Com o Mar por Meio. Uma Amizade em Cartas – AMADO; SARAMAGO (A-EN)

AMADO, Jorge; SARAMAGO, José. Com o Mar por Meio. Uma Amizade em Cartas. Seleção, organização e notas de Paloma Jorge Amado, Bete Capinan e Ricardo Viel, São Paulo: Companhia das Letras, 2017. Resenha de NOGUEIRA, Carlos. Correspondence Jorge Amado / José Saramago: the supreme delicacy that is friendship. Alea, Rio de Janeiro, v.21 n.3, sept./dec., 2019.

O título deste livro, que os organizadores foram buscar em uma das cartas que José Saramago enviou a Jorge Amado, indica, com precisão e expressividade, as circunstâncias que desencadeiam a correspondência trocada pelos dois escritores entre 1992 e 1998: quer a imensa distância física que os separava, quer as inúmeras solicitações que, muitas vezes, não permitiram que eles se encontrassem. O subtítulo, também muito sugestivo, resume bem a grande motivação destas mensagens: a amizade entre Amado e Saramago, que nasceu quando “os dois já iam maduros nos anos e na carreira literária”, como se lê na contracapa, na qual se reproduz uma fotografia dos dois, sentados lado a lado. Nesta amizade participaram igualmente, e para ela muito contribuíram, as companheiras de cada um deles: Zélia Gattai e Pilar del Río.

Em forma de carta, bilhete, cartão ou fax, esta correspondência traduza profunda admiração que Jorge Amado e José Saramago sentiam um pelo outro enquanto pessoas e escritores. A vivacidade do estilo confere a estes textos tão pessoais uma noção de conjunto que se soma ao quadro completo da vida humana inscrito em obras que pertencem, de pleno direito, à melhor literatura universal, tanto no aspeto doméstico e individual como no coletivo e heroico.

Em diversas ocasiões, Pilar del Río disse acreditar que a divulgação destas cartas favorece a aproximação dos leitores à obra de dois escritores cuja maneira de ser, estar e pensar se vê, em larga medida, nestes textos breves ou muito breves, que não foram escritos com intenções de publicação. São documentos preciosos para o conhecimento da intimidade e da cumplicidade que unia Jorge Amado e Saramago, que o mesmo é dizer: textos valiosos para a compreensão da biografia e da personalidade de ambos. Esta correspondência revela-nos o quotidiano de dois homens – comprometidos com a escrita e a vida, as sociedades portuguesa, espanhola, brasileira e o mundo – que haveriam de se encontrar em Paris, Roma, Madrid, Lisboa, Brasília e na Bahia. É mais correto dizer que este comprometimento com a vida é extensível aos dois membros dos dois casais, uma vez que Zélia Gattai e Pilar del Río são sempre destinatárias explícitas e agentes do que se conta e anuncia, nomeadas quase sempre no vocativo inicial, que inclui o adjetivo “queridos” (ou “querida”, como em “Querida Zélia, querido Jorge”), ora a qualificar os amigos sem os nomear (“Queridos amigos”), ora a nomeá-los (“Queridos Pilar e José”), ora num misto destas duas formas, como em “Zélia, Jorge, queridos amigos”.

Poder-se-á pensar que os livros de cartas, especialmente aqueles que reúnem textos curtos ou muito curtos, têm uma vida e um interesse limitados. Não é assim, nesta coletânea, como não o é sempre que estão envolvidas obras (e vidas) cuja grandeza admite pouca ou nenhuma discussão. As palavras de Jorge Amado e José Saramago bastariam para garantir a importância deste livro, que está enriquecido com fotografias e textos que, relacionados com as cartas ou diretamente com Jorge Amado (como a propósito da morte deste escritor), Saramago escreveu e, na sua grande maioria, publicou nos Cadernos de Lanzarote. Os organizadores decidiram ainda incluir uma carta de Pilar, dirigida ao casal amigo, que sintetiza bem o tema que, ao lado dos temas da amizade e da saudade, mais é discutido na correspondência entre os dois amigos: os prêmios literários, sobretudo o Nobel da Literatura.

