Júlia: nos campos conflagrados do Senhor | Bernardo Kucinski

Bernardo Kucinski Foto Marcos SantosUSP ImagensCult
Bernardo Kucinski | Foto: Marcos Santos/USP Imagens/Cult

“[…] quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um homem que escava” (BENJAMIN, 2000, p. 239).

Narrada em terceira pessoa, a novela Júlia: nos campos conflagrados do Senhor, de Bernardo Kucinski, publicada pela editora Alameda, em 2020, retrata a história de uma bióloga que, por um acaso, acaba se debruçando no passado de sua família, até então desconhecido pela jovem. Após o falecimento de seus pais, Júlia, assim como é denominada na narrativa, entra em conflito com seus irmãos Beto e Jair para não vender um luxuoso apartamento que ganhara de herança paterna, pois esse imóvel guardava as memórias afetivas da personagem.

Decidida a não vender seu aposento, essa bióloga compra a parte da herança de seus irmãos. No entanto, por conta de seu doutorado em Londres, ela resolve alugá-lo a Daniel, um pesquisador que conhecera no Instituto Biológico. Esse homem, além de sentir-se o dono do imóvel, acabou deteriorando toda a morada dela. Ao ver tal reação do inquilino, a personagem, depois de vários acordos, consegue despejá-lo de seus aposentos.

Como o apartamento estava bastante danificado, a protagonista decide fazer uma reforma naquele lugar. Durante esse período de reparação de seu imóvel, Júlia encontra uma caixa de fuzil, a qual desperta a sua curiosidade. Ao abrir tal objeto, ela encontra umas cartas que revelam não só a participação de seu pai, o engenheiro Durval, na luta contra o regime militar, mas também o envolvimento de religiosos da igreja católica: uns que colaboravam com o autoritarismo, encobriam mortes e colocavam crianças sequestradas para adoção; outros que tentavam impedir as barbaridades cometidas pelos militares. A descoberta dessas correspondências representa a história de um passado obscuro, que até então a personagem não conhecia, como podemos perceber no fragmento abaixo:

Júlia larga os papéis no meio da leitura. Então era isso que acontecia no Brasil? E o pai sabia de tudo isso? E a mãe será que sabia? E o Beto? Estarrecida, retoma a leitura. […] Ao terminar, noite alta, Júlia sente que descobriu um outro país- e um outro pai. Nunca imaginou atrocidades dessas no Brasil (KUCINSKI, 2020, p. 45).

Por meio dessas cartas, a bióloga descobre que fora adotada por sua família. Esse fato a deixa muito aflita. Isto porque ela percebe que vivera uma farsa durante toda a sua vida, no entanto, mesmo angustiada por saber que era filha adotiva, a personagem decide ir em busca de sua verdadeira história.

Nesse percurso pela busca de seu passado, Júlia encontra Magno, um delegado da Polícia de Santos, que ajudava o pai da bióloga tanto com o repasse de informações acerca de alguns presos políticos, quanto em atividades contra o governo. Através desse homem, ela conhece Paula Rocha, uma jornalista bastante conceituada na área do jornalismo, a qual havia sido perseguida durante o regime, devido a algumas reportagens sobre o tráfico de bebês praticados por membros religiosos, em parceria com militares.

Por meio do contato com a repórter, a jovem bióloga toma conhecimento de que é fruto de um relacionamento extraconjugal entre seu pai e Maria do Rosário, uma jovem enfermeira e ex-militante, criada pelas madres do Orfanato e Casa Maternal São Vicente de Paula.

Além disso, a personagem descobre não só que a sua mãe biológica havia sido presa, torturada e morta pelos agentes da repressão, mas também que a sua avó materna, de nome Maria das Dores, havia sido abusada sexualmente por Felipe Mesquita, um agente colaborador da ditadura.

Desse estupro, essa mulher engravida e, assim que tem a criança, é forçada pelo seu agressor a deixar o bebê em um orfanato. Vejamos: “– Foi o patrãozinho que me forçou, o mais taludo deles o Felipe, a depois nem não quis saber do bebê. […] era para entregar pras madres” (KUCINSKI, 2020, p. 95-96).

Essa criança, a qual a mulher havia entregue no orfanato, era Maria do Rosário. Inclusive, na página final da narrativa, há um trecho bastante significativo que serve de pista para o leitor compreender a violência traumática e autoritária sofrida tanto por Júlia, por Maria do Rosário, quanto por Maria das Dores. Vejamos: “Em vez de encontrar a mãe, encontrou uma tragédia, que também era sua, que passava a ser sua. Uma tragédia atravessando três gerações” (KUCINSKI, 2020, p.181). A narrativa termina com a bióloga indo atrás de sua avó para contar- lhe que a filha por quem chorava tanto, tornara-se uma moça linda, inteligente, boa e que teve uma vida curta.

Através de uma linguagem simples e bastante cativante ao leitor, Kucinski aborda um passado que permanece com suas feridas abertas, pois ao trazer para o centro da narrativa uma jovem, em busca de sua história, o autor mostra-nos a necessidade de olharmos para esse passado, a fim de não só conhecê-lo, mas também de analisar criticamente a densidade simbólica da violência autoritária vivida pelas vítimas da ditadura e seus familiares, pois como bem afirma Gagnebin (2006, p. 47):

A rememoração também significa uma atenção precisa ao presente, em particular a estas estranhas ressurgências do passado no presente, pois não se trata somente de não se esquecer do passado, mas também de agir sobre o presente. A fidelidade ao passado, não sendo um fim em si, visa à transformação do presente.

Ao dialogar com a pensadora acima, percebe-se que o autor, ao resgatar esse passado traumático na narrativa em estudo, busca tirar do esquecimento fatos que se pretendeu não só silenciar, mas também apagar da nossa história, a fim de levar o leitor a refletir sobre a violência autoritária praticada àqueles que lutaram pela utopia de um país mais democrático.

À medida que Kucinski configura o horror perpetrado durante a ditadura em sua obra, também mostra que “[…] enquanto a sociedade não assimilar e superar inteiramente a dor do que viveu, suas perplexidades e fragilidades serão estendidas” (GINZSBURG, 2004, p. 56). Na narrativa em estudo, as marcas desse passado dolorido e violento atingem não somente os pais de Júlia e a sua avó Maria das Dores, mas também a própria personagem, pois ela é vítima de um “trauma sequencial3 ”, ou seja, a personagem carrega as cicatrizes provocadas por esse passado violento.

Outro ponto perceptível, na obra de Kucinski, é a naturalização da violência como um grave sintoma social. Isto porque, quando olhamos a história de Maria das Dores e de sua filha Maria do Rosário, percebemos que a impunidade das agressões sofridas por essas duas mulheres provoca “[…] uma sinistra escalada de práticas abusivas por parte dos poderes públicos, que deveriam proteger os cidadãos e garantir a paz” (KEHL, 2010, p. 124).

Enfim, Júlia: nos campos conflagrados do Senhor insere-se num conjunto de narrativas ficcionais que busca “[…] contestar o discurso oficial nunca totalmente desmentido e de impedir o apagamento coletivo com o qual órgãos oficiais pretenderam e ainda pretendem camuflar a história” (PEREIRA, 2020, p.123). Ao apontar para o dever de memória, o autor convida o leitor a (re)pensar sobre essa grande ferida histórica que ainda permanece aberta e impede de termos uma sociedade mais justa, democrática e menos violenta.

Nota

3 Trauma sequencial é “[…] uma experiência histórica de violência que não atinge apenas os que estão imediatamente vinculados a ela. Na mediada em que essa experiência não é superada, por vários caminhos mediados, suas marcas se prolongam para as gerações seguintes” (GINZSBURG, 2004, p.56-57).

Referências

BENJAMNIN, Walter. Rua de mão única. Obras escolhidas II. São Paulo: Brasiliense, 2000.

GAGNEBIN, James Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006.

GINZBURG, Jaime. Ditadura e estética do trauma: exílio e fantasmagoria. In: CORREIA, Francisco José Gomes; VIANA, Chico (Orgs.). O rosto escuro de Narciso: ensaios sobre literatura e melancolia. João Pessoa: Ideia, 2004.

KEHL, Maria Rita. Tortura e sintoma social. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (Orgs.). O que resta da ditadura: a execução brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010.

KUCINSKI, Bernado. Júlia: nos campos conflagrados do Senhor. São Paulo: Alameda, 2020.

PEREIRA, Helena Bonito C. Exílio e deserção em Azul Corvo, de Adriana Lisboa. In: Narrativas brasileiras contemporâneas: memórias da repressão. GOMES, Gínia Maria (Org.). Porto Alegre: Polifonia, 2020.


Resenhistas

Francisca Luana Rolim Abrantes –  Doutoranda em Linguagem e Ensino pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Mestra em Linguagem e Ensino pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). E-mail: [email protected] Lattes: http://lattes.cnpq.br/2815636040264614

José Edilson de Amorim –  Professor Titular de Literatura Brasileira da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Doutor em Letras, área de Literatura, pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Mestre em Letras na mesma área de concentração. Atua no PPGLE/UFCG e desenvolve pesquisa sobre literatura e ditadura no Brasil. E-mail: [email protected]  Lattes: http://lattes.cnpq.br/6524195105007515


Referências desta Resenha

KUCINSKI, Bernardo. Júlia: nos campos conflagrados do Senhor. São Paulo: Alameda, 2020. Resenha de: ABRANTES, Francisca Luana Rolim; AMORIM, José Edilson de. Memória e ditadura em Júlia: nos campos conflagrados do senhor, de Bernardo Kucinski. Literatura, História e Memória. Cascavel , v. 18, n. 31, p. 415-418, 2022. Acessar publicação original [DR]

Mulheres empilhadas | Patrícia Melo

Patricia Melo Imagem Agenda BH
Patrícia Melo | Imagem: Agenda BH

A imaginação como dinamismo criador é a rejeição da tirania da forma fixa que parece se oferecer à percepção. As imagens dinâmicas não só formam, mas, sobretudo, deformam, transformam, ampliam e aprofundam a chamada realidade. É a imaginação, poder maior da natureza humana, que não só inventa coisas, mas, principalmente, inventa caminhos novos.

(Norma Telles, 2010, p. 2) Há exatamente 15 anos, no mês de agosto de 2006, foi sancionada a lei responsável por prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher no Brasil. Fruto da luta contra as violências experienciadas por mulheres e com o apoio de órgãos internacionais, o gênero foi reconhecido como um marcador fundamental de opressões sistematizadas e invisibilizadas pelo Estado, que se ausentava diante da necessidade de medidas legais, ações efetivas e reconhecimento dos agressores.1 A resistência se deu através de vozes e atuações femininas que, organizadas em coletivos feministas, centros de advocacia e assessoria jurídica, possibilitaram a aprovação da lei e continuam zelando por ela. Inspirado nesse contexto real, o romance ficcional Mulheres Empilhadas da premiada autora brasileira Patrícia Melo, nasce em 2019 como um alerta da importância de estarmos atentas ao crime que continua nos tirando a vida. Leia Mais

As Alegrias da Maternidade | Buchi Emecheta

O livro “As Alegrias da Maternidade”, de Buchi Emecheta, foi publicado pela primeira vez em 1979 na Inglaterra. No entanto, recebeu a sua primeira tradução para o português brasileiro pela editora Tag Livros em 2017, através do clube de assinatura “Tag Curadoria” que tem a intenção de publicar obras inéditas no Brasil. Contudo, como a editora em questão possui circulação restrita aos assinantes, a editora Dublinense lançou outra versão da obra em 2018, ambas as publicações são frutos da tradução de Heloísa Jahn. As notas aqui apontadas, resultam da leitura dessa edição.

Florence Onyebuchi “Buchi” Emecheta foi uma autora e intelectual nigeriana, nascida em 1944 em Lagos. Ao longo da sua infância estudou em colégios cristãos sendo que, aos 11 anos de idade, se tornou órfã, tendo que ir morar em sua comunidade ancestral com parentes. Em 1962, já casada desde os 16 anos, mudou-se com esposo e filhos para a Inglaterra em busca de trabalho. O casamento perduraria até 1966, quando se separou de seu marido abusivo e violento, e criando sozinha seus cinco filhos, em um país estrangeiro. Mesmo com tantas responsabilidades e dificuldades, Emecheta conseguiu se graduar em Sociologia em 1974, realizar o mestrado em 1976 e em 1991, concluir seu doutorado em Educação, na Universidade de Londres. Ao ganhar reconhecimento pela sua obra, a autora foi convidada para lecionar em várias universidades estadunidenses. Aos 72 anos, Buchi Emecheta faleceu vítima de uma demência. Leia Mais

O médico e o monstro: uma leitura do progressismo latino-americano e seus opostos | Fabio Luis Barbosa dos Santos e Daniel Feldmann

O livro do historiador Fabio Santos e do economista Daniel Feldmann, ambos professores da Universidade Federal de São Paulo, trata da América Latina contemporânea, apontando para atores individuais e coletivos e seus projetos de sustentação da lógica de dominação. A obra é uma daquelas publicações necessárias pelas polêmicas que traz, pelo desconforto que provoca, pelo deslocamento do lugar comum das interpretações hegemônicas, daí inclusive a publicação sair por uma editora alternativa que surgiu com a proposta de publicar pensamentos contra-hegemônicos sobre a América Latina. Os autores são provocadores no melhor dos estilos, artístico e interpretativo, desde o título, que tomam emprestado da novela “O médico e o monstro” – escrita pelo escocês Robert Stevenson no final do século XIX – aos traços artísticos que desenham as figuras de capa e contracapa representando a dualidade do “progressismo” no Brasil e na América Latina, no século XXI. A escrita fluente, a forma ensaística da narrativa que sustenta as interpretações (e aqui entende-se ensaio não como algo menor) permitem uma liberdade necessária aos autores para fazer perceber a dualidade, distanciamentos e aproximações entre projetos e políticas de governos que se apresentam como contrapostos. Leia Mais

Estrela de Luz | Izoldino Resende, Ismael

Inicio esta resenha apresentando brevemente o seguimento doutrinário – o Espiritismo – que fundamenta o gênero literário (romance) da obra “Estrela de Luz”, bem como um sucinto histórico deste livro e dos seus autores, Izoldino Resende e Ismael, visando à assimilação do contexto geral da elaboração do manuscrito para, posteriormente, explanar o teor dos escritos. Leia Mais

Garota/mulher/outras | Evaristo Bernardine

Garota, mulher, outras é um romance arrebatador. Vencedor do Booker Prize em 2019 – uma das mais importantes premiações da Inglaterra – é de ler com a alma, leitura de fazer reverberar nossas memórias e histórias – mesmo as que ainda vamos querer (re)descobrir. Leia Mais

Também os brancos sabem dançar: um romance musical | Kalaf Epalanga

Kalaf Epalanga
Kalaf Epalanga | Foto: J. Carlos/DW

O músico e escritor Kalaf Epalanga Alfredo Ângelo, recém-lançado no mundo da literatura, nasceu em 1987, na cidade de Benguela, em Angola. Ao fugir da Guerra Civil de seu país, mudou-se aos 17 anos para Lisboa, onde desde então vive em alternância com Berlim. Kalaf Epalanga é também autor da coletânea de crônicas (divididas em duas partes): Estórias de amor para meninos de cor (2011) e O angolano que comprou Lisboa (2014). Publica, em 2017, seu primeiro romance: Também os brancos sabem dançar: um romance musical.

Kalaf ganhou notoriedade no âmbito musical através do som frenético e envolvente produzido pelo grupo musical Buraka Som Sistema, do qual é membro. Em entrevista à revista Estante (2015), comenta que virar escritor não estava nos seus planos. Entretanto, o mundo das palavras sempre o seduziu e sua bibliografia, embora ainda pequena, possui enorme representatividade em função de suas obras dialogarem com temas relevantes que marcam a vida do autor, como identidade, migração e angolanidade. Leia Mais

Mulheres de minha vida. Sobre o amor impaciente, a vida longa e as boas bruxas | Isabel Allende

Isabel Allende é nome consagrado na literatura. A Casa dos Espíritos (1982) é seu livro mais conhecido e os elementos ali presentes fizeram com que ela fosse colocada, juntamente a pouquíssimas escritoras – as mexicanas Elena Garro e Laura Esquivel – entre os nomes do Realismo Mágico Latino-americano. Escreveu outros 22 títulos, entre os quais Paula e Eva Luna. Juntos, são mais de 70 milhões de exemplares vendidos pelo mundo e traduzidos para 42 idiomas. Já recebeu mais de 60 prêmios literários, entre os quais o “Prêmio de Literatura do Chile” (2010), o “Prêmio Hans Christian Andersen”, na Dinamarca (2012) e a “Medalha da Liberdade”, nos Estados Unidos, a mais alta distinção civil do país. Em 2018, Allende tornou-se a primeira escritora de língua espanhola premiada com a medalha de honra do “National Book Award”, nos Estados Unidos.

Na seção de “agradecimentos” em sua obra mais recente, Mulheres de minha alma. Sobre o amor impaciente, a vida longa e as boas bruxas, a autora assumiu ter recebido de seus agentes a sugestão para escrever sobre Feminismo. Optou por se afastar do gênero que a consagrou e com o qual tem maior familiaridade, o romance, escolhendo o autobiográfico para desenvolver a narrativa. Leia Mais

Senhores do orvalho | Jacques Roumain

A obra “Senhores do Orvalho” foi publicada pela primeira vez em 1944, com o título original de “Gouverneurs de la Rosée”. Esse romance é considerado a obra de maior importância do escritor haitiano Jacques Roumain e um símbolo do movimento literário indigenista haitiano. Roumain nasceu em Porto Príncipe, capital haitiana, no ano de 1907 e é descendente da elite mulata do Haiti que concentrou poderes políticos e econômicos após a guerra que derrubou o rei Chistophe em 1820, substituindo os espaços ocupados pelos negros após a Revolução de 1804. Em consequência disso, o autor usufruiu de boas condições de estudos, que realizou quase que exclusivamente em países da Europa.

Roumain foi um importante personagem na militância política e na intelectualidade haitiana. Foi um grande personagem da resistência contra a ocupação e o controle estadunidense no país, entre 1915 e 1934. No mesmo ano do fim da ocupação, ele fundou o partido comunista haitiano, uma das primeiras organizações políticas deste viés no país. No âmbito intelectual, Roumain é reconhecido por participar de grupos literários como o indigenismo, que objetivava, através de sua literatura, libertar o país das estruturas que o tornavam politicamente frágil e criar uma visão favorável sobre o Haiti, rompendo com as escritas literárias realizadas pelos colonizadores ou controladas por seus paradigmas culturais e de visão de mundo. Por fim, o escritor também atuou em estudos na área da Etnologia, com objetivos de compreender melhor a situação da população negra e de seu país. Leia Mais

O mundo se despedaça | Chinua Achebe

Esta resenha tem como objetivo analisar o impacto do colonialismo a partir da obra ficcional O mundo se despedaça (1958), do escritor nigeriano Chinua Achebe, entendendo a importância do culto à ancestralidade para o povo ibo, por meio da análise dos personagens principais da obra: Okonkwo, Nwoye e Ezeudu. Num instigante romance nigeriano, escrito dois anos antes da independência do país de origem do autor, Achebe não só constrói uma história para os atores em questão, como utiliza-os para fazer-nos entender sobre o período de colonização do continente africano. Desse modo, torna-se possível analisar questões coloniais e pós-coloniais a partir da identidade em torno desse povo e os impactos do colonialismo.

É valido esclarecer, entretanto, que tal escolha – tema e obra – não se pauta numa arbitrariedade, e sim num constante incômodo suscitado pela leitura do texto, acentuado pela relevância de uma temática tão cara para a modernidade: a de entender o(s) impacto(s) da colonização nas mais diversas regiões e o quanto as tradições religiosas dos colonizados foram atingidas pela violência colonial. Leia Mais

A Noite da Espera | Milton Hatoum

Estamos (re)vivendo tempos sombrios, no qual os direitos à liberdade de expressão estão sendo ameaçados. Falamos de ditadura, mas pouco lemos e discutimos sobre o quão perturbador foi esse período. A ficção A noite da espera, de Milton Hatoum, fala sobre esse intervalo obscuro da história do Brasil.

Hatoum nasceu em Manaus em 1952, aos 15 anos de idade mudou-se para Brasília onde morou com dois amigos em uma casa da W3 Sul e estudou no Centro Integrado de Educação Modelo (CIEM). Em Brasília, Hatoum começou a escrever poesias, participar de concursos literários e em 1969 teve pela primeira vez um de seus poemas publicado pelo jornal Correio Brasiliense. O amazonense já foi professor de Literatura da Universidade Federal do Amazonas e é considerado um dos grandes escritores brasileiros atuais. Ganhou três prêmios Jabuti e seus livros já venderam mais de 200 mil exemplares no Brasil, além de terem sido traduzidos para mais de oito países. Leia Mais

Carne de Perra | Fátima Sime

La dictadura militar que rigió Chile durante diecisiete años no ha terminado, al menos no de forma simbólica. Sin duda, lo avanzado durante los gobiernos de la Concertación1 en el establecimiento de la verdad ha sido muy parcial y lento, lo que ha significado la impunidad para los violadores de derechos humanos y también responsables de las muertes de ese oscuro período (Verdugo, 2004). Desafortunadamente, la literatura no siempre se ha ocupado de una forma adecuada de la representación del horror vivido durante la dictadura cívico-militar. Dentro del posible mapa que caracteriza el contexto político y literario chileno de los últimos años, resulta evidente, en efecto, una variedad de elaboraciones simbólicas y nuevos modos de representaciones que transformaron los presupuestos narrativos de la producción literaria (Bianchi, 1997). A partir del análisis de la novela Carne de Perra, publicada en 2009 por la escritora chilena Fátima Sime, resulta necesario plantear, preguntas que tratan de resolver las dudas acerca de sí es posible relatar, o, mejor dicho, de cómo se puede contar de una manera eficaz la experiencia de la violencia extrema vivida en Chile desde 1973 hasta 1990. Leia Mais

The First Phone Call from Heaven – a novel – ALBOM (V)

ALBOM, Mitchell David. The First Phone Call from Heaven – a novel. New York: Harper Collins Books, 2014. 324p. Resenha de: KRISCHKE, Paulo J. A ambiguidade das redes sociais na dominação oligopólica. Veritas, Porto Alegre, v. 65, n. 1, p. 1-4, jan.-mar. 2020.

Mitchell David Albom é escritor premiado, jornalista, roteirista, dramaturgo, radialista e músico dos Estados Unidos. Seus livros já venderam mais de 39 milhões de cópias em todo o mundo. Cinco de seus bestsellers focalizam os dilemas humanos das relações com a morte. Ele estudou literatura na Universidade de Detroit e, nessa cidade, iniciou sua carreira como jornalista e escritor. Nela, também patrocina três clínicas de atendimento a famílias de baixa renda, e outras obras de assistência social, além de uma clínica do mesmo tipo nas Filipinas Outro dia lendo um romance dos Estados Unidos (bestseller do The New York Times) sobre como a internet está ampliando (ambiguamente) a dominação oligopólica nos meios de comunicação, constatei que o livro dá um exemplo de como Brasil está presente nesse processo desde muito tempo. O livro de Mitch Albom The first phone call from heaven (New York: Little Brown Book, 2014, 182p.) menciona o conhecido (e pouco comentado) incidente quando Dom Pedro II interagiu com Alexander Graham Bell na feira internacional no primeiro centenário dos EUA, Philadelphia, 1876, sendo essa a primeira autoridade a experimentar fascinado uma mensagem telefônica de seu suposto inventor – que logo patentearia o presumido invento, apoiado nesse respaldo público oficial. Albom menciona, a seguir, os vários inventores que tentavam a patente do telefone na época, mas foram suplantados por esse apoio imperial brasileiro; Dom Pedro fez essa experiência acompanhando a comissão de juízes que premiou o melhor invento da feira.

Não por acaso, Dom Pedro era também celebrado naquele tempo como a única cabeça coroada da “Tríplice Aliança” (Brasil/Argentina/Uruguai), na guerra da década anterior que dizimara a sangue-frio quase a totalidade da população masculina do Paraguai (1864-1870), ao mesmo tempo que cruelmente enganava com falsas promessas de liberdade os vastos contingentes de escravos de seu próprio exército e da marinha do Brasil. É claro que toda essa crueldade sanguinária e mistificação autoritária combinam bastante com o clima político que temos vivido nestes últimos tempos no Brasil e no mundo. Contudo, cabe ao pensador restaurar a ambiguidade usual dos fatos, processos e instituições, para que os desvios e exageros de cada época e lugar possam ser devidamente avaliados, compensados, eventualmente corrigidos e no futuro evitados preventivamente. Pois, afinal de contas, nem todos são enfermos de sadomasoquismo em busca da autodestruição e do martírio; e a mais fervente religiosidade e misticismo podem também cultivar a tolerância, a ajuda mútua, e a solidariedade entre diferentes culturas, religiões e grupos sociais.

Mas, esse romance recente sobre as mídias sociais nos EUA denuncia com eficácia o amplo conluio entre interesses e agências públicas e privadas, na promoção conjunta dessas “fake news” religiosas e político-sociais que contaminam e manipulam o senso comum. Seu tema central é a controvérsia nacional e internacional que se estabelece em uma pequena cidade, típica do meio-oeste americano, com repercussões no noticiário das redes de televisão, quando vários cidadãos locais relatam receber do “além túmulo” chamadas telefônicas de parentes próximos já falecidos, trazendo mensagens tranquilizadoras sobre seu convívio no paraíso na presença de Deus, demais antepassados, anjos etc. A opinião pública favorável que recebem de todas as partes, veiculada pela grande mídia, gera um afluxo monumental de turistas para a cidade, que passa a exigir comprovação oficial sobre a veracidade dessas mensagens “do além”.

Tal comprovação promete ser obtida em um “showmício” com milhares de participantes no estádio de esportes da cidade, quando novas mensagens do mesmo tipo serão recebidas em sequência, em “viva voz” pelos vários destinatários dos falecidos (e na presença dos vários pastores e sacerdotes locais). Sem querer estragar o suspense de desfecho desse romance, digamos apenas que o FBI surpreende ao final invadindo uma fazenda das proximidades, onde um ex-agente seu, especializado em espionagem como “hacker”, consegue recriar e transmitir no anonimato, as vozes desses “falecidos” aos destinatários… Sem dúvida, um desses destinatários se dedica a revelar por sua conta e risco toda a fraude dessa tramoia – com apoio do delegado da polícia local (também ele um dos destinatários das “mensagens” originais).

A mensagem do livro, em suma: todos podemos (mesmo as autoridades) ser enganados legitimamente, mas entre nós, às vezes, surgem indivíduos paladinos da justiça, capazes de enfrentar a corrupção generalizada – mesmo quando esteja disfarçada/manipulada pela religião ou pela ordem pública.

A ficção das histórias sobre “cowboys”, espiões e suspense policial, ficção científica etc. é de grande utilidade para avaliar o momento político, e as questões que afetam a preocupação das pessoas, e a moralidade pública e privada no âmbito do senso comum. Desde a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, temos visto profundas mudanças políticas internacionais, geralmente, caracterizadas por estratégias conservadoras e reacionárias, também em países da Europa e da América Latina. Com isso, as ciências humanas nem sempre percebem a ambiguidade que caracteriza esse processo. As obras de ficção costumam ser mais abertas que a reflexão jornalística ou científica, no sentido de que devem circular em um sentido mais amplo, de promoção do entretenimento entre grande número de consumidores dos bestsellers internacionais. Esse objetivo revela, muitas vezes, mudanças sutis na compreensão dos expectadores, que chegam, às vezes, a reforçar tendências maiores pré-existentes no plano subconsciente – tais como motivações de resistência e de inconformidade que podem eventualmente ganhar legitimidade concreta.

Esse romance sobre a ambiguidade das redes sociais e o controle oligopólico da política é inovador em muitos sentidos: questionando, por exemplo, a onipre­sença da religião e a onipotência auto­ritária na vida das pessoas; denunciando (outro exemplo) o auto­ritarismo das agências de vigilância e

de controle militar nas esferas federal, regional e local; 3. revelando, também, principalmente, a vulnerabilidade das instituições es­tatais e dos meios de comunicação à invasão brutal e à esperta manipulação de dados pelos “hackers” individuais, criminosos, violadores, empresários e aventureiros de toda espécie.

Mas, a convergência fabricada entre as motivações morais/religiosas e a legitimidade autoritária já têm sido, muitas vezes, denunciadas antes, geralmente, sem muito sucesso – desde as invectivas de Sócrates/Platão contra a nefasta, mas persistente influência dos sofistas. Mesmo a ênfase das obras de um John Rawls ou de um Jürgen Habermas sobre o sentido plural, e às vezes, contraditório, das bases da legitimidade democrática nos países do Ocidente, tem sido negligenciada frequentemente, seja por sua “ingenuidade antropocêntrica”, “pretensão evolucionista”, ou “ilusão presentista” (como querem as críticas radical-feministas ou as dos chamados “pós-modernos”.

Habermas (1975, p. 76) é quem classicamente tem exposto essa lacuna, desde as crises de legitimidade dos anos 1960: As estruturas motivacionais necessá­rias para a sociedade burguesa estão apenas incompletamente refletidas nas ideologias burguesas. As sociedades capitalistas sempre foram dependen­tes de condições culturais limítrofes que elas não podiam reproduzir por si mesmas; elas se alimentavam parasi­tariamente dos resquícios da tradição.

É importante enfatizar nesse ponto que Habermas utiliza os conceitos de tradição e de modernização no contexto dos estudos históricos sobre cultura e sociedade realizados pela “Escola de Frankfurt” – e, portanto, desde um ponto de vista inteiramente diferente da abordagem formal estrutural-funcionalista. O conceito de Habermas de ordem ou subsistema de legitimação foi construído a partir de sua ênfase na relação necessária entre legitimidade e “verdade de crença” (i.e., seu fundamento básico de legitimação na ordem motivacional). Ele afirmou sua posição em uma crítica das bem conhecidas tendências do funcionalismo estrutural a assimilar o conceito de legitimação de Weber àqueles de legalidade e adjudicação da lei.

[…] Se as decisões de acatamento obri­gatório são legítimas, isto é, se elas po­dem ser tomadas independentemente do exercício concreto de coerção e ameaça manifesta de sanções, e podem ser regularmente implementadas mes­mo contra os interesses dos afetados, então elas devem ser consideradas como o cumprimento de normas acei­tas. Essa irrestrita validade normativa se baseia na suposição de que a norma poderia, se necessário, ser justificada e defendida contra a crítica. E essa supo­sição não é, por sua vez, automática. É a conseqüência de uma interpretação que admite o consenso e que tem uma função moralmente reconhecida […] (HABERMAS, 1975, p. 101).

As ambíguas relações da tradição com a modernidade, entre a religião, a política oficial e as linguagens da ficção e a da vida comum, devem ser continuamente reexaminadas, para seguir adiante em nossa trajetória.

Referências

ALBOM, Mitch. The First Phone Call from Heaven – a novel. New York: Harper Collins Books, 324 p.

CHILTON, Stephen. Situando o pós-modernismo na perspectiva do desenvolvimento moral-cognitivo, Civitas, Revista de Ciências Sociais, Porto Alegre, n. 2, v. 2, p. 285-292, 2002. Tradução de Paulo Krischke. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2002.2.102 HABERMAS, Jürgen. Legitimation Crisis. Boston: Bea­con Press. Trad.: Thomas McCarthy, 1975.

RAWLS, John. 1992. A Justiça como Eqüidade: uma concepção política, não metafísica. Lua Nova, Re­vista de Cultura e Política, São Paulo, CEDEC, n.25, p. 25-59. Tradução de Regis Andrade. ttps://doi.org/10.1590/S0102-64451992000100003

Paulo J. Krischke – Pesquisador Sênior do CNPq, Professor colaborador no PPGICH da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC, Florianópolis, SC, Brasil), e ex-professor visitante na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Recebeu recentemente recursos da Secretaria Estadual de Cultura de Santa Catarina para publicar suas memórias do exílio no Chile, Canadá e Europa – que serão divulgadas em dramaturgia a comunidades populares da Grande Florianópolis, pelo centro cultural “Transformando pela Prática”, do Rio Vermelho. Endereço para correspondência: Paulo J. Krischke Universidade Federal de Santa Catarina Campus Reitor João David Ferreira Lima Caixa Postal 476, Trindade, 88040-900. Florianópolis, SC, Brasil

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Le théâtre d’Aphrodisias: les structures scéniques. Aphrodisias – CHAISEMARTIN; THEODORESCU (RA)

CHAISEMARTIN, N.; THEODORESCU, D. Le théâtre d’Aphrodisias: les structures scéniques. Aphrodisias 8, 2017. Resenha de: DUARTE, Adriane da Silva. Revista Archai, Brasília, n.29, p 1-7, 2020.

Assim que retorna de suas viagens, o jovem Quéreas narra à população reunida no teatro as aventuras vividas longe da pátria ao lado d e Calírroe, sua esposa, relato que retoma o argumento d aquele que é hoje tido como o primeiro romance ocidental, Quéreas e Calírroe, de Cáriton de Afrodísias (I d.C.). Na trama, o teatro também abriga assembleias cívicas, como a que decide o casamento entre os dois jovens no primeiro capítulo, e o julgamento do pirata que saqueara o túmulo da jovem. Embora a ação se passe em Siracusa e  no  período  clássico,  parece-me  claro  que  o  autor, que orgulhosamente proclama sua identidade logo na frase de abertura do romance (“Eu, Cáriton  de  Afrodísias,  secretário  do  orador Atenágoras, vou narrar uma história de amor que aconteceu em Siracusa”, Quéreas e Calírroe I.1), tem em vista como cenário o grandioso teatro de sua Afrodísias natal, agora minuciosamente desvendado por Nathalie de Chaisemartin e Dinu Theodorescu, com a colaboração de A. Lemaire e Y. Goudin, naquele que consiste no oitavo volume da série de títulos que trazem os resultados das escavações conduzidas  pela  New  York  University no  sítio arqueológico da Turquia.

O livro finalizado por N. de Chaisemartin, em virtude da morte de seu coautor, se insere dentro de um gênero muito específico, o d os relatórios arqueológicos, uma literatura por vezes bastante árida. Como nota, P. Gros, e m seu prefácio, realizar o estudo e a publicação das estruturas cênicas do teatro de Afrodísias, implicando o desafio “de reconstruí-lo graficamente sem deixar de lado nenhuma peça desse imenso quebra-cabeças”(e quebra-cabeças aqui não é apenas força de expressão), pressupõe conhecimento técnico, arquitetônico e iconográfico raros. A tarefa se torna mais complexa na medida em que o edifício, que desempenhou inúmeras funções além da primária (sediar espetáculos), sofreu alterações e acréscimos ao longo do tempo, tornando-se um caso de interesse também historiográfico e tipológico. Naturalmente, um estudo desse vulto, não pode ser conduzido  sem  a  cooperação  de  equipes  multidisciplinares  e internacionais, com destaque para pesquisadores turcos, austríacos, além de americanos, ingleses e franceses, coordenados a princípio por Kenan Erim (1929-1990), que desde a década de 1960 se dedicou ao sítio de Afrodísias – entre os anexos, o volume traz dois capítulos-síntese em inglês e em turco para os que não leem francês.

Na década de oitenta, N. de Chaisemartin foi convidada por Erim para empreender o e stud o d os frisos decorados do teatro, a cujos esforços  somou-se logo D. Teodorescu,  um  arqueólogo  com especialização em arquitetura, ampliando o escopo da pesquisa. O propósito era determinar e datar a s fases de construção do teatro e das modificações mais significativas que sofreu desde a sua fundação, no final do século I a.C. até o seu colapso, em decorrência  de um terremoto, em VII d. C. O presente livro reúne os dados concernentes à arquitetura do edifício de cena, da fachada ocidental, bem como da orquestra, já que a cavea, os assentos destinados ao público, segue sendo explorada. O  resultado  impressiona  pela minúcia da reconstituição, ricamente ilustrada por inúmeras plantas e ilustrações, além de um inestimável dossiê fotográfico com mais de oitenta páginas.

Pode-se dizer que o teatro ressurge dos escombros a que fora condenado e, com ele, parte significativa da história daquela que é uma das mais interessantes cidades da Ásia Menor.

Como não sou arqueóloga, mas uma helenista cujo interesse por Afrodísias  se  deve aos  estudos  sobre  o  romance  antigo e, particularmente, Cáriton, cujo livro traduzi, é dessa perspectiva que vou tratar essa publicação. Afrodísias é descrita com frequência como uma cidade helenística grega da Caria, localizada hoje na Turquia, na vizinhança de Geyre – em verdade essa cidade ficava sobre o sitio e foi removida para permitir as escavações. De fato, a cidade é refundada e recebe esse sugestivo nome, a partir do culto sincrético que a deusa local estabelece com Afrodite, em III a.C., mas a ocupação é muito anterior (c. 1200 a.C.). Apesar da colonização grega, ganha importância pela relação privilegiada que estabelece com Roma, de quem se torna aliada estratégica desde as Guerras Mitridáticas (I a.C.). Seus habitantes souberam muito bem explorar a rivalidade entre as potências emergentes locais, como Mileto e Éfes o, e os interesses romanos para construir uma aliança que a favorecesse no cenário geopolítico, usando para tal o culto de Afrodite. Como se sabe, após a ascensão de César, cuja família se pretendia descendente de Vênus, a deusa ganha importância no panteão latino. É justamente a consolidação de Otávio no poder após a vitória em Áccio (31 a.C.) e sua consagração como o Augusto (27 a.C.) que marcam um reflorescimento de Afrodísias, cuj o plano urbanístico passa por grandes reformas, das quais o teatro é uma das mais eloquentes. O conjunto  de  monumentos  extremamente  bem preservados, documentados com o apoio de amplo registro epigráfico, e escavado de forma exemplar, torna esse sítio um caso único para conhecer a vida em uma cidade grega do período romano.

