O Meças – CARVALHO (A-EN)

CARVALHO, J. Rentes de. O Meças. Lisboa: Quetzal, 2016. Resenha de NOGUEIRA, Carlos. O Meças, by Rentes de Carvalho: polyphonic novel about Portugal. Alea, Rio de Janeiro, v.20 n.2, may./aug., 2018.

Em 2013, numa entrevista concedida ao JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias, referindo-se ao romance que acabava de publicar, J. Rentes de Carvalho (1930) afirmava: “Creio, aliás, que não voltarei tão cedo ao género, pois é difícil manter a sequência e evitar que os personagens não baralhem o enredo”. O novo romance de J. Rentes de Carvalho não vem necessariamente contradizer aquelas palavras, uma vez que passaram já três anos desde a saída de Mentiras & Diamantes (2013). Mas não nos parece arriscado dizer que a maioria dos leitores do autor de Ernestina terá recebido com grande surpresa a notícia da publicação de O Meças, o oitavo romance de um escritor que também tem sobressaído na crônica, no conto e no diário.

Rentes de Carvalho é um escritor moderno desde o seu primeiro romance, Montedor (1968), reeditado em finais de 2014. Este livro expõe o mundo interior de uma personagem, em discurso de primeira pessoa, mas não descuida a realidade exterior: o contrabando, a emigração, a política obscura e corrupta, a desvergonha e a impunidade dos poderosos, a influência do clero, as desigualdades econômicas e sociais, o atraso sociocultural.

Montedor é um romance psicológico, mas é também um romance de formação de matriz autobiográfica e de ação, e não menos um romance realista que vai buscar os temas e motivos ao quotidiano mais comum e nos revela uma sociedade em conflito. Assistimos a um número significativo de peripécias dramáticas e ao drama interior do protagonista desde o momento em que ele reprova nos exames que lhe dariam acesso a um “diploma” e a um bom emprego, testemunhamos os momentos principais da sua vida, desde a ida para a tropa, ao regresso a casa e ao casamento por obrigação; e somos levados a estabelecer uma comparação com a vida de quem escreveu o livro. J. Rentes de Carvalho deixou Portugal, viveu em cidades como o Rio de Janeiro, Nova Iorque e Paris, e estabeleceu-se na Holanda em 1956, onde teve condições para desenvolver uma carreira como escritor de méritos rapidamente reconhecidos no país que o recebeu. O protagonista de Montedor ficou em Portugal, e aí, fechado dentro de si, perdeu toda a liberdade e dignidade. Um romance, como se vê, e por razões óbvias, tão atual na década de sessenta como hoje.

O Meças, como Montedor, é um romance sobre Portugal. Esta fórmula, que tem sido usada para definir a ficção de J. Rentes de Carvalho, apesar de não ser inexata, é muito incompleta. Montedor articula a representação da intimidade mais profunda de uma personagem com a representação dos problemas de Portugal, e estabelece uma relação entre o tempo interior do protagonista e o tempo cronológico do país salazarista. A um tempo histórico e a um quotidiano em que existem figuras que dir-se-ia terem séculos, a um tempo que passa sem que se alterem as questões que em Portugal parecem ser irremediáveis (o patriarcado, as diferenças e a hostilidade entre ricos e pobres, o atraso sociocultural e econômico, o imobilismo, a corrupção), corresponde o tempo interior vivido pelo narrador-personagem, que é um perdedor atormentado até ao paroxismo. Com diferenças de perspetiva, de intensidade e de técnica narrativa, esta leitura aplica-se a outros romances do autor, em particular a O Rebate (1971) e A Amante Holandesa (2000, Holanda, 2003, Portugal). Mas o que traz originalidade a estes conteúdos é a omnipresença da memória e das emoções que afligem o sujeito e se sobrepõem à sua vontade. O Meças, organizado em quatro partes, ou em cinco, se considerarmos as “Anotações” finais, está em consonância com a sensibilidade, o pensamento e escrita de J. Rentes de Carvalho, que tem procurado compreender a origem, o significado, os mecanismos e as expressões, quer da sua memória e das suas emoções, quer da memória e das emoções portuguesas (e não só).