A autoria das cartas, dizia, seria suficiente para distinguir este livro de outros do mesmo gênero que vão sendo publicados um pouco por todo o mundo. Convém, todavia, fundamentar bem esta nossa afirmação. Com o Mar Por Meio testemunha uma amizade que surge quando os dois escritores tinham já uma idade avançada e um considerável reconhecimento literário e social. Não é uma fatalidade, mas sabemos como entre os escritores (maiores e menores) são frequentes as desavenças, as invejas e os ódios mais ou menos confessados. Entre Jorge Amado e Saramago não há o menor indício de rivalidade, nem o mais tênue ressentimento pelo sucesso do outro. Muito pelo contrário, cada um defende veementemente a qualidade da escrita do amigo e a justiça da atribuição de mais prêmios ao outro e à língua portuguesa. Os dois lamentam também o que consideram as injustiças e as provocações que várias academias e certos júris têm cometido em relação a cada um deles. É neste contexto que Saramago declara: “Finalmente o Camões para quem tão esplendidamente tem servido a língua dele! Será preciso dizer que nesta casa se sentiu como coisa nossa esse prémio? Que pessoalmente me sinto orgulhoso do comportamento dos portugueses que passaram pelos júris, e em especial os de agora? Sirva isto de compensação para as decepções e as amarguras que outros causaram a Jorge” (p. 85).

Numa das cartas mais longas e ricas de Com o Mar por Meio, a que acima já aludi, Pilar del Río ajuda-nos a enquadrar e a compreender as ideias e as atitudes de Jorge Amado e de José Saramago relativamente aos prêmios literários em geral e ao Prêmio Camões e ao Nobel, em particular, por cuja “concessão” a um autor de língua portuguesa os dois muito lutaram. A autora, numa linguagem não menos exata e apelativa do que a dos dois escritores, elogia a obra e a personalidade de Jorge Amado, ao mesmo tempo que retira aos prêmios literários a autoridade e a gravidade que, regra geral, lhes atribui: “Lo que has hecho con el portugués y por el portugués, la luminosidad que has añadido a esa lengua y al hermoso acto de novelar, merece todoelreconocimiento. No digo el Nobel, porque cuando se habla de Literatura (así con mayúscula), me parece una ordinariez citar un premio, aunque sea el premio de los premios” (sublinhado no original; p. 58). A apreensão que os prêmios literários merecem a Pilar del Río é inversamente proporcional à sua confiança na literatura de Jorge Amado, cuja leitura nos dá a satisfação e o poder “de ser más hondos y más universales. En definitiva, de ser más humanos por ser más inteligentes” (p. 58). Com perspicácia e ironia fina, a autora, confiante no bom senso dos “senõres de Estocolmo” (p. 58), inverte os termos da equação: “Por supuesto, si además, te dan el Nobel, como parece tan probable, mejor que mejor. No te añadirá ni un ápice de honra o de gloria, que de eso estás servido con tu obra, pero honrarás al premio” (p. 58).

Não numa carta, mas num texto do seu diário, publicado nos Cadernos de Lanzarote, é dentro desta linha de pensamento e com sentimentos que parecem ser muito semelhantes aos de Pilar del Río que o escritor português comenta os prêmios literários em cujos júris participa ou que espera ganhar ou ver Jorge Amado ganhar. Com a expressividade, a clareza e a contundência que sempre incutiu às suas palavras, Saramago afirma, a propósito da atribuição do Prêmio Camões a Rachel de Queiroz: “Não discutimos os méritos da premiada, o que não entendemos é como e porquê o júri ignora ostensivamente (quase apeteceria dizer: provocadoramente) a obra de Jorge Amado. Esse prémio nasceu mal e vai vivendo pior. E os ódios são velhos e não cansam” (p. 24). Sobre o Nobel, no mesmo tom direto, Saramago comenta as informações segundo as quais o prémio de 1994 seria para António Lobo Antunes. Com ironia, o escritor português argumenta: “Já sabemos que em Estocolmo tudo pode acontecer, como o demonstra a história do prémio desde que o ganhou Sully Prudhomme estando vivos Tolstói e Zola” (p. 51). Aquilo que José Saramago escreve a seguir, dentro de regras de boa educação e honestidade intelectual, não poderia ser mais frontal: “Quanto a mim, de Lobo Antunes, só posso dizer isto: é verdade que não o aprecio como escritor, mas o pior de tudo é não poder respeitá-lo como pessoa” (p. 51). A concluir este texto, Saramago confessa, com autoironia, o desejo de se deixar de preocupar com o Nobel, que é, como ele diria numa carta escrita quatro dias depois daquele texto do diário, “uma invenção diabólica” (p. 53). “Como não há mal que um bem não traga, ficarei eu, se se confirmar o vaticínio do jornalista, com o alívio de não ter de pensar mais no Nobel até ao fim da vida” (p. 51).