Na origem desse empreendimento está uma figura singular, Gaius Julius Zoilos, um cidadão de Afrodísias que os aza res da vida fizeram escravo de Júlio César – quer por ter sido aprisionado em uma das inúmeras guerras travadas na região, quer por ter sido vítima do tráfico de pessoas comandado por piratas que infestavam os mares (para um breve perfil de Zoilos ver Bear d, 2017, p. 512-514). Após prestar bons serviços a seu senhor, de quem se tornou representante, coube a Otávio como parte do espólio de César, que o liberto u e d eu mostras de afeição por ele em suas cartas. Rico, voltou a Afrodisias e tornou-se um benfeitor da cidade, contribuindo com a construção e o embelezamento de diversos monumentos, entre eles, o teatro e templo de Afrodite. Uma série de registros epigráficos, recolhidos de placas  comemorativas  afixadas  na  parede norte do  edifício, testemunham o reconhecimento da cidade a ele e a outros que, posteriormente, patrocinaram reformas e acréscimos.Ao mesmo tempo, esse verdadeiro arquivo guarda a história de Afrodísias e de sua relação com Roma e seus imperadores, que se quis tornar bem visível aos visitantes estrangeiros. Há um pequeno dossiê epigráfico no volume em questão relacionado à construção do teatro, mas outras evidências podem ser encontradas no site Inscriptions of Aphrodisias (http://insaph.kcl.ac.uk/iaph2007/index.html).

Assim, o teatro, que além de abrigar espetáculos, também sediava as assembleias da cidade e outras festividades, foi construído, juntamente com o templo de Afrodite e outros monumentos da cidade, como forma de celebrar a nova ordem romana e de marcar a inserção de Afrodísias nela. N. de Chaisemartin, ao analisar os motivos decorativos da fachada cênica do teatro, confere relevo ao motivo de Apolo citaredo coroado pelas Musas, que ocupa o nicho central.  O  conjunto  escultórico evoca  as  glórias  de  Otávio, especialmente  o  triunfo  em  Áccio – Dioniso,  o  patrono  dos espetáculos dramáticos é posto de lado em vista de sua associação com Marco Antônio. Segundo a autora, Otávio se vale do histórico de lealdade da cidade cária para com Roma e das suas relações pessoais com Zoilos para dar início a um programa ideológico centrado na  propagação  de  sua imagem  como Princeps que brevemente se espalharia por toda Ásia Menor, alcançando todo o Império.

A particularidade do caso a frodisiense reside justamente em sua precocidade (é um dos primeiros monumentos com esse motivo e contemporâneo do templo de Apolo Palatino em Roma) e na riqueza de sua documentação, além de, pode-se acrescentar sem temor, na espetacular qualidade de seus monumentos, graças a o talento de exímios artesãos e ao mármore de qualidade superior de que dispunham.

Interessante também é verificar como este edifício é único na medida em que atesta a transição d a arquitetura de tipo helenístico para o de tipo imperial na Ásia Menor, apresentando características que sugerem a influência de Vitrúvio, cujo tratado sobre arquitetura data de pouco antes da edificação do teatro.Isso de fato só é possível se pensarmos no papel desempenhado por Zoilos, um homem entre duas culturas, como atesta sua estela funerária em que é representado com a capa grega e com a toga romana, provando, como quer M. Beard (2017, p. 514), que “na cultura do império romano, era possível ser ao mesmo tempo grego e romano ”.

O teatro foi remodelado nas décadas e séculos posteriores para poder se adaptar às múltiplas funções que desempenhou. Outros benfeitores como Aristocles Molossos, na primeira metade do século I d.C., dão continuidade ao programa de Zoilos, dotando o prédio de novos assentos e das escadarias de acesso ao s andares superiores da cena, cada vez mais adaptada aos oradores, e Hermas, que no final do mesmo século, reforma a orquestra. Por fim, em III d.C., novas mudanças são feitas, visando favorecer as lutas de gladiadores, espetáculos de caça e os balés aquáticos. O grupo escultórico também vai se enriquecendo, com o acréscimo de estátuas que celebram atletas que conquistaram renome para a cidade, além de outros cidadãos ilustres. Como nota Chaisemartain (2017, p. 1 81), o teatro de Afrodisias, apesar das adaptações sofridas para se adaptar à evolução dos espetáculos, manteve inalterada a fachada cênica, o que aponta para a sua relevância como depositária da memória coletiva dos cidadãos.

Afrodisias, que tem o título de Wor ld Heritage da UNESCO, continuará  a  nos  surpreender,  uma  vez  que as  escavações prosseguem, assim como a publicação de estudos que remontam décadas de pesquisas. O presente volume cumpre bem esse papel de dar vida a um monumento que, por sua vez, é capaz de iluminar o passado de uma cidade e nosso conhecimento sobre um período fértil da antiguidade. Para os interessados na pesquisa envolvida em Aphrodisias, indico o site Aphrodisias excavations (http://aphrodisias.classics.ox.ac.uk/index.html).

O romance de Cáriton, termina com a evocação a uma só vez do teatro e do templo de Afrodite, ambos o bra de Zoilos e motivo de orgulho dos afrodisienses (Quéreas e Calírroe, VII. 8):

Enquanto a multidão estava no teatro, Calírroe, antes de ir para casa, foi ao templo de Afrodite. Tocando-lhe os pés e pousando sobre eles o rosto, com os cabelos soltos, beijou-os e disse: — Sou grata, Afrodite.

Referências

BEARD, M. (2017). SPQR: Uma história da Roma Antiga. São Paulo, Crítica.

DUARTE, A. S. (trad.) (no prelo). Cáriton. Quéreas e Calírroe. São Paulo, 34.

Adriane da Silva Duarte – Universidade de São Paulo – São Paulo – SP – Brasil. E-mail: [email protected]

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O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna | Jacques Rancière

No início dos anos 1970, Hayden White causara grande agitação entre os historiadores ao demonstrar o recurso destes aos procedimentos e elementos poéticos na construção da narrativa e da interpretação histórica (WHITE, 1992). Trinta anos depois, François Hartog evidenciava, a partir de seus regimes de historicidade, não somente outra faceta da historiografia oitocentista, como também, de modo mais geral, da relação da sociedade ocidental com o tempo histórico. De acordo com Hartog (2013), o regime historicista moderno, marcado por uma concepção de tempo futurista, não se limitava às narrativas historiográficas – ia além, perpassando diversas formas de relação social com a temporalidade, inclusive a literatura.

Contemporâneo de White e Hartog, Jacques Rancière, filósofo francês, foi gradativamente afastando-se do marxismo althusseriano [2] – que marcou o início de seu trabalho – até se aproximar, sobretudo nos anos 1990, das discussões em torno da relação entre estética e política, e mesmo entre a ficção e a historiografia. No âmago dessas reflexões, Rancière (2005) identificou a existência, no Ocidente, de três regimes na produção das artes: um regime ético, cuja base é a filosofia platônica; um regime representativo, orientado pela poética aristotélica; e, finalmente, um terceiro regime, o estético, que é propriamente moderno, e cuja origem encontra-se no questionamento e na subversão da poética representativa. Esses regimes implicam não somente concepções e relações poéticas, mas igualmente políticas, uma vez que o filósofo identifica certa indissociabilidade entre essas esferas. Desse modo, esses regimes são fundamentais na compreensão, tanto da composição poética quanto dos seus desdobramentos críticos em sua recepção. As implicações de sua reflexão, no entanto, não se limitam à ficção e à política, permitindo recolocar em questão a relação entre estas e a história, compreendendo sua articulação, especialmente, no momento da constituição da disciplina ou ciência histórica no século XIX.

Em O fio perdido, um conjunto de ensaios sobre a ficção moderna, Rancière percorre, ao longo de três capítulos, diversos nomes consagrados do romance, da poesia e do drama com o intuito de identificar mecanismos e indícios específicos que demarcam em cada obra e em cada segmento a decadência do regime representativo, centrado no modelo orgânico e na lógica da ação, e a emergência do regime estético que caracteriza propriamente essas ficções como modernas.

O primeiro capítulo da obra, O fio perdido do romance, é aberto por um texto sobre Gustave Flaubert, O barômetro da Sra. Aubain. Nele, Rancière tenta dar conta da novidade contida na obra flaubertiana, identificando-a, primeiramente, a partir das críticas tecidas ao romancista. Logo no início do prólogo do livro, o filósofo recorre à sentença de Barbey d’Aurevilly sobre a Educação sentimental: “não há livro ali dentro; não há essa coisa, essa criação, essa obra de arte de um livro, organizado e desenvolvido, que vai em direção a um desfecho” (1869 apud RANCIÈRE, 2017, p.7). A crítica é sintomática, ela evidencia a cisão que o filósofo identifica na obra do romancista. Conforme afirmava Michel de Certeau (1998, p.91-106; p. 266-268), a crítica pertence ao terreno das táticas, consiste em um instrumento de controle, no caso, não somente das leituras, mas também das práticas de escrita literária. Ela demarca, segundo a própria reflexão rancieriana, uma concepção de ficção literária vigente. Nesse caso, trata-se do regime representativo, presente na poética aristotélica, que define a ficção, positivamente, como uma “intriga de saber” que implica na construção poética o estabelecimento de uma ordem temporal (começo, meio e fim), de uma ordem causal regida pela verossimilhança, pela necessidade, pela subordinação dos detalhes e das partes ao conjunto da obra e também por certa proporcionalidade e correspondência entre a descrição, o pensamento e a ação.

Desse modo, para o crítico de Flaubert, sua obra transgredia esses princípios, logo ela era carente de elementos necessários para qualificá-la enquanto ficção. No entanto, para Rancière, não se trata de uma carência, mas sim do efeito da emergência de um novo “paradigma estético”, que não deixa de ser um “novo paradigma da vida”. Nesse sentido, o excesso descritivo presente no romancista – encarnado na presença do barômetro da sra. Aubain, em Um coração simples –, demarcaria não a deficiência de um elemento destoante e desnecessário, muito menos um efeito de real pelo qual Roland Barthes e a crítica estruturalista estipulavam o lugar da descrição inútil e demarcavam a tentativa burguesa de petrificação e naturalização da ordem social, mas um aspecto próprio ao regime estético.

Essa descrição inútil é, para Rancière, primeiramente a recusa à progressão do relato, e consequentemente uma recusa à ação, à submissão das partes – inclusive do detalhe – ao todo, ou seja, ao desfecho, que marca a poética representativa e seu modelo orgânico. A multiplicidade desses detalhes que antecedem ao ato, à ação, também são sintomas da ampliação e da complexificação das relações causais.

No entanto, segundo o autor, a poética aristotélica não é somente uma estrutura de racionalidade, mas “uma categoria organizadora de uma divisão hierárquica do sensível” (RANCIÈRE, 2017, p.21). Em outras palavras, a ordem representativa, na qual a ficção constrói-se como um corpo no qual os membros se submetem a um centro e as ações se ordenam pela necessidade ou pela verossimilhança, é também a metáfora de uma concepção do ordenamento social, segundo a qual os homens dividem-se hierarquicamente entre ativos e passivos. Nessa ordem, os aristocratas são ativos, pois podem conceber grandes fins ou outros fins e buscar sua realização, enquanto os demais – a grande maioria, o povo – são considerados passivos, não por sua inação, mas porque sua ação não pode conceber outro fim senão a mera reprodução da vida cotidiana (RANCIÈRE, 2017. p. 21). Essa distinção limitava, portanto, o acesso dos passivos à ficção, da qual não eram dignos devido às suas supostas capacidades sensíveis inferiores. É como contraponto a essa “política representativa” que o filósofo propõe sua leitura da obra flaubertiana. Desse modo, não somente o barômetro da sra. Aubain, mas principalmente Emma Bovary, são anunciadores de uma democracia ficcional própria ao regime estético. A presença do barômetro produz um “efeito de igualdade” entre os elementos da ficção, ele não está a serviço do real, nem da ação e muito menos do todo, enquanto Emma marca a igualdade sensível de todos: “a descoberta de uma capacidade inédita dos homens e das mulheres do povo de obter formas de experiência que lhes eram, até então, recusadas” (RANCIÈRE, 2017, p.19). Essa afirmação da capacidade sensível dos anônimos proporciona, de acordo com Rancière, um poder de desidentificação em relação à velha ordem representativa que articulava posições sociais, identidades e capacidades sensíveis. No entanto, esse poder dos anônimos é deles afastado para forjar o “poder impessoal da escrita” (RANCIÈRE, 2017, p.33). Dessa forma, segundo o autor, Flaubert incorpora em sua escrita o poder da “igualdade sensível dos anônimos” e dos “estados sensíveis coexistentes”, mas acaba por submetê-los à “velha lógica da ação” (RANCIÈRE, 2017, p.37).

No texto seguinte, A mentira de Marlow, dedicado à obra de Joseph Conrad, Rancière observa a radicalização desse novo regime da ficção. Se a obra flaubertiana evidenciava a debilidade dos encadeamentos causais orientados pelo necessário e pelo verossímil, próprios a uma concepção orgânica de totalidade (ta katholou), mas também subordinava a ordem das sucessões (kath’hekaston) e das coexistências ao curso de uma intriga ainda causal, os romances de Conrad recusam totalmente qualquer controle que tente se impor à verdade da ficção – que é também a verdade da vida –, ou seja, à ausência de qualquer ordem ou qualquer sentido.

Consequentemente, na obra de Conrad, a ordem que orienta a composição das ficções advém do kath’hekaston, não tomado como mera sucessão de fatos da vida cotidiana, mas como uma ordem das coexistências que não pode ser reduzida a qualquer ordenamento. Uma temporalidade das coexistências substitui, portanto, os encadeamentos possíveis. Mas não somente isso, para Rancière, o ceticismo do romancista inglês conduz a uma indistinção entre a ficção e o real, de modo que este real passa a englobar tudo, inclusive a ficção e o sonho. Dessa concepção ampliada do real decorre a destruição da verossimilhança, e toda a lógica da ação tradicional torna-se o indício de uma mentira. Mentira não somente sobre a ficção, mas principalmente sobre a própria vida.

Por conseguinte, de acordo com o filósofo francês, a narrativa de Conrad compõe-se, contrariamente à escrita de Flaubert, de modo a ampliar os círculos das coexistências, revelando-as e evidenciando a tirania mentirosa das intrigas bem construídas. Portanto, a ficção não deve mostrar a progressão rumo a um desfecho, mas tão somente esse “meio sensível” que é a própria vida, cuja única temporalidade é o presente, um presente que engloba tanto resquícios do passado quanto antecipações do futuro. Ela torna-se, desse modo, palco “de um encontro aleatório e inevitável entre um ser de desejo e de quimera, e uma realidade cuja síntese escapa a qualquer cálculo das causas e dos efeitos” (RANCIÈRE, 2017, p.54).

Contudo, Rancière indica que essa temporalidade das coexistências que recusa qualquer sentido, controle ou finalidade encontra certos limites impostos pela ficção. Um deles é o “fim”. Desse modo, se a mentira dos inícios é contornada por Conrad ao iniciar suas ficções com algum equívoco ou acaso desdobrando-o, a necessidade do ponto final, sempre mentiroso, não faz o romancista recuar em sua convicção. Pelo contrário, para o filósofo, os fins das ficções do capitão Conrad sempre reafirmam sua concepção mesmo quando mentirosos. Esses artifícios para encerrar o livro são basicamente dois: o recurso a um deus ex machina ou à mentira necessária (como no caso de O coração das trevas) que deixam transparecer, no entanto, a verdade da ficção.

O último texto do primeiro capítulo do livro aqui resenhado, A morte de Prue Ramsay, analisa a obra de Virginia Woolf. A romancista partiria, segundo a leitura rancieriana, dos mesmos pressupostos de Conrad. Dessa forma, a imagem que lhe traduz a verdade da vida e, conseguintemente da própria ficção, é a da “chuva sempre cambiante de acontecimentos sensíveis” e impessoais (RANCIÈRE, 2017, p.39). A verossimilhança e a necessidade não podem, portanto, regular a ficção, pois tanto a vida quanto a ficção pertencem à ordem do kath’hekaston (entendido como coexistência). Consequentemente, a intriga torna-se, para Woolf, uma tirania, que pode ser: paterna, em sua forma clássica; ou materna, em sua forma contemporânea, aquela que “ordena a grande rede das coexistências” e reduz a “chuva anárquica dos átomos às pequenas coisas e aos pequenos milagres da vida cotidiana” (RANCIÈRE, 2017, p.60).

Entretanto, o autor observa que a forma desta “chuva anárquica de átomos” é incompatível com a forma narrativa da ficção que precisa de uma mínima organização de ações. Nesse caso, a saída encontrada nos romances de Woolf consiste na prática de instaurar no próprio romance a “tensão entre várias maneiras de inscrever a chuva de átomos” (RANCIÈRE, 2017, p.64). Nessa prática, o filósofo distingue dois procedimentos complementares: por um lado, a multiplicação, pela qual se ampliam as redes das coexistências que conservam sua autonomia escapando a tirania de uma intriga que busca apropriar-se dessa multiplicidade; por outro lado, opera-se uma divisão, pela qual se separa a multiplicidade que evidencia o amor e a vida universais dos “prazeres conhecidos e das virtudes familiares” (RANCIÈRE, 2017, p.69) que compõem a tirania materna da intriga, mas também do equívoco dos que confundem toda multiplicidade da vida impessoal com mensagem individual, apropriando-se dela e submetendo-a a qualquer pessoalidade. Septimus Warren Smith, personagem de Mrs. Dalloway, vítima dessa segunda indistinção que se torna loucura, é também, aos olhos do filósofo, uma figura essencial da nova ficção, pois seu sacrifício resolve a “relação entre a verdade da chuva de átomos e a lógica mentirosa das intrigas” (RANCIÈRE, 2017, p.72), e impede igualmente que “o halo luminoso da vida universal” seja confundido com as “aspirações pessoais dos filhos do povo semieducados” (RANCIÈRE, 2017, p.74).

O segundo capítulo do livro, A República dos poetas, é composto por dois textos. O primeiro deles, O trabalho da aranha, é dedicado à obra de John Keats. Keats encarna, aos olhos de Rancière, uma das novidades do regime estético, pois ele é antes de tudo, como Emma e Septimus, um “filho do povo” que, no entanto, recusa a posição e a identidade que, de acordo com a ordem clássica, o nascimento lhe impunha. Contudo, a política de sua poesia, conforme assinala o filósofo, não se encontra na articulação do poema com as agitações sociais, os posicionamentos políticos, ou em seu sentido, mas em uma “identidade dos contrários” (RANCIÈRE, 2017, p.81).

Essa identidade dos contrários não os relaciona como “antípodas”, mas como “equivalentes”. Ela subverte a lógica da ação tradicional ao equiparar a atividade com a passividade, mais precisamente, ao fazer perceber na ação o seu contrário, a passividade, e nesta última um caráter ativo, liberto, no entanto, da necessidade dos fins ou da função utilitária que caracteriza a ação na ordem clássica. Essa subversão é observada por Rancière na “negative capability” forjada por Keats, a qual consiste em uma “‘capacidade de não’: não buscar uma razão […], não concluir, não decidir, não impor” (RANCIÈRE, 2017, p.85). Tal recusa à determinação é uma marca da própria estética e sua disponibilidade a todos destrói a “diferença sensível entre duas humanidades”, aquelas que orientavam o regime representativo e a “distribuição dos corpos em comunidade” (RANCIÈRE, 2017, p.86).

Na leitura rancieriana, essa identidade é produzida pelo estabelecimento de três formas de comunidade: a primeira é aquela estabelecida “entre os elementos tecidos pelos poemas: as palavras e a presenças que elas suscitam”; a segunda comunidade se constitui “entre os poemas e outros poemas: os que o poeta escreve e os que ele não escreveu”; a terceira forma de comunidade é “aquela que o modo de comunicação sensível próprio do poema projeta como possível comunicação entre os humanos”. A política do poema consiste, portanto, na “configuração de um sensorium específico que mantém juntas essas três comunidades” (RANCIÈRE, 2017, p.81-82).

Desse modo, a imagem que define, em grande medida, a interpretação que Rancière faz de Keats é da teia de aranha, pois ela pressupõe uma igualdade horizontal, a qual desconhecia qualquer superioridade, e que se opunha, a seu tempo, à igualdade vertical ou cristã, proclamada por Willian Wordsworth, que a reconhecia como concessão ou presença divina comum, o que evidenciaria, segundo Rancière, uma superioridade do poeta que a proclama. A igualdade da teia liberta, dessa forma, as sensações de qualquer identificação pessoal e faz da obra poética uma disponibilidade acessível a cada um, pela igualdade sensível, para integrar suas teias.

O outro texto desse segundo capítulo, O gosto infinito pela República, é dedicado a Baudelaire. A expressão que dá título ao ensaio, tomada do próprio poeta que a utiliza para caracterizar a obra de Pierre Dupont, serve igualmente a Rancière para caracterizar uma categoria estética ou uma política estética presente na obra baudelairiana, que marca a participação de todos na Vida Universal, esta compreendida como um poder que perpassa e iguala a todos.

Entretanto, para compreender esse “republicanismo estético” é preciso, afirma o filósofo, distanciar-se da “interpretação benjaminiana”, demasiadamente centrada no “dado antropológico constitutivo da modernidade: o da perda da experiência, produzida pela reificação mercantil e pelo encontro da cidade grande e da multidão” (RANCIÈRE, 2017, p.103). Desse modo, essa interpretação que percebia nos escritos do poeta a substituição do modelo orgânico por um modelo inorgânico é incapaz de perceber a novidade contida em sua obra ou, mais precisamente, o “tecido estético” dentro do qual esse republicanismo ganha sentido.

Para apresentar esse “paradigma poético” da época, Rancière analisa os temas do heroísmo e da beleza modernos. O que ambos evidenciam e que permeia toda a época romântica é a falência da ação, da ação como modo de pensamento e racionalidade que normatiza os “comportamentos sociais legítimos” e a “composição das ficções” (RANCIÈRE, 2017, p.108). Essa falência é, para o filósofo, fruto do excesso, da ampliação e complexificação do mundo e do conhecimento, pois a ação demandaria “um mundo finito”, “um saber circunscrito”, “causalidades calculáveis” e “atores selecionados” (RANCIÈRE, 2017, p.108). A leitura rancieriana de Baudelaire é, consequentemente, tributária de Balzac, pois seria dele que o poeta teria tomado não somente a característica da beleza moderna, ou seja, o “flutuante”, a fugacidade, mas, sobretudo, a percepção do divórcio entre o saber e a ação. Em outras palavras, desde Balzac o mundo social perdera-se gradativamente em “infinitas ramificações”, e o tema perdera-se, igualmente, em uma “rede infinita de sensações” (RANCIÈRE, 2017, p.111-112), tornando o tecido sensível incompatível com a ação clássica. Essa ampliação também produziria um efeito de desidentificação, positivado pelo filósofo. A multidão, portanto, não igualaria a todos, mas, pelo contrário, o olhar sobre ela abrir-se-ia para a sua multiplicidade.

No último capítulo de O fio perdido, O teatro dos pensamentos, Rancière analisa a relação entre “o pensamento, a palavra e a ação no teatro moderno” (RANCIÈRE, 2017, p.123) ou, mais precisamente, no chamado teatro popular. Sua análise parte do diagnóstico, dado por Barthes, de “aburguesamento” do Théâtre National Populaire (TNP), de Jean Villar, sobretudo pela atuação de Gérard Philippe, seu maior astro nos anos 1950, para retomar a longa história do teatro moderno.

O primeiro protótipo do teatro popular é encontrado por Rancière no princípio do “palco aberto”, formulado por Victor Hugo. Este consistiria não somente na destruição das convenções ligadas aos gêneros, mas na “mistura de tudo” como na vida, “um igualitarismo radical” (RANCIÈRE, 2017, p.126). Esse palco aberto ao povo celebrava, no entanto, algo maior que ele. Celebrava, segundo tal leitura, a vida universal que ultrapassa todas as individualidades, constituindo uma dramaturgia da coexistência.

Porém, a reflexão de Hugo detém-se aí. O teatro representa, contudo, não apenas uma metáfora do ordenamento social, mas é também uma metáfora do pensamento, afirma o filósofo. Nesse sentido, duas imagens governaram historicamente a relação entre pensamento e teatro: uma negativa ou platônica opõe um ao outro, fazendo do teatro o reino da imagem, da mentira do poeta e do ator, da ilusão e da passividade, do excesso e da paixão, o contrário do pensamento; e há uma imagem positiva, a aristotélica, que faz do teatro uma “intriga de saber”, um “modelo de racionalidade”, ou do “pensamento em ato”, no qual “o espaço visível da representação é dado como o lugar de efetuação de um esquema” e a palavra adere e expressa o pensamento, controlado por uma vontade, anunciando o ato (RANCIÈRE, 2017, p.128-29). A subversão da segunda imagem dessa relação é encontrada por Rancière nos trabalhos de George Büchner. Em sua obra o modelo orgânico é substituído por um modelo vivo, resultado de uma nova concepção do meio da ficção, não mais entendido como intervalo entre um início e um fim, mas como uma rede infinita que ultrapassa qualquer forma de unidade, seja a do organismo seja a da ação.

O pensamento torna-se desse modo, sinônimo do excesso, afirma o filósofo. Suas operações infinitas excedem o corpo, a palavra, o gesto e o ato, e a sua origem e fim imprecisos impedem que qualquer vontade possa controlá-lo. Isso não significa que ele não age, mas que o modelo de sua ação verdadeira, aquele que desconhece suas origens e fins, opõe-se à forma da ação racional controlada do modelo aristotélico, e a sua nova forma será, pelo contrário, a do sonho ou do sonambulismo. Essa nova imagem do pensamento faz da imagem aristotélica do teatro como “intriga de saber” uma mentira, um equívoco sobre a natureza, a forma e a origem do pensamento, bem como sobre o modo como ele ganha corpo e age.

Como consequência dessa nova concepção do pensamento no palco, Rancière observa o surgimento de uma “arte da direção” que compreende duas modalidades: a primeira, presente nas reflexões de Maurice Maeterlinck, faz da direção a “arte da disposição das palavras no espaço” (RANCIÈRE, 2017, p.142), atribuindo à palavra não uma função de anunciar o pensamento ou o ato, mas de evidenciar o meio sensível, o “fora-do-espaço”, que é o lugar desse pensamento tomado como excesso. Ela demarca, dessa forma, a distância entre o verdadeiro pensamento e as pretensões da intriga clássica. Asegunda modalidade é proveniente, entre outros trabalhos, das atuações de Jean-Gaspard Deburau no Théâtre dês Funambules, e “consiste em bordar na trama ficcional das causas e efeitos um cenário de pura atuação”, uma atuação que consiste não na representação, mas na pura ação dos corpos (RANCIÈRE, 2017, p.144-45).

O teatro moderno que culmina no TNP é, portanto, marcado por essa disjunção entre o pensamento, caracterizado pelo excesso, a palavra, cuja função é evidenciar a distância que marca o meio seio sensível do palco, e o ato, tomado como pura atuação dos corpos. Para Rancière, essa longa história é ignorada no juízo de Barthes, que toma por base a oposição brechtiana entre um teatro da identificação e um teatro do distanciamento, pela qual Brecht buscava restabelecer o vínculo entre o prazer estético e o saber necessário para a ação revolucionária. Essa oposição omite essa história, pois, como concepção “revolucionária”, ela busca restabelecer a velha lógica da ação em crise desde o século XVIII. Desse modo, a “questão pela qual a política está ligada ao teatro não é saber como sair do sonho para agir na vida real; é a de decidir o que é o sonho e o que é a vida real” (RANCIÈRE, 2017, p.149).

Embora O fio perdido de Rancière consista em um livro dedicado à ficção, sua leitura inquietante não se limita aos interesses do crítico literário ou do ficcionista, indo além desses limites. Ao reconhecer, como White, que a constituição da História, e mesmo, das Ciências Sociais, enquanto saberes e disciplinas modernas ou ciências é tributária do modelo da poética tradicional, centrado na lógica da ação e da intriga causal, e que a própria poética representativa é igualmente uma concepção de comunidade ou de um ordenamento social, Rancière fornece novos elementos para a compreensão de aspectos que permeiam a constituição do campo de trabalho e das práticas dos historiadores. Desse modo, cabe também questionar, a partir desses indícios da falência da ação e desses deslocamentos nas práticas da escrita ficcional, suas possíveis consequências no campo da historiografia e das ciências da sociedade.

É intrigante, igualmente, refletirmos acerca dos contrastes entre, de um lado, essa emergência de um regime estético na ficção desde o final do século XVIII, identificada nesse conjunto de ensaios de Rancière, cuja marca fundamental consiste em uma crescente abertura, pluralização ou multiplicação heterogênea do social, da noção de acontecimento e de pensamento, e do próprio vínculo entre pensamento, palavra e ação. Por outro lado, no que tange à historiografia, mas também à ampla parcela do pensamento filosófico, sociológico e antropológico, observamos, nesse mesmo período, um crescente processo de unificação, homogeneização e hierarquização da temporalidade histórica e do conjunto dos recursos conceituais de análise histórica, sociológica e antropológica. Portanto, trata-se de uma leitura fundamental, pois implica um conjunto de problemas cruciais às ciências humanas tanto em sua origem quanto na contemporaneidade.

Nota

2 Rancière participou inclusive do primeiro volume da obra Ler O capital, coordenada por Louis Althusser (1979).

Referências

ALTHUSSER, Louis; RANCIÈRE, Jacques; MACHEREY, Pierre. Ler O Capital. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979. 1v.

CERTEAU, Michel de. Fazer com: usos e táticas. In: ______. A invenção do cotidiano: Artes do fazer. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 91-106

. ______. Ler uma operação de caça. In: ______. A invenção do cotidiano: Artes do fazer. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 259-276.

HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

RANCIÈRE, Jacques. O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2017.

______. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005.

______. O conceito de anacronismo e a verdade do historiador. In: SALOMON, Marlon (Org.). História, verdade e tempo. Chapecó: Argos, 2011. p. 21-49.

WHITE, Hayden. Meta-História: a imaginação histórica no século XIX. São Paulo: Editora da USP, 1992.

Cássio Guilherme Barbieri – Mestrando no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humana da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) – Campus Erechim. Graduado em História pela UFFS – Campus Chapecó. É membro do Laboratório Escrita, Memória e Arte (LEMA) e do Grupo de Estudos Teoria da História, ambos vinculados ao Curso de História da UFFS. E-mail: [email protected]


RANCIÈRE, Jacques. O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2017. Resenha de: BARBIERI, Cássio Guilherme. Estética, política e historiografia: indícios da emergência do regime estético na ficção moderna. Aedos. Porto Alegre, v.11, n.25, p.627-636, dez., 2019. Acessar publicação original [DR]

Norte e Sul | Elizabeth Gaskell

É muito conhecida nas ciências sociais a obra de Friedrich Engels chamada A situação da classe operária inglesa publicada em 1845, quando o autor, nascido em 1820, tinha apenas 25 anos. De origem prussiana, Engels viajou para a Inglaterra – então a oficina do mundo – em novembro de 1842 e lá ficou por 21 meses, estagiando na empresa de sua família abastada. Depois, em 1844, via Paris, retornou para a casa dos pais, e passou a escrever aquele livro que é, na verdade, um relatório e uma denúncia. Uma obra-prima, dirá Eric Hobsbawm, de leitura obrigatória.

No entanto, não muitos talvez saberão que há um romance de autora vitoriana, moradora de Manchester por toda a vida a partir de 1832, que retrata a mesma situação terrível da classe operária inglesa e foi publicado apenas dez anos depois do livro de Engels. É Norte e Sul, de Elizabeth Gaskell (1810-1865), importante autora inglesa do século 19, amiga de Charles Dickens e de Charlotte Brontë e admirada por pessoas como John Ruskin e Charles Darwin. Mrs. Gaskell é autora de outros romances sociais a partir de Mary Barton, sua estréia literária, de 1848, já publicado no Brasil, em 2017 e que também se passa em Manchester. Leia Mais

Água: uma novela rural | João Paulo Borges Coelho

Água, uma novela rural é o décimo primeiro livro de João Paulo Borges Coelho (JPBC), nome que vem ganhando notoriedade tanto na literatura africana quanto nos estudos literários. Evidência neste sentido é a crescente produção crítica de sua obra, a exemplo do congresso intitulado: O cartógrafo da Memória: A poética de João Paulo Borges Coelho, realizado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em julho de 2017, a publicação da coletânea de artigos: Visitas a João Paulo Borges Coelho: leituras, diálogos e futuros (Editora Colibri, 2017) e o Dossiê: Passados antecipados, futuros empoeirados: os caminhos da ficção de João Paulo Borges Coelho, da Revista Mulemba (UFRJ, 2018) . Importa situar que os prêmios José Craveirinha da Literatura (2004) pelo romance As Visitas do Dr. Valdez, o Leya de romance histórico (2010) com O Olho de Hertzog contribuíram para o reconhecimento de sua obra literária composta por dois livros de contos, três novelas e sete romances.

Além de escritor, JPBC é historiador e professor no Departamento de História da Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, Moçambique. Sua produção acadêmica é constante, sendo sua tese de doutorado, até hoje, uma das principais referências no tocante aos processos de deslocamento na região de Tete1. Em outra ocasião, argumentei que o aprofundamento de sua contundente experiência acadêmica incentivou sua escrita literária pois foi precisamente em Tete, província central circundada pela Zâmbia, Zimbábue e Malaui, o cenário escolhido para sua primeira obra literária, As duas sombras do rio (2003), que versou sobre a guerra civil moçambicana (1976-1992)2. Contudo, vale ressaltar, que os dois espaços de produção textual, a literatura e a história, são para JPBC complementares, segundo suas próprias palavras: “Assumo-me como eu próprio, uno e indivisível, embora com as contradições e conflitos que, de uma maneira ou de outra, nos atravessam a todos. Não estou dentro do acadêmico ou do escritor, eles é que estão dentro de mim”3. Leia Mais

Exit West – HAMID (BC)

HAMID, Mohsin. Exit West. Torino: Einaudi, 2017. 156p. Resenha de: GUANCI, Enzo. Il Bollettino di Clio, n.8, p.75-76, dic., 2017.

Una storia d’amore.

“In una città traboccante di rifugiati ma ancora perlopiù in pace, o almeno non del tutto in guerra, un giovane uomo incontrò una giovane donna in un’aula scolastica e non le parlò. Per molti giorni. Lui si chiamava Saeed e lei si chiamava Nadia…”

È l’incipit dell’ultimo romanzo di Mohsin Hamid, lo scrittore pakistano che dopo aver studiato e lavorato molti anni negli USA è tornato a Lahore, dove attualmente vive, muovendosi spesso, tuttavia, tra Londra e New York.

La pubblicazione nel 2007 del suo Il fondamentalista riluttante ci penetrò nelle riflessioni pensierose di un intellettuale di formazione islamica ma in qualche modo integrato nella cultura americana, dopo che l’attentato dell’11 settembre aveva cambiato per sempre il rapporto tra l’Occidente e il Medio Oriente islamico.

Dieci anni dopo questo Exit West vuole introdurci nell’universo della migrazione, di coloro che cercano l’uscita a Ovest.

Come?  Raccontando una storia d’amore o, per meglio dire, una normale storia di coppia. La storia di due giovani dei nostri giorni che si conoscono, si amano, si separano, hanno nuovi compagni e nuove compagne. La loro particolarità, però, è quella di essere migranti.

Il racconto di Hamid salta completamente il viaggio. Non gli interessa farci conoscere i viaggi, le traversie, le angherie dei trafficanti, l’alto rischio del trasporto. Possiamo solo immaginarli: alcuni personaggi loschi non meglio descritti aprono ai nostri Saeed e Nadia alcune “porte” dove si può “passare”.

La prima metà del romanzo ci racconta la trasformazione della loro città, dove i giovani studiano, lavorano, si innamorano, ballano, fumano, ascoltano musica, si confrontano con i loro genitori; piano piano tutto questo diventa prima difficile, poi pericoloso, infine impossibile. La città è in guerra. La guerra è arrivata in città.

“Adesso nella città il rapporto con le finestre era cambiato. La finestra era il confine attraverso il quale era più probabile giungesse la morte. Le finestre non costituivano una protezione neanche dai proiettili più fiacchi: qualunque locale con una vista sull’esterno poteva essere preso in mezzo dal fuoco incrociato. Inoltre i vetri di una finestra frantumata da un’esplosione potevano trasformarsi in schegge di granata, e tutti avevano sentito di qualcuno dissanguato dai frammenti di vetro.” (p.46)

Bisogna andarsene. E sarà duro, molto duro, abbandonare la propria casa, i propri affetti. Il padre di Saeed, che aveva accolto Nadia come una figlia, decide di restare. Lui non ce la fa, ma forza i due ragazzi ad andar via, a “passare la porta”

“In quei giorni si diceva che il passaggio era un po’ come una morte e un po’ come una nascita, e in effetti Nadia provò una sensazione di annientamento mentre entrava nell’oscurità e lottò furiosamente per respirare mentre cercava di uscirne, ed era infreddolita, contusa e bagnata quando si ritrovò distesa sul pavimento della stanza dall’altra parte, tremava e sulle prime era così spossata che non riusciva ad alzarsi, e pensò, mentre boccheggiava per riempirsi i polmoni d’aria, che quella sensazione di bagnato doveva essere il suo sudore.” (p. 67)

Saeed e Nadia nascono di nuovo. E crescono tra campi profughi e “porte” e “passaggi” che conducono ad altri campi, altri luoghi, altra gente, in cui “tutti erano stranieri, e quindi in un certo senso nessuno lo era”.

La grandezza di Mohsin Hamid sta qui. Nella seconda metà del romanzo riesce a darci conto dell’odissea di persone normali costrette a fuggire, a “migrare”, da un campo profughi ad un altro. Ci racconta con brevi ma efficacissimi tratti la vita del campo che “ricordava per certi versi una stazione commerciale dei vecchi tempi della corsa all’oro, e vi si vendevano o si scambiavano molte cose, dalle maglie pesanti ai telefoni agli antibiotici a sesso e droghe sottobanco…”. Non solo. In altre occasioni Hamid ci ricorda che “c’erano volontari che distribuivano cibo e medicine, ed enti assistenziali all’opera”. Insomma, quella di Saeed e di Nadia somiglia molto a un’Odissea senza un’Itaca, un posto dove fermarsi per vivere la propria vita. Ma quella di Saeed e Nadia somiglia maledettamente anche all’odissea di ciascuno di noi, perché nell’era della globalizzazione “si stavano aprendo tutte quelle porte da chissà dove, e arrivava ogni sorta di strana gente…”.