No primeiro capítulo, o narrador de terceira pessoa apresenta-nos António Roque, conhecido como o Meças, e é através do seu discurso inquiridor que assistimos à tragédia permanente deste homem violento e angustiado pela presença inexorável de um passado que se faz presente e futuro devido a uma complexa e incontrolável relação de causa e efeito entre perdas humilhantes e comportamentos, sentimentos e emoções induzidos por essas perdas e humilhações. No segundo capítulo, agora em discurso de primeira pessoa assumido pelo meio-irmão de Meças (que não sabe que aquele é seu meio-irmão, filho, como ele, do “Senhor Engenheiro”), a memória, enquanto presença interior hipersensível, é também constante. No terceiro capítulo, regressa o narrador de terceira pessoa, que mais uma vez representa o interior mortificado de Meças, e no quarto volta o meio-irmão da personagem que dá título ao romance. O meio-irmão de Meças, que se fixou em Newcastle, vem a Portugal com a intenção de revelar a Meças o que os une, mas, afinal, decide não o fazer. Educado, civilizado, preso às origens e ao mesmo tempo distante ou distanciado delas, ele é também, por circunstâncias diversas (o caráter violento do pai, ter-se visto a “crescer sozinho”, como ele próprio diz, saber-se nascido num país corrupto e atrasado), assaltado pela memória involuntária (Bergson) e dolorosa.

O Meças, que recebeu o prémio de Melhor Livro de Ficção, relativo a 2016, da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), como toda a obra ficcional deste autor, representa as emoções e as memórias repentinas e avassaladoras de personagens portuguesas, e indaga e explora a sua raiz, os seus sentidos e as suas implicações. O meio opressivo e opressor português está na origem das emoções e das memórias dos dois meios-irmãos deste livro, um culto e bem-educado, o outro precisamente o oposto. O Meças é uma representação de grande parte da sociedade portuguesa de meados do século XX até aos nossos dias, ou da sociedade portuguesa de qualquer tempo e de qualquer lugar. As personagens do romance não encontraram soluções para o seu desassossego, mas podem ajudar-nos a ver Portugal mais em profundidade, a compreender as inquietações, as memórias e as respostas da chamada, num sentido muito amplo, portugalidade.

Nem simplesmente realista à maneira de Eça de Queirós, nem exclusivamente subordinado aos procedimentos da narrativa anglo-saxônica (em cuja feição realista, que vem já do século XVIII, entram a sobriedade estilística e a valorização da interioridade das personagens), nem incondicionalmente subordinado às técnicas do noveau roman francês (que, por exemplo, num tempo de crise humanista, elimina ou reduz ao mínimo a intriga, e marca a impossibilidade de construir uma personagem bem delineada), O Meças encerra um conhecimento vasto da literatura portuguesa e internacional, e impõe-se como um livro singular que participa na modernidade da ficção portuguesa, tal como Montedor participou na década de sessenta na renovação literária portuguesa.

Não existe contradição entre a clareza e a exatidão e o registo predominantemente emotivo. O equilíbrio e a disciplina clássica da linguagem de O Meças estão perfeitamente de acordo com o estilo que reconhecemos a J. Rentes de Carvalho. A musicalidade intrínseca à escrita deste autor impede-a de incorrer em monotonia e automatismo, e em O Meças essa harmonia resulta numa expressão em que despojamento e inquietude se combinam e alternam. A sequência mais comum deste romance inclui orações ou expressões próprias do escritor clássico que o autor de Ernestina é, e momentos, consideravelmente extensos, em que a emotividade da personagem domina, representada pelo discurso indireto livre e/ou pelo monólogo interior. Esta sobriedade e esta emotividade acolhem, não raramente, um discurso autoirônico, como dissemos, mas também irônico, cômico e satírico cujo alvo é a sociedade em geral, das classes economicamente mais favorecidas às mais baixas, e da unidade da família à ética sexual e às estruturas e comportamentos religiosos. Mais do que de humor deve falar-se de comédia trágica, de desconstrução, através de uma paródia relativamente discreta, dos preconceitos e das verdades da sociedade portuguesa de meados do século XX: «Alguns até parece que nascem doutores, e ele, vinte e tal anos na Alemanha, nem sequer a língua foi capaz de aprender, só palavras soltas, os colegas às gargalhadas, obrigando-o a repetir tudo, dizendo que ninguém o entendia e a chamar-lhe “turco”» (p. 107).