A incomodidade e os conflitos interiores trazidos aos dois escritores pela obrigatoriedade de conviverem com o tema dos prêmios literários e de quererem conquistá-los para si tiveram como reverso, felizmente, a alegria de se sentirem reconhecidos e de poderem dirigir palavras de apreço um ao outro (Jorge Amado com o Prémio Camões, Saramago com o Nobel). Deste sentimento é sintomática a atitude inesperada e improvável de Jorge Amado, que, apesar de muito doente, ao ouvir da boca de Zélia Gattai que Saramago fora distinguido com o Nobel, “pulou do cadeirão, chamou Paloma, pediu que se sentasse no computador que ele iria ditar de imediato, uma nota para a imprensa” (p. 113), telefonou ao irmão, festejou (o possível) com a mulher e a filha, “Foi dormir contente” (p. 113). Contudo, “No dia seguinte, não quis mais abrir os olhos” (p. 113).

A questão dos prêmios literários, cuja discussão neste livro é preciosa para o conhecimento da personalidade e da vida de dois dos mais importantes escritores de língua portuguesa, justifica, por si só, a leitura atenta desta correspondência. Mas ao tema polêmico e complexo dos prêmios acresce o tom e o estilo das cartas. Nelas, a linguagem direta, a concisão e a secura das frases não são incompatíveis nem com a sinceridade dos sentimentos e das emoções nem com a profundidade do tratamento dos temas e assuntos (fala-se também da participação dos dois em júris e academias, de questões políticas e sociais, de saúde, etc.). Essa naturalidade e essa força veem-se em formulações, muito próprias tanto de Jorge Amado como de Saramago, que lembram máximas e pensamentos burilados pela tradição, como: “Espero que, ao menos, o trabalho me ocupe esses dias de velhice – velhice não é coisa que preste” (Jorge Amado p. 89); “[…] desejamos que haja mais ocasiões para estarmos juntos e partilhar do manjar supremo que é a amizade” (José Saramago, p. 107).

Para os leitores destas cartas, fica claro que Jorge Amado e José Saramago sempre pensaram a literatura e as literaturas em língua portuguesa não como existências isoladas, mas como forças centrais no jogo das energias e das construções tanto individuais como históricas, culturais e políticas.

Referências

AMADO, Jorge; SARAMAGO, José. Com o Mar por Meio. Uma Amizade em Cartas. Seleção, organização e notas de Paloma Jorge Amado, Bete Capinan e Ricardo Viel. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. [ Links ]

GOULART, Rosa Maria. O Trabalho da Prosa: Narrativa, Ensaio, Epistolografia. Coimbra: Angelus Novus, 1997. [ Links ]

LEMOS, Ester. “Epistolografia (em Portugal)”. In: COELHO, Jacinto do Prado (dir.). Dicionário de Literatura. 4a. ed. Porto: Mário Figueirinhas Editor, 1997, p. 295-298. [ Links ]

ROCHA, Andrée. A Epistolografia em Portugal. Coimbra: Livraria Almedina, 1965. [ Links ]

*Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), no âmbito do Centro de Estudos em Letras (referência UID/LIN/00707/2019) da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Portugal.