Insomma il romanzo dei migranti è, in fondo, al netto di tutte le sofferenze e i patimenti dei trasferimenti sui barconi e sui sentieri di montagna, il romanzo della vita giacché “…tutti emigriamo anche se restiamo nella stessa casa per tutta la vita, perché non possiamo evitarlo.

Siamo tutti migranti attraverso il tempo.

Enzo Guanci

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[IF]

O homem que amava os cachorros | Leonardo Padura

O livro de Leonardo Padura é uma daquelas obras de ficção que tem o poder de apequenar o historiador/leitor, pela sua narrativa de tirar o fôlego. Só mesmo uma obra despretensiosa quanto à História ciência poderia navegar tão livremente pelos personagens e contextos históricos. A narrativa, todavia, prende o leitor justamente pelo que traz de história e pelo respeito à história acontecimento, a história dos personagens entrelaçada no contexto em que se encontravam.

O respeito à história é garantido no que para o historiador é algo fundamental: no trato com as fontes bibliográficas e documentais, algo que consumiu do autor mais de cinco anos de trabalho, a colaboração de diversas pessoas em Cuba, no México, na Espanha, na Rússia, na França, na Dinamarca, no Canadá e na Inglaterra. Isso garantiu – conforme Padura em nota de agradecimento ao final do livro – a “fidelidade possível (…) aos episódios e à cronologia da vida de Leon Trotski” e uma “presença esmagadora da história em cada uma de suas páginas” (p.587), mesmo tratando-se de um romance. Leia Mais

Palavras cruzadas – GRAMMONT (AF)

GRAMMONT, Guiomar. Palavras cruzadas. [Sn.]. Resenha de: JARDIM, Eduardo. Artefilosofia, Ouro Preto, n.20, 2016.

Palavras cruzadas, de Guiomar de Grammont, é um livro corajoso. Aborda o destino trágico dos guerrilheiros do Araguaia, que se tornaram perseguidos políticos no período da ditadura militar. Muitos foram mortos, outros continuam desaparecidos, como Leonardo, o personagem do romance. O tema já foi tratado anteriormente pelos historiadores, mas não da forma tão livre como faz Guiomar.

Essa liberdade certamente tem a ver com o fato de que a exploração do assunto se faz, no caso, por meio de uma obra literária. O livro escapa da visão simplificadora que opõe heróis e vilões e encara de frente a complexa e dolorosa trajetória do personagem do desaparecido. A narrativa de Sofia, irmã de Leonardo, é o fio condutor do romance. Ela quer a todo custo resgatar do esquecimento a história do irmão. São vários os sentidos da sua busca. Explicitamente trata-se de uma retomada da figura de Antígona, que enfrenta as leis da cidade para poder en terrar o corpo do irmão. Porém, de forma indireta, o romance toca em aspectos centrais do significado da narrativa literária, incluindo a tragédia grega. Dois deles são particularmente pertinentes: a dimensão catártica da literatura e, relacionado com ela, a possiblidade de a literatura promover a reconciliação com a realidade e, como decorrência, tornar possível um recomeço da vida.

Guiomar tem todo motivo para usar como epígrafe uma passagem da Antígona, de Sófocles, que se refere à decisão da heroína d e não deixar insepulto o cadáver do irmão, exposto aos ataques dos cães famintos e das aves carniceiras. O livro também traz à lembrança uma passagem de outra escritora, a dinamarquesa Isak Dinesen, lembrada por Hannah Arendt: “Todas as mágoas são suportáveis quando se pode contar uma história a seu respeito.” Como explicar este poder da narrativa de dar alento àquele que ouve ou lê a história de seus próprios sofrimentos, como aconteceu com Ulisses, na corte dos feácios? Há, primeiramente, o fato de que o contar a história estabelece uma distância do que efetivamente ocorreu. Há uma cessação do sofrimento efetivo. Ao mesmo tempo, a narrativa torna possível a reapresentação dos acontecimentos, o que constitui uma forma de se reaproximar deles. Isto quer dizer que a narrativa promove a reconciliação com a realidade. Ao mesmo tempo que guarda um elemento curativo, o contar a história tem o dom de dar significado àquilo que escapa à compreensão. Em Palavras cruzadas, dois personagens contrastam em sua maneira de lidar com a trajetória de Leonardo – a irmã, Sofia, e a mãe, Luisa. Esta última prefere esquecer. Já envelhecida, ela revela à filha que não se importa de perder a memória, pois lembrar é doloroso demais. Narrar a história do que aconteceu está vedado para ela. Assim, não há chance s de superar a dor, de reconciliar-se com o que aconteceu, de compreender seu significado. Sofia, pelo contrário, encarna a figura da narradora, adota o ponto de vista que é possivelmente da própria autora do livro. Não seria exagerado dizer que, no seu caso, existe salvação. Por este motivo, pode-se dizer que Palavras cruzadas, apesar de todo o percurso trágico descrito, tem um desfecho positivo. A comprovação disto é o encontro de Sofia com a sob rinha, até então desconhecida, que representa no livro a vida que se reinicia. Narrar, reconciliar-se, compreender efetivam o acabamento de um processo, não a sua anulação. O acabamento libera a possibilidade de um novo começo. Assim, novas vidas se iniciam, como a da sobrinha Cíntia, em Paris, com seu gesto de libertar o passarinho para voar. E estas vidas serão possivelmente o assunto de novas histórias para contar. Com sua linguagem ágil e nunca pretensiosa, Guiomar de Grammont reconstitui em seu livro um capítulo difícil da história recente do país. Ao mesmo tempo, com muita inteligência, provoca a reflexão sobre importantes aspectos da natureza da narrativa literária, de um ponto de vista filosófico.

Recortes do livro, trechos escolhidos pela autora:

Seu irmão jazia insepulto; ela não quis que ele fosse espedaçado pelos cães famintos ou pelas aves carniceiras.

Antígona, Sófocles

Sofia voltou para casa perturbada. Despiu as roupas molhadas e tomou um banho quente. Era inverno, mas ela não sabia se os arrepios que sentia eram febre ou efeito da descoberta. Entrou no quarto e, depois de hesitar um momento, decidiu procurar a caixa. Precisou subir em uma cadeira para alcançá-la na parte mais alta do armário, em seu quarto. Deixara ali para evitar a tentação da lembrança. Sempre que estava triste, sempre que se sentia só, nos aniversários, nas datas que marcavam a passagem do tempo e faziam com que ela pensasse mais ainda no irmão, voltava a procurar aquelas fotos e objetos, para buscar algum conforto. Eram os poucos indícios que conservava da presença dele no mundo, e aquelas incursões ao passado acabavam por aumentar sua angústia. As bordas das fotos tinham sido danificadas, aqui e ali, por suas lágrimas. Sofia pegou a caixa e procurou a foto tirada na casa de seus pais, quando ela tinha uns dez anos, em que Leonardo e seu amigo sorriam. Leonardo a pegava no colo, com visível orgulho, como se ela fosse um troféu. Sofia olhou com atenção o rosto do amigo ao lado do irmão. Sim, era ele, sem dúvida. Então, guardou a foto e colocou a caixa no mesmo lugar.

[…] Sofia estava concluindo suas pesquisas e começou a ficar intrigada com um ponto que não tinha conseguido esclarecer: como Leonardo teria ido parar no Araguaia? A resposta a essa pergunta era fundamental, pois, dependendo do resultado, ele podia estar vivo ou morto. E ela acalentava a esperança de que ele estivesse vivo em algum lugar, que pudesse retornar de repente e contar que tudo não passara de um pesadelo. Talvez estivesse há anos conduzindo trens em um metrô sombrio da Suécia, ou entregando jornais, ou limpando latrinas em algum país europeu ou nos Estados Unidos. Papéis falsos, um ou dois casamentos com mulheres que não amava, apenas para obter cidadania e viver do seguro desemprego, esquecido de tudo que tinha vivido antes. A vida é assim, nos leva por caminhos inusitados. E, muitas vezes, é difícil voltar. A volta dá uma preguiça enorme. É melhor lembrar as pessoas que fomos e os entes que um dia amamos a enfrentar o estranhamento. Olhar para eles e perceber que não se sente mais nada, que o elo se partiu, definitivamente, que não há retorno. Quantos exilados não viviam dessa forma? Sem passado e sem futuro, expatriados para sempre? Seria essa a história de Leonardo? Sofia tanto temia quanto desejava essa possibilidade. E, se fosse assim, como ter certeza? Como poderia saber se ele estava vivo? Provavelmente a vida iria transcorre r até o fim e eles jamais se encontrariam. Leonardo iria morrer, em algum lugar desconhecido, sem jazigo de família, sem memória, sem história.

Afinal, a morte é a única certeza da vida. Se Leonardo já não estivesse morto, morreria um dia, e ela também, e tudo que haviam partilhado. Todas as lembranças, as trocas de afeto quando ela era criança, os abraços, as brincadeiras, tudo se desfaria no tempo.

Era esse o destino de todos os seres humanos. Então, porque ela sofria tanto? Por que aquela permanente angústia pela falta de uma conclusão, um desfecho, um ponto final? Por que não deixava o tempo passar e a lembrança se desvanecer até se tornar poeira no infinito, como se nada tivesse acontecido, como se tudo fosse aqui e agora e para sempre? “Tudo é sempre a gora”, o poema ecoava como um mantra em seu pensamento. Esqueça, tudo é sempre agora. Nada foi, nem será. Nada se perde, tudo se transforma, tudo é sempre agora.

Porém, ela não conseguia esquecer. Não havia sono que não fosse visitado pela presença de seu irmão, nem momento de felicidade que não viesse empanado por aquela ausência. Uma culpa fina e constante a trespassava, por ter sobrevivido, por estar no mundo e poder aproveitar os momentos felizes. Cada instante de alegria era um momento a mais sem Leonardo, um momento a menos que ele estaria vivendo ou compartilhando com ela e com a família. Leonardo era um rosto sorrindo no escuro, quando ela assistia a um filme ou espetáculo, era um braço que roçava o seu, cálido, humano. Ela olhava para o lado, de rep ente, esperando dar com o olhar dele, doce e próximo, e se desapontava. Quando Sofia ouvia uma música ou via um filme que a emocionava, imaginava-se contando a ele e as lágrimas vinham a seus olhos. Sempre que ela abraçava um homem mais alto, a reminiscência de um gesto semelhante atravessava por um segundo seu inconsciente, mesmo que ela não estivesse pensando em seu irmão, mesmo que ela não pensasse em nada. Aquela falta pulsava, buraco negro no espaço.

O tempo passava e um dia todas as lembranças seriam esquecidas, as vivências, sentimentos e histórias se dissolveriam no insondável.

[…] O vento insistia em dobrar a folha de papel presa na máquina de escrever, como se quisesse atrair a atenção de Sofia. Ela se aproximou, moveu o carrinho e soltou a folha. O papel parecia ter sido deixado preso ali para que alguém o encontrasse. Como uma explicação ou…

uma carta de despedida?!, pensou. E, de repente, a dúvida.

Sentou-se na poltrona, trêmula, o papel na mão. As letras embaralhavam.

Rememorou os eventos d aquela manhã, quando chegou, depois do telefonema da vizinha. Viu a ambulância na porta da casa e entrou correndo, a porta do carro ficou aberta. No quarto, a mãe nas mãos dos enfermeiros. Lábios arroxeados, a pele pálida. O coração de Sofia saltava a cada choque que eles imprimiam no peito dela. A brutalidade dos procedimentos de reanimação sacudia também as entranhas da filha. Os enfermeiros a instaram a chamar a mãe pelo nome. Luisa! Luisa! Sofia disse e, de repente, entendeu que ela nunca mais a ouviria. Nunca mais. Mãe! Mãe! gritou, sem reconhecer a própria voz.

Luisa foi carregada em uma maca e Sofia entrou na ambulância com ela, sem saber se ela reagira ou não. Mais tarde, a dor de cabeça, sob as luzes fortes do hospital. Só então se permitiu chorar, um choro convulso e forte, de criança. Sedativos, sono, quando talvez tivesse que estar acordada. Depois, a impressão de assistir a si mesma, num pesadelo, no velório e na cerimônia de cremação.

Somente semanas depois conseguiu retornar para arrumar as coisas, ver o que iria guardar e o que iria doar, desmontar tudo, enfim, para que a casa pudesse ser vendida. Os móveis cobertos com lençóis. Nada restaria que pudesse contar o que havia acontecido entre aquelas paredes. A mãe se foi, logo seria a vez dela, Sofia.

Estou sozinha, pensou. E reagiu: Não, tenho meus amigos. Tenho Marcos. De repente, compreendeu a importância que Marcos tinha para ela. A constatação deu-lhe um suave sentimento de liberdade.

E foi esse pensamento reconfortante que a fez voltar a si e ser capaz de ler, enfim, o texto que a tinha surpreendido e intrigado, ao encontrá-lo preso à máquina de escrever de Luisa. A página amarelada indicava que ele tinha sido escrito há muito tempo.

Então, a mãe o tinha colocado na máquina de propósito, para que Sofia o lesse: “A porta bate e me viro, a respiração suspensa. A cortina ondula na janela. Mais uma vez tenho a impressão de que você entrou, certamente no banheiro. Escondeu-se para me dar um susto, como fazia quando criança? Eu fingia que não estava te vendo debaixo da mesa, ou atrás do tapete. Procurava, chamando seu nome. Como faço agora, num murmúrio que cresce e se transforma em pergunta. Pressinto sua presença. Sei que você está aqui. A certeza me perturba, o coração bate, o rubor me sobe às faces. Meu corpo se prepara para esse abraço que irá me tirar do chão.

Ficarei tonta quando você me girar no ar, os braços mais fortes agora, homem feito. A barba irá roçar meu rosto? Não, você iria querer chegar com o rosto escanhoado, medo de que, depois de tantos anos, eu não mais te reconhecesse. Fosse possível não te reconhecer! Você, que saiu do meu ventre. Por que tantos anos sem notícias? A quem deseja punir com sua falta? A seu pai? Você teria medo do retorno? Não imagina quantas vezes ouvi seu pai chorar sozinho, a porta do banheiro fechada, para que eu não percebesse. Não posso chorar, filho. Não choro nunca, só vou chorar quando tiver certeza de que você não voltará mais.

“Ouço um ruído na direção da cozinha. O cachorro sentiu seu cheiro, levanta o focinho, late. Uma, duas, três vezes. Somos dois, agora, em expectativa. Quase vejo seu vulto, oculto no umbral da cozinha. Entro, de repente, quero te surpreender. Você me olha, ao mesmo tempo assustado e excitado. Leva à boca o dedo com o creme roubado da cobertura do bolo. Repreendo, um tapinha na mão, sem força. Seu rosto se ilumina. Sinto uma vontade momentânea de te bater de verdade, mas, no fundo, estou feliz. Daria o bolo inteiro a você, se não soubesse que prefere assim. A travessura te encanta, aumenta seu prazer. Você sempre fez o que quis. Nada te detinha. Ninguém podia te impedir de ser você mesmo. Arrumo a mesa para o café, coloco sua xícara preferida, aquela da asa quebrada. A avó te de u e você nunca me deixou jogar fora. Nunca deixei que ninguém sentasse em seu lugar, meu filho, nem as visitas, ninguém.

“Tenho tantas perguntas a te fazer! Não, primeiro, vou explodir em choro, junto a seu peito. Da mais pura alegria. As lágrimas que jamais derramei. Vejo seus olhos sorrindo. Também marejados. E o abraço? O abraço que me tira o fôlego. Desfaleço em seus braços. Consumi todas as forças nessa espera. Quantas tentativas de encontrar seu paradeiro! Por que você precisou se esconder, meu filho? A quantas fugas te obrigaram! Mas não te farei recriminações. Não precisa explicar nada. Tudo é passado. Podemos começar outra vida. Há tanto a contar um ao outro! Você sabe o que aconteceu nesse tempo? Quem morreu, os presidentes que sucederam, as mudanças de moeda? Esteve tão longe de casa… Leio relatos de exilados. Procuro seu rosto nas fotos de homens de sobretudo, em paisagens cobertas de neve. Imagino te encontrar vagando no escuro dos metrôs, esfomeado e sem emprego. Sem documentos, em algum país onde será sempre estrangeiro. Errante, com medo de voltar e não encontrar o que deixou. Medo de não encontrar mais a si mesmo. Mas agora… Agora tudo acabou, meu filho! “Repito esse ritual todas as manhãs, e sigo seus passos invisíveis pela sala. Entro na cozinha, abro armários, num gesto sem sentido. Como a te convencer de que entrei nesse jogo de esconde-esconde.

“Fecho-os, rápido, quero que acabe logo, já não tenho forças para continuar. Vivo apenas a sua volta, seu retorno se repete em meus sonhos. Acordo com a sensação de que, finalmente, aconteceu: você está dormindo no quarto ao lado. Levanto no meio da noite, pé ante pé, abro a porta, na expectativa de escutar sua respiração. Chego junto à cama vazia e ajeito os lençóis sobre o corpo que não está ali. Como fazia quando você era menino, e dormia sem se lavar, me fazendo despi-lo e vestir seu pijama com dificuldade, você já mergulhado no sono. Tenho vontade de te meter dormindo sob o chuveiro, mas não quero perturbar o sono pesado, depois de tantas brincadeiras. Seu abandono, ressonando, me comove.

Eduardo Jardim-PUC – Rio.

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A letra, o corpo e o desejo: masculinidades subversivas no romance latino-americano – ALÓS (E-CHH)

ALÓS, Anselmo Peres. A letra, o corpo e o desejo: masculinidades subversivas no romance latino-americano. Florianópolis: Mulheres, 2013. 240p. Resenha de: ALÓS, Anselmo Peres. Uma leitura queer das obras de Manuel Puig, Caio Fernando Abreu e Jaime Bayly. Especiaria – Cadernos de Ciências Humanas, Ilhéus,  v.16, n.27, p.215-219, jul./dez. 2015.

Anselmo Peres Alós é Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e exerce, desde 2012, a função de Professor Adjunto na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Partindo do pressuposto que toda leitura é política e comprometida, a obra de Alós articula a temática da enunciação da homossexualidade no discurso literário. O autor relaciona as particularidades do campo textual e do campo de enunciação, a fim de construir um projeto poético que conteste a pretensa heterossexualidade normativa no cenário literário latino-americano.

Alós enfatiza as problemáticas da constituição performativa da identidade de gênero e a identidade da literatura entendida como instituição representativa da constituição simbólica da nacionalidade.

O entrelaçamento de seu projeto poético dá-se na análise de três romances escritos por autores de diferentes países da América Latina: El beso de la mujer araña (1976), do argentino Manuel Puig, Onde andará Dulce Veiga? (1990), do brasileiro Caio Fernando Abreu, e o primeiro romance do peruano Jaime Bayly: No se lo digas a nadie (1994).

Seu projeto poético consiste na utilização dos estudos de uma poética queer, que reivindicaria um status que ultrapassa os domínios autorais e auxiliaria na construção de um espaço intervalar revestido de um caráter trans-autoral. Esse espaço é trans-autoral no sentido de preocupar-se com uma poética trespassada pela subjetividade de um grupo social especifico. Há no texto do autor uma articulação de categorias, tais como a intertextualidade e a noção de ideologema, sendo que a última serviria na mediação e construção de uma cadeia intertextual. Assim, seguindo o modelo da poética queer, sua obra não se baseia apenas em descrições das narrativas, mas analisa minuciosamente os romances, bem como subverte e questiona o mundo social no qual eles estão envolvidos.

O livro subdivide-se em quatro capítulos, sendo que o primeiro apresenta o levantamento teórico utilizado na construção de sua argumentação, privilegiando os pressupostos feministas. Segundo Alós, muito além da materialidade corpórea de homens e mulheres, as questões de gênero e sexualidade podem ser pensadas como constructos sociais, pois é apenas nos interstícios da cultura que o corpo e o sexo produzem sentido e significado. Com base nas concepções de Jane Flax, o autor comenta que é nas inscrições do gênero que se declinam as primeiras variáveis identitárias dos sujeitos. Sendo toda construção de gênero relacional, em que o homem é associado ao sujeito universal e a mulher é associada ao “Outro” da cultura, as implicações de gênero não recaem sobre o homem. Dentro desse pressuposto, dá-se toda organização social da produção e divisão sexual do trabalho, bem como as práticas de educação de crianças e os processos de significação de linguagem.

Alós aprofunda-se nas proporções sociais que abarcam a ideia de gênero ao fundamentar-se nas teorias da filósofa estadunidense Judith Butler. O autor explica que a inteligibilidade da categoria sexo sempre é gendrada, ou seja, entendida em termos de gênero. Outra contribuição pertinente, embasada nas pesquisas da psicanalista Nancy Chodorow, é a tentativa de projeção, mesmo que utopicamente, ou como ficção política, de uma identidade para além do sistema de gêneros binários. É sabido que conceitos universais homogêneos tendem a apagar a singularidade dos sujeitos.

Ao problematizar a relação do sexo com o gênero, a própria categoria “pessoa” é desestabilizada. Uma forma de subverter a matriz heterossexual é parodiar algumas práticas embasadas na teoria performativa dos atos de gênero que rompem as categorias do corpo, sexo, gênero e sexualidade, ressignificando e subvertendo a estrutura binária dos gêneros. São enfatizadas as concepções de Butler, em que o performático e o performativo misturam-se para dar origem a uma teoria da intervenção política calcada na paródia e na ironia, partindo-se do pressuposto de que toda a identidade de gênero tem caráter performativo.

Para Alós, quem conhece a condição homossexual “do outro” detém o privilégio epistemológico de falar em nome dele. Assim, o autor articula a epistemologia que denomina “fora do armário”, que seria uma recusa em discutir os termos nos quais os discursos dominantes compreendem a homossexualidade. Ao entrelaçar as teorias de gênero e os estudos queer para leitura comparatista dos romances, destaca o intuito de desestabilizar o imaginário heterossexual através da literatura para, talvez, subverter e reorganizar o imaginário cultural de uma nação, já que a literatura é veículo de representações simbólicas e de valores sociais.

O segundo capítulo da obra dedica-se à análise comparatista das obras analisadas sob o ângulo de uma leitura queer. O autor privilegia uma leitura que valoriza o texto como potencialidade de intervenção política e social, por formular novos valores utilizando-se da negociação no campo cultural e privilegiar textos em que as representações das identidades de gênero se apresentam subvertidos.

Ainda no segundo capítulo, apresenta um levantamento da fortuna crítica do corpus escolhido.

A obra de Alós apresenta caráter inovador em três pontos: 1), discute um romance de Caio Fernando Abreu, que é mais estudado como contista; 2) aborda o primeiro romance de Bayly, o mais controverso dos três romancistas; 3) discute temáticas polêmicas, tais como sexualidade, gênero, homossexualidade, Aids e questões ligadas às políticas heteronormativas em uma sociedade que ainda está moldada ao pensamento patriarcal e conservador.

O terceiro capítulo inicia abordando a obra de Puig, El beso de la mujer araña, que conta a história dois companheiros de cela, Valentín, um preso político da ditadura argentina e Molina, acusado de corromper menores. Ambos têm um relacionamento durante a prisão e Molina, que insiste em declinar-se no feminino, relata a Valentín histórias de filmes aos quais assistiu. Alós comenta a focalização externa, em que o narrador surge nas notas de rodapé, bem como na utilização do recurso itálico para marcar o monólogo interior e o pensamento introspectivo das personagens. Molina é o primeiro focalizador e sua percepção, ao trazer os filmes para oralidade, permite que se compreenda como percebe a divisão social dos gêneros. Ele reivindica para si uma identidade feminina questionando, com isso, a identidade de gênero, de sexualidade e demonstrando a fragilidade das classificações.

O romance Onde andará Dulce Veiga?, de Caio Fernando Abreu, trata da procura pela cantora Dulce Veiga, desaparecida misteriosamente, feita por um jornalista anônimo, nos anos 1980. Porém, a procura real é a empreendida pelo protagonista, em busca de si mesmo, de sua identidade e de uma reconciliação com seu passado.

O romance é guiado por um narrador autodiegético, quase autobiográfico. Já a focalização é predominantemente interna. Alós aponta que, sob a “urbanidade paulistana”, Caio Fernando Abreu evidencia os marginais, os excluídos e os invisibilizados, fazendo emergir um Brasil de rejeitados. Assim, Abreu questiona a compreensão da categoria identidade como algo monolítico, oferecendo uma releitura mais flexível dessa noção.

Em No se lo digas a nadie, Jaime Bayly utiliza-se de uma narrativa heterodiegética, na qual os eventos são descritos por uma voz que se pretende impessoal. O protagonista da trama é Joaquín Camino, filho de pais que pertencem à alta burguesia peruana. A história narra a descoberta da homossexualidade da personagem, ainda na infância, até a idade adulta. O focalizador está associado ao protagonista no que concerne a ele “assumir-se” como homossexual diante dos pais e de uma sociedade conservadora. Dessa forma, a focalização auxilia na profundidade do impacto do discurso homofóbico no romance.

O quarto capítulo é dedicado à análise dos posicionamentos dos focalizadores apresentados no capítulo anterior, identificando os arranjos sociais sugeridos através dos três romances estudados.

Concluindo, Alós observa que, nos três romances, há uma denúncia sobre heteronormatividade, bem como um posicionamento contra esta. Ainda, o autor aponta No se lo digas a nadie como a mais enfática das três obras estudadas, ao apresentar outras posturas fóbicas e discriminatórias. Assim, ao construir seu livro sustentando uma poética queer, Alós traça três pontos fundamentais a partir da leitura dos três romances: o ideologema da letra, o ideologema do corpo e o ideologema do desejo.

Referências

ABREU, Caio Fernando. Onde andará Dulce Veiga? São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

BAYLY, Jaime. No se lo digas a nadie. Barcelona: Planeta, 1994.

PUIG, Manuel. El beso de la mujer araña. Barcelona: Seix Barral, 1976.

Elenara Walter Quinhones – Mestranda em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: [email protected]

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A persistência da memória. Romances de anterioridade e seus modos de transmissão intergeracional – BERND (A-EN)

BERND, Zilá. A persistência da memória. Romances de anterioridade e seus modos de transmissão intergeracional. Porto Alegre: Besouro Box, 2018. Resenha de MELLO, Ana Maria Lisboa de. Memória cultural e modos de transmissão nos romances contemporâneos das Américas. Alea, Rio de Janeiro, v.20 n.2, may./aug., 2018.

Memória e transmissão estão intimamente associadas: o processo fragmentário e sempre recomeçado da rememoração encontra seu sentido na transmissão.

Zilá Bernd

O livro A persistência da memória traz relevantes resultados de pesquisa da investigadora Zilá Bernd sobre as relações literárias interamericanas contemporâneas, o papel da memória, da genealogia e filiações no romance das duas últimas décadas, com reflexões teóricas sobre memória cultural. Bernd coloca em confronto diferentes abordagens teóricas de pesquisadores do mesmo campo de interesse, sobretudo francófonos, com destaque para o romance memorial (Régine Robin) e o romance de filiação (Dominique Viart; Laurent Demanze), adotando uma perspectiva comparada tanto no que se refere a reflexões dos teóricos com os quais dialoga, quanto no que diz respeito às obras literárias selecionadas como corpus para as suas análises.

A memória cultural, tal como apontam teóricos como Aleida e Jan Assmann e Andreas Huyssen, cujas ideias vêm ao encontro das reflexões da pesquisadora brasileira, não se refere apenas a dados armazenados em arquivos, mas inclui também tudo aquilo que escapa ao registro oficial, tais como o residual, o obliterado, o reprimido. De acordo com Bernd, a memória cultural incorporaria, portanto, o que foge do registro hegemônico do poder, com tentativas de construção de uma identidade nacional sólida e totalizante, e absorve os elementos da esfera do sensível e do simbólico, sendo que a sua construção depende da transmissão geracional.

O papel de transmissão fica explícito no ensaio autobiográfico de Régine Robin, Le roman mémoriel (1989), que reúne textos críticos e narrativas de vidas de pessoas que foram obrigadas a “silenciar, a esquecer e a reprimir para sobreviver” (BERND, 2018, p. 23), como o que ocorreu com a comunidade judaica. Observa a pesquisadora que Robin insere nesse livro uma passagem do seu próprio romance La Québécoite (1983), em que a personagem rememora nostalgicamente o que ela e a família faziam, quando refugiados na França, durante a ocupação nazista no seu país, a Polônia: os livros que liam, os exercícios de piano, objetos que decoravam a casa, fotos, entre outras lembranças. Enfim, trata-se de uma memória cultural polifônica e mais vívida no texto ficcional do que na escrita da História e em dados de arquivos.

No que se refere à questão da transmissão geracional, Zilá Bernd e Rodrigues Soares (2016), em artigo intitulado Modos de transmissão intergeracional em romances da literatura brasileira atual, já haviam assinalado que o romance memorial “[…] está […] associado à transmissão da memória cultural, à transmissão inter e transgeracional e à postura do sujeito narrador de assumir-se como herdeiro – para dar continuidade ao patrimônio memorial herdado – ou romper com ele”. (BERND; SOARES, 2016, p. 408)

Quase duas décadas depois da publicação do livro de Régine Robin, Dominique Viart centra-se no estudo dos romances denominados parentais ou de filiação, que são narrativas preocupadas com temática da ascendência, ancestralidade dentro do espectro do que se pode denominar “escritas de si”. Essa expressão introduz uma distância que afasta o perigo do egocentrismo e egotismo, em substituição a “escritas do Eu” (Georges Gusdorf). As escritas de si reúnem um conjunto de categorias, tais como autobiografia, diário íntimo, correspondência, memórias e a autoficção. Para Bernd, nas narrativas contemporâneas, a interioridade de narradores-protagonistas é marcada por uma volta ao passado – anterioridade – ancorada nas rememorações e reminiscências. Esse retorno aos ancestrais e às suas histórias, a partir de vestígios deixados por eles (fotos, objetos, cartas etc.), é na verdade uma necessidade de o eu-narrador “[…] promover a reconstrução de trajetórias vividas por seus ancestrais e, através desse processo, (re)significar e/ou (re)construir o presente”(BERND, 2018, p. 47).

Além da contribuição de Viart, para traçar o perfil do romance de filiação na contemporaneidade, Zilá Bernd destaca os aportes de Laurent Demanze que, em Encres orphelines (2008), retoma e discute o estudo de Viart sobre o romance de filiação, e acrescenta novas reflexões sobre as manifestações desse subgênero na ficção contemporânea. A pesquisadora aponta para o fato, assinalado por Demanze, que, por vezes, o passado do narrador de um romance de filiação é um capítulo vazio da memória que o sujeito tenta reconstruir por meio de pesquisas genealógicas e investigações imaginárias; entretanto, esse passado mostra-se inalcançável, de transmissão impossível, de modo que a relação do indivíduo contemporâneo com seu passado pode ser atingida pelo selo da perda.

Bernd assinala que o romance de filiação geralmente emprega os seguintes mecanismos de transmissão em relação ao passado: um empenho do narrador em recuperar e preservar a memória da história familiar, atuando como um porta-voz dos antepassados; um processo narrativo que revela uma memória envergonhada ou ferida, que rejeita o passado familiar e faz ajustes de contas; uma narrativa que introduz elementos novos pelo narrador, os quais dão margem a uma negociação com o passado e pode articular mais de um modo de transmissão.

Tanto o romance memorial como o de filiação se particularizam pelo caráter da “anterioridade”, já que para falar de si o narrador busca a figura de um ancestral, como pais, avós ou até um ancestral mítico. Em síntese, Bernd aponta as duas variantes do romance de anterioridade:

  1. Romance memorial, que seria uma faceta pós-moderna da saga, com ênfase na busca de vestígios, rastros, fragmentos olvidados no passado e que constituem a memória cultural, definida por Régine Robin como aquela feita ‘de pequenos nadas’ (BERND, 1989, p. 21);
  2. Romance de filiação (ou parental), variante da autoficção com a característica de usar o subterfúgio de focalizar a narrativa na vida de um ancestral (pai, mão, avós), numa perspectiva de ajuste de contas com o passado; neste caso, temos presença do que Laurent Demanze chama de ‘herdeiro inquieto e problemático’, que hesita entre reivindicar a herança paterna ou repudiá-la. (BERND, 2018, p. 25)

Na análise do corpus selecionado, relativo a obras ficcionais nas três Américas, de autores brasileiros, antilhanos francófonos e quebequenses, a pesquisadora aponta tendências comuns de escritores que pertencem a “comunidades de memória”, expressão de Pierre Ouellet, no livro Testaments (2012), para dar conta de contextos que, como o do Quebec, acolhem povos de diferentes países, com suas tradições e histórias. Essas passam a formar, juntos com os autóctones, uma memória múltipla e aberta a trocas. E Bernd cita depoimento de Ouellet, em entrevista de 2015 publicada na Revista Letras de Hoje, em que ele deixa nítida essa visão de partilha de diferentes memórias:

Não se trata de uma memória comum (coletiva) porque ela pertence a várias tradições, com diferentes histórias, desenvolvidas em diversos lugares, mas o fato de que pessoas de diferentes origens participem agora da sociedade quebequense faz com que vivamos em comunidade de memórias. (OUELLET apudBERND, 2018)

Assim, à luz de sólida investigação teórica, Zilá Bernd, em A persistência da memória, analisa obras de autores de comunidades de memórias que, em romances de filiação, partilham tradições, reminiscências, traumas, como romances dos brasileiros Moacyr Scliar, Ana Maria Gonçalves, Conceição Evaristo, Tatiana Salem Levi, Cíntia Moscovich, Adriana Lisboa e Eliane Brum. São objeto de análise também romances das quebequenses Louise Dupré, Catherine Mavrikakis e Francine Noël; e obras do escritor André Schwartz-Bart, que emigrou para Guadalupe. Além desses, nas passagens de reflexões teóricas, a pesquisadora cita outras obras, de autores que escreveram romances de filiação nas Américas, com narradores que interrogam o passado de seu núcleo familiar ou de algum predecessor, como forma de ajuste de contas.

Bernd observa que essas narrativas de filiação podem mesclar focos em primeira e terceira pessoas, como forma de recuperar um passado do qual o narrador não participou e, portanto, não foi testemunha, mas que, no entanto, pode ter sido decisivo para a sua existência atual. Percebe-se, nesses romances contemporâneos, alternâncias de focos narrativos, como recurso para iluminar a história do protagonista e abrir portas que permitam desvendar segredos, preencher lacunas da sua história. Nos romances analisados, a investigadora aponta para a preservação da memória cultural, construída “a partir dos restos e vestígios memoriais” (BERND, 2018, p. 160), indiciadores do passado.

As obras literárias, analisadas por Bernd bem como as que serviram de exemplo para suas abordagens teóricas, formam um corpus de pesquisa que inclui obras de escritores de famílias de imigrantes, que buscaram refúgio no Novo Mundo, as quais apresentam narradores que rememoram o passado dos ancestrais para compreensão de si mesmos, bem como de escritores autóctones, que dialogam com o passado para estabelecer uma continuidade geracional e preservar legados familiares. Nos dois casos, podem surgir narradores em conflito com o passado familiar – caso do “herdeiro problemático” de Demanze – que, através da escrita, procuram liberar-se de uma história pautada por angústias e sofrimentos. Para Zilá Bernd,

Os romances memorial e de filiação revogam de certa forma essa tendência da modernidade de arquivar seu passado. Destacando erros e acertos, encontros e desencontros dos ascendentes, a perspectiva transgeracional das narrativas de filiação recompõe áreas de sombra do passado e se constitui como estelas, marcos ou monumentos dedicados a essa ascendência. […] O romance de filiação, alimentando-se da memória cultural, pode dar as respostas que a perspectiva histórica não soube fornecer. (BERND, 2018, p. 156-157)

A persistência da memória é um título inspirado na tela do surrealista Salvador Dalí, de 1931, com “relógios derretidos”, que já não marcam a passagem temporal porque não estão em pleno funcionamento. Segundo Bernd, com a imagem dos relógios deformados, talvez “[…] o artista quisesse expressar que a noção de memória remete sempre à de esquecimento, sendo memória e esquecimento as duas faces da mesma moeda” (BERND, 2018, p. 16).

Trata-se de um livro que articula as mais recentes discussões teóricas sobre o romance contemporâneo de anterioridade – romances memorial e de filiação – e sobre a memória cultural, trazendo autores ainda não traduzidos para a língua portuguesa, e transmitindo informações imprescindíveis aos pesquisadores, incluindo estudantes da área de Letras, que participam de pesquisas que têm por corpus esse gênero ficcional.

