a extinção do comércio de escravos e a tentativa de maior controle colonial português que diminuía drasticamente o papel das elites da terra. As questões raciais que até então não eram levadas em consideração devido ao pequeno número de brancos passavam a ter outra conotação em meados do Oitocentos em Angola.

O artigo de Elaine Ribeiro trata dos trabalhadores africanos no período posterior ao tratado por Ferreira. Seu texto aborda um grupo contratado em Luanda para acompanhar a expedição de Henrique de Carvalho à Mussumba do Muatiânvua, na década de 1880, no contexto pós abolição da escravidão nas possessões portuguesas. Com uma instigante análise baseada principalmente no próprio relato de Henrique de Carvalho – inclusive em parte da documentação iconográfica disponível – Elaine procura apresentar as condições de trabalho destes africanos, suas atividades e remunerações, as hierarquias estabelecidas entre eles e suas estratégias de atuação no contexto da expedição. Desta forma, aflora de sua pesquisa, por um lado, uma rica imagem do cotidiano destes trabalhadores, sempre em relação dialógica com a historiografia africanista que aborda as regiões visitadas e, por outro, eventuais formas de reconstrução identitária deste grupo que apropriava-se de elementos culturais distintos e construíam seus caminhos e vivências ao longo da expedição.

O historiador português Augusto Nascimento, especialista na história de São Tomé e Príncipe, analisou as questões relativas ao trabalho forçado de serviçais nas roças de São Tomé e Príncipe, importados do continente, principalmente através de Angola, e ao poder dos roceiros no momento da polêmica do cacau escravo no arquipélago. Os objetivos do autor consistem na análise, através dos discursos na imprensa de São Tomé, de como os são-tomenses se tentaram interpor no debate em torno do trabalho forçado de africanos e também na reflexão das fronteiras entre nação e raça, pensadas de forma distintas pelos ilhéus e autoridades colonizadoras num período em que a colonização estava assentada em critérios de hierarquização racial e as noções republicana de cidadania não se aplicavam à maioria dos indivíduos dos chamados territórios coloniais.

O ensaio de Jean Michel Tali, numa instigante reflexão sobre o trabalho forçado no caso dos regimes coloniais franceses no continente africano, retoma um dos temas clássicos da historiografia sobre o período colocando-o em perspectiva e dialogando com autores de diferentes matizes. Desta reflexão, resulta uma interessante síntese do estado atual das pesquisas sobre o tema. Ao realizar uma análise ao mesmo tempo aguçada e ampla, o autor recoloca a importante questão da relação entre formas de trabalho compulsório e o imperativo capitalista dos regimes coloniais. Com foco principal nas relações de produção na África colonial francesa, Jean-Michel amplia o escopo de análise com constantes comparações com regiões colonizadas por outros países europeus, demonstrando com grande clareza que, a despeito de projetos coloniais aparentemente diferentes, a expropriação forçada do trabalho foi, em conjunção com a expropriação territorial, elemento fundamental e basilar das práticas colonialistas em todo o território africano. Desta forma, sua interpretação reapropria-se de uma perspectiva global ao considerar a violência das relações de trabalho no continente africano como parte integrante do processo de formação do sistema mundo capitalista, e como ela se entranha em todos os níveis da hierarquia social ao longo do tempo.

Esta mesma perspectiva global orienta a pesquisa do historiador nigeriano Adoyi Onoja, a despeito de seu estudo de caso referir-se especificamente a uma história regional, qual seja, ao trabalho da polícia na cidade de Jos, Plateau, no centro da Nigéria. O percurso que Adoyi traça para analisar as entrevistas realizadas com membros da polícia em Jos engloba desde as relações entre a conformação do Estado nacional nigeriano pós independência e suas relações políticas internacionais imersas na Guerra Fria, passando pelas reflexões sobre os impactos dos longos anos sob governo militar em seu país e as consequências desastrosas das políticas econômicas centralizadoras, organizadas em torno da exportação de petróleo principalmente a partir da década de 1980, que desmantelaram os setores agrícola e industrial da economia nigeriana.

A conversão dos rendimentos do petróleo em investimentos na área de segurança, justificados pela instabilidade social resultante do desmantelamento dos demais setores da economia, explicaria então a predominância do exército como força de segurança nacional, que assumiu em grande parte as atividades que originalmente seriam apanágio de sua polícia não militar. Finalmente, surge um vívido quadro das condições materiais de trabalho de policiais e oficiais numa região marcada por tensões sociais no centro da Nigéria.

Esperamos, enfim, que as leituras destes textos estimulem cada vez mais novos pesquisadores e novas pesquisas sobre o tema, sempre ampliando os debates e contribuindo para o amadurecimento de um campo em acelerado crescimento no Brasil, e fortalecendo e consolidando o processo de internacionalização em curso.

Nota

1.GRUPOS DE PESQUISAS: Escravidão, mestiçagem, trânsito de culturas e globalização – séculos XV a XIX, coordenador: Eduardo França Paiva (Departamento de História – FAFICH / UFMG); Migrações e deslocamentos – a constituição de ‘estéticas diaspóricas’ nas literaturas africanas de Língua Portuguesa, coordenadora: Maria Nazareth Soares Fonseca (Programa de Pós-graduação em Letras / Instituto de Ciências Humanas / PUC-MG); População e Políticas Sociais,coordenador: Eduardo Rios Neto (Departamento de Demografia – FACE / UFMG); Literaterras: escrita, leitura, traduções; pesquisadora: Sônia Queiroz (Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários – FALE / UFMG); ARCHE – Arte, Conservação e História – Espaços, pesquisadora: Yacy-Ara Froner (Departamento de Artes Plásticas – Escola de Belas Artes / UFMG); A Modernidade Ibero-americana e a capitania de Minas Gerais (séculos XVII-XVIII) – Espaços, Poder, Cultura e Sociedade (UFMG / CNPq), coordenadora: Júnia Furtado (Departamento de História – FAFICH / UFMG), pesquisadora: Márcia Almada.
CENTROS E LABORATÓRIOS: Centro de Estudos sobre a Presença Africana no Mundo Moderno-CEPAMM-UFMG, coordenador: Eduardo França Paiva (Departamento de História – FAFICH / UFMG); Centro de Estudos Africanos – CEA-UFMG, coordenador: Luiz Alberto O. Gonçalves (Presidente do Conselho do CEA-UFMG); Laboratório de Estudos Africanos e História do Atlântico Negro (CNPq / UFMG), coordenadora: Vanicléia Silva Santos (Departamento de História – FAFICH / UFMG); Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino de História -LABEPEH, coordenadores: Júnia Sales, Pablo Lima e Soraia Dutra (Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino, DMTE – FAE / UFMG).

Alexsander Gebara – Departamento de História. Universidade Federal Fluminense

Vanicléia Silva Santos – Departamento de História. Universidade Federal de Minas Gerais.


GEBARA, Alexsander; SANTOS, Vanicléia Silva. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.29, n.51, set. / dez., 2013. Acessar publicação original [DR]

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