Carlos Nogueira. É co-titular da Cátedra José Saramago da Universidade de Vigo (Galiza, Espanha). Doutorou-se em Literatura Portuguesa na Faculdade de Letras da Universidade do Porto (2008), onde também fez um mestrado em Estudos Portugueses e Brasileiros (1999) e se licenciou em Línguas e Literaturas Modernas (1994). Realizou um pós-doutoramento em Literatura Portuguesa na Universidade Nova de Lisboa (2014). O seu trabalho de investigação mais recente tem-se centrado sobretudo nas relações entre a Literatura, a Filosofia e o Direito. E-mail: [email protected]

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O Meças – CARVALHO (A-EN)

CARVALHO, J. Rentes de. O Meças. Lisboa: Quetzal, 2016. Resenha de NOGUEIRA, Carlos. O Meças, by Rentes de Carvalho: polyphonic novel about Portugal. Alea, Rio de Janeiro, v.20 n.2, may./aug., 2018.

Em 2013, numa entrevista concedida ao JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias, referindo-se ao romance que acabava de publicar, J. Rentes de Carvalho (1930) afirmava: “Creio, aliás, que não voltarei tão cedo ao género, pois é difícil manter a sequência e evitar que os personagens não baralhem o enredo”. O novo romance de J. Rentes de Carvalho não vem necessariamente contradizer aquelas palavras, uma vez que passaram já três anos desde a saída de Mentiras & Diamantes (2013). Mas não nos parece arriscado dizer que a maioria dos leitores do autor de Ernestina terá recebido com grande surpresa a notícia da publicação de O Meças, o oitavo romance de um escritor que também tem sobressaído na crônica, no conto e no diário.

Rentes de Carvalho é um escritor moderno desde o seu primeiro romance, Montedor (1968), reeditado em finais de 2014. Este livro expõe o mundo interior de uma personagem, em discurso de primeira pessoa, mas não descuida a realidade exterior: o contrabando, a emigração, a política obscura e corrupta, a desvergonha e a impunidade dos poderosos, a influência do clero, as desigualdades econômicas e sociais, o atraso sociocultural.

Montedor é um romance psicológico, mas é também um romance de formação de matriz autobiográfica e de ação, e não menos um romance realista que vai buscar os temas e motivos ao quotidiano mais comum e nos revela uma sociedade em conflito. Assistimos a um número significativo de peripécias dramáticas e ao drama interior do protagonista desde o momento em que ele reprova nos exames que lhe dariam acesso a um “diploma” e a um bom emprego, testemunhamos os momentos principais da sua vida, desde a ida para a tropa, ao regresso a casa e ao casamento por obrigação; e somos levados a estabelecer uma comparação com a vida de quem escreveu o livro. J. Rentes de Carvalho deixou Portugal, viveu em cidades como o Rio de Janeiro, Nova Iorque e Paris, e estabeleceu-se na Holanda em 1956, onde teve condições para desenvolver uma carreira como escritor de méritos rapidamente reconhecidos no país que o recebeu. O protagonista de Montedor ficou em Portugal, e aí, fechado dentro de si, perdeu toda a liberdade e dignidade. Um romance, como se vê, e por razões óbvias, tão atual na década de sessenta como hoje.

O Meças, como Montedor, é um romance sobre Portugal. Esta fórmula, que tem sido usada para definir a ficção de J. Rentes de Carvalho, apesar de não ser inexata, é muito incompleta. Montedor articula a representação da intimidade mais profunda de uma personagem com a representação dos problemas de Portugal, e estabelece uma relação entre o tempo interior do protagonista e o tempo cronológico do país salazarista. A um tempo histórico e a um quotidiano em que existem figuras que dir-se-ia terem séculos, a um tempo que passa sem que se alterem as questões que em Portugal parecem ser irremediáveis (o patriarcado, as diferenças e a hostilidade entre ricos e pobres, o atraso sociocultural e econômico, o imobilismo, a corrupção), corresponde o tempo interior vivido pelo narrador-personagem, que é um perdedor atormentado até ao paroxismo. Com diferenças de perspetiva, de intensidade e de técnica narrativa, esta leitura aplica-se a outros romances do autor, em particular a O Rebate (1971) e A Amante Holandesa (2000, Holanda, 2003, Portugal). Mas o que traz originalidade a estes conteúdos é a omnipresença da memória e das emoções que afligem o sujeito e se sobrepõem à sua vontade. O Meças, organizado em quatro partes, ou em cinco, se considerarmos as “Anotações” finais, está em consonância com a sensibilidade, o pensamento e escrita de J. Rentes de Carvalho, que tem procurado compreender a origem, o significado, os mecanismos e as expressões, quer da sua memória e das suas emoções, quer da memória e das emoções portuguesas (e não só).