Referências

BERND, Zilá ; SOARES, Tanira Rodrigues. Modos de transmissão intergeracional em romances da literatura brasileira atual. Alea: Estudos Neolatinos, v. 18, n.3, 2016, p. 405-421 [ Links ]

BERND, Zilá . A persistência da memória. Romances de anterioridade e seus modos de transmissão intergeracional. Porto Alegre: BesouroBox, 2018. [ Links ]

DEMANZE, Laurent. Encres orphelines: Pierre Bergounioux, Gérard Macé, Pierre Michon. Paris: José Corti, 2008. [ Links ]

OUELLET, Pierre. Testaments: le témoignage et le sacré. Montreal: Liber, 2012. [ Links ]

OUELLET, Pierre. Entretien avec Pierre Ouellet (Entrevista concedida a Ana Maria Lisboa de Mello, Zilá Bernd, Marie Hélène Paret Passos). Letras de Hoje, PUCRS, v. 50, n. 2, abril-junho 2015, p. 229-240. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fale/article/view/21342> [ Links ]

ROBIN, Régine. La Québécoite – roman. Montreal: Québec/Amérique, Collection Littérature d’Amérique, 1983. [ Links ]

ROBIN, Régine. Le roman mémoriel: de l’histoire à l’écriture du hors lieu. Montréal: Préambule, 1989. [ Links ]

VIART, D. Récit de filiation. In: VIART, D.; VERCIER, B. (éds). La littérature française au présent. Paris: Bordas, 2008. [ Links ]

Ana Maria Lisboa de Mello é graduada em Letras-Licenciatura em Português e Francês e respectivas literaturas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e Mestrado e Doutorado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), na Área de Teoria da Literatura. Fez estágios de pós-doutoramento no Centre de Recherches sur l Imaginaire, na Université Stendhal, Grenoble III (1995-96), com bolsa do CNPq, na Sorbonne Nouvelle – Paris III (2004) e na University of Toronto (2013-2014), com bolsa CAPES. É membro associada ao Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL) da Universidade de Lisboa, e ao Centre de Recherches sur les Pays Lusophones (CREPAL) da Université de la Sorbonne Nouvelle. Tem experiência na área de Letras, subáreas de Literatura Brasileira e Teoria da Literatura, com ênfase em poesia, narrativa, teorias e críticas do imaginário. Vinculou-se em 2017 ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas (PPGLEN), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq e editora da revista Alea: Estudos Neolatinos. E-mail: [email protected]

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A novela História do Predestinado Peregrino e de seu irmão Precito (1682): compêndio dos saberes antropológicos e psicológicos dos jesuítas no Brasil Colonial – MASSIMI (HU)

MASSIMI, M. (org.). A novela História do Predestinado Peregrino e de seu irmão Precito (1682): compêndio dos saberes antropológicos e psicológicos dos jesuítas no Brasil Colonial. São Paulo: Edições Loyola, 2012. 298 p. Resenha de: DILLMANN, Mauro. Literatura religiosa e jesuítas no Brasil Colonial. História Unisinos 18(3):645-648, Setembro/Dezembro 2014.

O livro aqui resenhado é uma análise psicológica – mas também histórica – da obra História do Predestinado Peregrino e de seu Irmão Precito escrita pelo padre jesuíta Alexandre de Gusmão2 (1629-1725) e publicada inicialmente em 1682.

Organizado por Marina Massimi, professora titular do Departamento de Psicologia da USP, a obra conta com sete textos, incluindo uma grande introdução escrita pela própria organizadora, quatro textos desta em coautoria com “jovens pesquisadoras” – três alunas do curso de Psicologia da USP, Lidiane Ferreira Panazzolo, Nayara Aparecida Saran e Lívia Tieri Kuga –, com uma mestre em Psicologia pela mesma Universidade – Maira Allucham Gulart Naves Trevisan Vasconcellos – e, por fim, um texto de um pós-doutorando em Cultura Contemporânea na UFRJ – José Eduardo Ferreira Santos.

A literatura investigada é uma novela do padre Gusmão que aborda a peregrinação de dois personagens, um chamado Predestinado e outro chamado Precito, que escolhem diferentes caminhos, percursos de vida, representados, respectivamente, pela viagem do Egito a Jerusalém (o paraíso, a salvação) ou do Egito à Babilônia (o inferno, a condenação), procurando demonstrar metaforicamente que a peregrinação representa o próprio percurso existencial e as escolhas de cada sujeito ao longo da vida.

Esta novela do padre Gusmão – dedicada ao peregrino e missionário Francisco Xavier Apóstolo do Oriente (1506-1552) – se configura, segundo Massimi (2012, p. 52), enquanto um compêndio da visão antropológica e dos saberes psicológicos elaborados pela Companhia de Jesus na América Portuguesa, cujo enredo é a peregrinação como figura alegórica da vida. Os dois personagens, Predestinado e Precito, aspirando à felicidade, iniciam sua peregrinação; o primeiro em direção a Jerusalém, em busca da salvação, segue com sua esposa, a Razão, com a qual tem dois filhos, Reta Intenção e Bom Desejo; o segundo segue em direção à Babilônia, em busca de satisfações materiais, com sua esposa Própria Vontade e seus filhos, Mau Desejo e Torta Intenção. A intenção de Gusmão, segundo Massimi e Panazollo (in Massimi, 2012, p. 203), ao intitular seu livro como a história de um Peregrino, servindo aos propósitos contrarreformistas, era a de recuperar fiéis perdidos, no sentido de atrair leitores, uma vez que alguns anos antes, em 1678, John Bunyan, um autor protestante, publicou O Peregrino.

Podemos incluir o livro de Gusmão, analisado por Massimi e outros, na categoria que chamamos “manuais de devoção”, obras da literatura religiosa moderna destinadas a difundir a doutrina cristã e os modelos de comportamento moral esperados para a vida virtuosa, a boa morte e a salvação da alma. Em um dos textos (O percurso de Predestinado Peregrino: encontros, lugares e imagens edificantes na História de Alexandre de Gusmão) do livro, as autoras, Lidiane Ferreira Panazzolo e Marina Massimi, reconhecem a obra do padre como “uma espécie de manual de conduta provavelmente utilizado nos colégios jesuítas” (p. 204). Na conclusão deste artigo, as autoras destacam que “havia poucos exemplares originais do livro”.

Pude constatar, em um prévio levantamento nos catálogos de arquivos de Portugal e do Brasil, a existência de edições de 1682, 1685 e 1728. Na Biblioteca Nacional de Portugal, constam três exemplares de 1682, formato livreto de mão, como quase todos manuais de devoção do final do século XVII e do século XVIII, com 15 cm, impresso na oficina Miguel Deslandes; quatro exemplares microfilmados da edição de 1685, publicada pela oficina da Universidade de Évora, e um exemplar de 1728, indicando ser de quarta edição, impresso à custa do mercador de livros Domingos Gonçalves na oficina de Felippe de Sousa Villela. Por esta mesma oficina e mesma edição, existem exemplares na Biblioteca Joanina, em Coimbra, e na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, indicando ainda pertencer à Coleção da Real Biblioteca, o que demonstra o sucesso da obra no período e a circularidade da mesma entre a América Portuguesa.3 Além da interessante análise psicológica com enfoque histórico, o livro tem o mérito de apresentar a íntegra da obra analisada, transcrita com português atualizado, facilitando o acesso e a consulta deste documento para outros pesquisadores e interessados em geral. Além disso, as autoras “traduziram” o texto do padre Gusmão em dois interessantes anexos para a compreensão do texto.

Um deles é uma árvore genealógica dos personagens, o outro são dois mapas com descrições, rabiscos, setas e desenhos literalmente feitos de modo manuscrito, esquematizando a peregrinação de cada um dos personagens.

Ainda que uma estratégia didática e criativa das autoras, tal espécie de “mapa conceitual” poderia ter sido feita com melhores recursos gráficos, podendo manter a mesma diagramação do manuscrito, a fim de apresentar ao leitor uma melhor compreensão e leitura analítica.

Na construção da novela, em que Gusmão aborda a prática da peregrinação como a busca de um sentido de vida, as autoras identificam influências de Inácio de Loyola (Exercícios espirituais) e de Antônio Vieira (sermão Undécimo do seu dia). Loyola estaria presente no exemplo do uso pedagógico que fez de imagens para veicular a mensagem cristã e para agir na subjetividade do leitor, especialmente na memória e na imaginação, de modo a facilitar a meditação (Massimi, 2012, p. 24). Já Vieira destacaria o mundo em que se anda, a peregrinação, designando-a como “aquisição de experiência da qual se tira um ensinamento, uma moral”, diferenciando-a do desterro, um simples caminhar sem aprendizagem alguma (Saran e Massimi in Massimi, 2012, p. 222-223).

A obra do padre Gusmão foi entendida como uma “metáfora da existência humana”, imagem muito empregada no período moderno para “comunicar conceitos”, pois as alegorias atuavam como “dispositivos retóricos” (palavras eficazes na ação do dinamismo psíquico dos destinatários) capazes de provocar atividades sensitivas e imaginativas (Massimi, 2012, p. 18, 23, 28). O uso destas alegorias, metáforas e recursos retóricos estaria de acordo com a pretensão do padre de “mover a curiosidade do leitor”, muito comum nas obras devotas do período moderno.

Essa “novela alegórica” estabelece uma relação de diálogo com o leitor, enquanto manual de instrução para ser (re)lido inúmeras vezes, que exemplifica os “requisitos para chegar à salvação” com suas dificuldades e riscos, tornando-se “mais próxima da vivência dos leitores” (Panazzolo e Massimi in Massimi, 2012, p. 207). A eficácia da proposta apresentada pelo padre estaria na disposição do leitor e na importância que o mesmo atribuiria à leitura (passatempo ou proveito), de modo que somente a leitura “para proveito” seria de grande “lição espiritual” (Massimi, 2012, p. 46).

O livro organizado por Massimi é uma contribuição à História do Brasil, especialmente à historiografia do período colonial, por considerar e interpretar a sensibilidade religiosa jesuíta no contexto de expansão da moral tridentina e da retórica dual barroca (paraíso-inferno, salvação-condenação, verdade-mentira, bem-mal), bem como as práticas de leitura dos manuais de devoção e sua circulação pela América Portuguesa, como se percebe, sobretudo, nos elucidativos textos de Marina Massimi (Texto introdutório) e de Nayara Aparecida Saran e Massimi (A peregrinação como percurso anímico: o percurso da Palavra e do Entendimento). No entanto, não há muitas referências ou exploração do contexto colonial em si, sobretudo em relação aos aspectos sociopolíticos, econômicos ou culturais da Colônia, das cidades por onde possivelmente o texto tenha circulado, como Salvador, Rio de Janeiro e Recife. Além disso, é possível dizer que os primeiros textos do item “Leituras da novela à luz da história dos saberes psicológicos e da história da cultura”, destacado no sumário, são construídos com repetição dos argumentos, que podem ser encarados como reforço intencional na análise da obra de Gusmão.

Na análise que empreendem do manual do padre Alexandre de Gusmão, o objetivo parece ser plenamente alcançado, qual seja, o de destacar a pretensão do manual de “evidenciar a importância do cuidado de si” e os “efeitos do descuido”, enfatizando o “conhecimento da pessoa e prática de orientação” do sujeito (Massimi, 2012, p. 34). É nesse sentido que, ao longo de todos os textos, os autores enfatizam a importância atribuída pelo padre Gusmão ao processo do desengano, que implicava o uso consciente da razão, à confiança na razão para atingir um entendimento considerado verdadeiro da realidade e para ordenar a vontade,4 levando ao discernimento. Esse processo de desengano seria facilitado na prática do exame de consciência e nas demais práticas religiosas, como a confissão, já que eram acompanhadas de recursos culturais como imagens sagradas, pinturas, músicas, etc.5 Na novela de Gusmão, “Desengano” seria um personagem que “fixa os olhos na verdade” (Massimi, 2012, p. 42, 48), e o desenganado seria aquele que reconhecesse a enganação do mundo, que conseguisse visualizar as virtudes do céu desvinculando-as das aparências e prazeres imediatos do mundo terreno (Saran e Massimi in Massimi, 2012, p. 230).

No artigo A experiência corporal na História do Predestinado Peregrino e de seu irmão Precito, a relação corpo e alma foi abordada por Lívia Tieri Kuga e Marina Massimi para enfatizar as metáforas do corpo que remetem aos sentimentos dos personagens (coração, olhos, carne, vestimentas/trajes e corpo/alma), baseadas na filosofia clássica e escolástica (Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino), de modo a demonstrar que as escolhas feitas em vida modificam não apenas o espírito, mas também o corpo de cada um. As autoras elaboraram um interessante índice ao final do capítulo, na medida em que referenciaram todas as expressões, metafóricas ou não, em que aparecem as estruturas corporais, como, por exemplo, “coração a ouvir”, “disse em seu coração”, “coração humilde”, etc.

Esse vínculo corpo/alma aparece ao longo dos textos que compõem o livro. Massimi destacou as “dimensões do dinamismo” do sujeito que seriam o corporal, o psíquico e o espiritual. O corporal estava no “gesto físico de peregrinar”, cujo movimento se vinculava aos estudos dos corpos e às teorias médicas acerca dos temperamentos.

O espiritual, o “núcleo temático central da novela”, uma vez que a leitura implicaria “envolvimento” e atitudes espirituais como a devoção – o apelo ao “devoto leitor” – estava no aprendizado de virtudes divinas, como a piedade, a obediência e a perseverança. Por fim, o dinamismo psíquico relacionava-se ao “funcionamento das potências da alma, suas operações, suas doenças e seus remédios”. As potências principais eram o entendimento e a vontade, cujo cultivo era de fundamental importância para o “bem viver” e para identificar as “enfermidades” da alma (Massimi, 2012, p. 34-37).

Massimi destaca que, no século XVIII, foi comum a presença do médico espiritual para a ordenação da vida pessoal dos fiéis, a partir da obra de Cláudio Acquaviva (1543-1615), Normas para a cura das enfermidades do ânimo (1600), que definiu os “vários tipos de doenças espirituais e de remédios para cada doença”; daí, então, o rótulo de medicina da alma muito recorrente na literatura jesuíta.

A atuação jesuíta, aliás, estaria vinculada à medicina do ânimo, à pregação e à pedagogia. Por “medicina da alma” a autora entende “um conhecimento do ser humano e de sua dinâmica psicológica que visa à adaptação deste ao contexto social de inserção” (Massimi, 2012, p. 50).

Marina Massimi assina outro texto com Maira Allucham Goulart Naves Trevisan Vasconcellos, que analisa outra obra que trata de peregrinação. Trata-se do Compêndio narrativo do Peregrino da América, escrito pelo padre Nuno Marques Pereira (1652-1728) e publicado em 1728.6 As autoras indicam a “grande circulação” e as várias reimpressões do manual do padre Pereira, nos anos de 1731, 1752, 1760 e 1765, mas não indicam quaisquer informações sobre os arquivos em que se encontram.7 No entanto, destacam que utilizam a sexta edição, publicada pela Academia Brasileira de Letras em 1939. A novela de  Pereira conta a viagem de um peregrino da Bahia a Minas Gerais no início do século XVIII. O Compêndio teria a finalidade de instruir e divertir o leitor por meio de contos e instruções de “como se deve viver para manter corpo e alma saudáveis e salváveis” (Vasconcelos e Massimi in Massimi, 2012, p. 263). Para persuadir quanto aos preceitos de bem viver, Nuno Pereira buscava seus argumentos na Sagrada Escritura, em São João Crisóstomo e em Santo Agostinho.

Tal como a novela de Gusmão, a peregrinação é tanto o percurso geográfico percorrido pelo personagem principal – o Ancião – quanto o caminho existencial que conduz à eternidade (Vasconcelos e Massimi in Massimi, 2012, p. 267), no qual era oportunizado ao homem o conhecimento de si e o desenvolvimento de virtudes.

Vale uma descrição um pouco mais apurada sobre a obra de Nuno Pereira – embora ocupe apenas um artigo do livro – para demonstrar a proposta do livro, que é a de apresentar os saberes dos jesuítas no Brasil Colonial. Se havia, no Compêndio, uma relação entre o bem viver e o bem morrer, da mesma forma havia doenças do corpo e da alma. A tristeza era um mal que, por exemplo, traria efeito na saúde do corpo, levando muitas vezes à morte súbita (uma má morte). As paixões eram empecilhos ao uso prudente da razão, e a demasiada tristeza levaria a doenças como lepra, sarnas, magreza, etc., cujos remédios variavam entre conversas, cheiros, ar do campo ou do mar e música. Aconselhava-se alimentação moderada, sono adequado, consumo de vinho, exercícios físicos, penitência, paciência, jejuns e disciplina. A salvação ou condenação da alma após a morte era determinada pela conduta na existência mundana (Vasconcelos e Massimi in Massimi, 2012, p. 271-278). O Compêndio, tal como A novela História, recebeu infl uência dos Exercícios espirituais de Inácio de Loyola e se apoiava nos escritos de Tomás de Kempis.8 O último artigo a integrar o livro organizado por Massimi é de José Eduardo Ferreira Santos (Peregrinos e viajantes: o homem em movimento, rumo ao destino, através da cultura popular e da música brasileira), um pequeno texto que, exceto por tratar de um tema em comum – a peregrinação, tomada genericamente como sinônimo de viagem e de romaria – destoa do objetivo geral da obra.

O texto de Santos busca identificar o peregrino/romeiro/ viajante na “cultura brasileira”, especialmente na música popular, o que é feito não sem algum juízo de valor, como ao se referir à canção “A triste partida”, de Luiz Gonzaga, destacando ser “muito famosa” e “belíssima”, que “revela uma das características mais complexas do homem moderno, que é a perda de suas raízes ocasionada pelas difíceis condições sociais” (Santos in Massimi, 2012, p. 288-289).

A obra organizada por Marina Massimi atinge plenamente os objetivos propostos, demonstrando a contribuição de autores da Companhia de Jesus no contexto luso-brasileiro da Idade Moderna para a “criação de formas, de métodos e de justificativas de um tipo de conhecimento da subjetividade e do comportamento humano” que deram origem à psicologia moderna (Massimi, 2012, p. 17).

Mesmo sem seguir uma perspectiva metodológica estritamente histórica, o livro é uma importante refl exão e contribuição à atual historiografia dedicada às práticas de leitura e à circulação, no Brasil, de obras religiosas editadas e publicadas inicialmente em Portugal da época moderna, bem como voltada à análise dos discursos cristãos para instruir a vida devota, para conduzir o fiel no caminho do bem viver, para exemplificar as condutas morais que garantiriam uma boa morte e uma eternidade feliz.

Referências

DAVIS, N.Z. 2001. Histórias de Perdão e seus narradores na França do século XVI. São Paulo, Companhia das Letras, 300 p.

DELUMEAU, J. 1989. Nascimento e afirmação da Reforma. São Paulo, Pioneira, 301 p.

FLECK, E.C.D.; DILLMANN, M. 2013. Os sete pecados capitais e os processos de culpabilização em manuais de devoção do século XVIII. Topoi, 14(27):285-317.

FLECK, E.C.D.; DILLMANN, M. 2012. “A Vossa graça nos nossos sentimentos”: a devoção à Virgem como garantia da salvação das almas em um manual de devoção do século XVIII. Revista Brasileira de História, 32(63):83-118. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-01882012000100005 PERIER, A. 1724. Desengano dos pecadores, necessário a todo o gênero de pessoas, utilíssimo aos missionários e aos pregadores que só desejam a salvação das almas. Roma, Oficina Antônio Rossis na via do Seminário Romano, 439 p.

WITTMANN, R. 1999. Existe uma revolução da leitura no final do século XVIII? In: G. CAVALLO; R. CHARTIER (org.), História da leitura no mundo ocidental. São Paulo, Ática, vol. 2, p. 135-164.

Notas

2 Alexandre de Gusmão nasceu em Lisboa em 1629 (português, embora a autora se refira ao mesmo como “baiano” [p.18]), foi diretor do Colégio do Menino Jesus de Belém em Cachoeira do Campo, próximo a Salvador, na Bahia, local onde viveu e morreu em 1724. Foi autor de inúmeras outras obras sobre a “arte de viver”, como Arte de criar bem os filhos na idade da puerícia [1685]; Escola de Belém, Jesus nascido no Presépio [1678]; Menino Christão [1695]; Maria Rosa de Nazaret nas montanhas de Hebron, a Virgem nossa Senhora na Companhia de Jesus [1715]; Eleição entre o bem e o mal eterno, O corvo e a pomba da Arca de Noé no sentido alegórico e moral [1734] (Massimi, 2012, p. 18).

3 É possível conferir os catálogos on-line em: http://www.bnportugal.pt; http://www.uc.pt/bguc; http://www.bn.br/portal.

4 Considerando que o público leitor (e ouvinte) das obras manuais de devoção era, em grande medida, feminino, é importante considerar a observação feita pela historiadora Natalie Davis para as características atribuídas às mulheres na França do século XVI. Elas eram caracterizadas com o termo “imbecillité”, que designava “a fraqueza mental e de vontade” (Davis, 2001, p. 126). Sobre a difusão maior da leitura entre o público feminino e para as instruções voltadas às mulheres, ver Wittmann, 1999, p. 143; Fleck e Dillmann, 2012, e Eliane Cristina Deckmann Fleck, Mauro Dillmann. “Remédios para amansar a fera”: as regras para o bem viver e as orientações para os mal casados viverem em paz em um manual de devoção do século XVIII (texto inédito).

5 Reflexões sobre o “desengano” parecem ter sido foco comum de muitos jesuítas, principalmente daqueles dedicados à pregação e à conversão. Um exemplo interessante, nesse sentido, é a obra do jesuíta italiano Alexandre Perier, que no final do século XVII atuou no Brasil, publicando em Lisboa, no ano de 1724, um manual que leva no título a palavra “desengano”. Alexandre Perier, Desengano dos pecadores, necessário a todo o gênero de pessoas, utilíssimo aos missionários e aos pregadores que só desejam a salvação das almas. Roma: Oficina Antônio Rossis na via do Seminário Romano, 1724. Uma análise desta obra pode ser conferida em Fleck e Dillmann, 2013.

6 As autoras indicam a influência da obra de Gusmão em Nuno Marques Pereira, mas destacam que teria sido retomada “quase cem anos depois”, quando, na verdade, entre a primeira edição de História do Predestinado Peregrino [1682] de Gusmão, e o Compêndio [1728], de Pereira, não chegou a se passar meio século.

7 No catálogo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, foi possível localizar quatro exemplares, dois de 1760, um de 1767 e um de 1939. Todavia, a obra continuou sendo editada, considerando que no Acervo da Biblioteca da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – São Leopoldo/RS, existe edição de 1988 pela Academia Brasileira de Letras.

8 Tomás de Kempis (1379-1471) era alemão, autor da obra A imitação de Cristo, uma das que conheceu extraordinária difusão no início do período moderno, segundo Delumeau, e que recebeu impressão em diversas línguas, “umas sessenta vezes antes de 1500” (Delumeau, 1989, p. 77).

Mauro Dillmann – Doutor em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio Grande. Campus São Lourenço do Sul Rua Marechal Floriano Peixoto, 2236, Centro 96170-000, São Lourenço do Sul, RS, Brasil. E-mail: [email protected].

La Caja Vacía | Alberto Aguilar

La sequía literaria es un asunto serio; al menos, para los escritores. Hablo de aquellos períodos improductivos. Meses o años en los que nuestro héroe ‒el autor‒ no logra dar con una sola idea digna de ser escrita. O ninguna historia potente, en el mejor de los casos; porque en el peor, nuestro héroe, en ocasiones, cree detectar, por fin, en su visor empañado de sangre, sudor y lágrimas, un buen argumento para un novelón, o el iceberg de un cuento; vale decir, aquella aparición fantasmal, con su 90% de gloria sumergida. Entonces va por ella. Y de verdad que cree tener un Memorias de Adriano, un Pregúntale al polvo, o un Funes el memorioso entre las zarpas, solo por citar a algunos amigos del barrio. Sin embargo, a poco o a mucho andar, de escribir y borrar, de iniciar y reiniciar, cae en la cuenta de su fracaso. Y el muchacho toca fondo. En otras palabras verifica, tras dos o tres lecturas, o cuatro, o cinco, o seis, que su historieta es un fiasco. Y el mundo se le viene abajo. Tal cual. Deambula, sin GPS (otrora, brújula), por un desierto mental, que resulta mucho más árido y desolado que Atacama o Wirikuta. La sequía es total.

La novela, La caja Vacía de Alberto Aguilar (Puerto Montt, 1971) habla de esta sequía creativa, de esta esterilidad. Una esterilidad que no tiene cura, según propia confesión. El que habla es Simón Gálvez, escritor, en cuyo prontuario figura una sola entrega, Memorias de un niño envejecido. El hombre viaja, en micro, hacia Bahía Desolación, en busca de la casa y el recuerdo de Carlos Ojeda, otro escritor, ya fallecido, autor de Amalia, su única novela publicada. Va en busca de su casa, en el pasaje Última Esperanza, a sabiendas de la irremediable ausencia de Ojeda, pero en pos de algo, quizás de alguna señal, algún incentivo que emane de esas habitaciones abandonadas, que le sirva, a fin de cuentas, para romper el maleficio, o como se llame, que le aqueja desde hace años: ser un escritor frustrado. Después de su Memorias de un niño envejecido, han pasado diez años, sin novedad en el frente. Nada de nada. Sólo intentos de escribir algo. Amagues. Fintas de boxeador retirado. Un continuo estrellarse contra ese muro en que se ha convertido, para él, la página en blanco. Y por Dios que lo ha intentado. Pero todos sus intentos han ido a parar al vertedero. Por eso va tras el recuerdo de Carlos Ojeda y de su hábitat. Después de todo, Ojeda fue un bicho de su misma especie. También él pasó por ese túnel, e incluso murió allí; en el túnel de la frustración. Algo podrá decirle, entonces, el recuerdo de ese hombre, desde aquellas paredes, desde aquel mobiliario desvencijado. Eso cree. Eso espera. Leia Mais

In territorio nemico – Romanzo –

SANTONI, Vanni; MAGINI, Santoni. In territorio nemico – Romanzo. Minimum fax, 2013. Resenha de: MENCARELLI, Paolo. Novecento.org – Didattica dela storia in rete, n.2, giugno, 2014.

Introduzione

Nel risvolto di copertina di In territorio nemico, edito dalla vivace Minimum fax, il romanzo collettivo viene presentato nientemeno che come “una nuova epica della Resistenza. Un’epopea corale resa possibile dal lavoro di oltre cento scrittori e ispirata alle testimonianze di chi la guerra l’ha vissuta e non ha cessato di raccontarla”. In effetti le 308 pagine compresi i “titoli di coda” con gli elenchi nominativi degli scrittori, dei revisori, di coloro che si sono prestati per la consulenza storica, per quella dei dialetti e di chi ha collaborato alla composizione del soggetto attraverso testimonianze personali ecc., non deludono le alte e impegnative promesse del paratesto arricchito anche da un’originale copertina. Frutto al momento più riuscito e impegnativo di un metodo di scrittura, quello appunto denominato Scrittura Industriale Collettiva (SIC) ideato da due giovani scrittori fiorentini, Vanni Santoni e Gregorio Magini e su cui varrà la pena soffermarsi per i possibili usi didattici, il libro ha raggiunto rapidamente le tre edizioni in pochi mesi e si è imposto all’attenzione della critica con recensioni nei principali quotidiani, partecipate trasmissioni radiofoniche, interviste e ovviamente un ampio risalto sul web.

Trama

Se il metodo di scrittura è sicuramente innovativo, pur riprendendo un’idea non nuova quella della “scrittura collettiva” che ha attraversato con le più varie declinazioni la storia delle avanguardie artistico-letterarie novecentesche a partire dal Futurismo, tradizionale appare subito la forma della narrazione con il classico narratore esterno e uno stile di scrittura semplice e piano di larga fruibilità, pensato per un pubblico popolare. L’arco temporale in cui si sviluppa la storia è quello canonico strettamente resistenziale, tra l’8 settembre 1943 e il 25 aprile 1945 e le citazioni indirette dai classici resistenziali sono numerose. Le tormentate vicende di Matteo, della sorella Adele e di suo marito Aldo si svolgono parallelamente senza incontrarsi mai fino ai giorni della Liberazione quando si riuniscono, anche se per poco, i diversi percorsi personali dei tre giovani. Matteo ufficiale di marina che diserta dopo l’8 settembre 1943 e che da Napoli risale la penisola intraprendendo un picaresco viaggio verso nord in cerca della sorella vivrà anche un personale viaggio di formazione destinato a cambiarlo profondamente. Come del resto, pur nella diversità delle vicende, la sorella Adele a Milano è costretta a cambiare radicalmente abitudini di vita, lei di buona famiglia borghese dovrà infatti per fame cercare lavoro in fabbrica e affrontare le popolane nelle file per il pane mentre suo marito Aldo, ingegnere sceglierà di nascondersi in campagna presso l’anziana madre, all’insaputa della stessa giovane moglie, finendo per rincorrere ossessivamente un progetto di un fantomatico aereo da combattimento destinato nella sua fantasia a cambiare le sorti del conflitto. Per Matteo e Adele l’incontro con la Resistenza, casuale e nato dalle vicende stesse più che da una decisione subito consapevole o immediatamente politica, significherà un allargamento della propria umanità, una partecipazione intensa agli eventi collettivi, attraverso una scelta etica e politica gradualmente sempre più chiara e intransigente mentre l’isolamento di Aldo, nascosto nella casa di campagna della madre, animato dall’ossessione per la progettazione di un invincibile prototipo di aereo da combattimento non sarà altro che l’entrata in un cono d’ombra di angoscia e paura. Matteo diventerà “Destro” in un percorso di iniziazione alla resistenza che lo vedrà lettore attento di “Italia libera” e di Socialismo liberale di Carlo Rosselli fino a definirsi timidamente “azionista a vocazione libertaria” e i partigiani avranno per lui i volti segnati dalla fatica delle formazioni dei cavatori anarchici, con il loro millenarismo o la tranquilla determinazione di Gregorio Testa che in una palestra di box della periferia romana lo introdurrà al gruppo azionista, ma saranno altrettanto importanti personaggi che sembrano prodotti essi stessi dal disfacimento del paese eppure così attaccati alla vita da trasmettergli nuova forza di fronte agli ostacoli: dal contrabbandiere Zumpata alla giovanissima contadina Luisa a Jolanda che lo accoglie e lo cura. La giovane borghese Adele dal sogno di una vita agiata da “moglie dell’ingegnere” si trasformerà nell’ “Attrice”, da staffetta arriverà presto a misurarsi con le più audaci imprese gappiste, dopo aver sperimentato prima l’istintiva diffidenza poi la solidarietà personale e di classe delle proletarie del Comitato di agitazione della OLAP di Milano. Contrabbandieri, gappisti, massoni, anarchici, fascisti, operaie, preti si alterneranno nelle vicende narrate dando sempre un quadro mosso e avventuroso, pur nel contesto drammatico della guerra. I riferimenti storici e testimoniali sono stati ampiamente vagliati e utilizzati con un criterio di verosomiglianza rigoroso, con una resa realistica mai pedante. Forse solo la partecipazione diretta di Adele alle azioni armate dei gap milanesi pare una concessione anacronistica al ruolo delle donne nelle formazioni armate degli anni settanta. L’uso abbondante del dialetto, validato da un gruppo di esperti che ricostruito filologicamente la dizione delle varianti locali (es. il “monferrino” pressoché scomparso), è un ulteriore elemento di originalità del libro. La lunga gestazione del romanzo, nato dopo almeno tre anni di sperimentazione del metodo di scrittura collettiva, si inserisce in una ripresa dei temi resistenziali sviluppati in forma narrativa o comunque scelti come sfondo storico che ha recentemente visto la comparsa di titoli significativi per l’attenzione che hanno saputo sollevare nel pubblico e nella critica. Riformulando topoi resistenziali classici, luoghi, personaggi, situazioni e facendoli interagire alla luce della sensibilità attuale per i temi della complessità, della scelta, della risposta personale o collettiva di fronte a traumi materiali e psicologici come quelli legati alle guerre, soprattutto alcuni titoli e autori recenti sembrano aver rinverdito un genere troppo spesso dato per esaurito. Mi riferisco in particolare a Paola Soriga con la piccola staffetta Ida che si muove tra i bombardamenti della capitale di Dove finisce Roma, (Einaudi Stile libero, 2012) o alla Valsesia del mitico Cino Moscatelli di Giacomo Verri in Partigiano Inverno (Nutrimenti, 2012), l’Alba fenogliana di La mia anima è ovunque tu sia di Aldo Cazzullo (Mondatori, 2011) solo per citare alcuni dei più noti.

Il contesto letterario

Il territorio nemico si distingue però sicuramente anche per gli spunti di metodo che offre anche per chi insegna. L’elaborazione della tecnica di scrittura collettiva SIC si definisce “industriale” perché basata su di una “divisione del lavoro” di tipo fordista per cui “chi scrive non sceglie e chi sceglie non scrive”. Infatti l’architettura rigorosa e la divisione tra chi giudica e assembla i testi e che scrive ovvero tra il gruppo ristretto che seleziona i brani da inserire e cura l’omogeneità stilistica e il gruppo di scrittori ha consentito di evitare le secche e gli insuccessi dei numerosi precedenti di romanzi collettivi. Una lunga gestazione e alcune sperimentazioni in racconti brevi hanno consentito di mettere a punto un metodo che si vuole comunque perfezionabile. La spinta a non arenarsi è stata anche forse dovuta al fatto che Vanni Santoni e Gregorio Magini sono da anni inseriti in un ampio e variegato movimento letterario e culturale d’avanguardia che negli ultimi anni ha acceso polemiche e discussioni per le proposte contenutistiche, stilistiche e soprattutto per l’uso del web come strumento di creazione artistica collaborativa. Un movimento che ha avuto un primo momento di definizione in forma cartacea nel volume New Italian Epic. Letteratura, sguardo obliquo, ritorno al futuro (Einaudi Stile libero, 2009) che a cura del collettivo bolognese Wu Ming riportava il vasto dibattito svoltosi in rete sul ruolo della letteratura e dell’autorialità nell’epoca della rete. Un movimento letterario e non solo con una forte carica di critica sociale (soprattutto in nome del precariato intellettuale) e di cultura d’opposizione, con un chiara politicità quindi, non fondata però su appartenenze ideologiche rigide ma costruita sui principi della collaborazione e cooperazione, del libero accesso al sapere, della critica radicale alla cultura dominante. Principi, metodi di lavoro, autori e gruppi artistici e letterari che hanno trovato ampia ospitalità e ricavato impulso da riviste on line e siti come www.wumingfoundation.com , www.nazioneindiana.org o www.carmillaonline.com solo per citarne alcuni.

Usi didattici

L’originalità del metodo elaborato da Gregorio Magini e Vanni Santoni, liberamente consultabile in www.scritturacollettiva.org consiste anche nella sua adattabilità ai più vari contesti, compreso un possibile uso didattico, certo ancora agli inizi ma che a mio avviso con ovvie e necessarie modifiche potrebbe riservare interessanti sviluppi e applicazioni pratiche. E’ questo il caso ad esempio di “Dachau 16.3.2012” scritto collettivamente dalla Cl. IV H del Liceo artistico statale Matteo Olivieri di Brescia che partendo dai principi della condivisione anche sul piano artistico e creativo ha sperimentato un tipo di lavoro, legato alla visita all’omonimo campo, tendente a far partecipare tutti gli studenti della classe ad un progetto sentito davvero come “proprio”. In questo caso la scrittura saggistica ha prevalso sull’intento puramente narrativo e il testo collettivo si chiude infatti con una essenziale bibliografia e sitografia utilizzata dalla classe. L’insegnante, nella veste di “direttore artistico” è intervenuta solo per la revisione linguistica del testo selezionato dagli editor, un gruppo di tre alunni che ha letto i testi (4-5) per ogni capitolo, assemblandone le parti più convincenti senza procedere inizialmente a riscritture. Per ognuno dei sette capitoli si è proceduto poi all’approvazione o alla modifica da parte degli autori. Il risultato sono stati sette capitoli, letti nella loro versione finale e infine approvati dall’intera comunità degli scrittori coincidente con l’intera classe. Un esperimento, quello del metodo SIC legato all’ambito scolastico e didattico, che Vanni Santoni e Gregorio Magini hanno intenzione di approfondire e divulgare anche nelle scuole a partire dal prossimo anno scolastico e che mi pare particolarmente degno di attenzione.

Paolo Mencarelli

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El imaginario en novelas chilenas actuales: temas y estructuras | Carmen Balart e Irma Césped

Formalmente, este libro se articula en siete capítulos. En términos generales y a modo de resumen, es posible describir cada uno de ellos: el primero entrega en un formato de síntesis la estructura y el tema de cada capítulo del texto; el segundo gira en torno a los conceptos de imaginario y creatividad; además, plantea una propuesta metodológica que se centra en una perspectiva analítico – interpretativa. El tercero capítulo, en tanto, describe el contexto histórico en el que se insertan las novelas chilenas actuales seleccionadas, que constituyen el corpus de estudio. El cuarto se refiere a los cambios que debe enfrentar la literatura contemporánea y a la nueva realidad que la ficción novelesca representa. El quinto está dedicado a la nueva novela chilena, posterior al 11 de septiembre de 1973. En el sexto, se analizan un grupo de novelas representativas de la década de los 90 y, finalmente, en el séptimo y último capítulo, las conclusiones, que, en un gran espacio de síntesis, engloban los aspectos desarrollados en el texto y que singularizan a la novela contemporánea chilena: la realidad interiorizada, la libertad creadora, la diversidad, la globalidad, las problemáticas existenciales, la contingencia diaria junto con las inquietudes universales del ser humano, los rasgos de identidad chilenoslatinoamericanos, los valores culturales. Leia Mais

Liberdade | Jonathan Franzen

Mesmo antes de sair nos EUA, em setembro de 2010, Liberdade já era objeto de atenção. O livro anterior de Franzen, As correções, de 2001, fizera bastante barulho: ganhou, entre outros, o National Book Award, principal prêmio literário do país, e transformou Franzen numa das promessas mais auspiciosas da literatura americana. Mal começaram a sair as primeiras resenhas elogiosas de Liberdade, Oprah Winfrey incluiu-o em seu clube de leitura, o Guardian pespegou-lhe o epíteto de “livro do século” e a revista Time estampou na capa uma foto do escritor acompanhada da legenda: “O grande romancista americano”.

Parte do frisson em torno de Franzen tem a ver com essa obsessão pelo “Grande Romance Americano”. É um fetiche entre os autores de lá e uma espécie de santo graal da literatura: o grande autor é aquele que consegue transferir para o romance os pontos nevrálgicos da experiência do país. A trinca sagrada da prosa americana da segunda metade do século fez isso: John Updike, Phillip Roth e Saul Bellow devem boa parte de sua reputação ao modo como plasmaram a experiência dos EUA num determinado recorte de sua obra. Em As aventuras de Augie March (1953), de Saul Bellow, por exemplo, lê-se na primeira linha: “Sou americano, nascido em Chicago…” .De saída estamos diante da tentativa de responder a essa pergunta:o que é ser americano?

Essa é uma tradição francesa do século XIX, a do homem de letras empenhado em responder às grandes perguntas do seu tempo. Com a transformação dos EUA em grande potência no século XX, a função se torna estratégica em face de uma experiência cuja ressonância assume escala mundial.