O Meças combina a representação da intimidade mais recôndita de duas personagens com a representação discreta mas perceptível dos problemas de Portugal, e estabelece uma relação entre o tempo interior dos protagonistas e o tempo cronológico do país em que eles vivem ou viveram. Prevalece o conhecimento do mundo íntimo das personagens, ora em discurso de terceira pessoa, ora de primeira pessoa, mas não se perde a noção da realidade exterior (a emigração, a política obscura e corrupta ou a influência do clero, por exemplo), que, aliás, determina a desintegração das personalidades que, no caso da personagem Meças, vemos em desequilíbrio psicológico desde o início do romance. A um tempo histórico e a um quotidiano em que se inscrevem figuras que parecem ter séculos, indiferentes ao tempo do calendário, a um tempo que passa sem que mudem as questões que em Portugal parecem ser insolúveis (as diferenças entre ricos e pobres, e o atraso sociocultural e econômico, essencialmente), correspondem os tempos interiores vividos pelos narradores-personagens, que nos surgem como uma consciência e um corpo angustiados até ao paroxismo. Todo o romance é um prolongamento do primeiro parágrafo:

Alguém terá de lhe emprestar as palavras, porque as desconhece, mas se lhas tivessem ensinado seria incapaz de dizê-las, estonteado pelo remoinho, a vida a desfilar em ondas de desespero, ocasiões falhadas, sempre ele o que perde, a sofrer envergonhado, o que baixa os olhos e até si próprio tem de fugir. (p. 9)

Rentes de Carvalho – Esta resenha faz parte dos trabalhos da Cátedra Internacional José Saramago (Universidade de Vigo), projeto POEPOLIT (FFI2016-77584-P, Ministério de Economia e Competitividade da Espanha) e do Programa Estratégico UID/ELT/00500/2013 da FCT (Portugal).

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Livro – PEIXOTO (A-EN)

PEIXOTO, José Luís. Livro. Lisboa: Quetzal, 2010. Resenha de: NOGUEIRA, Carlos. Alea, Rio de Janeiro, v.14 n.1, jan./jun., 2012.

Livro, o sexto romance de José Luís Peixoto (1974), tem como contexto a emigração portuguesa para França e a literatura enquanto universo complexo, enigmático e contraditório. Estes dois temas surgem ligados na primeira frase do romance, mas o leitor não poderá compreender a verdadeira amplitude desta associação senão na segunda parte do livro.

“A mãe pousou o livro nas mãos do filho” (11) inicia uma narrativa que seduz o leitor pela imprevisibilidade e pelo dramatismo das situações, pela densidade psicológica das personagens e pelo encadeamento dos episódios, que se vão sucedendo numa progressão cronológica assinalada, entre parênteses, no início de alguns capítulos ou no seu interior, imediatamente antes do parágrafo que se segue e no mesmo tipo de letra do texto. Há ainda palavras-chave, como “(Fonte)” (26) ou “Posto da guarda” (101), números, o nome de uma personagem e, por vezes, a representação pictórica de uma mala, que também delimitam os momentos narrativos. À medida que o romance avança, o andamento dos episódios e a alternância entre eles intensificam-se.

Também neste aspecto da sintagmática narrativa o autor recorre, no nível gráfico, a uma estratégia que visa marcar esses momentos: um espaço em branco, equivalente a duas ou três linhas, entre cada parte. Num livro que tem tanto de romance tradicional como de narrativa pós-moderna, esta técnica, tal como as que enumeramos acima, contribui para a inscrição do romance numa categoria genealógica singular. As personagens deste romance estão divididas entre Portugal, de onde algumas nunca saíram, como Josué e a velha Lubélia, e França, para onde partiram na situação de emigrantes não propriamente convencionais e de onde voltam para períodos de férias e, mais tarde, no caso de Adelaide e do filho “Livro”, definitivamente.