No primeiro capítulo, o narrador de terceira pessoa apresenta-nos António Roque, conhecido como o Meças, e é através do seu discurso inquiridor que assistimos à tragédia permanente deste homem violento e angustiado pela presença inexorável de um passado que se faz presente e futuro devido a uma complexa e incontrolável relação de causa e efeito entre perdas humilhantes e comportamentos, sentimentos e emoções induzidos por essas perdas e humilhações. No segundo capítulo, agora em discurso de primeira pessoa assumido pelo meio-irmão de Meças (que não sabe que aquele é seu meio-irmão, filho, como ele, do “Senhor Engenheiro”), a memória, enquanto presença interior hipersensível, é também constante. No terceiro capítulo, regressa o narrador de terceira pessoa, que mais uma vez representa o interior mortificado de Meças, e no quarto volta o meio-irmão da personagem que dá título ao romance. O meio-irmão de Meças, que se fixou em Newcastle, vem a Portugal com a intenção de revelar a Meças o que os une, mas, afinal, decide não o fazer. Educado, civilizado, preso às origens e ao mesmo tempo distante ou distanciado delas, ele é também, por circunstâncias diversas (o caráter violento do pai, ter-se visto a “crescer sozinho”, como ele próprio diz, saber-se nascido num país corrupto e atrasado), assaltado pela memória involuntária (Bergson) e dolorosa.

O Meças, que recebeu o prémio de Melhor Livro de Ficção, relativo a 2016, da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), como toda a obra ficcional deste autor, representa as emoções e as memórias repentinas e avassaladoras de personagens portuguesas, e indaga e explora a sua raiz, os seus sentidos e as suas implicações. O meio opressivo e opressor português está na origem das emoções e das memórias dos dois meios-irmãos deste livro, um culto e bem-educado, o outro precisamente o oposto. O Meças é uma representação de grande parte da sociedade portuguesa de meados do século XX até aos nossos dias, ou da sociedade portuguesa de qualquer tempo e de qualquer lugar. As personagens do romance não encontraram soluções para o seu desassossego, mas podem ajudar-nos a ver Portugal mais em profundidade, a compreender as inquietações, as memórias e as respostas da chamada, num sentido muito amplo, portugalidade.

Nem simplesmente realista à maneira de Eça de Queirós, nem exclusivamente subordinado aos procedimentos da narrativa anglo-saxônica (em cuja feição realista, que vem já do século XVIII, entram a sobriedade estilística e a valorização da interioridade das personagens), nem incondicionalmente subordinado às técnicas do noveau roman francês (que, por exemplo, num tempo de crise humanista, elimina ou reduz ao mínimo a intriga, e marca a impossibilidade de construir uma personagem bem delineada), O Meças encerra um conhecimento vasto da literatura portuguesa e internacional, e impõe-se como um livro singular que participa na modernidade da ficção portuguesa, tal como Montedor participou na década de sessenta na renovação literária portuguesa.

Não existe contradição entre a clareza e a exatidão e o registo predominantemente emotivo. O equilíbrio e a disciplina clássica da linguagem de O Meças estão perfeitamente de acordo com o estilo que reconhecemos a J. Rentes de Carvalho. A musicalidade intrínseca à escrita deste autor impede-a de incorrer em monotonia e automatismo, e em O Meças essa harmonia resulta numa expressão em que despojamento e inquietude se combinam e alternam. A sequência mais comum deste romance inclui orações ou expressões próprias do escritor clássico que o autor de Ernestina é, e momentos, consideravelmente extensos, em que a emotividade da personagem domina, representada pelo discurso indireto livre e/ou pelo monólogo interior. Esta sobriedade e esta emotividade acolhem, não raramente, um discurso autoirônico, como dissemos, mas também irônico, cômico e satírico cujo alvo é a sociedade em geral, das classes economicamente mais favorecidas às mais baixas, e da unidade da família à ética sexual e às estruturas e comportamentos religiosos. Mais do que de humor deve falar-se de comédia trágica, de desconstrução, através de uma paródia relativamente discreta, dos preconceitos e das verdades da sociedade portuguesa de meados do século XX: «Alguns até parece que nascem doutores, e ele, vinte e tal anos na Alemanha, nem sequer a língua foi capaz de aprender, só palavras soltas, os colegas às gargalhadas, obrigando-o a repetir tudo, dizendo que ninguém o entendia e a chamar-lhe “turco”» (p. 107).