Franzen disputa o posto de herdeiro dessa tradição. O barulho da mídia é também reflexo da expectativa de que ele possa assumir o bastão dessa linhagem nobre em nome da nova geração. É importante lembrar que nessa transição ocorreram os atentados de 11 de Setembro.

Não é, portanto, apenas o lugar do novo grande romancista americano que está vago, mas o lugar do grande romancista capaz de dar sentido a uma experiência traumática. Em certa medida, um evento como esse contribui para injetar vitalidade à atividade de escritor, de pronto convocado ao papel de intérprete de seu tempo.

É uma ideia complicada. O que se pode esperar da literatura como forma capaz de plasmar essa experiência? Como a competição com as humanidades e a indústria do cinema, da internet e da televisão interfere na capacidade da literatura em dar sentido a esse debate? Esse livro aspira à condição de grande romance, mas o frisson em seu redor, para ser compreendido, deve ser visto ao lado do prestígio alcançado pelo romance no século XIX e início do XX e da nostalgia em relação à centralidade de que já desfrutou um dia.

É simples identificar o que em Liberdade permite situá-lo como herdeiro dessa tradição. São setecentas páginas que procuram tocar os nervos da experiência americana dos últimos trinta anos. Os governos Reagan, Clinton e Bush, o terrorismo, a questão palestina, o crescimento econômico desgovernado, o aquecimento global, o conflito entre gerações, a mercantilização da cultura, a explosão do mercado financeiro, o sistema de saúde, o politicamente correto nas universidades. O cardápio é tão variado que por vezes lembra uma lista de tarefas a cumprir.

O que o salva da condição de manual é a habilidade de Franzen em atar esses temas às funções que desempenham na trama, que é bem urdida e evolui com naturalidade.

O fio é a transformação do casal Walter e Patty Berglund em ruína sentimental e moral. Ela vem de uma família liberal endinheirada de Nova York em que jamais se integrou. Não se interessava por livros ou política:era jogadora de basquete e se dedicava com ardor a isso, apesar do desprezo da mãe. Foi por ser jogadora que obteve uma vaga numa faculdade de segunda linha, em Minnesota, no início dos anos 1980.

Walter, seu colega na faculdade, era filho de pai alcoólatra e mãe trabalhadora, dona de motel de beira de estrada numa cidade do interior. Mas era o esforçado da família, o primeiro a fazer curso superior, o moço abstêmio, inábil com as mulheres e não particularmente bonito. Mas ele vence pelo cansaço, e eles se casam no fim dos anos 1980, têm um casal de filhos e adotam uma vida de família burguesa em Minnesota.

O fator de tensão entre os dois, desde a faculdade, é Richard Katz. Richard era o melhor amigo de Walter e ao mesmo tempo seu antípoda. Era bonito, sexy e inconsequente. Walter, por outro lado, era um exemplo de lealdade e um esteio para o desregramento do colega. Desde aqueles anos, Patty cultivava uma paixão por Richard que não se concretizava em razão da lealdade entre os amigos. Resignada, Patty cedeu aos apelos de Walter menos por amor do que por falta de opção.

Ao longo de todo o livro, Richard permanece uma sombra para o casal. Muitos anos depois, numa casa de campo, Patty e Richard passam dois dias juntos e transam, por insistência de Patty. Um pouco depois, ao cabo de anos tocando para pouca gente e amargando fracasso atrás de fracasso, Richard grava um disco de sucesso e se torna uma figura hype no mundo da música.

Os dias que Patty passa com Richard e o sucesso dele mudam tudo na vida dos Berglund. Walter, com ciúme, torna-se competitivo. Ressentido com o silêncio do amigo, que parecia se afastar dele nesse período de bonança, muda de emprego e se aproxima de políticos de má índole. Patty, depois do caso com o amigo do marido, cai em depressão.

Há ainda a relação conturbada com os filhos. Joey, o mais velho, sai de casa na adolescência para morar com a namorada, a vizinha Connie Monaghan. Isso para desespero de Patty, que odeia a mãe de Connie e sobretudo o namorado dela. O sujeito é um machão truculento, vidrado em carros, armas, e simboliza o protótipo do americano tosco, da direita mais empedernida. É essa figura que vira influência para Joey: depois de dois anos na casa do vizinho, ele vai cursar economia, sonha trabalhar em Wall Street, resgata suas raízes judaicas e vira um republicano envolvido com interesses de Bush na invasão do Iraque.

O que prende a atenção é essa espiral em direção à desintegração, ao fracasso da relação, à sucessão de passos em falso em que a vida do casal vai se transformando. A estrutura romanesca é essa. E o que Franzen consegue construir em redor dela constitui o espírito de época que o romance, de modo mais abrangente, tenta capturar em sua busca pela vaga de herdeiro da linhagem mais nobre da tradição literária americana.

A parte mais substancial é dedicada à era Bush: são os dilemas pós-11 de Setembro que aparecem com mais força e que Franzen procura examinar de modo detido. A trajetória de Joey é exemplar disso: a descoberta do judaísmo e a vontade de explorar essa identidade vêm num contexto de reação ao terrorismo, num movimento que parece acompanhar o renascimento da direita conservadora americana logo após 2001. Sujeito oportunista, frio e incapaz de afetividade, Joey é um retrato pouco lisonjeiro dos quadros que a causa republicana é capaz de cativar.

Vale o mesmo para a onipresença do discurso ambientalista. O sarcasmo é grande e ocupa boa parte da trajetória de Walter Berglund. Desafiado pelo sucesso de Richard, Walter deixa o emprego numa unidade de conservação em Minnesota para encarar uma enrascada em Washington. Ele assume o Fundo de Conservação da Mariquita-Azul, na verdade uma grande piada. O fundo é invenção de um bilionário do Texas, amigo de Bush e Dick Cheney, interessado em vender reservas para empresas que exploram a extração de carvão, nocivas e poluentes. O tal fundo é uma cortina de fumaça, uma licença para destruir tendo como álibi a preservação da espécie. Ingênuo e bem-intencionado, Walter cai na arapuca – e é o nome dele que vai parar no New York Times quando fica claro o que está por trás do fundo da mariquita-azul.

Franzen é ornitólogo e adora observar pássaros, mas o ambientalismo do século XXI aparece em seu livro como tolice de gente bem-intencionada. Há acidez no modo como ele trata o discurso em defesa do controle de carbono, contra o aquecimento global e o crescimento demográfico. A crítica aos republicanos e à direita é evidente, mas também o discurso politicamente correto é alvo de sarcasmo.

A Nova York dos círculos letrados e progressistas que ele retrata, da mesma maneira, está longe de ser ambiente estimulante. Estão todos munidos de smartphones e ipods, prontos para consumir as novidades do mercado cultural sob a forma de “autenticidade” ou “atitude”. O personagem de Richard Katz é o veículo das críticas disparadas ao intelectualismo bem-intencionado e ao cinismo dos liberais endinheirados nos rooftops de Tribeca e do Chelsea. Não há autenticidade possível. A decisão de Katz de voltar a ser trabalhador braçal mesmo depois do sucesso de seu disco aponta nessa direção.

Nova York é também a síntese do que Patty odeia em sua família. Democratas, judeus heterodoxos e de cabeça aberta, seus pais aparecem, logo no início do livro, a cometer uma enormidade: adolescente, Patty foi estuprada numa festa por um colega de escola. Mas o garoto era filho de doadores importantes da campanha eleitoral de sua mãe, de modo que os pais se reconciliam com a família do agressor.

Liberdade ganhou pecha de ingênuo, como se a crítica aos republicanos fizesse de Franzen um autor a serviço do bom-mocismo da era Obama. O livro não pende para um lado só do espectro político nem faz proselitismo fácil, com uma ou outra exceção, como o modo esquemático com que retrata o sistema público de saúde, pauta evidente demais nos editoriais da imprensa democrata para não esbarrar no artificialismo. Mas não é ao acusar Franzen de esquerdista ingênuo que se fará boa crítica de seu trabalho.

O ponto em discussão diz respeito à forma do livro. Desse ponto de vista, é uma obra convencional. Da mesma maneira que a imagem de “homem de letras” em nome da qual a revista Time elogiava o autor é do século XIX, também do ponto de vista formal Franzen se movimenta num registro antigo. Ele dialoga pouco com a tradição do romance do século XX. Esse é um repertório que a ele não interessou incorporar e que pode ser visto como fraqueza de certo ponto de vista crítico. Está claro, contudo, que não teria obtido essa ressonância se fosse autor de um livro experimental, e aí pode haver boa dose de cálculo.

Há dois exemplos a esse propósito. Um é o primeiro parágrafo, cartão de visitas para qualquer obra de ficção. Outro é a maneira quase imperceptível com que tenta variar a voz narrativa em situações que a estrutura parece pedir isso. As primeiras linhas do livro dizem o seguinte:

A notícia sobre Walter Berglund não circulou localmente – ele e Patty tinham se mudado para Washington dois anos antes e já não significavam nada mais para St. Paul -, mas o povo de Ramsey Hill não era leal à sua cidade a ponto de deixar de ler o New York Times. […] Seus ex-vizinhos tiveram dificuldade em conciliar os adjetivos com que o Times o qualificava (“arrogante”, “presunçoso”, “eticamente comprometido”) com o vizinho generoso, sorridente e corado que viam pedalando até a condução para o trabalho todo dia […] Se bem que sempre tinha havido algo estranho na família Berglund.

Esse primeiro parágrafo é poderoso. Todas as setecentas páginas seguintes são dedicadas a mostrar como se deu essa queda que levou a família exemplar até as páginas de escândalo do Times, coisa que só acontece ao fim do livro, quando Walter atua como laranja dos republicanos interessados na extração de carvão. Mas é também um truque romanesco dos mais convencionais: o autor puxa um elemento decisivo do fim da história para as primeiras linhas, de modo a prender a atenção do leitor até que essa isca, lançada logo de início, se mostre em sua totalidade.

Vale comparar com uma abertura célebre, a de Anna Karenina, de Tolstói:

Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira.

Na segunda linha, já se sabe que o narrador vai passar as páginas seguintes a contar uma desgraça familiar. Mais que isso:uma desgraça particular, que só poderia ter sido vivida daquela maneira.

Não é casual a comparação com Tolstói. Algumas páginas de Liberdade são dedicadas a paráfrases de Guerra e paz, que Patty lê em seu retiro na casa de campo. Como nos grandes livros de Tolstói, em Franzen o centro é também o drama familiar. Assim como na obra do escritor russo, há uma capacidade de conferir humanidade aos personagens que por vezes parece suspender a mediação do autor, como se a própria realidade se escrevesse de forma espontânea diante de nossos olhos.

As variações da voz narrativa são uma fragilidade mais evidente. Franzen sabe bem que o romance contemporâneo não pode prescindir de questionamento sobre a forma de narrar. Compõe seu livro, assim, a partir de dois narradores: um é onisciente, em terceira pessoa, bem aos moldes do romance do XIX. Outros trechos, contudo, são narrados por Patty Berglund. Por sugestão de seu terapeuta, ela escreve uma autobiografia, que faz as vezes de segundo capítulo e ocupa cento e tantas páginas.

É de estranhar a pequena variação entre os trechos do narrador convencional e aqueles narrados por Patty. Ela também escreve em terceira pessoa, com raras referências à “autobiógrafa”. E escreve com brilho, com passagens que funcionam nas mãos de um escritor de talento como Franzen, mas que não convencem quando se tem em mente que a voz é de uma dona de casa deprimida e ex-jogadora de basquete. Franzen tenta marcar a diferença: assim que acaba a autobiografia, entram parágrafos imensos, sem ponto final, como a indicar essa mudança. Mas são ocorrências episódicas, que não marcam o andamento do texto e deixam essa incompletude no ar.

Franzen não é um romancista acabado e é saudável desconfiar da histeria em torno de seu livro. Mas isso não é o mesmo que lhe negar os méritos. Há um lugar vago para o grande intérprete literário da alma americana pós-11 de Setembro. O escritor que der sentido a ela por meio de uma imagem forte como a da família Berglund terá decerto destaque merecido.

É cedo para dizer se Franzen é essa figura, mas está sem dúvida entre aqueles capazes de aspirar a essa condição. Suas ambições de ser o Tolstói do século XXI podem suscitar desconfiança quanto à capacidade de renovar a forma do romance e também sugerem pouca disposição para uma discussão necessária sobre o papel que cabe hoje à ficção literária. Mas a intensidade com que essas ambições são praticadas em seus livros é rara e digna de nota. E elas só podem fazer bem para a literatura num momento em que sua morte é decretada a cada dia.

Flavio Moura – sociólogo.


FRANZEN, Jonathan. Liberdade. Trad. Sergio Flaksman. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. Resenha de: MOURA, Flavio. Ambição e Nostalgia. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.93, Jul, 2012. Acessar publicação original

Cansaço, a longa estação – PERICÁS (CTP)

PERICÁS, Luiz Bernardo. Cansaço, a longa estação. São Paulo: Boitempo, 2012. Resenha de: RUBBO, Deni Ireneu Alfaro. Punaré e Baraúna na Terra do Sol. Cadernos do Tempo Presente, n. 07 – 07 de abril de 2012.

Cada suspiro é um gole de vida de que a gente se desfaz.

Juan Rulfo

Luiz Bernardo Pericás é um escritor que dispensa apresentações. Apesar da pouca idade, seus diversos livros e artigos no Brasil e no exterior têm tornado um dos principais historiadores brasileiros marxistas da atualidade, com estudos sobre a obra de personalidades políticas intrigantes do cenário latino-americano como Che Guevara e José Carlos Mariátegui assim como, uma análise majestosa sobre o fenômeno do cangaço. E como se não bastasse, paralelamente, o autor tem acumulado em sua trajetória diversas obras de cunho literário, não menos instigantes que suas pesquisas. Em tempos de profissionalização e especialização, ser historiador e romancista, ao mesmo tempo, é seguir um caminho diferente do habitual, fora do compasso – e por isso mesmo faz que seja algo tão interessante e desafiador.

Não há dúvida que para aqueles que puxarem o livro e lerem as primeiras páginas de Cansaço, a longa estação, o novo romance do autor, rapidamente serão seduzidos em não parar, absorvidos integralmente por duas apaixonantes estórias de encontros e desencontros no sertão onde o tempo é uma “lentidão insana”. Todavia, se por um acaso o leitor conseguir resistir ao charme poético desse romance, ao encanto dos dois personagens, mesmo assim devera preparar-se para realizar a leitura de uma sentada só, como estratégia. Afinal, como enunciava o rebelde Walter Benjamin, “nem todos os livros se leem da mesma maneira”; e romances, por exemplo, “existem para serem devorados”. Como se pode perceber, trata-se de realçar uma estratégia da incorporação: “lê-los é uma volúpia da incorporação. Não é empatia.

O leitor não se coloca na posição do herói, mas se incorpora ao que sucede desde”.2

O romance é dividido em duas partes: a história de Punaré e de João Baraúna. Ambos em busca de um amor: Cecília (ou Cecica). A linguagem do livro, embora encontre um palavreado excêntrico, fruto do sertão “adusto e delirante”, paradoxalmente, não interrompe o rolar das linhas. Ao final da trama, a sensação é de que as palavras “estranhas”, ou pelo menos a imensa maioria, são fatalmente familiarizadas pelo fluxo da história narrada e pelas imagens que se vai facilmente criando. De qualquer modo, o leitor terá em mãos um glossário no final do livro para eventuais consultas, mas vale a pena mesmo seguir a orientação de Flávio Aguiar que assina a orelha do livro: “a melhor experiência é deixar-se levar pela música áspera e dissonante das palavras reunidas num fraseado melódico ao mesmo tempo fluido e truncado. Como, de resto, é a vida no sertão”.

Punaré. Cabloco silencioso, mas que “em cada artéria, fluía sangue quente”, trabalha duro todo dia na enxada para ajudar os pais, precocemente envelhecidos. O que ainda o motiva viver é a paixão pela rapariga Cecília. Porém, é uma paixão dividida com outro cabloco: João Baraúna. Existe uma tensão psicológica constante, como se em qualquer momento Punaré fosse emboscado pela vingança Baraúna, já que uma peleja de facão fez com que o primeiro atingisse com um punhal a face do segundo.

A paixão por Cicica divide o espaço emocional de Baraúna para com Deodoro (o boi) e Corisco (o cachorro). Como no afamado Vidas Secas de Graciliano Ramos, em que a cachorra baleia assume uma posição humana, ambos, cachorro e boi “serviam como vínculo ao mundo real, dois seres de pouca carne e muito osso, que, como ele, se agarravam a qualquer coisa para continuar vivos e de pé”.3

O desejo de fazer seu próprio destino, pedir a moça em casamento, apesar da circunstância infeliz, desfavorável e improvável, faz com que Baraúna escolha ir embora da casa de seus pais, carregando consigo os dois amigos. Depois de uma visita ao índio e ancião Simão, “o mago das matas”, “o homem santo”, e antes de finalmente chegar à casa de sua amada, o cachorro e a ovelha morrem durante o caminho, por motivos diferentes, transtornando o personagem.

João Baraúna. Assim como o primeiro personagem de que o leitor já está sintonizado, Baraúna “fazia tudo sozinho, vida de solitário”. A reputação de bandido, de assassino, de “cavaleiro do apocalipse”, não fazia o menor sentido, era “tudo mal-entendido”. Na verdade, a feiura desde menino o fez um sujeito desprezado, desrespeitado, achincalhado…

Na idade adulta, Baraúna trabalhava para o coronel Borges, “maioral e senhor da região”, e por ali que conhece e se encanta por Cecília, e que teve desde então reciprocidade. Não obstante, assim como Punaré, que teve suas melhores e únicas companhias mortas de maneira trágica, Baraúna tem o mesmo destino: o pai assassinado. Em transe,“começaria a partir daí seu vagabundear incessante: não haveria retorno…”.

Depois de vingar-se da morte de seu pai, matando os capangas, visita o mesmo ancião Simão, e, finalmente, parte para “sequestrar” a filha de Manuel, que se deixa levar espontaneamente em nome da aventura.

Na verdade, o sertão, ambiente do romance por excelência é mais uma circunstância do que qualquer outra coisa. A centralidade do livro talvez gravite com mais potência no amor e na solidão, na esperança e melancolia que vivenciam os personagens desse enigmático triângulo amoroso. O amor por Ceci é uma tentativa desesperada de livrar-se da solidão. No mesmo esteio, as figuras com que Punaré e Baraúna tiveram mais sensibilidade emocional e afetiva, ao morrerem, proporcionam um poço terrível de angústia e lamentação para os nossos personagens: o choro explosivo é o de desespero da solidão, do cansaço da exploração e opressão que não passa.

O princípio motor dos três personagens é o princípio da esperança e o sonho acordado daquilo que ainda-não-existe (noch-nicht-sein), de que falava Ernst Bloch. Sabemos que na enquete sobre o amor que o movimento surrealista maravilhosamente realizou outrora, uma das perguntas dizia: “Você acredita na vitória do amor admirável sobre a vida sórdida ou da vida sórdida sobre o amor admirável?”. Na terra do sol, do sertão sem mar, o amor não é admiração, mas a redenção de uma longa estação.

Notas

2 Walter Benjamin, 1995: 275.

3 Luiz Bernardo Pericás, 2012:21.

Referências

BENJAMIM, Walter. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1995.

BLOCH, Ernst. O princípio da esperança. Rio de Janeiro: UFRJ, 2005.

PERICÁS, Luiz Bernardo. Cansaço, a longa estação. São Paulo: Boitempo, 2012.

Deni Ireneu Alfaro Rubbo – Mestrando do Programa de Pós-Graduação de Sociologia da Universidade de São Paulo (PPGS/USP) e bolsista CNPq.

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Pigmeo | Chuck Palahniuk

“Una pelea fuera de un bar, demandas a empresas transnacionales, combates de máquinas cosechadoras, técnicas bizarras de masturbación, sectas religiosas, canciones asesinas, viajes en el tiempo… tomas uno de sus libros abierto en alguna página al azar y no puedes dejar de leer”. Así son los libros de Chuck Palahniuk (Portland, 1964), autor del best seller El Club de la Pelea (Muchnik, 1999) y llevado al cine por David Fincher (1999). Siempre controversial, mordaz, irónico, extraño, brillante, aunque desagradable y bestial, eso son sus libros: un embutido de ángel y bestia. Chuck Palahniuk ha impactado a la crítica con cada uno de sus libros, que pueden considerarse como un golpe fulminante, entre los que destacan los siguientes: Superviviente (Muchnik, 2000), Monstruos Invisibles (Debolsillo, 2003), Asfixia (Mondadori, 2001), Nana (Mondadori, 2003), Diario: Una novela (Mondadori, 2004), Fantasmas (Mondadori, 2006), Rant. La vida de un asesino (Mondadori, 2007), Snuff (Mondadori, 2010).

Todo comenzó con un insomne viajero bipolar, luego un semidiós televisivo rescatado de una secta oculta, una modelo desfigurada viajando con un transexual, un viajero del tiempo adicto a chocar automóviles, una agente inmobiliaria buscando impedir que una canción de cuna extermine a la raza humana, un estudiante de medicina fracasado con un empleo en un parque temático de época, una actriz porno buscando el récord mundial de coitos. El panel de personajes de Chuck Palahniuk parece agotado, pero no es así; siempre queda espacio para los freaks y olvidados en sus novelas. Leia Mais

Un desierto para la nación: la escritura del vacío | Fermín Adrian Rodríguez

Foi apenas quando avançava na estrada em direção à província argentina de Chubut, após deixar La Pampa, que obtive uma leve sensação do que queria dizer el desierto: o monstro devorador, o antípoda da civilização, o lar dos selvagens. A ideia da ausência, do vazio, seja na literatura, nos relatos parlamentares, nos projetos políticos do século XIX sempre foi uma presença forte nas representações sobre as regiões que não foram tornadas cidade, latifúndio ou rotas de comércio. Imensos espaços em branco no mapa, a natureza indomesticada, a physis.

No entanto, e desconcertantemente, o deserto “era” alguma coisa. Mas o que “era” esse deserto foi pergunta calada durante muito tempo para o saber institucionalizado. Em termos materiais, hoje, o deserto é transformado em sojeiro. No campo simbólico, do qual trataremos mais de perto, desde finais dos anos 1990, verificamos tentativas, incipientes, porém extremamente atraentes, do universo acadêmico e do campo literário, de dar voz ao silêncio, de dar corpo ao vazio e humanidade à vida no “deserto”. A história completa sua volta, e o deserto torna-se, novamente, espaço de conquista. Leia Mais

Livro – PEIXOTO (A-EN)

PEIXOTO, José Luís. Livro. Lisboa: Quetzal, 2010. Resenha de: NOGUEIRA, Carlos. Alea, Rio de Janeiro, v.14 n.1, jan./jun., 2012.

Livro, o sexto romance de José Luís Peixoto (1974), tem como contexto a emigração portuguesa para França e a literatura enquanto universo complexo, enigmático e contraditório. Estes dois temas surgem ligados na primeira frase do romance, mas o leitor não poderá compreender a verdadeira amplitude desta associação senão na segunda parte do livro.

“A mãe pousou o livro nas mãos do filho” (11) inicia uma narrativa que seduz o leitor pela imprevisibilidade e pelo dramatismo das situações, pela densidade psicológica das personagens e pelo encadeamento dos episódios, que se vão sucedendo numa progressão cronológica assinalada, entre parênteses, no início de alguns capítulos ou no seu interior, imediatamente antes do parágrafo que se segue e no mesmo tipo de letra do texto. Há ainda palavras-chave, como “(Fonte)” (26) ou “Posto da guarda” (101), números, o nome de uma personagem e, por vezes, a representação pictórica de uma mala, que também delimitam os momentos narrativos. À medida que o romance avança, o andamento dos episódios e a alternância entre eles intensificam-se.

Também neste aspecto da sintagmática narrativa o autor recorre, no nível gráfico, a uma estratégia que visa marcar esses momentos: um espaço em branco, equivalente a duas ou três linhas, entre cada parte. Num livro que tem tanto de romance tradicional como de narrativa pós-moderna, esta técnica, tal como as que enumeramos acima, contribui para a inscrição do romance numa categoria genealógica singular. As personagens deste romance estão divididas entre Portugal, de onde algumas nunca saíram, como Josué e a velha Lubélia, e França, para onde partiram na situação de emigrantes não propriamente convencionais e de onde voltam para períodos de férias e, mais tarde, no caso de Adelaide e do filho “Livro”, definitivamente.

Lubélia, personagem amargurada por ter abortado e por ter sido afastada pelos pais da experiência amorosa, envia a sobrinha à força para França, para separá-la de Ilídio, que, ao aperceber-se disso, decide partir à procura de Adelaide. Para além do episódio inicial, constituído pelo abandono de Ilídio pela mãe, que parte para França, é este o núcleo a partir do qual se desencadeiam todas as outras linhas efabulativas do romance. Apesar de narrados autonomamente, todos estes episódios se encontram associados numa lógica de alternância cinematográfica que dá ao leitor a possibilidade de saber o que as personagens não sabem umas das outras.

Fala-se, neste romance, de vidas humanas individuais, dos seus desejos, vontades, erros e conflitos; fala-se de amor, de morte, de encontros e desencontros; e fala-se também de Portugal como povo, com as suas crendices e obsessões, vícios e virtudes, alegrias e tragédias, e como país que vive a tragédia de uma ditadura e a conquista de liberdade política, social e individual. 1974 é, por isso mesmo, um ano privilegiado neste livro, em especial os dias que precedem e sucedem à revolução do 25 de Abril. “27 de Abril de 1974” é uma data com implicações narrativas e autobiográficas: é a data que assinala o fim da primeira parte do romance, narrado em terceira pessoa, e a data de nascimento do narrador (autodiegético) da segunda parte, que é também a data de nascimento do autor empírico (cuja projeção autobiográfica tem ainda a ver com o facto de os pais de José Luís Peixoto terem sido emigrantes em França nos anos 60).

O livro que Ilídio recebe da mãe é o mesmo livro que ele, adolescente, oferecerá a Adelaide, com quem, muito mais tarde, terá um filho ilegítimo, cujo nome insólito é também o nome deste romance: Livro.

Este é um romance que muda radicalmente de registo no início da segunda parte, que surpreende o leitor com um inquérito, constituído por doze perguntas, enunciado nestes termos: “Indique os seguintes dados” (207). Percebe-se, mais à frente, que o próprio narrador autodiegético responderá a este questionário repentino e insólito, em que entram aspectos de natureza não só civil e biográfica, mas também pessoal: “Nome da sua mãe” ou “Nome do seu bilhete de identidade”, por um lado, e “Adjectivo que melhor caracteriza o penteado que tem neste momento” ou “Número de vezes que lava os dentes por semana” (207), por outro. Antes, contudo, dos primeiros indícios que fazem a ligação com a intriga da primeira parte do romance, surge outro momento perturbador que acentua ainda mais o estranhamento causado pelo inquérito: “Preencha os espaços em branco com as respostas anteriores” (209).

Esta segunda parte não se desliga completamente da anterior, mas obriga o leitor a rever as expectativas que foi criando ao longo de duzentas páginas. Paralelamente às sequências de ações, às relações entre personagens e à caracterização direta e indireta de espaços e figuras, as incursões no metaliterário inscrevem este romance no âmbito pós-moderno. O leitor lê o livro, primeiro na segurança de uma história bem-construída e escrita com a elegância de um autor que sabe usar o ritmo, a metáfora e a comparação: “Cada martelada que acertava na parede era como uma explosão no centro da terra. […] As cabeças dos martelos eram pesadelos de aço maciço, trovões negros. O Ilídio segurava o seu martelo com as duas mãos e acertava na parede, que caía em grandes postas caiadas, com tijolos vermelhos nas pontas, como entranhas” (178).

Mas este Livro também interpela o leitor através da visão criativa do pós-moderno, que já não se satisfaz com a apresentação de uma história linear e previsível; interessa-lhe, dialogando ironicamente com o passado histórico, literário e cultural, inovar pelo lado da reflexão metaliterária. Para o narrador deste Livro, que no final se dirige a um narratário, tudo está em julgamento e em movimento: a sociedade, o pensamento e a própria literatura: “Este livro podia acabar aqui. Ficávamos assim, no vácuo desta revelação. The end. Ou talvez nem seja sequer uma revelação, talvez seja apenas um sinal da minha incapacidade de interpretar detalhes” (261).

Carlos Nogueira – Universidade Nova de Lisboa [email protected]

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O mundo se despedaça | Chinua Achebe

O romance O mundo se despedaça, de Chinua Achebe, é um livro muito interessante. Os detalhes narrados pelo autor tornam essa obra riquíssima. Apesar de ser o primeiro romance do autor, o livro, que foi escrito em 1958 (dois anos antes da independência da Nigéria), foi traduzido para mais de quarenta línguas, e é indispensável para qualquer africanista. O fato de o autor contar apropriadamente da cultura e da ancestralidade Ibó (da qual é descendente) imprime ao livro um caráter histórico, além do literário.

O livro conta a história de Okonkwo, que, apesar de ter um pai (Unoka) preguiçoso e imprevidente, havia-se tornado um grande homem dentro de seu clã Umuófia. Fora um grande guerreiro, e ficou famoso aos dezoito anos, quando derrotou Amalinze (apelidado de “o Gato”, pois suas costas nunca haviam tocado o chão), depois de sete anos de invencibilidade. Seu clã era temido pelos outros ao seu redor, e todos evitavam entrar em guerra com ele. Okonkwo era um agricultor esforçado e tinha três esposas. No decorrer do livro, o autor cita inúmeros traços da cultura Ibó, detalhando os costumes e a vivência dentro destas sociedades. Leia Mais

Tereza Batista cansada de guerra | Jorge Amado

Esta resenha objetiva descrever e analisar algumas passagens do romance acima citado no intuito de perceber as relações elencadas por Jorge Amado, que possibilitam um conhecimento da época, do espaço e das relações sociais, que todas as obras literárias carregam nas entrelinhas de sua trama. No caso de Jorge Amado, escritor baiano que começa a escrever na década de 1930, estas relações são postas intencionalmente para mostrar a sociedade na qual o autor está inserido e é observador atento do cotidiano do povo. Aqui identificaremos estas relações enfocando a mulher como sujeito social no cenário proposto pelo autor.

Posto que Jorge Amado trabalha com uma temporalidade que descreve os meandros por que perpassam a memória, fazendo uma alusão ao caráter popular que ele dá as suas obras, traçaremos aqui uma linha cronológica que nos permita caminhar por uma ordem que não segue necessariamente a do livro.

Tereza ficou órfã muito cedo e passou sua curta infância com uma tia. Foi uma criança livre, gostava de correr e subir em árvores. Com os meninos, seus colegas, aprendeu que um bom guerreiro não chora. Aos doze anos ela foi vendida ao Coronel Justiniano, por uma quantia irrisória e um bracelete barato. Seu tio foi contra a venda, não por um gesto altruísta, mas por desejar ser ele a tirar o “cabaço” da menina. Sabendo que sua esposa conhecia suas intenções, não se atreveu a falar nada.

Já neste momento o autor sinaliza a falta de alternativa de Tereza. Era condição de ela perder a infância, pois se o Coronel não a desvirginasse violentamente o tio faria, fazendo-a perder, portanto a chance de ser uma “mulher direita”, posto que para isso era necessário ser virgem. Ela é coisificada e pela dimensão da violência deste processo ela é obrigada a aceitar esta condição.

Na casa do Coronel “Justo”, Tereza viveu um verdadeiro inferno a começar na sua chegada, na condição de “coisa sexual”, depois de resistir bravamente à primeira “cavalgada” (termo usado pelo próprio Coronel para referir-se aos estupros que comete) continua a ser estuprada. A descrição detalhada que o autor faz destas violências sexuais carrega nos detalhes a angústia, a raiva, a impotência do leitor, sensação esta que nos faz refletir sobre a nossa condição como participantes desta sociedade que carrega embaixo de um fino pano as injustiças contra a mulher.

Tereza foi escrava sexual por cerca de três anos, até ser seduzida por Daniel, jovem boêmio, sem caráter, muito semelhante fisicamente ao anjo pendurado na parede do quarto do Coronel, que presenciava toda a violência cometida contra a menina. Por Daniel, Tereza foi capaz de matar o Coronel quando ele descobrir a relação dos dois e humilhou o rapaz.

Neste momento o autor nos desvela que o Coronel não conseguiu anular a coragem da menina, agora mulher, com as surras e os estupros. A coragem lhe era inerente, só ficou adormecida por um tempo, despertando na primeira oportunidade.

Quem libertou Tereza da prisão, já que ela matou o Coronel na presença de Daniel que a denunciou acusando-a covardemente (e nós leitores sabemos que ela o fez para salvá-lo), foi o Coronel Emiliano, este já havia se encantado pela menina quando lhe fez uma visita ao, agora, falecido Justo, e tentou, na ocasião, “comprá-la”, mas não teve sucesso. A menina viveu durante seis anos na condição de “amásia” do Coronel Emiliano, ele a colocou numa casa, lhe deu vestidos, contou-lhe uma porção de coisas e ensinou-lhe a ser uma “senhora”. Porém nunca tornar-se-ia uma “senhora”, posto que as “mulheres de família” suportavam as “protegidas” dos Coronéis por medo e respeito aos mesmos, sua condição de “mulher da vida” iria acompanhá-la para sempre, como uma sombra.

Apesar desta condição de “amásia”, Tereza foi feliz durante aqueles anos, e quando finalmente o Coronel revelou seu amor por ela (dizendo-lhe inclusive que pensava em lhe dedicar parte da herança), confessando sua infelicidade no seio familiar, ele morreu, durante o ato sexual, dentro de Tereza. Novamente sem ninguém e sem nada a menina-mulher “cai na vida”.

O Coronel Emiliano reproduziu com Teresa a mesma lógica de todos os Coronéis, inclusive a do Coronel Justino, o vilão do primeiro capítulo. Mas pela primeira vez a menina, que perdeu a infância, foi tratada com carinho, ele fez o papel de pai e amante e este fato em contraste com os momentos vividos com o outro primeiro Coronel acabou aliviando a culpa deste.

O contraste também se faz presente na estrutura do texto, que nos transporta para dois momentos respectivamente: ora são descritos os momentos de felicidade de Tereza ao lado do coronel Justino, ora o desfecho da morte deste e o sofrimento da perda por Tereza, aliado a chegada da família, que o Coronel dizia nunca tê-lo amado. Neste momento as lembranças da menina são nossos guias, pois o autor nos faz enxergar o Coronel pelos olhos da personagem.

As relações dos dois espaços da mulher nestas cidades são descritas neste capítulo quando Amado narra a função de Tereza como “amásia”: a mulher sustentada e protegida por um Coronel próspero. Estas mulheres normalmente são tiradas de prostíbulos e colocadas na casa de descanso destes Coronéis, a maioria tem que estar consciente de seu papel; elas esperam os Coronéis terem vontade de estar com elas, fazendo, quando isso acontece, todas as vontades deles. Esta relação de submissão fica clara quando Tereza aborta, ao saber, pela boca do Coronel Emiliano, que ela não era mulher para ter filhos dele.

O Coronel então morreu durante o ato sexual e quando a família legitima dele chegou, Tereza se viu obrigada a ir embora sem nada. O autor deixou explicito o orgulho da personagem e o amor sem interesses materiais que ela mantinha pelo falecido, indo embora sem reivindicar nada. Ao partir, deixou todos os bens materiais que recebeu do Coronel para a família que se mostrava avarenta, pois mostravam-se mais preocupados com a herança do que com a morte do ente. Este é um cenário sempre presente na obra de Amado, tendo em vista sua busca por retratar as famílias patriarcais, tradicionais baianas, onde as diferenças sociais sempre são a tônica central.

Tereza instalou-se numa cidadezinha e lá trabalhou como “rapariga” (termo usado para designar as profissionais do sexo). Logo conheceu um médico e mudou-se com ele para uma cidadezinha do interior quando ele foi promovido. Mas em meio à tranqüilidade da saúde na cidade, houve um surto de Bexiga Negra, o médico que permaneceu por pouco tempo no local, recebeu a ajuda de Tereza que neste curto período aprendeu um pouco sobre a doença e o tratamento. Quando o médico fugiu, num ato covarde, com medo de contrair a doença, assim como fizeram as autoridades da cidade (sobraram apenas os mais pobres, que não tinham como fugir), Tereza ficou para tentar amenizar o problema. O autor a descreve como uma guerreira, que mesmo diante de tão heróicos feitos é condenada pelas más línguas da cidade devido ao seu passado e sua condição. O autor nos mostra a dificuldade de aceitação de uma mulher que foge das regras da sociedade, seja esta uma condição ou uma escolha.

Antes de encontrar a paz, Tereza ainda passaria por mais uma batalha. Este último capítulo é iniciado por uma Mãe de Santo que fala do destino de Tereza. Ela era querida no lugar onde agora vivia e trabalhava novamente como “mulher da vida” de coronéis muito poderosos, devido a sua exuberante beleza. Em sua narrativa, o autor nos apresenta uma distinção sócio-econômica entre os prostíbulos: existiam os mais simples, onde era aceito qualquer cliente, e os mais sofisticados, onde os clientes eram ricos e em sua maioria coronéis, estes tinham mulheres fixas, como Tereza que também se apresentava em shows de dança.

O governo decidiu deslocar os prostíbulos mais pobres para uma região de condições precárias. O autor descreve detalhes destas relações puramente políticas, sem preocupação social, mostrando como a vida do povo estava subjugada aos desígnios das autoridades locais. Por mais que Tereza não estivesse envolvida, tomou aqueles acontecimentos como se fossem dela, pois quando as mulheres se recusaram a sair, a polícia as reprimiu violentamente. A idéia veio de Tereza, as “profissionais do sexo” não trabalhariam enquanto o problema não fosse resolvido. Concomitantemente estava por chegar um navio com muitos marinheiros americanos que iriam movimentar a cidade com seus dólares, porém sem a atuação das “mulheres da vida” este movimento se reduziria significativamente.

A polícia ao saber da greve tentou violentamente reprimi-la, mas com a ajuda dos Deuses africanos, os Orixás, Tereza incentivou todas a não voltarem às atividades naquela noite. “A greve do balaio fechado”, um dos possíveis títulos para este capítulo sugerido pelo autor, deu certo, mas Tereza foi presa e apanhou muito na cadeia.