Lubélia, personagem amargurada por ter abortado e por ter sido afastada pelos pais da experiência amorosa, envia a sobrinha à força para França, para separá-la de Ilídio, que, ao aperceber-se disso, decide partir à procura de Adelaide. Para além do episódio inicial, constituído pelo abandono de Ilídio pela mãe, que parte para França, é este o núcleo a partir do qual se desencadeiam todas as outras linhas efabulativas do romance. Apesar de narrados autonomamente, todos estes episódios se encontram associados numa lógica de alternância cinematográfica que dá ao leitor a possibilidade de saber o que as personagens não sabem umas das outras.

Fala-se, neste romance, de vidas humanas individuais, dos seus desejos, vontades, erros e conflitos; fala-se de amor, de morte, de encontros e desencontros; e fala-se também de Portugal como povo, com as suas crendices e obsessões, vícios e virtudes, alegrias e tragédias, e como país que vive a tragédia de uma ditadura e a conquista de liberdade política, social e individual. 1974 é, por isso mesmo, um ano privilegiado neste livro, em especial os dias que precedem e sucedem à revolução do 25 de Abril. “27 de Abril de 1974” é uma data com implicações narrativas e autobiográficas: é a data que assinala o fim da primeira parte do romance, narrado em terceira pessoa, e a data de nascimento do narrador (autodiegético) da segunda parte, que é também a data de nascimento do autor empírico (cuja projeção autobiográfica tem ainda a ver com o facto de os pais de José Luís Peixoto terem sido emigrantes em França nos anos 60).

O livro que Ilídio recebe da mãe é o mesmo livro que ele, adolescente, oferecerá a Adelaide, com quem, muito mais tarde, terá um filho ilegítimo, cujo nome insólito é também o nome deste romance: Livro.

Este é um romance que muda radicalmente de registo no início da segunda parte, que surpreende o leitor com um inquérito, constituído por doze perguntas, enunciado nestes termos: “Indique os seguintes dados” (207). Percebe-se, mais à frente, que o próprio narrador autodiegético responderá a este questionário repentino e insólito, em que entram aspectos de natureza não só civil e biográfica, mas também pessoal: “Nome da sua mãe” ou “Nome do seu bilhete de identidade”, por um lado, e “Adjectivo que melhor caracteriza o penteado que tem neste momento” ou “Número de vezes que lava os dentes por semana” (207), por outro. Antes, contudo, dos primeiros indícios que fazem a ligação com a intriga da primeira parte do romance, surge outro momento perturbador que acentua ainda mais o estranhamento causado pelo inquérito: “Preencha os espaços em branco com as respostas anteriores” (209).

Esta segunda parte não se desliga completamente da anterior, mas obriga o leitor a rever as expectativas que foi criando ao longo de duzentas páginas. Paralelamente às sequências de ações, às relações entre personagens e à caracterização direta e indireta de espaços e figuras, as incursões no metaliterário inscrevem este romance no âmbito pós-moderno. O leitor lê o livro, primeiro na segurança de uma história bem-construída e escrita com a elegância de um autor que sabe usar o ritmo, a metáfora e a comparação: “Cada martelada que acertava na parede era como uma explosão no centro da terra. […] As cabeças dos martelos eram pesadelos de aço maciço, trovões negros. O Ilídio segurava o seu martelo com as duas mãos e acertava na parede, que caía em grandes postas caiadas, com tijolos vermelhos nas pontas, como entranhas” (178).

Mas este Livro também interpela o leitor através da visão criativa do pós-moderno, que já não se satisfaz com a apresentação de uma história linear e previsível; interessa-lhe, dialogando ironicamente com o passado histórico, literário e cultural, inovar pelo lado da reflexão metaliterária. Para o narrador deste Livro, que no final se dirige a um narratário, tudo está em julgamento e em movimento: a sociedade, o pensamento e a própria literatura: “Este livro podia acabar aqui. Ficávamos assim, no vácuo desta revelação. The end. Ou talvez nem seja sequer uma revelação, talvez seja apenas um sinal da minha incapacidade de interpretar detalhes” (261).

Carlos Nogueira – Universidade Nova de Lisboa [email protected]

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