O Meças combina a representação da intimidade mais recôndita de duas personagens com a representação discreta mas perceptível dos problemas de Portugal, e estabelece uma relação entre o tempo interior dos protagonistas e o tempo cronológico do país em que eles vivem ou viveram. Prevalece o conhecimento do mundo íntimo das personagens, ora em discurso de terceira pessoa, ora de primeira pessoa, mas não se perde a noção da realidade exterior (a emigração, a política obscura e corrupta ou a influência do clero, por exemplo), que, aliás, determina a desintegração das personalidades que, no caso da personagem Meças, vemos em desequilíbrio psicológico desde o início do romance. A um tempo histórico e a um quotidiano em que se inscrevem figuras que parecem ter séculos, indiferentes ao tempo do calendário, a um tempo que passa sem que mudem as questões que em Portugal parecem ser insolúveis (as diferenças entre ricos e pobres, e o atraso sociocultural e econômico, essencialmente), correspondem os tempos interiores vividos pelos narradores-personagens, que nos surgem como uma consciência e um corpo angustiados até ao paroxismo. Todo o romance é um prolongamento do primeiro parágrafo:

Alguém terá de lhe emprestar as palavras, porque as desconhece, mas se lhas tivessem ensinado seria incapaz de dizê-las, estonteado pelo remoinho, a vida a desfilar em ondas de desespero, ocasiões falhadas, sempre ele o que perde, a sofrer envergonhado, o que baixa os olhos e até si próprio tem de fugir. (p. 9)

Rentes de Carvalho – Esta resenha faz parte dos trabalhos da Cátedra Internacional José Saramago (Universidade de Vigo), projeto POEPOLIT (FFI2016-77584-P, Ministério de Economia e Competitividade da Espanha) e do Programa Estratégico UID/ELT/00500/2013 da FCT (Portugal).

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Livro – PEIXOTO (A-EN)

PEIXOTO, José Luís. Livro. Lisboa: Quetzal, 2010. Resenha de: NOGUEIRA, Carlos. Alea, Rio de Janeiro, v.14 n.1, jan./jun., 2012.

Livro, o sexto romance de José Luís Peixoto (1974), tem como contexto a emigração portuguesa para França e a literatura enquanto universo complexo, enigmático e contraditório. Estes dois temas surgem ligados na primeira frase do romance, mas o leitor não poderá compreender a verdadeira amplitude desta associação senão na segunda parte do livro.

“A mãe pousou o livro nas mãos do filho” (11) inicia uma narrativa que seduz o leitor pela imprevisibilidade e pelo dramatismo das situações, pela densidade psicológica das personagens e pelo encadeamento dos episódios, que se vão sucedendo numa progressão cronológica assinalada, entre parênteses, no início de alguns capítulos ou no seu interior, imediatamente antes do parágrafo que se segue e no mesmo tipo de letra do texto. Há ainda palavras-chave, como “(Fonte)” (26) ou “Posto da guarda” (101), números, o nome de uma personagem e, por vezes, a representação pictórica de uma mala, que também delimitam os momentos narrativos. À medida que o romance avança, o andamento dos episódios e a alternância entre eles intensificam-se.

Também neste aspecto da sintagmática narrativa o autor recorre, no nível gráfico, a uma estratégia que visa marcar esses momentos: um espaço em branco, equivalente a duas ou três linhas, entre cada parte. Num livro que tem tanto de romance tradicional como de narrativa pós-moderna, esta técnica, tal como as que enumeramos acima, contribui para a inscrição do romance numa categoria genealógica singular. As personagens deste romance estão divididas entre Portugal, de onde algumas nunca saíram, como Josué e a velha Lubélia, e França, para onde partiram na situação de emigrantes não propriamente convencionais e de onde voltam para períodos de férias e, mais tarde, no caso de Adelaide e do filho “Livro”, definitivamente.