As torturas não foram suficientes para acabar com sua beleza e ela foi pedida em casamento por um antigo pretendente. Tereza por ter perdido seu grande amor, um marinheiro que ela conheceu quando ele a salvou da polícia no inicio do livro, e por ela estar acreditando que ele havia morrido no mar, sem nenhuma esperança de amar novamente aceitou o casamento. Porém, momentos antes de se casar, seu grande amor apareceu reivindicando seu lugar no coração de Tereza.

Finalmente ela encontrou a paz nos braços de quem amava, no convés de um barco, e foi no mar que ela descarregou as três mortes que pesava em suas costas: o Coronel Justo que ela matou com uma facada, o Coronel Emiliano que morreu durante o ato de amor e seu filho que ela matou ainda no ventre dela.

Através dos olhos de um narrador que se diz presente na história contada e que sempre coloca sua opinião apaixonadamente influenciando desta forma a opinião do leitor, Jorge Amado denunciou uma realidade dolorosa, cruel e ainda atuante. Tereza Batista é a personagem que carregou em suas costas as experiências de meninas que se tornam mulheres condicionadas a um futuro de escolhas limitadas. Tereza parece ser o grito desesperado de denuncia que Jorge Amado vem trazendo em todas as suas obras, estereotipada na mulher baiana que é muito sensualizada e que só encontra saída na sujeição do próprio corpo.

A estratégia estrutural do texto nos induz aos caminhos da memória, onde podemos ouvir a voz e as impressões do narrador presente, que tudo indica ser um taxista que conta a história para um passageiro, relembrando o que viu unido ao que ouviu da boca do povo que até transformou a história em cordel. Para dar veracidade à história ele usa o argumento desta ser conhecida nas ruas da Bahia, valorizando a oralidade e a tradição oral como forma de perpetuação da História de um Povo (deste povo marginalizado e oprimido que nunca é privilegiado pela história oficial). Esta tradição oral que veio nos navios negreiros e esta tão presente nas religiões e costumes de origem africana, com as quais o autor sempre trabalha.

Conhecemos Tereza Batista por meio da “Memória”, a mulher forte e inteligente é fruto de uma vida de violências físicas e psicológicas de uma sociedade machista, limitadora, patriarcal, injusta, desigual e muito violenta. Tereza pagou o preço por nascer mulher, negra, bonita e pobre, mas ela não desistiu, não se rendeu e venceu a guerra, cujas as batalhas por serem tão violentas fazem com que, nós leitores, duvidemos que seria possível vencê-la. Tereza perdeu o medo de apanhar, de sentir fome, de ser sozinha e talvez tenha sido isso que a fez querer enfrentar este monstro que é a sociedade, apresentando-se a ela na figura de um coronel, de uma doença (Bexiga Negra), da prisão, da lei, a mulher sem infância a enfrentou e mesmo diante de tanto sofrimento e desilusão, não perdeu a capacidade de amar.

Luciana Santos Barbosa – Mestra em História Social pela PUC-SP.


AMADO, Jorge. Tereza Batista cansada de guerra. São Paulo: Martins, 1972. Resenha de: BARBOSA, Luciana Santos. O grito de denúncia de Tereza: história, corpo e literatura. Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.7, p. 403-411, jul./dez. 2011. Acessar publicação original [DR]

 

O controle do imaginário e a afirmação do romance: Dom Quixote, As relações perigosas, Moll Flanders, Tristram Shandy – COSTA LIMA (HH)

COSTA LIMA, Luiz. O controle do imaginário e a afirmação do romance: Dom Quixote, As relações perigosas, Moll Flanders, Tristram Shandy. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, 398 p. Resenha de: ROIZ, Diogo. A ascensão do romance na história europeia. História da historiografia. Ouro Preto, n.6, p.234-239, março 2011.

Pareceu-me […] que uma maneira de avançar na indagação proposta haveria de consistir no destaque da relação entre os modos diferenciais de controle, presentes entre o Renascimento e o realce do pensamento científico (Bacon e Descartes), e o gênero romanesco, cuja afirmação fora adiada e continuaria a ser prejudicada mesmo depois de sua aparição auspiciosa com o Quijote. Não se pretende dizer com isso que o romance estivesse contido na ordem das coisas, como um fruto cuja semente apenas demorasse a brotar, senão que, como gênero implica uma linguagem […] que contrariava tanto o controle ético-retórico, de fundo religioso, quanto o estimulado pela justificação da ciência. Tínhamos assim ocasião de precisar a incidência direta do controle do imaginário sobre a ficcionalidade do romance (COSTA LIMA 2009, pp. 324-325. Grifos do autor).

Assim, Luiz Costa Lima resume, habilmente, seu novo livro, lançado em março de 2009. Após publicar em 2007, em uma versão totalmente revista, de sua Trilogia do controle, em que reunia os livros O controle do Imaginário: razão e imaginação nos tempos modernos (de 1984), Sociedade e discurso ficcional (de 1986) e O fingidor e o censor (de 1988), observava que, mesmo com os cortes e os ajustes, ainda estava insatisfeito com a teorização que propunha sobre o “controle do imaginário” diante da criação literária europeia moderna e contemporânea. Embora indique que a trilogia foi continuada e aprofundada por O controle do imaginário & a afirmação do romance, que constituiria seu último livro, encerrando uma longa pesquisa (de quase três décadas), sendo um fato, facilmente, verificável no decorrer da obra, pareceunos também que o novo livro dá ainda uma continuidade mais direta ao seu livro História. Ficção. Literatura, lançado em 2006, também pela editora Companhia das Letras, no qual dimensiona o aparecimento de cada um daqueles campos do saber, as discussões que suscitaram no tempo e as aproximações e os distanciamentos entre a escrita da história e o romance.

Diferentemente daqueles casos, neste novo livro, contudo, o autor aborda de que maneira houve o aparecimento do romance moderno, ao transcender, concomitantemente, tanto o controle do imaginário forjado pela ética religiosa quanto por aquele construído pelo discurso científico, dando ênfase aos casos de Dom Quixote, de Miguel de Cervantes (1547-1616), As relações perigosas, de Pierre Ambroise François Choderlos de Laclos (1741-1803), Moll Flanders, de Daniel Defoe (c.1660-1731), e Tristram Shandy, de Laurence Sterne (1713- 1768).

De imediato, vale destacar, que, evidentemente, as pressões desse controle do imaginário, circunstanciado na criação artística da pena dos literatos, não se esvaiu, imediata ou completamente, de uma vez, mas foi um processo lento e gradual. O autor indica que o ápice desse processo ocorreu entre o final do século XVIII e o início do XIX, período no qual o romance produziu um discurso autônomo, frente àquelas antigas amarras do imaginário – o que, ao mesmo tempo, não queria representar a possibilidade de criação de outras barreiras (censuras políticas, novos controles, alteração de movimentos literários em hegemonia, etc.). Para Costa Lima, foi, a partir do século XVIII, que “o romance torna-se o gênero ficcional por excelência da modernidade” (Ibidem, p. 19). Neste período, no entanto, o controle do imaginário se apresentaria em duas situações: Em princípio, está sempre implícito, pois não há sociedade sem regras, e onde há regras há controle. Mas ele não assume um aspecto visível e marcante se a instituição ou a sociedade que o ativa não está em crise, ou sob sua iminente ameaça. Se o controle será exercido sobre o romance, tanto se pode dizer que a crise afetara a Igreja católica, enquanto matriz dos valores institucionalizados, como atingira o poder configurado nas cidades-Estado italianas. (Ibidem, p. 21).

Em circunstâncias a priori adversas, agrupar-se-ia a este tipo de controle de cunho moral, de aspecto religioso, outro tipo de controle produzido pelo discurso científico, com a revolução científica do século XVII, que criaria também um tipo peculiar de visão sobre o mundo e a natureza, o que faria com que o próprio imaginário social fosse refeito em meio a essas novas descobertas.

Nesse contexto, a produção romanesca estaria permeada por essas duas construções discursivas, que forjaram, igualmente, formas de controle sobre o imaginário e sobre a sociedade, cujas raízes, de início, não teriam como também não estar presentes sobre a escrita literária dos romances produzidos nessa época.

Para demonstrar suas hipóteses, o autor analisa, primeiro, o contexto teórico em que foram produzidos aqueles tipos de controles, indo do Renascimento à Contrarreforma e desta até o Iluminismo, apresentando, pormenorizadamente, os principais traços desses movimentos e a maneira através da qual incidiram sobre a produção literária. Após expor seu programa teórico para o estudo do controle do imaginário imposto aos romances procurou aplicar, de modo mais específico e detalhado, seus procedimentos em alguns romances paradigmáticos do período, que foram citados acima. Foi diante dessas circunstâncias específicas que: A dissimulação, que implicava esconder-se o esforço imposto para seu cumprimento, ‘imitava’ exatamente a regra da arte, da qual manifestamente se distanciava. A ficção possível era controlada pela ficção externa (falsidade, mentira, embromação). Dito de maneira mais explícita: os mecanismos de controle se exerciam por uma medicina homeopática, isto é, o controle era o ‘veneno’ com o qual tanto se reduzia a ficção interna, permitindo-se que circulasse desde que não irrealizasse normas substantivas, quanto se privilegiava o diálogo do faz de conta. (Ibidem, p.54. Grifos do autor).

O exercício imposto às técnicas de construção literária por tal mecanismo estabelecer-se-ia de modo implícito. No entanto, à medida em que passavam das pequenas cortes italianas do começo do século XVI para a Espanha da primeira metade do XVII e, daí, para a França absolutista da segunda metade, os mecanismos de controle do ficcional, por um lado, mostravam-se em um palco internacional e, por outro, ofereciam condições de verificar-se, ao menos em parte, o que haviam procurado esconder. (Ibidem, p. 57).

Todavia: O fenômeno do controle do imaginário só pode ser intuído a partir do instante, das décadas finais do século XVIII, em que a arte se autonomiza das instituições de que estivera a serviço. Mas, paradoxalmente, a arte, no processo de sua autonomização, não esteve motivada para repensar o processo do controle. Seu horizonte concentrava-se na visão da liberdade a conquistar (Ibidem, p. 60. Grifos do autor).

Em função disso, o controle é um instrumento político cujos efeitos são de ordem estética […]; ele tanto interfere na construção das obras em circulação como provoca o retardo no aparecimento do romance dos tempos modernos e, depois, de sua legitimação institucional. (Ibidem, p. 78).

A eficiência com que tais mecanismos envolviam-se com o processo de produção dos romances se devia também ao fato de que a “experiência da arte […] não nos dá acesso a puras imagens, mas a objetos tematizados e recebidos como imaginários” (Ibidem, p. 154. Grifos do autor). E essas questões, quando não controladas, poderiam expor as próprias fragilidades com que os mecanismos de controle aspiravam camuflar, silenciosamente, para manter, em outra extremidade, a posse dos meios de controle da esfera sociocultural.

Digno de nota sobre essa questão é o tratamento oferecido pelo autor, no capítulo O imaginário e a imaginação (Ibidem, pp. 110-155). Nesse capítulo, além de circunstanciar, historicamente, a criação desses conceitos, também procurou indicar de que maneira os mecanismos de controle e a produção literária apoiavam-se neles para mediar seus diálogos com a sociedade, assim como, manter ou alterar suas expectativas (temporais, políticas, culturais, etc.).

Afinal, como os “mecanismos de controle, por definição, mudam de acordo com os valores que os configuram”, (Ibidem, p. 195) o “fato de que o romance se tenha tornado o gênero dominante na ficção da modernidade não significa, de imediato, senão que certa configuração do controle metamorfoseou-se noutra” (Ibidem, 2009, p. 177), cujas funções, entretanto, não deixariam de corresponder as suas formas anteriores.

Nesses termos, devemos notar ainda que “o controle científico não substitui o antigo [de cunho religioso], senão que se acrescenta a seu conteúdo” (Ibidem, 2009, p. 201), pois, é certo “que a mudança de eixo do controle afeta a importância que antes tinham os gêneros e as técnicas predeterminados como modelos pela retórica, prática substituída pela atenção ao factual”. Contudo, “em situações de cunho moral, permanec[ia]m as normas do antigo controle” (Ibidem, p. 195). Por isso, não é sem sentido que o romance trate de questões morais dando-lhes novos contornos, em função de suas críticas implícitas ou explícitas à operacionalidade do sistema, de modo a tentar transpô-lo. Ao ultrapassar o sistema, o romance busca apoiar-se no acontecido – nos fatos “reais” e dignos de nota, mas também naqueles de menor significado social – como medida de representação plausível à temática desenvolvida no enredo da narrativa, assim como para se privar de formas mais incisivas de controle sobre sua elaboração, sua publicação e sua distribuição. Isso porque a “presença do controle científico limitava-se à exaltação do fato, que aglutinava agora os instrumentos que haviam sustentado o controle de orientação religiosa” (Ibidem, p. 201).

É desnecessário acrescentar que, nesta resenha, seria impossível conceder, ainda que de forma muito sucinta, o tratamento adequado à análise feita pelo autor sobre os romances paradigmáticos do período, a saber: Dom Quixote, As relações perigosas, Moll Flanders e Tristram Shandy. Para o autor, tais obras cobririam os principais momentos e questões circunstanciadas tanto pelo controle do imaginário de cunho religioso, depois científicos. Ao mesmo tempo, neste ínterim, deram-se as bases para a autonomização do discurso literário, que configuraria o amadurecimento e a afirmação do romance moderno.

Evidentemente, a escolha daqueles romances não excluiria a possibilidade de análise de outros, cuja importância o autor não deixa de indicar, mas, em função também de predisposições pessoais, deliberadamente, selecionou aqueles e não outros.

Ora, justamente, por ser um acerto de contas com sua produção anterior, cuja insatisfação o predispôs a mais esta empreitada, buscando um avanço sobre suas interpretações anteriores ao articular os mecanismos de controle do imaginário (religioso e científico) às circunstâncias que forjaram o aparecimento e a afirmação, entre os séculos XVI e XVIII, do romance moderno, este livro constitui uma importante referência deste campo temático, sendo, merecidamente, laureado com o segundo lugar no prêmio Jabuti de 2010, cujo primeiro lugar, na categoria Teoria/Crítica Literária, ficou com a obra A clave do poético de Benedito Nunes.

Por fim, destacamos que este livro ganha em substância ao ser lido na sequência de Trilogia do controle e de História. Ficção. Literatura, pois, o leitor pode acompanhar, passo a passo, os principais momentos em que se desenvolveram suas hipóteses, suas teorias e suas interpretações sobre os mecanismos de controle do imaginário e as ressonâncias desses mecanismos sobre a produção literária do período moderno e contemporâneo, em que ocorreu a afirmação do romance moderno no Ocidente. O leitor pode também evidenciar outros exemplos de controle já que, em sua Trilogia do controle, Costa Lima dá destaque à análise de outros romances e de outros autores.

Nesse sentido, valendo tanto pelo conjunto, quanto pela qualidade analítica presente neste livro, a obra de Luiz Costa Lima apresenta-se como a de poucas no país, cuja forma de interpretação segue uma constância e uma coerência teórica e metodológica, representando um significativo acréscimo sobre o entendimento de questões fundamentais a respeito da relação complexa e mutável entre formas de sociedade, formas de saberes e formas de ficção, além de aproximar os eixos da teoria literária, da filosofia e da história em uma abordagem interdisciplinar profícua para todas as áreas.

Referências

COSTA LIMA, Luiz. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

____. Trilogia do controle. O controle do imaginário. Sociedade e discurso ficcional. O fingidor e o censor. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007.

Diogo Roiz – Doutorando Universidade Federal do Paraná. E-mail: [email protected]. Rua Tibagi, 404/100 – Centro 80060-110 – Curitiba – PR Brasil.

Emaús | Alessandro Baricco

Alessandro Baricco (Turín, 1958) es considerado uno de los mejores autores actuales en el género de la novela corta, heredero de la tradición de John Steinbeck, Anton Chéjov y Thomas Pynchon, ha dejado un legado con sus novelas, entre las cuales destacan Tierras de cristal (Anagrama, 1991), Océano mar (Anagrama, 1993), Seda (Anagrama, 1996), City (Anagrama, 1999), Sin Sangre (Anagrama, 2003), Esta Historia (Anagrama, 2007), y sus textos teatrales: Novecento (Anagrama, 1994) y Homero, Iliada (Anagrama, 2004). Autor prolijo, de temáticas variadas, rigor histórico y, por sobre todo, de un una estética de estilo fino y sutileza ejemplar: Seda, con su delicadeza y sinestesia, nos presenta a un peregrino que viaja rudimentariamente a China en busca de gusanos de seda; Novecento, con la belleza de la decadencia, nos introduce en un barco que destruido transita con un pianista que interpreta hasta la muerte; Esta Historia, con presencias bucólicas que enfrentan la modernidad, mostrándonos la llegada de la carretera y el automóvil a los tranquilos parajes de una Italia olvidada; y Sin Sangre, con la dualidad del alma humana y su continua lucha entre el bien y el mal. Leia Mais

Feios – WESTERFELD (RF)

WESTERFELD, Scott. Feios. Tradução de Rodrigo Chia. Rio de Janeiro: Galera Record, 2010. Resenha de COUTO, Edvaldo Souza; GOELLNER, Silvana Vilodre. Fabricar a beleza corporal. Revista FACED, Salvador, n.19, p.125-130, jan./jun. 2011.

Não é uma coisa boa encher a sociedade de pessoas bonitas?

Yang Yuan

Numa época em que os corpos são pavoneados e festejados em todos os lugares e cada um é estimulado, de diferentes maneiras, a promover mudanças físicas e mentais, em performances cada vez mais extraordinárias, praticamente todos desejam beleza e perfeição. De preferência em acordo com as celebridades midiáticas do momento, que não cessam de promover e administrar minimamente os modos como tecnicamente constroem e cultuam a si mesmas.

As técnicas, terapias e recursos para as metamorfoses corporais se multiplicam e se popularizam. Nas revistas, TV, sites, filmes e publicidades em geral é repetido insistentemente que um mundo de beleza e perfeição está ao alcance de todos. Sob essa lógica, só é feio quem quer, não se cuida, não ama nem acaricia a si mesmo com os cosméticos e medicamentos que prometem milagres na aparência dos sujeitos, no desempenho muscular e cognitivo.

Nesse contexto, as fronteiras entre o cotidiano de milhares de pessoas, cada vez mais seduzidas pelas possibilidades do melhoramento corporal, e a ficção literária e cinematográfica, que promove os corpos turbinados, são cada vez mais tênues. Um livre e veloz trânsito entre esses universos complementares faz parte da aventura prazerosa contida no ato de pavonear-se.

Em Feios, o livro de Scott Westerfeld, a perfeição corporal não depende da vontade ou iniciativa pessoal, é lei, onde a beleza é mais que uma opção ou sorte de privilegiados. É algo obrigatório.

Trata-se do primeiro livro da trilogia do autor texano, que mescla aventura e ficção, e se tornou best-seller do New York Times e em vários países onde foi traduzido. Aqui no Brasil o livro foi lançado pela Editora Record, no recém-nascido selo Galera, que é voltado para jovens e nasceu do infanto-juvenil Galera Record.

Num futuro não distante a utópica sociedade de Westerfeld apresenta pessoas que são divididas e classificadas como feias ou perfeitas. Todos nascem feios. Até mesmo os que podem ser considerados bonitinhos são feios. Nascer feios não significa que são marcados por alguma aberração ou defeito físico e mental. Significa que são pessoas normais. Mas num mundo onde as tecnologias constroem incessantemente a perfeição, ser normal significa mesmo ser feio. Assim, os normais, isto é, os feios, nascem em Vila Feia e ficam presos em alojamentos até completarem 16 anos.

Quando os adolescentes feios completam 16 anos ganham de presente do governo a operação plástica completa, que os transformam em belos e perfeitos. Presente é modo de dizer, pois com essa idade todos são submetidos aos processos de transformação cirúrgica. A operação plástica completa inclui diversos procedimentos cirúrgicos e medicamentos de última geração para corrigir as feições consideradas indesejadas. A pele é trocada por outra e adeus espinhas e manchas. Os músculos são modelados e a gordura sugada para sempre. Os ossos são substituídos por uma liga artificial, mais leve e resistente. Os olhos, cortados a laser para se obter uma visão perfeita, recebem implantes reflexivos sob a íris, tornam-se grandes; os lábios cheios e volumosos. Os ossos são amassados, esticados ou recheados até atingir o formato certo.

Os dentes são trocados por cerâmica resistente como a asa de um avião e tão brancos como porcelana. Desse modo, as pessoas feias são transformadas em perfeitas, tornam-se borbulhantes e passam a viver felizes em Nova Perfeição.

Nova Perfeição, a morada dos belos tecnicamente construídos, fica defronte a Vila Freia, do outro lado do rio. É o lugar onde os perfeitos vivem, bebem, pulam de paraquedas, voam a bordo de pranchas magnéticas e se divertem o tempo todo, em intermináveis festas, orgias e bebedeiras. Moram em casas lindas e ultraconfortáveis e se dedicam ao divertimento em tempo integral. Usam roupas maravilhosas, sempre da última moda, são populares, queridos e bajulados, afinal são belos e têm tudo o que desejam. Namoram as pessoas mais lindas e incríveis. Além de belos são ricos. Não precisam se preocupar com trabalho e problemas pequenos e limitados como subsistência, educação e segurança, coisas típicas dos imperfeitos, dos feios. A cidade oferece bastante liberdade, deixa que os jovens aprontem, desenvolvam sua criatividade e independência.

Nova Perfeição é a Cocanha dos nossos tempos ultramodernos.

A Cocanha é uma utopia medieval. Numa época em que a fome ameaçava sempre as pessoas e o trabalho duro enfraquecia multidões, o País de Cocanha é o lugar do sonho, da perfeição, da abundância, da prosperidade e do prazer, da liberdade e do gozo eternos. A Cocacha é a terra abençoada onde corre leite e mel, rios de vinho estão por toda parte, as frutas caem maduras dos pés, os peixes saem fritos dos rios e mares. Queijos e pães são obtidos sem nenhuma dificuldade ou esforço. A Cocanha é um país tão rico que bolsas cheias de moedas ficam jogadas pelo chão. As pessoas não são vis, são virtuosas e corteses. É o lugar das festas e das orgias.

São quatro páscoas por ano, quatro festas de São João, quatro natais, quatro carnavais. Já a quaresma, só tem uma a cada quatro anos. Ninguém compra ou vende, não existe trabalho, cansaço, aborrecimentos, dores de qualquer espécie. As pessoas são sempre belas, jovens e saudáveis. Vivem para satisfazer o seu prazer, como por lazer. De certo modo, a Cocanha, esse paraíso de delícias e perfeição, remete ao mito judaico do Éden e também ao mito do Eldorado, tão difundido na época da conquista das Américas.

Na cibercultura, na era da sociedade em rede, das pessoas conectadas em tempo real, o mito da Cocanha medieval é atualizado em Nova Perfeição, o lugar dos corpos minimamente construídos e potencializados em acordo com os mais rigorosos critérios de beleza, da memória modificada para apagar vestígios de tristezas e dores da dura vida de pessoas insignificantes, isto é, de feios.

Nova Perfeição existe por causa da medicina avançada, de medicamentos de última geração capazes de alterar corpos, memórias e inteligências, para que todos desfrutem de uma vida borbulhante e incessantemente feliz.

Tally Youngblood é a heroína dessa saga dos corpos perfeitos, que encarna as aventuras, que permitem uma pessoa cruzar as fronteiras entre os feios e bonitos, promover as melhorias técnicas na aparência e na interioridade de si. Em Feios, Tally ainda é uma garota que espera ansiosamente completar os 16 anos para ser finalmente transformada em perfeita. Enquanto sofre a longa espera, tudo que deseja é abandonar a vida sem graça e seu corpo estranho de feia. Costuma passar os dias pensando em todos os visuais possíveis para assumir quando finalmente se tornar perfeita. Nessa enfadonha espera, enfrenta muitas madrugadas no seu alojamento a contemplar o outro lado do rio, a Vila Perfeição, onde alguns amigos que já cruzaram a fronteira desfrutam de uma vida incrível, cheia de aventuras e prazeres. E o mais importante, é que deixaram para trás seus corpos feios e podem viver felizes com suas novas formas físicas e mentais sempre belas e sedutoras.
De acordo com Tally, “duas semanas de queimaduras horríveis serão compensadas com uma vida inteira de aparência maravilhosa” (p. 100).

Enquanto espera o tempo estipulado por lei para tornar-se perfeita, Tally conhece Shay, uma feia que não está nem um pouco ansiosa para completar 16 anos e viver a sua metamorfose cirúrgica.

O que Shay deseja é fugir de Vila Feia e do destino de ser bela em Vila Perfeição. Ela considera a beleza construída horrível. Trata- -se de uma adolescente rebelde que não aceita o destino traçado pelas autoridades e quer viver do seu modo a sua própria aventura, sendo feia para sempre, pois é capaz de qualquer coisa para “fugir à tirania da beleza” (p. 133). Tem um plano para fugir dos limites da cidade e se juntar à Fumaça, um grupo fora da lei que sobrevive nas ruínas de uma vila perdida na floresta e sobrevive retirando o sustento da natureza.

O conflito entre natureza e técnica se coloca aqui de modo curioso. Tally não consegue entender como alguém pode desejar ser feia para sempre, querer voltar para a natureza, plantar, caçar, queimar árvores para se aquecer, matar animais para se alimentar, beber água dos córregos sem passá-la pelo purificador, enfrentar doenças, viver pouco. Como alguém pode desejar abrir mão do conforto tecnológico e da vida fácil nas cidades e preferir o campo sempre hostil? Com a fuga da amiga Tally, é chantageada pelos Especiais, uma espécie de polícia altamente equipada que tudo vê e controla: deve se unir a eles para derrotar de vez os enfumaçados ou vai ser condenada a ficar feia para sempre. A garota vive muitos dilemas. Sente-se curiosa pelo estilo de vida na Fumaça, quer conhecer pessoas que amadurecem naturalmente depois dos 16 anos, gente de fisionomia decadente, que preserva uma verdade enrugada, venosa, esmaecida, grosseira, terrível, mas ao mesmo tempo almeja sua beleza perfeita. Das escolhas que faz dependem as muitas aventuras entre os feios e os bonitos, entre o universo da natureza e o das técnicas avançadas.

A viagem para a distante fumaça é uma verdadeira odisseia cheia de enigmas que precisam ser desvendados. O deslocamento é feito sobre prancha voadora que segue veloz sobre o rio e a floresta, com o uso de jaquetas inteligentes que regulam a temperatura do corpo e ajuda na tomada de decisões, pois indica caminhos; com a facilidade dos alimentos sintéticos e pingentes rastreadores.

Para Tally, apesar do fascínio, não é fácil se adaptar e viver entre os enfumaçados. “Ela nunca tinha visto tantos rostos tão diferentes. Bocas, olhos e narizes de todos os formatos possíveis, combinados de um jeito absurdo, em pessoas de todas as idades.

E os corpos? Alguns eram monstruosamente gordos ou estranhamente musculosos ou perturbadoramente magros. E quase todos apresentavam proporções desequilibradas e feias. No entanto, em vez de demonstrarem vergonha por causa de suas deformidades, as pessoas davam risadas, trocavam beijos…” (p. 193-194).
Aos poucos, a protagonista percebe diferenças abismais entre a Vila Perfeição sonhada e o cotidiano da Fumaça. Na cidade as coisas são sempre descartáveis e substituíveis. Ali no mato, os objetos e as pessoas ficam velhos e carregam suas histórias em amassados, arranhões, rasgos e rugas. Na cidade vive uma massa de corpos modificados, perfeitamente sorridentes e iguais, voláteis, programados e fáceis de controlar, pois têm os cérebros e o sistema nervoso recondicionados pelas cirurgias e medicamentos. Na floresta tem-se a diversidade corporal, as controvérsias, discordâncias, os diferentes modos de ser e viver. Na cidade as pessoas perfeitas são rastreadas, monitoradas e orientadas cada minuto do dia, seus pensamentos são programados, seus sentimentos são manipulados.

Na floresta enfrentam livremente as vicissitudes da vida, podem tomar suas próprias decisões, sofrer e corrigir as escolhas erradas, encher-se de júbilo com as decisões acertadas.

Tally também percebe aos poucos que existe um certo romantismo em relação à natureza, à vida na floresta. Talvez essa discussão de fundo sustente muito do fascínio de milhares de pessoas pelo livro de Westerfeld. A sociedade tecnológica não constrói apenas as cidades, mas igualmente a natureza. De certo modo a natureza é uma mentira. Não há natureza, o que contemplamos sempre é o artifício. A natureza é uma fabricação da cultura, da cultura tecnológica, que naturaliza em nós seus muitos e sedutores artifícios. É natural do homem produzir artifícios, refazer o mundo, modificar e recriar a si mesmo. Por mais que amasem a natureza os enfumaçados nasceram em cidades, eram todos produto da civilização tecnológica. Talvez por isso, uma vez rastreada, Tally leva a polícia especial para destruir a Fumaça. E volta para a cidade, sem dramas, para, finalmente, submeter-se à cirurgia e ser perfeita, para sempre.

O livro Feios, de Westerfeld, é um importante e divertido relato literário de corpos inscritos em acontecimentos tecnológicos.

Rompe com o olhar naturalista sobre o qual muitas vezes o corpo é observado, explicado, educado e enfatiza sua condição cultural, suscetível a inúmeras intervenções de acordo com o desenvolvimento tecnológico e científico de cada época.

No livro, o aperfeiçoamento da natureza e dos corpos é sempre criticado baseado numa convicção estranha de que as tecnologias padronizam os corpos e os pensamentos. Ressoa aqui uma certa visão negativada das transformações tecnológicas sobre o mundo e sobre nós mesmos. Talvez essa convicção estranha do autor sirva apenas para alimentar as tramas da série e nos volumes seguintes seja possível observar que determinadas tecnologias médicas e de comunicação, que na atualidade promovem uma suposta padronização, num futuro próximo sejas empregadas para produzir intensas diferenças, renovados modos de ser e viver. Talvez, nesse contexto, natureza e técnica, corpos feios e bonitos, deixem de ser realidades opostas e conflituosas. Talvez o futuro da biotecnologia seja menos sombrio e promova o equilíbrio entre essas realidades, integradas e dinâmicas, em que os sujeitos alegremente reelaborem a si mesmos em encantadas e criativas aventuras existenciais.

Edvaldo Souza Couto – Professor Associado na Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia – UFBA. E-mail: [email protected]

Silvana Vilodre Goellner – Professora Associada na Escola de Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. E-mail: [email protected]

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A Caverna – SARAMAGO (C)

SARAMAGO, J. A Caverna. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. Resenha de: LEÃO, Andreza Marques de Castro. A caverna. 206 Conjectura, Caxias do Sul, v. 15, n. 3, set./dez. 2010.

A presente resenha tem por foco apresentar o livro intitulado A Caverna, de autoria do conhecido escritor português José Saramago. É mister esclarecer que se trata de um romance, com personagens fictícios, como o autor relata, e que pode trazer inúmeras contribuições ao estudo da História da Educação, traçando, também, relevantes e instigantes articulações com a Filosofia da educação.

Em relação à linguagem empregada, o romance apresenta características peculiares, que são o uso ínfimo, até mesmo a abolição completa dos sinais gráficos de pontuação, procedimento esse que aproxima a linguagem escrita da oral.

Quanto aos personagens do enredo, há cinco principais: Cipriano Algor (oleiro); Marta (filha de Cipriano); Marçal Gacho (genro do oleiro); Isaura (estudiosa, viúva apaixonada por Algor); e Achado (um cão com atributos quase humanos).

A história se passa no Centro (de fato esse pode ser tanto um dos locais do enredo, quanto um dos personagens centrais); na olaria, que é um lugar de transição entre cinturões industriais e o cinturão verde, que fica próximo de uma cidade, porém é um local não urbano onde moram Cipriano, Marta, Marçal, quando está de folga, e na vila em que reside Isaura.

O foco central do enredo é o dilema de Cipriano: mudar-se ou não com a filha e o genro para o Centro quando esse fosse promovido à guarda residente.

Cipriano, como citado anteriormente, é um oleiro de profissão, com tradição familiar de artesões, que tem 64 anos e um modo rude de encarar as pessoas e as situações corriqueiras; talvez tal fato seja decorrente da profissão, que lhe exigia ter de amassar e cozinhar o barro, ou seja, trabalhar com coisas brutas. Não obstante, é uma pessoa de grande sensibilidade, fazendo sempre reflexões sobre a vida.

Marta é auxiliar e companheira do pai, mulher de muitas ideias. Ela é mais otimista que ele, embora, não tanto quanto Marçal em relação à mudança para o Centro, visto que receia o que pode ocorrer com seu pai. Fica grávida no início do livro e continua a auxiliar o pai mesmo durante a gravidez.

Marçal é segurança do Centro. Na realidade, é guarda residente, e não entende como Cipriano temia em ir morar em outro lugar que não no Centro. Gacho tem problemas com seus pais, e seu maior sonho é ser promovido no serviço e, cada vez mais, participar e ser envolvido pelo Centro. Seus pais também queriam morar no Centro com ele, mas devido à impossibilidade de esse pedido ser atendido, visto que os apartamentos lá são pequenos, não podendo comportar Marta, Cipriano, Marçal, o futuro filho, e mais os pais desse, há um desentendimento familiar. Ambas as famílias não cultivam um bom relacionamento em vista de um acidente que Marçal teve no forno da olaria, na época em que ainda namorava Marta, que lhe ocasionou uma cicatriz oblíqua que ele tem em uma das mãos.

Isaura é uma viúva da região onde Cipriano mora e por quem ele nutre uma grande estima. Todavia, ele luta contra esse sentimento. Em relação ao Centro, para ela é uma entidade distante e que pouco afeta sua vida. Após ter ficado viúva, procura emprego na vila, e passa a trabalhar numa loja. Talvez tenha sido por essa atitude que Cipriano tenha se apaixonado por ela.

Achado é o mais “humano” dos cães. Foi encontrado num dia de chuva e por seus modos quase humanizados cativou o carinho de Cipriano e Marta. É ele que escuta os lamentos de Cipriano e procura entender os difíceis e contraditórios sentimentos humanos. “o Achado é um cão consciente, sensível, quase humano.” (p. 349).

No enredo, os personagens, além de terem nome próprio, também são chamados pelo apelido característico. Quanto aos de Cipriano e Marçal, chama a atenção os seus respectivos significados. Algor significa frio, e Gacho, a parte do pescoço do boi em que se assenta a canga. Essa alusão feita por Saramago descreve bem e de modo sucinto a característica principal de tais personagens à luz da história: Algor se mantém frio perante o Centro, receoso quanto a ter de morar nele; por outro lado, Gacho se deixa escravizar pelo Centro, se submetendo a ele. Assim, ambos apresentam visões opostas de Centro: o primeiro de opressão, e o segundo, de submissão.

O livro inicia a história narrando a ida de Cipriano Algor ao Centro, local em que levava suas mercadorias: louças de barro para entregar, pois era fornecedor. No entanto, se confronta com uma árdua realidade: suas mercadorias não são mais “aceitas” pelo Centro, visto que a venda das louças tinha baixado, pois apareceram louças de plástico, as quais eram mais baratas, não quebravam e eram mais leves, havendo uma maior demanda por esse tipo de louça do que pelas de Algor, ou seja, seus produtos não atendiam mais aos anseios do mercado. Diante disso, Cipriano fica perplexo e contesta o chefe das vendas quanto às suas mercadorias: “Não é razão para que se deixe de comprar as minhas, o barro sempre é barro.” Contudo, o chefe responde: “Vá dizer isso aos clientes, não quero afligi-lo, mas creio que a partir de agora a sua louça só interessará a colecionadores, e esses são cada vez menos.” (p. 23).

Cipriano fica indignado com essa situação, porquanto suas mercadorias são desvalorizadas. Sabiamente Marta compreende essa situação, problematizando que, na verdade, não são os gostos das pessoas que determinam o que o Centro deve produzir, é o contrário: “Os gostos do Centro que determinam os gostos de toda a gente.” (p. 42).

Pensativo, Algor concluiu que se o Centro persistisse na averiguação dos novos produtos que estava sendo realizada, a olaria talvez fosse apenas a primeira vítima. De fato, ele entendeu que as inovações tecnológicas estavam ganhando espaço, ao passo que as atividades ditas “manuais”, como a sua de oleiro, não mais teriam lugar nesse contexto, por isso, ele se vê como uma espécie em extinção.

Cabe pontuar que dentre as reflexões que Saramago faz, deixa claro, na história, que a modernização vai extinguindo aos poucos as profissões.

Com a notícia de que o Centro não mais adquiriria seus produtos, sendo tal decisão irrevogável, e sabendo que estava proibido de fazer negócios diretamente com os consumidores, Cipriano começa a ficar angustiado, pensando em como viverá do seu trabalho se o Centro, além de tudo, não o autoriza a vender seus produtos a outras pessoas, tendo de abandonar suas mercadorias no campo, num local escondido.

Com esse episódio de recusa de suas mercadorias, desgostoso, ele passa a refletir sobre sua vida e questões essenciais envolvidas, como a sobrevivência. A partir disso, analisa criticamente a condição de vida do trabalhador assalariado, que aceita o destino desse labor:

Cipriano passa de uma hora para outra [a] desmerecer a reputação do operário madrugador ganhada numa vida de muito trabalho e poucas férias. Levanta-se já com o sol fora, lava-se e faz a barba com mais vagar que o indispensável a uma cara escanhoada e a um corpo que se habituou à limpeza, desjejua pouco mas pausado, e finalmente, sem acréscimo visível no escasso ânimo com que saiu da cama, vai trabalhar. (p. 55).

Algor percebe o contexto global em que está inserido, em que uns exploram, e outros são os explorados. Portanto, compreende que uma vez que o indivíduo não se enquadra em nenhuma dessas condições, isto é, fica fora desse sistema, ele não tem como sobreviver.

