História Indígena na América / Anos 90 / 2011

É com grata satisfação que a Revista Anos 90, do programa de Pós-Graduação em História da UFRGS, apresenta um Dossiê dedicado à História indígena na América. No total foram selecionados doze artigos, para integrarem o volume de número 34. O expressivo número de trabalhos enviados para submissão é um indicativo da vitalidade dessa temática atualmente.

Como proposta geral, o Dossiê tem a pretensão de repensar a história dos índios na América, fato que implica estabelecer uma reinterpretação geral dos processos históricos e contatos culturais em que as populações originárias estiveram envolvidas. Para tanto, é necessário investir em uma perspectiva que considere os indígenas como sujeitos, valorizando os acontecimentos nos quais foram agentes de suas próprias histórias e as estratégias dessas populações diante das novas conjunturas encetadas pela presença europeia no continente americano.

Nos últimos anos, pesquisadores de diferentes disciplinas têm dedicado atenção as sociedades indígenas. As contribuições oriundas da antropologia, arqueologia, história e educação têm proporcionado avanços promissores à temática indígena. Nesse sentido, a interdisciplinaridade tem contribuído para o entendimento sobre as diversas formas de interação e relação sociocultural entre as populações indígenas e a sociedade envolvente.

Os debates historiográficos mais recentes, amparados pelos subsídios provenientes da pesquisa em arquivos, têm enfatizado o papel desempenhado pelos indígenas enquanto agentes sociais, privilegiando as atitudes e respostas manifestas frente às situações de conflitos, além do papel das lideranças e sua atuação como mediadores culturais. Afinal, o mundo indígena não foi um receptor passivo das políticas e iniciativas que emanavam da colonização, muito pelo contrário, foi capaz de elaborar respostas e gerar ações próprias.

Entre os textos que integram este Dossiê, há uma preponderância da produção histórica recente, resultado de dissertações e teses de doutorados defendidas nos últimos anos nos Programas de Pós-Graduação do país. Trabalhos gestados e inseridos no panorama atual de debates sobre a participação e, especialmente, a capacidade indígena de agir em diferentes contextos históricos.

Assim, o conjunto de textos aqui reunidos constitui uma amostra do que vem sendo discutido e debatido a respeito das possibilidades e das potencialidades da temática indígena, destacando a sua relevância para um projeto de país que se quer diverso e plural. É certo que tal perspectiva somente foi garantida através da Constituição Federal de 1988, ao reconhecer os direitos coletivos dos povos indígenas no Brasil, além é claro de suas terras tradicionais. No seu conjunto, estas medidas asseguraram o direito à diferença de determinados grupos, pois eles, agora, diante de uma nova legislação, passam a integrar a nação brasileira de fato e de direito. Enfim, começamos a superar o estigma assimilacionista que vinha sendo propalado desde a época do Marquês do Pombal.

E uma nação, quanto mais plural for, mais rica será, principalmente diante das possibilidades de gestar um futuro promissor. A efetivação dessa pluralidade deverá ser divulgada nas escolas de todo país através da Lei n. 11.645, de março de 2008. Tal lei, grosso modo, determina que conste nos currículos escolares conteúdos referentes a afro-descendentes e indígenas, ou seja, procura garantir que o ensino de História no Brasil contemple e inclua aqueles que até então estavam ausentes, ou pouco representados, nas narrativas nacionais. Afinal, a escrita da história nem sempre foi igualitária.

No primeiro artigo, Guillermo Wilde, professor na Universidade Nacional de San Martín e pesquisador do Conicet (Argentina), propõe repensar criticamente alguns dos aspectos presentes na configuração das lideranças indígenas, tema ao qual dedicou atenção em sua tese de doutorado (UBA, 2003). O modelo de análise proposto por Wilde procura avançar em relação aos esquemas estáticos adotados para analisar a emergência das lideranças indígenas nas terras baixas da América do Sul, privilegiando uma perspectiva que valoriza o ponto de vista histórico e processual destacando as mudanças sociais, culturais e políticas verificadas na sociedade colonial, particularmente nas reduções de índios guaranis instalados na Província do Paraguai. Assim, os atores sociais não agem unicamente movidos por uma dinâmica pautada na tradição ou apenas é o mero resultado de uma imposição externa. Enfim, o que importa é destacar as adaptações, as reformulações e as ressignificações de sentidos verificadas nas organizações políticas indígenas.

O segundo artigo que integra este dossiê é de Elisa F. Garcia, professora de História da América na Universidade Federal Fluminense, que tem dedicado atenção às populações indígenas instaladas na região platina. Território caracterizado pela questão da fronteira entre os dois Impérios Ibéricos, e no qual as populações indígenas jogaram um papel de destaque nas políticas indigenistas das respectivas monarquias, quer como aliados ou inimigos. Ao investir nas classificações coloniais, nas maneiras pelas quais foram identificados os diferentes grupos ameríndios instalados na região ela rompe com o tratamento tradicional dispensado pela historiografia que concebiam tais grupos como estanques e com papéis previamente definidos. Elisa procura dar ênfase ao caráter ativo das populações ameríndias nesse contexto de fronteira e de como os ameríndios procuravam tirar proveito de tal situação em prol de suas necessidades. Ao enfatizar as interações entre os diferentes grupos indígenas instalados na região platina, Elisa enfatiza que as identidades indígenas são o resultado de um processo histórico e dinâmico, no qual as dicotomias discutíveis perdem sentido ao serem analisadas a partir de situações concretas e de um contexto relacional.