Lubélia, personagem amargurada por ter abortado e por ter sido afastada pelos pais da experiência amorosa, envia a sobrinha à força para França, para separá-la de Ilídio, que, ao aperceber-se disso, decide partir à procura de Adelaide. Para além do episódio inicial, constituído pelo abandono de Ilídio pela mãe, que parte para França, é este o núcleo a partir do qual se desencadeiam todas as outras linhas efabulativas do romance. Apesar de narrados autonomamente, todos estes episódios se encontram associados numa lógica de alternância cinematográfica que dá ao leitor a possibilidade de saber o que as personagens não sabem umas das outras.

Fala-se, neste romance, de vidas humanas individuais, dos seus desejos, vontades, erros e conflitos; fala-se de amor, de morte, de encontros e desencontros; e fala-se também de Portugal como povo, com as suas crendices e obsessões, vícios e virtudes, alegrias e tragédias, e como país que vive a tragédia de uma ditadura e a conquista de liberdade política, social e individual. 1974 é, por isso mesmo, um ano privilegiado neste livro, em especial os dias que precedem e sucedem à revolução do 25 de Abril. “27 de Abril de 1974” é uma data com implicações narrativas e autobiográficas: é a data que assinala o fim da primeira parte do romance, narrado em terceira pessoa, e a data de nascimento do narrador (autodiegético) da segunda parte, que é também a data de nascimento do autor empírico (cuja projeção autobiográfica tem ainda a ver com o facto de os pais de José Luís Peixoto terem sido emigrantes em França nos anos 60).

O livro que Ilídio recebe da mãe é o mesmo livro que ele, adolescente, oferecerá a Adelaide, com quem, muito mais tarde, terá um filho ilegítimo, cujo nome insólito é também o nome deste romance: Livro.

Este é um romance que muda radicalmente de registo no início da segunda parte, que surpreende o leitor com um inquérito, constituído por doze perguntas, enunciado nestes termos: “Indique os seguintes dados” (207). Percebe-se, mais à frente, que o próprio narrador autodiegético responderá a este questionário repentino e insólito, em que entram aspectos de natureza não só civil e biográfica, mas também pessoal: “Nome da sua mãe” ou “Nome do seu bilhete de identidade”, por um lado, e “Adjectivo que melhor caracteriza o penteado que tem neste momento” ou “Número de vezes que lava os dentes por semana” (207), por outro. Antes, contudo, dos primeiros indícios que fazem a ligação com a intriga da primeira parte do romance, surge outro momento perturbador que acentua ainda mais o estranhamento causado pelo inquérito: “Preencha os espaços em branco com as respostas anteriores” (209).

Esta segunda parte não se desliga completamente da anterior, mas obriga o leitor a rever as expectativas que foi criando ao longo de duzentas páginas. Paralelamente às sequências de ações, às relações entre personagens e à caracterização direta e indireta de espaços e figuras, as incursões no metaliterário inscrevem este romance no âmbito pós-moderno. O leitor lê o livro, primeiro na segurança de uma história bem-construída e escrita com a elegância de um autor que sabe usar o ritmo, a metáfora e a comparação: “Cada martelada que acertava na parede era como uma explosão no centro da terra. […] As cabeças dos martelos eram pesadelos de aço maciço, trovões negros. O Ilídio segurava o seu martelo com as duas mãos e acertava na parede, que caía em grandes postas caiadas, com tijolos vermelhos nas pontas, como entranhas” (178).

Mas este Livro também interpela o leitor através da visão criativa do pós-moderno, que já não se satisfaz com a apresentação de uma história linear e previsível; interessa-lhe, dialogando ironicamente com o passado histórico, literário e cultural, inovar pelo lado da reflexão metaliterária. Para o narrador deste Livro, que no final se dirige a um narratário, tudo está em julgamento e em movimento: a sociedade, o pensamento e a própria literatura: “Este livro podia acabar aqui. Ficávamos assim, no vácuo desta revelação. The end. Ou talvez nem seja sequer uma revelação, talvez seja apenas um sinal da minha incapacidade de interpretar detalhes” (261).

Carlos Nogueira – Universidade Nova de Lisboa [email protected]

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