Devido à sua angústia, Cipriano foi ao cemitério visitar a lápide de sua falecida esposa, que, há três anos, o havia deixado. Nesse local, encontra a viúva Isaura (estudiosa, mulher de 45 anos), que relata a Algor que queria comprar um cântaro. Na ocasião, ele fala que faria melhor, daria um a ela, o que ele fez no dia seguinte, quando a viu. Esse encontro com Isaura despertou a atenção dele por ela.

Após esse episódio, surge na olaria um cão. Em vista de seu súbito aparecimento, lhe deram o nome de Achado.

Em decorrência da situação difícil de Cipriano, Marta sugeriu que fizessem bonecos de barro como produtos substitutivos das louças de barro. Ambos se empenham na confecção de modelos a serem mostradas.

Assim, Cipriano revela a ideia ao chefe de vendas do Centro. Ao apresentá-la, o chefe não lhe deu resposta imediata acerca da aceitação, contudo, ficou de pensar no caso. Em vista disso, Algor conclui que “para o Centro não tem importância uns toscos pratos de barro vidrado ou uns ridículos bonecos a fingir de enfermeira, esquimós e assírios de barba, nenhuma importância, nada, zero”. (p. 99). Todavia, o Centro se propôs a fazer uma encomenda experimental dos bonecos, mas a possibilidade de novas encomendas dependeria do modo como os clientes receberiam tal produto, pois “para o Centro… o melhor agradecimento está na satisfação dos nossos clientes, se eles estão satisfeitos, isto é, se compram e continuam a comprar, nós também o estaremos”. (p. 130). Desse modo, os bonecos seriam submetidos a uns inquéritos orientados sob duas vertentes: Situação prévia à compra, isto é, o interesse, a apetência, a vontade espontânea ou motivada do cliente, em segundo lugar, a situação decorrente do uso, isto é, o prazer obtido, a utilidade reconhecida, a satisfação do amor próprio, tanto de um modo de vista pessoal, como de um ponto de vista grupal. (p. 239).

Devido à não mais aceitação dos pratos de louça que fornecia ao Centro e ao receio de não receptibilidade dos bonecos por esse, Cipriano, apesar de sua luta e recusa internas de ir morar ao Centro, decide se mudar com a filha e o genro para lá, na ocasião em que esse fosse promovido. Saramago mostra, de modo nítido, no enredo, que essa atitude de Cipriano é causada pelo desgosto que sentia, ao se ver sem outro modo de sobreviver. Isso ocasiona perplexidade mental, visto que “teria de ir viver para o mesmíssimo Centro que acabava de lhe desprezar o trabalho”. (p. 197). Acrescente-se a isso, que sua autoestima também fora abalada, uma vez que se considerava um empecilho, um estorvo, um inútil para a filha e para o genro.

Assim, com a nomeação de Marçal, Cipriano vai com ele e a filha morar no Centro, num pequeno apartamento que é cedido aos guardas e que se localiza dentro do Centro. Porém, antes da mudança, Algor deixa sob a incumbência de Isaura o cuidado de Achado, porque o Centro não aceita animais. Apesar de ele, durante todo o enredo, lutar contra o sentimento que nutre por ela, nessa ocasião, declara seu amor e lamenta não ter nada pra lhe oferecer, pois não sabendo como poderia sustentar a si próprio quanto mais sustentaria outra pessoa. Então, decide viver no Centro.

Sou uma espécie a caminho da extinção, não tenho futuro, não tenho sequer presente… não tenho nada que lhe oferecer… a olaria fechou e eu não aprendi a fazer outra coisa… não tenho mais remédio. (p. 300).

Após o inquérito solicitado pelo Centro para avaliar os bonecos de barro de Cipriano, eles foram rejeitados. Assim, a última esperança de Algor de manter em funcionamento a olaria, morria naquele momento.

Cipriano se vê refém do pequeno apartamento no Centro. Como estava sem trabalhar, sem ter o que fazer, decide começar a conhecer melhor o Centro. Passeia e se aventura como se descobrisse um mundo novo. Nas suas andanças, numa das ocasiões, ele escreve as frases que ficam expostas nos letreiros das lojas e as lê para a filha e o genro, se apercebendo do vazio que o Centro representava, em que tudo se resumia a consumir e incitar a vontade dos clientes.

Não obstante, um episódio vai modificar os acontecimentos da família Algor. Desde que se mudaram para o Centro, estavam sendo realizadas obras de construção em um depósito frigorífico no subsolo. Entretanto, houve um incidente, e a obra precisou ser parada para que fosse avaliada por especialistas. Marçal foi informado de que a obra colocou à mostra no piso, algo estranho. Para averiguar tal fato, foram chamados geólogos, arqueólogos, sociólogos, até mesmo médicos legistas. Ao tomar conhecimento desse fato, o que chamou a atenção de Cipriano foi que, além desses profissionais terem sido requisitados, os guardas deveriam manter essa informação em sigilo.

Em decorrência desse acontecimento misterioso, Cipriano decidiu, durante o turno da madrugada de Marçal ir às escondidas tentar descobrir o que havia no buraco de 34 metros de profundidade que precisava ser tão protegido. Apesar do receio do genro de perder o emprego por essa aventura do sogro, ele lhe indica o caminho que devia seguir para desvendar o segredo. Assim sendo, com uma lanterna nas mãos e muita audácia, entra na gruta. Lá Cipriano encontrou algo que o abalou emocionalmente: seis corpos humanos, três homens e três mulheres, atados a um banco de pedra. “Um violento tremor sacudiu os membros de Cipriano Algor, a sua coragem fraquejou como uma corda.” (p. 331).

Ao sair da gruta, chorou sobre os ombros do genro. Perplexo, indaga-o e tem uma conversa com esse: Sabes o que é aquilo, Sei, li alguma coisa em tempos, respondeu Marçal, E também sabes o que o que ali está, sendo o que é, não tem realidade, não pode ser real, Sei, E contudo eu toquei com esta mão na testa de uma daquelas mulheres, não foi uma ilusão, não foi um sonho, se agora lá voltasse iria encontrar os mesmos três homens e as mesmas três mulheres, as mesmas cordas a atá-los, o mesmo banco de pedra, a mesma parede em frente, Se não são os outros, uma vez que eles não existiram, quem são estes, perguntou Marçal, Não sei, mas depois de os ver fiquei a pensar que talvez o que realmente não existe seja aquilo a que damos o nome de não existência. (p. 333).

Cipriano, ao relatar esse fato à filha, compreende que, na verdade, os corpos “essas pessoas somos nós… somos nós, eu, tu, o Marçal, o Centro, tudo provavelmente o mundo”. (p. 334-335). Após essa descoberta, ele decide deixar o Centro, salvar a sua vida e voltar para a Olaria. Lá chegando, tem um encontro emocionado com Isaura e lhe conta os últimos acontecimentos do Centro, e o motivo de ter voltado. Nessa ocasião, decide finalmente tê-la como sua companheira.

Após uns dias do ocorrido, Marçal pede demissão ao Centro. O fato de ter visto corpos o acordou para a realidade alienante em que estava vivendo. Quando questionado acerca do motivo que o levou a tomar tal decisão, ele responde: “Quem não se ajusta não serve e eu tinha deixado de ajustar-me.” (p. 347).

Desse modo, Cipriano, Marta, Marçal e Isaura decidem deixar a olaria também, ir em busca de uma nova vida, levando com eles o Achado.

Antes disso, Algor posiciona os bonecos de barro em frente da porta de sua casa. Assim, com a chuva, eles voltariam do barro ao pó. Nesse sentido, a caverna representa a condição do homem no contexto atual, cuja trajetória vai, tanto no plano denotativo como no conotativo, também do barro ao pó, tal qual objetos que, quando não são mais úteis, são descartados.

No momento da partida, ao passar pelo Centro, descobrem que até mesmo da descoberta dos corpos o Centro se apropria para tirar proveito: “Brevemente, abertura ao público da caverna de Platão, atracção exclusiva, única no mundo, compre já a sua entrada.” (p. 350).

No enredo, Cipriano representa a pessoa que consegue ser arrastada para fora da caverna e enxergar a realidade. Ele é o único que consegue perceber a preponderância econômica do Centro Comercial.

Dessa forma, podemos compreender por que motivo Saramago intitulou sua obra com esse título. A caverna, nesse caso, é o Centro Comercial, ou um shopping, local em que não há janelas, e só se pode ver o seu interior.

O Centro exerce grande influência na vida das pessoas e pode guiar os gostos das pessoas ao que convém ou não; incitar as vontades para consumirem, é claro, no Centro; instigar a cobiça das pessoas por quererem ter mais e a qualquer custo, entre outros motivos. Tudo gira em torno do Centro, e os que são seus concorrentes sofrem por estar se rivalizando com tamanho sistema. “Para o Centro só existe um caminho, o que leva do Centro ao Centro.” (p. 233).

Ao escrever A Caverna, Saramago nos exorta a nos identificar com Cipriano Algor, o homem comum que adquire sabedoria, que se liberta, buscando meios paliativos para se sustentar no Centro, mas que não se deixa cegar por ele.

Em suma, embora o livro já tenha dez anos, trata de um tema atual: a diferença entre dois mundos distintos: o Centro Comercial, que é exigente, competitivo, e que, na realidade, representa o capitalismo em sua fase moderna; e Cipriano, oleiro, que representa o modo simples da vida, além das inovações.

Há um convite explícito ao leitor para que reflita sobre as condições da nossa sociedade, para as consequências advindas da modernização do capital e sobre a nossa atitude perante tudo isso: se temos percebido ou se estamos estáticos, cegos, sendo passivamente envolvidos pela modernização.

Para Saramago, é possível escapar dessa caverna chamada capitalismo, como fez Cipriano que não se moldou a esse Centro, tendo uma visão crítica sobre ele, que aumentou quando conheceu de fato esse Centro quando lá morou.

Referência

SARAMAGO, J. A Caverna. São Paulo: Cia. das Letras, 2000. 352 p.

Andreza Marques de Castro Leão – Pós-Doutora no Departamento de Psicologia da Educação. Faculdade de Ciências e Letras da Unesp/Araraquara/SP. Bolsista da Fapesp.

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Voz narrativa en Breath, Eyes, Memory – DANDICAT (M-RDHAC)

DANDICAT, Edwidge. Voz narrativa en Breath, Eyes, Memory. Memorias – Revista Digital de Historia y Arqueología desde el Caribe, Barranquilla, n.13, jul./dez. 2010.

Ahogadas, escupimos el oscuro Peleando con nuestra propia sombra el silencio nos sepulta.

Gloria Anzaldúa

Qué hay en el silencio del título de esta novela y a qué interrogantes responde son las inquietudes a las que este trabajo contestará, pero primero un poco del contexto en que ella se desarrolla. Históricamente, las mujeres se han situado más cerca de la palabra que del silencio. Hablar, cantar y susurrar siguen siendo las formas en que una mujer aprende y practica el arte de comunicarse. En su trabajo en la esfera pública y privada.

Las mujeres de descendencia africana en el Caribe, han estado envueltas en la fuerza de trabajo dentro y fuera del hogar lo cual ha sido una contribución de suprema importancia en la manutención de sus familias. Mucho de este trabajo ha sido arduo, estereotipado pero no reconocido. Durante la esclavitud, ellas trabajaron junto a los varones en los cañaduzales. Inclusive durante los periodos de emancipación y finales del colonialismo en la región, sus actividades eran mal pagadas, consideradas de bajo status y segregadas de acuerdo a su sexo. Muchas de estas estaban relegadas al renglón de la economía informal. Las mujeres del campo en Haití, controlan la distribución productos allí y en la ciudad, un papel que les debe garantizar una voz fuerte y poder considerable en las actividades económicas y sociales de la comunidad. Acerca del papel de la mujer haitiana en su país, Karen McCarthy Brown dice que “her freedom and responsabilitiy are increased by the fact that it is woman who run the markets.. .[they] sell such things as baskets, candies, and bread along with the family farm produce (125).”

De manera que la producción de bienes de consumo ha estado en los hombros de la mujer haitiana desde hace más de dos siglos pero esto no se manifiesta en capacidad de manejar sus propias vidas. El silenciamiento de sus contribuciones ha sido permanente y de la misma manera sus manifestaciones en el plano sexual también. Aunque el libro dedica su mayor parte a contar la historia de Sophie, quien funciona como eje del texto y se dedica a relatar cómo la protagonista emprende su jornada desde Haití a Nueva York buscando significado, un lenguaje de afirmación que no encuentra en una sociedad más amplia después de confrontarla. Así que llega buscando respuestas en un grupo de apoyo de mujeres. Esta historia es la de una mujer en una cadena matriarcal y a eso debe su efectividad. Su experiencia es inseparable y responde en gran medida a su condición femenina. Pero Sophie Caco es el eslabón en una cadena que extiende sus ramas no solo a su madre y abuela, sino directa e indirectamente hacia su tía Atie y su amiga Louise, y otras mujeres de su vida en Haití. Es curioso anotar que todas estas relaciones se desarrollan en la isla y no existe ningún otro personaje femenino -aparte de la madre Martina- en Nueva York quien es responsable de la llegada de Sophie a los Estados Unidos.

Lo importante aquí es traer a la luz y darle voz a la pareja Atie y Louise que funcionan como representación de la identidad lesbiana en la novela. Esta última es la encargada de enseñarle a la primera el francés. Dice Léspoua fè viv: “[Atie’s] relationship with Louise is, in fact, subtly coded as a lesbian love relationship” (128). Aquella desafía las convenciones sociales, por alejarse intencionalmente de su madre, Ifé, para establecer una relación primaria con Louise, aunque abiertamente no se menciona una relación sexual entre las dos, existen numerosas escenas en las cuales esta sale al atardecer y regresan juntas de mañana. En una discusión entre Ifé y Atie por ese motivo, se establece el conflicto y su naturaleza. Aquella dice: “The way you go about free in the night, one would think you a devil,” a lo que esta responde “The night is already in my face, it is. Why should I be afraid of it” (107).

Además, para describir su relación, Louise dice en la novela que ellas “are like milk and coffee, lips and tongue. We are two fingers on the same hand. Two eyes on the same head” (98). La imagen que esta descripción trae a la lectora es de erotismo al mezclar leche y café en un abrazo imposible de separar, labios y lengua reminiscencia de clítoris y vulva, dedos de la misma mano que proveen placer y dos ojos de la misma cabeza en un cometido por mirar, observar, aprehender el mundo de una forma colaborativa. Es interesante anotar, que si aquella es la encargada de dar una visión global su relación en prosa y creole, Atie integra en sus escritos lírica y creole, cubriendo entre las dos el terreno de la creación literaria que hace posible una integración de esa lengua como determinante, primaria en su propia expresión.

Debido a la gran difusión de la experiencia del exilio y al sentimiento de degradación simbólico y físico del suelo haitiano, los escritores han tenido que luchar con ese conflicto de identidad móvil y una geografía imaginativa en la cual establecer un sentido de pertenencia. La noción literaria tradicional que ve al exilio simplemente en términos de desaparición, alienación y la nación como paraíso perdido ha cambiado. En Breath, Eyes, Memory creole fácilmente reconocible es utilizado en el proceso de comunicación de las mujeres. Aunque “to this day, is often referred to as a bastard tongue, denigrated as a lesser language of French, even though it has certainly always been the dominant language of the country” (fè viv 129). De allí la importancia de su uso por parte de Atie, quien sirve de interprete del texto. Al decidir aprender francés, se apropia de la lengua extranjera, traduce sus anotaciones -que Louise llama poemas- toma textos que son adaptaciones del francés al creole y por medio de esas traducciones-adaptaciones establece la conexión de ambas lenguas con la expresión de sus deseos sexuales por Louise.

She speaks in silent voices, my love
Like the cardinal bird, kissing its own image.
Li palé vwa mwin,
Flapping wings, fallen change
Broken bottles, whisling snakes
And boom bang drums.
She speaks in silent voices, my love.
I drink her blood with milk
And when the pleasure peaks, my love leaves (134-5).

Como se puede observar ambas lenguas son usadas en el poema y así como parte del creole no puede traducirse ni expresarse por completo en el otro, el amor de Atie por Louise tampoco es abiertamente manifestado en el texto. Se da entonces una correspondencia definitiva entre lengua bastarda y amor entre dos mujeres no permitido por su entorno. Parte importante de los vocablos escogidos para hablar de su cariño -negativamente sancionado por la sociedad-, están en una muy cercana relación con la idea de separación y abandono, lo cual sucederá al fin de la novela, cuando Louise finalmente consiga el dinero con la venta de un cerdo y se traslade a los Estados Unidos. Son metáforas de no-aceptación de su unión en su comunidad y que Ifé señala constantemente a lo largo de la novela: “That Louise is trouble.. .everything from her shadow to that pig is trouble” (137).

Para Henry Louis Gates,

Black vernacular English is a healthy, living form of language, one which, shows the signs of people developing their own grammar and one which manifests various linguistic signs of separate development.it reflects a larger social picture (20).

Esta idea es aplicable al creole de Haití ya que también presenta la renuencia a disminuir, menos a desaparecer a pesar de todos los esfuerzos por instituir francés como la única lengua allí. La descripción de lo haitiano no sería completa, si no se incluye el creole ya que este encarna el desarrollo de una lengua propia y además es manifestación cierta de lo social en ese país.

La mitificación de Haití adquirió una especial agudeza durante la dictadura de los Duvalier. En respuesta, en Haití se intenta escribir su existencia, usar la palabra escrita para defenderse contra el trauma y la realidad. Habiendo sido deformados y condenados al ostracismo corporal, los individuos se resarcen por medio de la imaginación. Esto es lo que Atie hace al reservar un espacio físico y sicológico que preserva su habilidad para lidiar con la realidad por medio de su poesía. Si se toma su personaje y capacidad para producir una voz en el ámbito literario como una respuesta al silencio de la escritura femenina, ella es también paradigma de la mujer que escribe. A propósito de la creación de un espacio más amplio para literatura hecha por mujeres y su difusión, dice bell hooks que “anyone who teaches courses on black women’s fiction knows how difficult it is to find the works of black women” (142). hooks reconoce y maneja muy de cerca esta problemática ya que la accesibilidad y consecución de esos textos tiene que ver con las casas editoras y su decisión de publicar o no una obra de ficción y darla a conocer a un público más allá del entorno inmediato. Agrega, “These systems of domination operate in such way as to ensure that only a very few fiction books by black women will be published at any given time” (143). Este manejo de lo que se da a conocer a una audiencia mayoritaria por parte de una editorial, es aplicable también -guardadas las proporciones- a la situación de Atie y el propósito de la sociedad de acallar su producción literaria y negarle la posibilidad de hacerse oír a nivel macro. Aunque su audiencia inmediata -Ifé- intenta suprimir su voz, su hermana y sobrina están presentes en el momento en que los diálogos toman lugar, se da una tendencia a no entender -por lo menos conscientemente- los significados implícitos en las acciones y escritos de Atie, ella continúa escribiendo y luchando por mantener los espacios conseguidos al alejarse de lo tradicional en su voz y vida personal. Ella no asume el papel de víctima ni es posible por parte de la lectora, tomarla desde ese punto de vista. Atie consigue acrecentar su poderío “by sharing knowledge and resources, not by bonding on the basis of being victims” (Killing Rage, 52). Aunque existe una larga historia de imágenes de victimización en literatura pero ni el señalamiento, ni el rechazo la convierten en chivo expiatorio de las culpas de una sociedad en crisis. No se puede vivir plenamente pretendiendo utilizar ese papel y esa es la respuesta del personaje a ese intento. Ella es parte de una tradición que se manifiesta en la lucha constante por no abandonarse al silencio. Su imagen evoca un sentimiento de promesa y posibilidad, una visión de libertad que reta el status quo, toma el riesgo de ser rechazada por expresarse.

En una colección de escritoras caribeñas editada por Myriam J.A.

Chancy, aparece un cuento de Danticat, perteneciente a su primer libro de historias cortas, que significativamente es el último en el orden de dicha antología, en una suerte de singularización de la importancia de la obra de esta autora. Ella es también, eslabón del canon que reclama la expresión de lo erótico, y una parte integral de su demanda por obtener acceso sin restricción al mundo de la escritura y de lo sexual, cualquiera que sea su orientación. Agrega: “I know many amazing and resourceful, incredible Haitian women, poor women who cannot read but who do extraordinary things -send kids to medical school, put all sort of things together. Atie is one of them” (385). Y lo más importante, no solamente luchan a brazo partido por los suyos como tradicionalmente se ha estudiado el papel de la mujer, batallan por mantener su propia voz, sin caer en el silencio sin significado.

Referências

ANZALDÚA, Gloria. Borderlands/La frontera. The NewMestiza. California: Aunt Lute, 1987.        [ Links ]

DANTICAT, Edwidge. Breath, Eyes, Memory. New York: Vintage, 1994.        [ Links ]

_. Entrevista de Renee H Shea. The Dangerous Job of Edwidge Danticat. Callaloo 19:2 (1996) 382-9.        [ Links ]

GATES, Henry Louis. The Signifying Monkey. A Theory of African-American Criticism. New York: Oxford UP, 1988.        [ Links ]

HOOKS, Bell. Killing rage. Ending Racism. New York: Holt, 1995.        [ Links ]

_. Talking Back. thinking feminism thinking black. Boston: South End, 1989.        [ Links ]

Léspovua fè viv. “Female Identity and the Politics of Textual Sexuality in Nadine Magliore’s Le mal de vivre and Edwidge Danticat’s Breath, Eyes, Memory.” Framing Silence. Revolutionary Novels by Haitian Women. Ed. Myriam J.A. Chancy. New Jersey: Rutgers UP, 1997.        [ Links ]

MCCARTHY BROWN, Karen. “The Power to Heal.” Ed. Consuelo López Springfield.        [ Links ]

_.Daughters of Calibán. Bloomington: Indiana UP, 1997. 123-42.        [ Links ]

Gloria Anzaldúa

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A Cultura do Romance – MORETTI (NE-C)

MORETTI, Franco. A Cultura do Romance. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Cosac Naify, 2009. Resenha de: VASCONCELOS, Sandra Guardini Teixeira. O romance como gênero planetário: a cultura do romance. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.86, Mar. 2010.

Ao percorrer as páginas de A cultura do romance, primeiro dos cinco volumes da série O romance, organizada por Franco Moretti, o leitor logo notará que se encontra diante de uma obra singular, pois ali se narra uma história do gênero que, não raro, transgride fronteiras nacionais, abole limites espaço temporais e segue uma orientação comparatista e internacionalista, certamente inspirada na conhecida posição de seu organizador sobre a literatura mundial. Com efeito, em ensaio publicado em 2000, Franco Moretti retomava o conceito proposto por Goethe, no final do século XVIII, e defendia o retorno à antiga ambição da Weltliteratur, a partir da constatação de que”afinal, a literatura a nossa volta é inequivocamente um sistema planetário”1.

Mescla de história e crítica literárias, esta coletânea reúne um respeitável time de especialistas e põe em funcionamento outro princípio que tem norteado o trabalho de seu organizador:o de que uma história do romance,fundamentalmente pelo caráter transnacional do gênero, teria de ser escrita a partir de um esforço coletivo, por meio do qual as diferentes especialidades contribuiriam para repensar o modo como tratamos a historiografia literária, reinscrevendo o romance não mais no espaço demarcado pelas linhas divisórias das nações, mas em um mundo cujas fronteiras se alargaram e no qual o romance viaja e viceja como forma verdadeiramente livre na sua tradutibilidade2.

O romance como um sistema planetário: eis o espírito que parece animar esse conjunto diversificado de ensaios que,recobrindo um largo espectro temático e um amplo arco temporal,abarca uma multiplicidade de pontos de vista e tradições, combina traços específicos e particulares a questões de ordem geral e redesenha o mapa da história desse gênero onívoro e inclusivo, dessa forma permanentemente a se fazer e se renovar3, cuja natureza de inacabamento se comprova fartamente aqui.

Graças à sua”capacidade de mudar sem transformar-se em outra coisa”,4 o romance desafia e desestabiliza convenções, alia continuidades e descontinuidades, reinventa-se e franqueia ao romancista liberdade de imaginação, de recriação das formas e de proposição de novos caminhos.Seu modo de ser protéico e camaleônico fica patente na pletora de temas, procedimentos, técnicas e soluções que vemos mobilizados nas obras que são discutidas e comentadas nos ensaios do volume. A dinâmica da forma-romance emerge, assim, nas suas mais variadas vertentes, como narrativas de fundação, relatos da vida cotidiana, histórias de sondagem da interioridade, da experiência urbana, dos embates entre o indivíduo e a sociedade, do sobrenatural, dos recônditos da alma humana – apenas alguns exemplos das potencialidades quase ilimitadas do gênero desde sua invenção. Do mesmo modo, pelas suas próprias características e desapego às convenções, o romance convida à aproximação com outros campos e artes, como a história, a historiografia, a sociologia, a política, o cinema, a linguagem, a psicanálise, a pintura, numa teia de relações que põe em destaque sua abertura para as mais diferentes esferas da experiência humana. Esses diálogos e intersecções também vemos em ação aqui.

Os dois ensaios que, respectivamente, abrem e encerram o volume, com seus títulos especulares não só estabelecem de pronto um vínculo estreito e indiscutível entre o romance e o mundo moderno, como também pontuam alguns dos temas que iremos acompanhar com interesse no percurso dessa”primeira forma simbólica verdadeiramente mundial”5. Assim, enquanto Mario Vargas Llosa encarece a importância da leitura e explora os sentidos da literatura, enfatizando seu papel na formação do cidadão e da linguagem, seu teor de conhecimento e sua vocação para despertar um”sentimento de pertencimento à coletividade humana através do tempo e do espaço”6, ele igualmente lembra a capacidade de insubmissão e transgressão dos bons romances e, num exercício de ficcionista, imagina o quê ou como seria um mundo sem romances. Claudio Magris, por sua vez, retoma e discute com maestria outro problema que, ao leitor mais atento, não deve ter passado despercebido ao final da leitura. Ao longo de todo o volume, vamos topando freqüentemente com certa variação dos modos de se referir ao romance: ora romance mesmo, ora”romance”, romance, novel, novelas ou ainda romanesco. Além disso, muitas vezes o vocábulo romance se faz acompanhar de um adjetivo. A lista não é muito extensa, mas intriga: moderno, medieval, antigo, de corte, de cavalaria. Para os leitores menos familiarizados com as questões mais técnicas, é bom esclarecer que na tradição inglesa romance e novel designam de fato modalidades narrativas distintas, e passaram a fazer parte do vocabulário crítico no século XVIII como efeito da percepção de que ocorrera uma importante mudança histórica, com reflexos indiscutíveis na prosa de ficção. Por isso, na maioria das vezes dispensam adjetivos. A inexistência dessa diferenciação em outras línguas européias e a subsunção de romance e novel num mesmo termo genérico (cf. romance, romanz, roman, romanzo) põem em menor evidência,nessas outras tradições, a noção de ruptura que norteou a adoção dos dois vocábulos em língua inglesa.

Que conseqüências tirar dessa instabilidade, então, e desse uso reiterado dos qualificativos para melhor definir e precisar aquilo de que se fala? A resposta já ficara delineada por Catherine Gallagher7, que expõe com clareza a questão e mapeia, com bom fôlego teórico, as diferenças entre romance e novel, entre o gênero pré-moderno, precursor imediato do romance, e esse outro, encarnação da modernidade. O ensaio de Magris volta ao assunto, com uma reflexão que incorpora algumas das mais iluminadoras discussões sobre o gênero, para não apenas ressaltar a sua modernidade radical, mas sobretudo para pensar essa”epopéia do desencanto”, nos termos propostos por Hegel e Lukács,como objetivação da cisão entre o eu e o mundo. Essa”por vezes degradada mas aventurosa e radicalmente nova odisseia”8 é, entre todos os gêneros, aquele que faz do mundo, enquanto história, seu objeto, em que o caráter temporal e histórico da ação dos homens é problema sempre crucial e sempre presente para o romancista. Ao afirmar que”o romance é o mundo moderno”, Magris, além de o alinhar aos desenvolvimentos da era que se inaugura por sobre os escombros da ordem feudal, sugere que nele podemos reconhecer a experiência que nos determina e constitui. Reaparece assim,nesse remate,a relação problemática entre romance e realidade que já viera pontuando várias das outras intervenções no debate que pudemos ir acompanhando até esse final.

Essa moldura enquadra, dessa maneira, um verdadeiro mosaico de leituras que nos deslocam no tempo e no espaço e nos confrontam com um rol de questões que rondam o romance desde seu surgimento. De dentro da diversidade de abordagens, ângulos e perspectivas que os autores dos ensaios escolheram para ler seus objetos, vemos surgir alguns temas recorrentes, que atravessam o volume como um todo e remetem às escaramuças que o romance teve de enfrentar no seu longo processo de ascensão e consolidação. Um deles diz respeito à tensão entre veracidade e ficcionalidade (ou verdade e mentira, verdadeiro e falso,fato e ficção),que desde sempre esteve no centro da discussão sobre as relações entre o romance e a representação do real. Não é muito difícil compreender por que essa tem sido uma preocupação constante por parte de teóricos e críticos: afinal, o romance tem suas raízes firmemente fincadas no tempo histórico e em contextos socioculturais específicos e, mesmo nos altos vôos da fantasia, tem um conteúdo de verdade e um notável poder de revelação, de “descoberta e interpretação da realidade” (a expressão é de Antonio Candido). É essa capacidade de escavar a superfície e penetrar nas correntes subterrâneas de uma vida, de uma comunidade, de uma experiência, que lhe confere a prerrogativa de produzir uma impressão de verdade, a qual nasce da arte do romancista de absorver na estrutura narrativa, para além dos detalhes e fragmentos do real, para além dos dados externos, certos princípios constitutivos da sociedade. Basta acompanhar o que fizeram os diversos romancistas dos mais diferentes quadrantes que são motivo de comentários nas leituras críticas que compõem o mosaico e estão distribuídas ao longo do volume.

O contrato com o leitor, a “plausibilidade fictícia”9, o jogo ficcional – tudo contribui para a suspensão da descrença e carrega o leitor para um mundo que parece verdadeiro,quando é apenas crível, verossímil. A verossimilhança, entretanto, não explica esse sentimento de verdade de que somos possuídos quando um romancista” toma a si o encargo de imaginar e compor o movimento da sociedade”10. Sem dúvida, foram os nexos que estabelece com a vida real, somados à sua inegável faculdade de estimular a imaginação,que lhe valeram a pecha de influência perniciosa e prejudicial e fizeram dele alvo de censura e condenação, inclusive judicial, por meio de processos que levaram às barras dos tribunais romances e romancistas. A história literária está repleta de exemplos, e eles não se limitam aos tempos em que um controle mais rígido e rigoroso sobre a moral esteve vigente. Alguns deles são lembrados aqui e dão notícia dos obstáculos que o gênero enfrentou para ganhar dignidade e reconhecimento. Um verdadeiro dossiê reúne vários documentos que registram a história dessa batalha, cujo último capítulo não está tão distante assim e envolveu a fatwa contra os Versos satânicos de Salman Rushdie. Mas as imputações não se restringiram ao terreno da religião,da política ou da moralidade, como foi o caso de Madame Bovary ou de O amante de Lady Chatterley.Para além das acusações de sedição, blasfêmia, obscenidade ou difamação que fustigaram o romance em diferentes momentos da sua história, esse”vão caudal de tinta sobre papel esfarrapado”11 teve ainda de se haver com aqueles que o consideravam apenas um gênero bastardo, destituído de tradição e da nobreza do teatro e da poesia. Um parvenu da República das Letras, o romance não mereceria senão desprezo e desconfiança, e o establishment literário não perdeu as oportunidades de golpeá-lo,como o fizeram Pierre Nicole ou Gotthard Heidegger12. Como outros, antes e depois, eles esgrimiram argumentos éticos e estéticos para desaprovar o gênero. Na Itália, ainda no século XIX, prevalecia”a aversão da escola com relação ao romance” e se assistia” à luta destemida do padre Antonio Bresciani […]” e de seu aliado Cesare Cantú”contra a podridão proveniente das cloacas francesas”, isto é, contra o romance-folhetim13. Na mesma Itália, em 1956, Pier Paolo Pasolini foi chamado a defender seu Ragazzi di vita diante de um tribunal, que exigiu dele”justificar a sua obra no plano moral [e] esclarecer [seu] significado artístico e literário”14, enquanto em Moscou, dez anos mais tarde, os autos contra Juli Daniel e Andrei Siniavski acusavam Govorit Moskva de instigar”um acerto de contas com os dirigentes do partido e do governo”15.

Havia ainda outro motivo para a condenação da ficção. Desde seu surgimento, o romance esteve bastante próximo do universo feminino. As mulheres foram, desde o início, suas protagonistas e seu público. Por isso, muitos dos ataques ao romance foram provocados pelo medo da imitação.A oposição à fantasia e a suspeita de que a liberdade de imaginação podia levar à ação foram argumentos recorrentes nas discussões sobre os efeitos deletérios da leitura de romances principalmente sobre os jovens e as mulheres.Julgava-se que o poder corruptor dos romances, esse passatempo de ociosos, podia influenciar condutas e pôr em risco a virtude feminina, inspirando a desobediência ou a transgressão de normas de comportamento consideradas essenciais para a reputação das mulheres. Havia também um temor generalizado da identificação do leitor com as personagens ficcionais, pois ela poderia provocar emoções e sentimentos e mobilizar sua sensibilidade, fazendo aflorar uma série de reações físicas que se acreditava serem evidências da comoção produzida pela leitura. As mulheres pareciam especialmente suscetíveis a essas alterações emocionais,que se traduziam em afecções do corpo, como testemunha essa leitora de Samuel Richardson, em carta ao romancista:

Se me tivesses visto, tenho certeza de que teria despertado vossa piedade. Quando só, em agonia eu punha o livro de lado, o retomava novamente, andava pela sala, derramava um rio de lágrimas, enxugava os olhos, lia novamente, talvez nem três linhas, jogava longe o livro, bradando, desculpai-me, bom Sr. Richardson, não consigo continuar; é vossaculpa- fizestes mais do que consigo suportar; jogava-me sobre o sofá para me recompor, recordando minha promessa (que mil vezes desejei não tivesse sido feita); de novo lia, de novo agia exatamente igual: às vezes agradavelmente interrompida por meu querido esposo, que estava naquele momento avançando com dificuldade ao longo do 6volume, com um coração capaz de impressões como o meu […].

Vendo-me tão comovida, ele implorou, pelo amor de Deus, que eu não lesse mais; bondosamente ameaçou tomar-me o livro, mas, diante da minha promessa, permitiu-me continuar. Aquela promessa agora está cumprida e estou grata que a pesada tarefa tenha acabado, embora os efeitos não. Tivesse ela sido conduzida como eu desejava, em vez de ficar impaciente para terminar a triste história, como eu teria me demorado, com prazer, em cada linha, e me sentido relutante em chegar à conclusão.

Meu ânimo foi estranhamente afetado; meu sono está perturbado, despertando durante a noite, tenho ataques de choro; isso aconteceu no desjejum, essa manhã, e agora, de novo. Deus, seja misericordioso – o que isso pode significar? Talvez, Senhor, atribuais isso a paixões violentas, mas, de fato, se conheço a mim mesma, não sou acometida delas. É tudo fragilidade, inequívoca fragilidade tola. Eu vos asseguro, não exacerbo o desassossego que me aflige, não, nem comunico o pior [Lady Bradshaigh, 6 de janeiro de 1748].

Esse depoimento de leitura é um dos exemplos daquilo que Stefano Calabrese chama de”patologias da leitura romanesca”, tais como a Wertherfieber e o bovarismo16, as quais pareciam acometer principalmente as mulheres e fazer delas suas vítimas potenciais, aumentando o preconceito e as restrições ao gênero. Apesar disso,o romance foi um dos principais instrumentos do acesso delas à esfera pública.

O século XVIII marcou em definitivo a entrada das mulheres no mundo da escrita, não mais apenas na condição de leitoras. E os romances desempenharam um papel fundamental nisso,porque,sendo um gênero sem leis nem regras e tratando de assuntos da vida cotidiana numa linguagem acessível a todos, eles se constituíram como um espaço no qual elas, como escritoras, podiam exercitar seus talentos e tratar de temas que as tocavam de perto, e, como leitoras, se reconhecer como partícipes de uma comunidade de interesses e de destino, que lhes permitia partilhar,mesmo que vicariamente,experiências comuns. O âmbito doméstico e o viés sentimental das narrativas, assim como o recurso à vivência pessoal de suas autoras,elas mesmas envolvidas e empenhadas em uma luta pela afirmação de suas aspirações, facilitavam esse reconhecimento. O romance tornou-se, para muitas delas, meio de expressão, de denúncia, de revolta e de recusa das limitações e dos constrangimentos sociais a que estavam submetidas.Um passo que Virginia Woolf reconheceria como um feito histórico, em Um teto todo seu (1929):

Assim, para o término do século XVIII promoveu-se uma mudança que, se eu estivesse reescrevendo a história,descreveria mais integralmente e consideraria de maior importância do que as Cruzadas ou as Guerras das Rosas. A mulher da classe média começou a escrever17.

Inaugurava-se, assim, uma linhagem, com uma participação cada vez maior e mais ativa das mulheres na cena literária.Mesmo em culturas muito diversas da européia, como é o caso da japonesa, a presença feminina foi central para o florescimento da prosa, por meio de cartas e narrativas escritas pelas damas da corte, com as quais elas, se utilizando da língua coloquial, própria da esfera privada, contribuíram para a busca e a formação de uma nova linguagem literária e para o desenvolvimento do romance18.A tradição da escrita feminina tem ainda desdobramentos trazidos à tona por Christa Bürger19, que, numa visada diacrônica,percorre os modos como o tema do amor assumiu diferentes formas e ajudou a inscrever algumas mulheres na história do romance. Esse quadro se completa com as leituras críticas que tratam de outras romancistas que representaram uma enorme contribuição ao gênero, como George Eliot e a própria Virginia Woolf.