O artigo de Ricardo Cavacanti-Schiel, doutor pelo Museu Nacional / UFRJ e pós-doutorando na Unicamp, aborda a história indígena nos Andes, especialmente os andes meridionais. Seu artigo é uma síntese primorosa que, a partir de inquietações etnológicas geradas a partir da comparação com as demais regiões nucleares da América, procura propor uma interpretação inovadora quanto aos mecanismos de funcionamento das sociedades andinas. Ao articular de forma direta e objetiva os dados da etnologia, da arqueologia e história, o autor estabelece uma discussão densa e consistente que desemboca em uma reavaliação de alguns dos pressupostos que serviam de fundamento para o caso andino. Ao investir na lógica cultural da incorporação, eles acabam por revelar outros mecanismos que conferem coerência e inteligibilidade às ações encetadas pelos nativos radicados na região dos Andes. Ao repensar o “principio ordenador” do Tawantisuyu (“as quatro partes do mundo”, como os Incas denominavam seu território), o autor acaba por revelar os demais códigos que serviam de fundamento para as sociedades andinas.

Paulo Rogério de Melo de Oliveira, professor na Universidade do Vale do Itajaí / SC, dedica atenção aos episódios conhecidos como a rebelião de Ñezu, um poderoso cacique e pajé que concentrava poderes políticos e religiosos entre os guaranis. Apesar dos contatos iniciais promissores, ao iniciarem a evangelização no território que atualmente corresponde à região noroeste do estado do Rio Grande do Sul, logo os jesuítas enfrentaram a tenaz oposição de Ñezu, tido como um grande “feiticeiro”. Sua reação resultou na morte do missionário Roque Gonzáles, de destacada atuação na região. Através dessa atitude, ele visava a preservar o antigo modo de vida dos guaranis, que considerava ameaçado diante da presença dos padres em seu território, no qual procuravam introduzir a prática dos batismos entre os indígenas e erradicar a poligamia. O autor procura, a partir de uma leitura criteriosa dos interrogatórios realizados com os indígenas simpatizantes de Ñezu, esclarecer as motivações que levaram o referido pajé a executar os três jesuítas. Tal rebelião é indicativa das relações sempre tensas e ambíguas no tocante ao projeto catequético empreendido na America colonial.

O artigo de Maria Elena Imolesi, professora da Universidade de Buenos Aires (UBA), dedica atenção ao cotiguazu, ou casa das recolhidas, espaço dentro das reduções guaranis destinado a acolher mulheres de distintas procedências e condições, tais como viúvas, órfãos ou mulheres de outras parcialidades indígenas. Apesar das escassas referencias a este espaço nos documentos jesuíticos de circulação pública, há muitas menções na documentação interna cuja preocupação era a de garantir a reprodução da organização social estabelecida nas reduções do Paraguai. A autora explora esse espaço como um indicador da instabilidade e do conflito das reduções com o seu entorno, a partir das medidas tomadas para preservar as mulheres e garantir a reprodução física, indicando que houve excessos na adoção de algumas medidas pelos jesuítas, sintetizadas na expressão “el cotiguaçu no és carcél”. Ao reconstruir a história social desse espaço, a autora procura demonstrar que nem tudo saiu de acordo com o planificado pelos missionários.

O artigo de Giovani José da Silva, professor na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, aborda a trajetória etno-histórica dos indígenas conhecidos como Chiquitanos, população ameríndia localizada atualmente no território que corresponde à Republica da Bolívia. A história desse grupo está relacionada ao projeto de catequese empreendido pelos missionários jesuítas na América que, apesar de uma continuidade em termos de práticas e inserção territorial, também apresenta uma série de ressignificações e adaptações em função da situação histórica e de contatos com a sociedade envolvente. A constante necessidade de mão de obra acabou determinando uma precarização das relações de trabalho nessa região, que conjugada a outros fatores resultaram em condições desumanas de exploração do trabalho indígena, em que castigos e torturas eram práticas correntes. Apenas na segunda metade do século XX, é verificado um movimento de libertação dos indígenas, que culminou com a consolidação das Tierras Comunitárias de Origen, servindo de base para uma reformulação das leis agrárias, que tem conferido visibilidade aos Chiquitanos em suas demandas atuais.

O texto de Susane Rodrigues de Oliveira, professora na Universidade de Brasília, dedica atenção ao ensino de história. Para tanto, aborda como as sociedades indígenas estão representadas nas fontes coloniais, muitas vezes apresentadas como imagens estanques da realidade ameríndia, sem esmiuçar em que condições e contexto elas foram produzidas. Sua pesquisa é o resultado de um projeto mais amplo que contou com o recurso de questionários aplicados aos alunos do ensino médio nas escolas do Distrito Federal. A proposta da autora é a de problematizar, a partir das fontes coloniais, os pressupostos que norteiam a produção do conhecimento histórico referente às populações ameríndias, para então desconstruir a noção recorrente presente em muitos livros sobre a história como uma verdade inconteste. Enfim, pretende demonstrar como o estudo do passado pode auxiliar na compreensão do presente e lançar desafios para o futuro.

Karina Moreira e Melo, doutoranda na Unicamp, apresenta-nos uma discussão pouco presente na produção historiográfica regional, no caso as questões referentes à definição de uma política indigenista na Província de São Pedro. O estudo de Karina está centrado na instalação do aldeamento de São Nicolau do Rio Pardo – que até o momento não contava com um trabalho sistematizado sobre este espaço indígena formado em sua maioria por guaranis egressos das reduções. Através dos discursos proferidos pelos eclesiásticos e os políticos, principalmente no século XIX, a autora procura identificar as práticas indígenas, por vezes invisibilizada nessas manifestações públicas. A população do aldeamento de São Nicolau participou de inúmeros episódios bélicos na Província de São Pedro, com uma destacada atuação nos conflitos militares ou em atividades relacionadas à pecuária. A vivência nesse aldeamento, cuja longevidade chama atenção, permitiu a esses indígenas reelaborarem suas identidades, além de possibilitar a eles configurar novas relações sociais de maneira mais ampla e destacada do que imaginávamos até então.

Soraia Sales Dorneles, também doutoranda na Unicamp, apresenta-nos um texto que procura dimensionar o contato entre os indígenas do grupo Kaingang e as iniciativas de colonização no Rio Grande do Sul, durante do século XIX, primeiro com colonos alemães e posteriormente com os italianos. Com o avanço das frentes de colonização e a consequente ocupação das terras indígenas, foram intensificadas as experiências de contatos entre sujeitos que se desconheciam mutuamente. A autora procura demonstrar que a experiência cultural resultante desses encontros acaba por gestar novas formas de conceber as relações de alteridade e que nesse contexto a expressão “bugres” poderia tanto referir-se aos próprios indígenas como denotar certa indianização de pessoas que mantiveram uma proximidade com o mundo ameríndio. Nesse contexto, os processos de formação identitária são a resultante de situações concretas, no caso as contextuais.

A luta pela terra entre os Kaingang é o tema do artigo elaborado a quatro mãos por Ana Lúcia Vulfe Nötzold, professora na Universidade Federal de Santa Catarina, e Carina Santos de Almeida, doutoranda na mesma instituição. Tomando como estudo de caso os conflitos verificados na Terra Indígena Xapecó, em Santa Catarina, no século XX, as autoras procuram denunciar a expropriação territorial a que foram submetidos os Kaingangs instalados em Xapecó. Em boa medida, a usurpação dessas terras reservadas aos indígenas contou com a conivência de funcionários do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e mesmo de agentes do governo catarinense, pois consideravam a existência dessa Terra Indígena como um entrave ao modelo de desenvolvimento regional.

Marcio Antônio Both da Silva, professor na Unioeste / SC, em seu artigo, dedica atenção à questão fundiária e à política indígena no Rio Grande do Sul durante o governo do Partido Republicano Rio Grandense (PRR). O autor destaca que a apropriação territorial promovida nessa época, base da política de colonização e imigração no estado, foi verificada em uma região na qual estavam instaladas as principais reservas indígenas. Na sua avaliação, havia uma grande distância entre as políticas de proteção e tutela aos indígenas com o que se verificava na prática. Para exemplificar seu argumento recorre a um caso verificado em Palmeira das Missões / RS, através das informações contidas em um Processo crime, cujo desfecho resultou na morte de um índio e outros tantos feridos.

O último artigo que integra este Dossiê é de autoria de Antonio Carlos Amador Gil, professor da Universidade Federal do Espírito Santo, que através de uma discussão pautada na bibliografia especializada procura dimensionar o espaço dedicado aos indígenas nas manifestações dos intelectuais mexicanos no período posterior à Revolução Mexicana. O autor demonstra que apenas com o governo de Lázaro Cárdenas começava a vigorar uma postura integracionista, que apesar de valorizar o papel dos indígenas na configuração do Estado mexicano deixava muito a desejar quanto às políticas públicas direcionadas às comunidades indígenas que seguiam atuantes no México pós-revolucionário.

Para finalizar o Dossiê, publicamos ainda a resenha de autoria Horácio Zapata, da Universidade Nacional de Rosário (Argentina), que aprecia o livro coordenado por Liliana Tamagno, intitulado: Pueblos indígenas: interculturalidad, colonialidad, política (Buenos Aires: Biblos, 2009).

Como organizador deste Dossiê, avalio que no seu conjunto a grande maioria dos textos reunidos para este volume procurou abranger diferentes situações vivenciadas pelos indígenas no Continente Americano, fato que resultou, como mencionou Guillaume Boccara, na gestação de Mundos Novos no Novo Mundo.

Eduardo Neumann


NEUMANN, Eduardo. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 18, n. 34, dez., 2011. Acessar publicação original [DR]

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