Na sua longa trajetória, alguns romances foram esquecidos e condenados”à morte pelo tribunal da posteridade”20, mesmo que tenham sido populares à sua época e caros aos seus leitores; porém, a grande maioria deles passou a fazer parte do nosso acervo comum, fornecendo um repertório de imagens, temas, personagens e enredos que se incorporaram à nossa experiência e às nossas maneiras de explicar e compreender o mundo.Por quase três séculos,o romance tem sido expressão artística de um espírito democrático21, e espaço onde questões cruciais são objeto de configuração estética. Trata-se de um gênero inquieto, que continua”inacabado”, com uma”ossatura […] ainda […] longe de ser consolidada”, tornando impossível”prever todas as suas possibilidades plásticas”22.

Por essa razão, o romancista está permanentemente diante de desafios formais, sempre repostos. Se no romance oitocentista o indivíduo burguês se constituiu como uma subjetividade que se reconhecia como sujeito da história, a progressiva perda dos vínculos do homem consigo próprio e com a comunidade acentuou-se cada vez mais no mundo administrado da sociedade industrial.A partir de meados do século XIX,assistimos à desagregação desse indivíduo e sua diluição na massa, no caos urbano. Desde suas origens, o romance instaurou a fratura entre o eu e o mundo,encenando a jornada do homem solitário, que já não se sente em casa em lugar algum. O esforço de recriação da totalidade preside o gesto do romancista,cuja tarefa é construir o sentido de uma vida e de um mundo que perdeu o sentido,por meio de uma forma que é a”tentativa,na época moderna,de recuperar algo da qualidade da narração épica como uma reconciliação entre matéria e espírito, entre vida e essência’23. Essa empreitada foi se mostrando cada vez mais difícil. Matéria primordial do gênero, o eu fraturado, numa sociedade fraturada, configura-se como o tema por excelência principalmente do romance modernista, com conseqüências para a forma romanesca, que também se estilhaça e se refrata na perda da onisciência ou na multiplicação da voz narrativa, na interiorização dos conflitos e na quebra do encadeamento causal no âmbito do enredo. A crise da experiência e do indivíduo contemporâneo encontra rebatimento numa forma também em crise, obrigando o romancista a re-configurar seus materiais e técnicas para dar conta de novos conteúdos,a aventurar-se em novos experimentos formais, como os que vemos comentados no último conjunto de leituras críticas, quase ao final do volume24.

Cobrindo o período de 1900 a 1950, e portanto dos movimentos de vanguarda que mudaram o panorama das artes no século XX, esse instantâneo dos múltiplos caminhos abertos aos romancistas pela consciência das transformações cruciais que sofria o mundo naquela quadra histórica flagra algumas das respostas possíveis para o desafio de dar uma nova conformação narrativa ao real.Não se trata apenas da dissolução da forma-romance tradicional,mas também de enfrentar a”questão do sujeito e de sua representação,sua ausência ou desagregação”25. Uma observação de Virginia Woolf, em ensaio de 1924, cristaliza essa percepção numa tirada lapidar:”em ou por volta de dezembro de 1910, o caráter humano mudou”. Woolf parece se reportar aqui a alguns dos acontecimentos, entre eles a exposição do Pós-Impressionismo naquele ano,que marcaram o fim de uma época de estabilidade e, na sua visão, praticamente obrigaram os artistas a repensar o modo como o caráter humano era moldado e compreendido. Essa mudança é o que ela vai buscar representar literariamente em seu romance Mrs. Dalloway (1925), como concretização de uma nova concepção do personagem de ficção e das novas maneiras de captar o fluxo incessante e caótico da vida, tanto no plano exterior como interior26.

De Rainer Maria Rilke a Mikhail Bulgakov, passando por Luigi Pirandello, Louis Aragon, Mário de Andrade e Vladislav Vanura, vemos como diferentes autores, de origens e tradições diversas, fizeram implodir a estrutura narrativa que o romance realista do século XIX havia erigido em modelo. Por meio de soluções inovadoras para o tratamento do tempo e do ponto de vista, do recurso à livre associação de idéias, ao monólogo interior e ao fluxo da consciência, entre outras providências,eles puseram em xeque as próprias fundações do gênero, possibilitando, com isso, sua renovação. Os romances que esses escritores nos legaram são exemplos do esgarçamento da experiência e da “fratura do senso de continuidade”, de que fala Enrico Testa a respeito de Pirandello27, e, no seu desassossego, são a materialização de experimentos formais que configuram algo que está para além de meros procedimentos técnicos. Na sua discussão sobre o romance moderno, Anatol Rosenfeld argumenta que a arte do século XX se caracteriza por um fenômeno que ele chama de”desrealização”, para se referir ao abandono da mimese, pela arte, e à recusa da”função de reproduzir ou copiar a realidade empírica, sensível”28. O realismo forte nunca se contentou com a mera reprodução ou cópia da realidade, contudo. O que os romances modernistas impõem, ao contrário, é a necessidade de ampliação do conceito de realismo para compreendê-lo na sua dimensão plural e histórica. Se aceitarmos que a”matéria do artista [não é] informe: é historicamente formada,e registra de algum modo o processo social a que deve a sua existência”29, é possível perceber nesses autores o esforço que empreenderam de ir além da superfície e ler cada obra como”a historiografia inconsciente de si mesma da sua época”30.

Podemos concluir, assim, que A cultura do romance constitui seu objeto como um campo de tensões e de negociação, e, à sua maneira, narra a história da ascensão, do apogeu e da crise do romance, na qual se inscreve a história do indivíduo, cuja trajetória o gênero formaliza em seus impasses, conflitos e contradições. Os autores aqui reunidos aceitam e cumprem à risca o desafio proposto por Franco Moretti de conferir aos seus ensaios”aquele tom antropológico – história da literatura como história da cultura – que é a aposta desse volume”31.

Notas

1 Idem.”Conjeturas sobre a literatura mundial”.Novos Estudos Cebrap, 2000, nº 58, pp.173-181, p.174 “Conjectures on world literature”.New Left Review, 2000, nº 1, pp. 54-68.
2 Idem. Atlas of the European novel 1800-1900. Londres: Verso, 1997 [ed. bras.: Atlas do romance europeu 1800-1900. Trad. SANDRA Guardini Vasconcelos. São Paulo: Boitempo, 2003].
3 BAKHTIN, Mikhail.”Epic and novel”. In:The dialogic imagination. Austin: University of Texas Press, 1986, pp.3-40 [Ed.bras.: “Epos e romance”. In: Questões de literatura e estética.2 ed. Trad. Aurora F. Bernardini e outros. São Paulo: Hucitec, 1990].
4 MCKEON, Michael. “Introduction”. In: Theory of the novel: a historical approach. Baltimore/Londres: The Johns Hopkins University Press, 2000, p. xiv. Tradução minha.[Links] 5 MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., p. 11.
6 LLOSA, Mario Vargas.”É possível pensar o mundo moderno sem o romance?”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., p. 22. [Links] 7 GALLAGHER, Catharine.”Ficção”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., pp. 629-58. [Links] 8 MAGRIS, Claudio.”O romance é concebível sem o mundo moderno?”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., p. 1016. [Links] 9 GALLAGHER, op. cit., p. 638.
10 SCHWARZ, Roberto.”Outra Capitu”. In: Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 104. [Links] 11 HEIDEGGER, Gottard.”Mitoscopia romântica: ou discurso sobre o chamado romance”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., 202. [Links] 12 Ver NICOLE, Pierre.”Sobre a comédia”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., pp. 200-201; Heidegger, op. cit., pp. 201-203.
13 FAETI, Antonio.”Um negócio obscuro: escola e romance na Itália”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., p. 147. [Links] 14 SITI, Walter.”O romance sob acusação: aparato crítico”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., p. 227. [Links] 15 Ibidem, p. 233.
16 CALABRESE, Stephano.”Wertherfieber, bovarismo e outras patologias da leitura romanesca”. In: MORETTI (org.),A cultura do romance, op. cit., pp. 697-732. [Links] 17 WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 86. [Links] 18 ORSI, Maria Teresa.”A padronização da linguagem: o caso japonês”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., pp. 425-58. [Links] 19 Ver BÜRGER, Christa.”O sistema do amor: gênese e desenvolvimento da escrita feminina”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., pp. 595-627. [Links] 20 LUZZATTO, Sergio, em”Leituras: bestsellers perdidos”, pp. 735-819. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., p. 787 (sobre O ano 2440, de Louis Sébastien Mercier). [Links] 21“O romance nasce ao mesmo tempo que o espírito de revolta e traduz, no plano estético, a mesma ambição” (Camus, Albert. L’homme révolté. Paris: Gallimard, 1951, p. 320, trad. minha).
22 BAKHTIN, op. cit., p. 397.
23 JAMESON, Fredric. “Georg Lukács”. In: Marxism and form. Princeton: Princeton University Press, 1974, pp. 171-172. [Links] 24 Ver “Leituras: experimentos com a forma (1900-1950)”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., pp. 951-1012. [Links] 25 TESTA, Enrico, em “Leituras: experimentos com a forma (1900-1950)”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., p.972 (sobre Um, nenhum e cem mil, de Luigi Pirandello). [Links] 26 Ver BANFIELD, Ann, em”Leituras: experimentos com a forma (1900-1950)”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., pp. 961-70 (sobre Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf ). [Links] 27 TESTA, op. cit., p. 971.
28 ROSENFELD, Anatol. “Reflexões sobre o romance moderno”. In: Texto/ Contexto. São Paulo/Brasília: Perspectiva/INL, 1973, pp. 75-97, p. 76. [Links] 29 SCHWARZ. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1977, p. 25. [Links] 30 ADORNO, Theodor W. Teoria estética. São Paulo: Martins Fontes, 1970, p. 207. [Links] 31 MORETTI.”O século sério”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., p. 823. [Links]

Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos – Professora do Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP.

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Ouvrières des Lettres – CONSTANS (CP)

CONSTANS, Ellen. Ouvrières des Lettres. Limoges, Pulim, 2007, 177 p. Resenha de: GARZONI, Lerice de Castro. Ouvrières des Lettres. Cadernos Pagu, Campinas, n. 34, Jan./Jun. 2010.

Entre o final do século XIX e meados do XX, as escritoras francesas que publicavam romances católicos e populares empregavam a expressão “ouvrières de lettres” para se referir à sua própria ocupação. Sob esse título, Ellen Constans nos apresenta uma pesquisa amplamente documentada, cujo objetivo é entender as dificuldades e contradições da inserção das mulheres na literatura, ou seja, a recepção e o desenvolvimento de seu trabalho enquanto autoras de romances. Além de partir de uma constatação das próprias contemporâneas, o título empregado também traz em si questões sobre o tipo de literatura que produziam. No fim do século XIX, segunda era de ouro do folhetim, eram inúmeros os debates sobre a legitimidade da chamada “literatura industrial” que, segundo seus detratores, seria produzida como mercadoria e segundo as leis do mercado, completamente distante do ideal artístico da literatura institucional.

Era nesse domínio, de qualidade amplamente questionada, e muitas vezes com a justificativa de ganhar a vida, que as mulheres debutavam na ocupação de “ouvrière de lettres“. A palavra “ouvrière“, que pode ser traduzida como trabalhadora ou operária, refere-se, acima de tudo, a uma mulher que executa um trabalho manual ou mecânico em troca de remuneração. Mas isso não significava que fosse visto como um epíteto depreciativo, pelo contrário, as escritoras evocavam a expressão para se referir a sua ampla e significativa produção literária. São essas inúmeras visões sobre o trabalho dessas autoras, assim como suas mudanças ao longo do tempo, que a pesquisa de Constans revela.

O livro coloca em xeque o consenso existente nos meios acadêmicos de que, até meados do século XX, há muito poucas autoras na literatura francesa. Afinal, contradizendo essa visão, apresenta uma série de testemunhos de contemporâneos sobre a participação das mulheres como escritoras desde 1840, sobretudo na confecção de folhetins (romances publicados aos pedaços nos jornais e revistas). Assim, para encontrar essas mulheres e entender sua relação com o público, Ellen Constans considera importante compreender a distância entre literatura popular e literatura legítima, assim como as origens desse processo de inviabilização e de ocultação dessas autoras. Ela constata que

a sacralização da escrita e a institucionalização da Literatura estão ligados a um processo de hierarquização e exclusão, que apaga as mulheres e as classes populares, ‘trabalhadoras’, como autoras e leitoras, respectivamente (15).

Além disso, para estudar o período em que a entrada das mulheres na literatura se inicia, é preciso considerar a questão da “escrita feminina”, objeto de inúmeras pesquisas e teorizações nos anos 1970 e 1980. Porém, a autora identifica nesse debate a tendência em estudar apenas a participação das mulheres na literatura legítima, sem considerar a produção de massa, como se as pesquisadoras feministas caíssem na armadilha construída pelos críticos da literatura popular de outrora. A principal colaboração de Constans, portanto, é relacionar as colaborações esparsas dessas autoras que escreveram romances folhetins em revistas de ampla circulação ou publicaram suas obras em coleções de romances populares entre o fim do século XIX e meados do XX. Os procedimentos para selecionar e observar essa documentação são expostos no primeiro capítulo, “Chercher la femme”, no qual é apresentado um balanço inicial da pesquisa nas coleções e periódicos de grande difusão publicados ao longo da Terceira República (1875-1940).

A partir desse balanço, é possível identificar os tipos de escrita então considerados como legítimos à participação das mulheres. Na literatura popular, a presença feminina é mais freqüente em coleções sentimentais ou generalistas, o que inclui o romance de amor ou dramático, sendo quase inexistente nas séries policiais e de aventura. Nos periódicos, a maior parte dos textos e romances escritos por mulheres apresenta sentido educativo, configurando a participação das escritoras como uma extensão de seu papel de mãe e educadora na esfera privada. Para Constans, esses dados mostram que a publicação da escrita feminina era admitida pela crítica e pela opinião pública desde que fosse restrita às zonas secundárias da literatura e que reforçasse os papéis tradicionalmente femininos. A partir dessas considerações, é possível compreender a grande presença de mulheres em publicações católicas, proporcionalmente bem maior que no segmento laico.

O contato com essas obras, sobretudo na imprensa, coloca um segundo problema: a questão do pseudônimo, um recurso que não só dificultaria a identificação das escritoras, já que muitas usavam nomes masculinos, mas seria um indício do mal-estar suscitado entre elas em relação à escrita literária e sua publicidade. Relativizando essas considerações, Constans parte em busca dos outros sentidos do pseudônimo, analisando a escolha dos nomes, seu caráter subjetivo e ambíguo. Esse é o tema do segundo capítulo do livro, “Jeux de masques”, no qual ela enfatiza que o uso do pseudônimo pode funcionar como um jogo com os leitores, a exemplo das máscaras usadas no carnaval. A autora constata que muitas mulheres escolhiam seu nome de solteira ou optavam por variações do nome verdadeiro, o que mostra que o pseudônimo não serve necessariamente para esconder sua identidade, pois há um movimento dúbio entre afirmar e mascarar a autoria.

Sobre a identidade dessas autoras que publicaram ao longo da Terceira República Francesa, Constans também reúne informações recolhidas nos arquivos da Société de Gens de Lettres (sociedade de defesa dos interesses profissionais de escritores), nos contratos firmados entre elas e os responsáveis de editoras ou periódicos e nas biografias existentes. O cruzamento dessas fontes permite a reunião de informações como sua cidade de origem, a profissão dos pais, o estado civil e seus recursos financeiros. Assim, no terceiro capítulo, “‘Ouvrières de lettres’ ou la vrai vie“, somos convidados a conhecer um pouco mais sobre a vida dessas mulheres, sobretudo a relação entre escrita e renda, pois a autora avalia as reais possibilidades de viver da literatura ao longo do período estudado.

No quarto capítulo, “Regards croisés“, a autora analisa as falas dos contemporâneos sobre essas escritoras. Mais uma vez, ela recorre ao material da Société de Gens de Lettres, sobretudo os pedidos de admissão, nos quais a requerente deveria ser apresentada por um dos membros da sociedade. Tanto suas características pessoais como as de sua produção literária eram alvo de avaliação por uma comissão de escritores. Além desse material, a autora analisa os artigos críticos que foram publicados na imprensa após a publicação de romances populares ou folhetins escritos por mulheres, destacando que a crítica institucional não se interessava pela produção da “literatura industrial”. Os textos analisados são extremamente relevantes para compreender as concepções de literatura e os critérios de avaliação dessas obras e de suas escritoras.

A distinção entre romances católicos e romances populares é retomada nos dois últimos capítulos, enfatizando as diferenças entre eles e os motivos da maior participação feminina em livros e jornais religiosos. Antes, porém, a autora mostra o que há de comum nesses escritos de larga circulação e consumo. Assim, no capítulo cinco, “Écrire – Voyages à travers les contrées du roman de large consommation“, a autora mostra a recorrência das histórias de amor nesse tipo de publicação, o que permite que ela conclua que o gênero sentimental, ainda que tenha funções diferentes nos romances católicos e nos laicos, constitui uma característica compartilhada pela literatura de massa.

A autora mobiliza uma série de fontes e estratégias para cercar seu objeto, mas é no sexto capítulo, “Le Roman catholique et B.C.-B.G. ou bien penser pour bien écrire“, que ela se dedica mais demoradamente à análise de dois jornais católicos, nos quais a colaboração de escritoras foi bem marcante desde a última década do século XIX. Chama a atenção o cuidado de Constans em apresentar os periódicos e sua história, mostrando como a inserção da escrita feminina se deu nesses suportes específicos. Ela analisa as contradições dos organizadores dessas folhas que, condenando o romance popular como um veneno social, passam a usar a mesma fórmula para propagar os princípios cristãos e, mais que isso, a incentivar a colaboração de mulheres como folhetinistas. Da mesma forma, os romances qualificados como “B.C.-B.G.”, publicados como folhetins de revistas de moda ou em coleções como Stella e Fama, também propagavam a religião católica, em tom menos militante, por meio da escrita feminina. Constans compara alguns enredos e conclui que durante todo o período estudado (1875-1940) esses romances não apresentaram mudanças significativas.

No último capítulo, “Au coeur du Roman populaire“, a autora acompanha a trajetória de algumas das mulheres que tiveram seus Romances publicados em coleções populares antes de 1914. A partir desse ano, as autoras ganharam mais espaço nesse meio, consolidando definitivamente sua presença na literatura francesa na década de 1930. Os motivos dessa maior aceitação das autoras, a visão que elas mesmas tinham sobre a literatura de massa e seu “confinamento” a temas amorosos são questões trabalhadas nesse capítulo. Segundo Constans, “as romancistas populares de diversas gerações não se viam como investidas de uma missão, elas escreviam para responder aos desejos e gostos, reais ou supostos, do público, aos seus hábitos de consumo, e também às mudanças de suas expectativas, porque o público quer, para seu prazer, ao mesmo tempo, o conhecido e o novo” (135).

Ainda que tenham feito sucesso e publicado inúmeras obras, a maior parte dessas “ouvrières de lettres” caiu no esquecimento, sendo ignorada inclusive por estudiosos contemporâneos. Nesse contexto, a autora resgata seus nomes e trajetórias e, com isso, busca mostrar que, mesmo dentro dos limites da produção de massa, elas encontraram um espaço de expressão e contribuíram para a expansão da participação feminina em trabalhos considerados como masculinos, ou seja, para a igualdade entre os sexos e a “democratização cultural” Há, portanto, um tom militante no trabalho de Constans que, herdeiro da “História das Mulheres”, busca dar visibilidade às escritoras francesas de outrora, insistindo na existência de mulheres enquanto sujeitos históricos.

Por um lado, chama a atenção que uma pesquisa importante como essa, que acompanha o processo de inserção das mulheres no campo da produção literária francesa, tenha sido empreendida apenas no início do século XXI. Constans parece nos alertar sobre a importância de retomar a observação de trajetórias femininas ao longo do tempo, como uma renovação dos princípios da “História das Mulheres”. Por outro lado, fica evidente que o foco nas autoras compromete, em alguns momentos, a análise apresentada. Na leitura dos pedidos de admissão enviados à Societé de Gens de Lettres, por exemplo, a ausência de menções aos mesmos documentos em relação aos homens escritores inviabiliza que o leitor compreenda quais eram os critérios mobilizados na avaliação dos escritores dos dois sexos e aqueles restritos ao julgamento das mulheres. Da mesma forma, o estudo dos pseudônimos femininos ganharia maior densidade em comparação com aqueles empregados entre os escritores. Enfim, no momento de selecionar e organizar os documentos analisados, o emprego de uma perspectiva de gênero seria capaz de conferir mais fundamentos para os argumentos apresentados.

O estudo é extremamente relevante na medida em que, a partir de evidências esparsas, consegue reconstruir a “arte” de escritoras até então ignoradas pela história literária. Ao longo do livro, entendemos porque, ao lado de outros escritores da “literatura industrial”, elas foram legadas ao esquecimento, o que levaria a crer que a participação feminina nesse campo só teria acontecido a partir da segunda metade do século XX. Ao retroceder ao final do século XIX, acompanhando os desafios e contradições dos homens e mulheres envolvidos com a publicação de romances femininos na imprensa e em coleções populares, Constans nos possibilita observar algumas das soluções encontradas por esses sujeitos naquele momento histórico.

Lerice de Castro Garzoni – Doutoranda em História no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas (Bolsista Fapesp e Capes). E-mail: [email protected].

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A Misteriosa Chama da Rainha Loana: romance ilustrado | Umberto Eco

A pesquisa de Yambo para recuperar sua memória é um passeio pela construção de sua “visão de mundo”, entrelaçada com a história da Itália, entre 1930 e 1990, que corresponde à própria idade de Yambo. Yambo é o protagonista do romance ilustrado, assim anunciado, de Umberto Eco.

A história do personagem que, após um acidente vascular cerebral, tenta recuperar sua memória emocional, é um mergulho nas mais variadas fontes. Pode-se dizer que se trata de um trabalho de historiador, camuflado pelo romance, que transborda pelo excelente autor que é Umberto Eco. Leia Mais

Becos da memória – EVARISTO (REF)

EVARISTO, Conceição. Becos da memória. Belo Horizonte: Mazza, 2006. Resenha de: OLIVEIRA, Luiz Henrique Silva de. “Escrevivência” em Becos da memória, de Conceição Evaristo. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.17 n.2 May/Aug. 2009.

“Homens, mulheres, crianças que se amontoaram dentro de mim, como amontoados eram os barracos de minha favela” (p. 21).

Evaristo, 2006, p. 21.

Maria da Conceição Evaristo de Brito nasceu em Belo Horizonte, em 1946. De origem humilde, migrou para o Rio de Janeiro na década de 1970. Graduou-se em Letras pela UFRJ, trabalhou como professora da rede pública de ensino da capital fluminense e da rede privada de ensino superior. É mestre em Literatura Brasileira pela PUC-Rio. No momento, está concluindo doutorado em Literatura Comparada na Universidade Federal Fluminense. Em sua pesquisa, estuda as relações entre a literatura afro-brasileira e as literaturas africanas de língua portuguesa. Participante ativa dos movimentos de valorização da cultura negra em nosso país, estreou na arte da palavra em 1990, quando passou a publicar seus contos e poemas na série Cadernos Negros, suporte de que se utiliza até hoje.

Em 2003, veio a público o romance Ponciá Vicêncio, pela editora Mazza, de Belo Horizonte. Seu segundo livro, outro romance, Becos da memória, foi escrito em fins dos anos 1970 e início dos 1980. Ficou engavetado por cerca de 20 anos até sua publicação, em 2006. Desde então, os textos de Evaristo vêm angariando cada vez mais leitores, sobretudo após a indicação de seu primeiro livro como leitura obrigatória do Vestibular da UFMG, em 2007. A escritora participou ainda de publicações coletivas na Alemanha, na Inglaterra e nos Estados Unidos. Sua obra de estreia foi traduzida para o inglês e está em processo de tradução para o espanhol.

A obra em prosa de Conceição Evaristo é habitada, sobretudo, por excluídos sociais, dentre eles favelados, meninos e meninas de rua, mendigos, desempregados, beberrões, prostitutas, “vadios” etc., o que ajuda a compor um quadro de determinada parcela social que se relaciona de modo ora tenso, ora ameno, com o outro lado da esfera, composta de empresários, senhoras de posses, policiais, funcionários do governo, dentre outros. Personagens como Di Lixão, Duzu-Querença, Ana Davenga e Natalina, presentes no universo dos contos publicados nos Cadernos Negros; Ponciá Vicêncio, Vô Vicêncio, Luandi, Nêngua Kainda, Zé Moreira, Bilisa e Negro Glimério, listados em Ponciá Vicêncio; Maria-Nova (desdobramento ficcional da autora?), Maria Velha, Vó Rita, Negro Alírio, Bondade, Ditinha, Balbina, Filó Gazogênia, Cidinha-Cidoca, Tio Totó e Negra Tuína, de Becos da memória, exemplificam, no plano da ficção, o universo marginal que a sociedade tenta ocultar.

Becos da memória é marcado por uma intensa dramaticidade, o que desvela o intuito de transpor para a literatura toda a tensão inerente ao cotidiano dos que estão permanentemente submetidos à violência em suas diversas modalidades. Barracos e calçadas, bordéis e delegacias compõem o cenário urbano com que se defrontam os excluídos de todos os matizes e gradações, o que insinua ao leitor qual a cor da pobreza brasileira. No entanto, a autora escapa das soluções fáceis: não faz do morro território de glamour e fetiche; tampouco, investe no traço simples do realismo brutal, o qual acaba transformando a violência em produto comercial para a sedenta sociedade de consumo.

Os fragmentos que compõem Becos da memória procuram aliar a denúncia social a um lirismo de tom trágico, o que remonta ao mundo íntimo dos humilhados e ofendidos, tomados no livro como pessoas sensíveis, marcadas, portanto, não apenas pelos traumas da exclusão, mas também por desejos, sonhos e lembranças. Violência e intimismo, realismo e ternura, além de impactarem o leitor, revelam o compromisso e a identificação da intelectualidade afrodescendente com aqueles colocados à margem do que o discurso neoliberal chama de progresso.

Sabendo que é possível à obra (re)construir a vida, através de “pontes metafóricas”, pelo projeto literário de Conceição Evaristo vislumbram-se pistas de possíveis percursos e leituras de cunho biográfico. Na configuração do romance em questão pululam aqui e ali, ora na ficção, ora em entrevistas, ora em textos acadêmicos, peças para a montagem de seu quebracabeça literário e biográfico. Uma das peças desse jogo parece ser a natureza da relação contratual estabelecida entre o leitor e o espaço autoficcional em que se insere Becos da memória. Aqui, a figura autoral ajuda a criar imagens de outra(s) Evaristo(s), projetada(s) em seus personagens, como Maria-Nova, por exemplo. Em outras palavras, processa-se uma espécie de exercício de elasticidade de um eu-central. Desliza-se com facilidade na prosa de Evaristo entre o romance e a escrita de si. Se, tradicionalmente, aquele se preocupa com o universal humano e esta, com o particular ou com o indivíduo, a autora propõe a junção dos dois gêneros, pois, para ela, pensar a si é também pensar seu coletivo. Do ponto de vista formal não é diferente: não se utilizam capítulos, mas fragmentos, bem a gosto do narrador popular benjaminiano. Nessa perspectiva, vê-se o mundo através da ótica dos fragmentos e dos indivíduos anônimos que compõem boa parte da teia social.

Neste livro de corte tanto biográfico quanto memorialístico, nota-se o que a autora chama de escrevivência, ou seja, a escrita de um corpo, de uma condição, de uma experiência negra no Brasil. Tanto na vida da autora quanto em Becos da memória, a leitura antecede e nutre as escritas de Evaristo e de Maria-Nova, razão pela qual lutam contra a existência em condições desfavoráveis. Ler é também arquivar a si, pois se selecionam momentos e estratégias de elaboração do passado, o qual compõe as cenas vividas, escritas e recriadas em muitos de seus personagens. Finalmente, decodificar o universo das palavras, para a autora e para Maria-Nova, torna-se uma maneira de suportar o mundo, o que proporciona um duplo movimento de fuga e inserção no espaço. Não menos importante, a escrita também abarca estas duas possibilidades: evadir para sonhar e inserir-se para modificar.

O lugar de enunciação mostra-se solidário e identificado com os menos favorecidos, vale dizer, sobretudo, com o universo das mulheres negras. E o universo do sujeito autoral parece ser recriado através das caracterizações físicas, psicológicas, sociais e econômicas de suas personagens do gênero feminino. Maria-Nova, presente em Becos da memória, aos nossos olhos, compõe-se, mais do que todas as personagens, de rastros do sujeito autoral: menina, negra, habitante durante a infância de uma favela e que vê na escrita uma forma de expressão e resistência à sorte de seu existir. Uma ponte metafórica que arriscamos instalar permite ver em comum, ainda, o fato de serem provenientes de famílias sustentadas por matriarcas lavadeiras, transitantes entre os mundos da prosperidade e da miséria, ou seja, Conceição e Maria-Nova cumpriram, no espaço familiar em que estiveram, o papel de mediação cultural que aperfeiçoou o processo de bildung (confirma palavra em inglês?) de uma e de outra.

A obra se constrói, então, a partir de “rastros” fornecidos por aqueles três elementos formadores da escrevivência: corpo, condição e experiência. O primeiro elemento reporta à dimensão subjetiva do existir negro, arquivado na pele e na luta constante por afirmação e reversão de estereótipos. A representação do corpo funciona como ato sintomático de resistência e arquivo de impressões que a vida confere. O segundo elemento, a condição, aponta para um processo enunciativo fraterno e compreensivo com as várias personagens que povoam a obra. A experiência, por sua vez, funciona tanto como recurso estético quanto de construção retórica, a fim de atribuir credibilidade e poder de persuasão à narrativa. No livro em questão, a voz enunciativa, num tom de oralidade e reminiscência, desfia situações, senão verdadeiras, verossimilhantes, ocorridas no “morro do Pindura Saia”, espaço que bem se assemelha ao da infância da autora. Arriscamos dizer que há “jogo especular”, portanto, entre a experiência do sujeito empírico e de Maria-Nova, para além da simetria do espaço da narrativa (favela) e do espaço da infância e da juventude da autora (idem).

Outro bom exemplo de jogo especular consiste em uma situação por que realmente passou Evaristo e que se repete com Maria-Nova. Aliás, tem sido realmente um verdadeiro trauma para crianças negras estudar na escola tópicos relativos à escravidão e seus desdobramentos. Enquanto a professora se limitava à leitura de um conteúdo abstrato e com visão eurocêntrica acerca do passado escravocrata, Maria-Nova não conseguia enxergar naquele ato – e na escola – sentido para a concretude daquele assunto. Afinal, ela e a autora viviam e sentiam na pele as consequências da exploração do homem pelo homem na terra brasilis. Sujeito-mulher-negra, abandonada à própria sorte a partir do dia 14 de maio de 1888,

Maria-Nova olhou novamente a professora e a turma. Era uma história muito grande! Uma história viva que nascia das pessoas, do hoje, do agora. Era diferente de ler aquele texto. Assentou-se e, pela primeira vez, veio-lhe um pensamento: quem sabe escreveria esta história um dia? Quem sabe passaria para o papel o que estava escrito, cravado e gravado no seu corpo, na sua alma, na sua mente (p. 138).

A garota, ciente de que a história das lutas dos negros no Brasil começava já com as primeiras levas diaspóricas, parece repetir o célebre questionamento de Gayatri Spivac: “pode o subalterno falar?”. Mais que isso: falar, ser ouvido, redigir outra história, outra versão, outra epistemologia, que leve em conta não o arquivamento das versões dos vencidos, mas que valorize o sujeito comum, anônimo, do dia a dia. Talvez Maria-Nova nem tenha se dado conta de que o que ela havia pensado era exatamente a fundamentação de boa parte dos Estudos Pós-Coloniais e da História Nova. Nesse sentido, os corpos-textos de Maria-Nova e Conceição Evaristo possuem em comum a missão política de inventar outro futuro para si e para seu coletivo, o que lhes imbui de uma espécie de dever de memória e dever de escrita. Vejamos: “agora ela [Maria-Nova] já sabia qual seria a sua ferramenta, a escrita. Um dia, ela haveria de narrar, de fazer soar, de soltar as vozes, os murmúrios, os silêncios, o grito abafado que existia, que era de cada um e de todos. Maria-Nova, um dia, escreveria a fala de seu povo (p. 161).

E a escrita acompanhará a pequena até a última página do livro, o que nos permite pensar que a missão ainda está em processo: “não, ela [Maria-Nova] jamais deixaria a vida passar daquela forma tão disforme. […] Era preciso viver. ‘Viver do viver’. […] O pensamento veio rápido e claro como um raio. Um dia ela iria tudo escrever” (p. 147).

E escreveu em seu mundo de papel. Coube a Evaristo registrar o desejo de Maria-Nova e, logo, seu próprio desejo. O desdobramento de uma em outra e as pontes metafóricas que pretendemos instaurar não esgotam as possibilidades de leituras, mas permitem a possibilidade de muitas outras, que despertem o afã de também escrever.

Luiz Henrique Silva de Oliveira – Universidade Federal de Minas Gerais

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O filho eterno – TEZZA (REF)

TEZZA, Cristovão. O filho eterno. Rio de Janeiro: Record, 2007. Resenha de: CRISTOVÃO, Tezza. O filho eterno: uma leitura desejante. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.17, n.1  Jan./Apr. 2009.

O romance O filho eterno, de Cristovão Tezza, conta a história do amadurecimento de um homem com o nascimento de seu primeiro filho, uma criança com Síndrome de Down. A crítica literária de língua inglesa, sempre preocupada em ‘fichar’ um romance, chama esse gênero literário de coming-of-age novel ou bildungsroman. No entanto, na orelha do livro somos informados de que o escritor, Cristovão Tezza, baseia a história em sua própria vida, logo, um romance autobiográfico: “Num livro corajoso, Cristovão Tezza expõe as dificuldades, inúmeras, e as saborosas pequenas vitórias de criar um filho com síndrome de Down”. Folheando as primeiras páginas encontramos as epígrafes:

Queremos dizer a verdade e, no entanto, não dizemos a verdade. Descrevemos algo buscando fidelidade à verdade e, no entanto, o descrito é outra coisa que não a verdade.1

Um filho é como um espelho no qual o pai se vê, e, para o filho, o pai é por sua vez um espelho no qual ele se vê no futuro.2

A primeira fala sobre ‘verdade’ e a impossibilidade de a verdade ser apreendida mesmo quando a intenção é revelar a verdade. A segunda fala sobre ser pai e ser filho. Antes mesmo de iniciar a leitura, somos informados de que o romance tem como ponto de partida as memórias do escritor Cristovão Tezza, e, ele mesmo, na epígrafe, deixa claro que memórias são essas. Uma história baseada em fatos reais que não tem pretensão de ser a verdade. É a história do relacionamento de pai e filho – e, pela orelha do livro, somos informados de que se trata de um relacionamento com “dificuldades, inúmeras, e as saborosas pequenas vitórias”. Além disso, trata-se de um “livro corajoso” – o escritor é considerado corajoso ao relatar parte de sua vida, ao expor sua família e sua intimidade. Porém, confesso que me incomoda adjetivar o livro (e o escritor) de “corajoso”, pois “ser corajoso” me remete a livros com relatos (dramáticos) de histórias pessoais – “histórias de coragem e conquistas” – bem nos moldes do mote (ou mantra?) da propaganda política do governo: “sou brasileiro e não desisto nunca”. Talvez só eu tenha feito essa relação mental (que foi automática e com uma pitada de arrogância, admito), mas, de qualquer maneira, ler “livro corajoso” na orelha não me impediu, nem me desanimou, de ler o livro – a epígrafe me deu a impressão de que não se tratava de mais um “relato de coragem e determinação”. Claro que essa orelha foi escrita com propósitos comerciais, afinal, toda história e todo filme “baseados em fatos reais” encontram um certo apelo público. A ideia de alguém que viveu momentos difíceis e superou, ou que não superou, mas o final infeliz nos ensina a valorizar a vida e os momentos felizes. Coincidentemente, enquanto eu lia o livro e comentava, durante um almoço com uma amiga, a resposta dela foi: “Ah sei! Vi uma entrevista do autor e esse é o livro que ele escreveu sobre o filho com Down né? Anotei pra comprar. É uma história bonita?”. Respondi: “Bonita? Hmm… define ‘bonita'” (ela não quis ou não soube ou não vinha ao caso naquele almoço). Na hora, eu me lembrei do texto “O valor“, de Antoine Compagnon,3 e, automaticamente, vários outros textos foram pipocando na minha cabeça, textos sobre belo, estilo, estética, conceito de literário etc., como o do Ítalo Moriconi, “Circuitos contemporâneos do literário (indicações de pesquisa)”.4

Essa conversa apresenta parte da reflexão de Moriconi sobre o conceito de literário na atualidade. Para Moriconi, o processo material de criação da obra literária (ou obra de ficção), bem como a personalidade e a vida do autor desempenham papel determinante na divulgação, recepção de obras literárias (e artísticas) contemporâneas. Poderíamos aqui citar a presença do website do escritor Cristovão Tezza na orelha da contracapa do livro, após a breve informação biográfica. O culto à personalidade do autor e como esta aparece na obra estão implícitos nesse novo detalhe de algumas edições recentes. Como se, sob o aval da editora Record, o leitor obtivesse o endereço eletrônico de “um website oficial” – aos moldes de personalidades tornadas celebridades no mundo virtual, com inúmeros websites de fãs e com o respeitado website oficial.

Se na esfera pública clássica, pré-midiática, o autor era um “ser de papel” (como dele disse Barthes), ser virtual no sentido original da palavra virtual e não no sentido de virtual on line, hoje esse autor está disponível para apresentar seus materiais de trabalho, de tal maneira que a esfera do específico estético incorporou o making of como elemento de consideração. […] Considero que textos de depoimentos de artistas e de entrevistas sobre suas trajetórias biomateriais constituem corpus que fazem parte do conceito de literário atualmente. É que faz parte da definição de arte e literatura o objeto que se coloca em cena como representação do processo material de criação, como simulacro de uma situação de enunciação.5

Dispersa parcialmente da conversa, comecei a pensar sobre o meu adjetivo para aquela narrativa, aquele texto de ficção, texto literário, romance, romance autobiográfico. Sentei na frente do computador e comecei a escrever minha resenha. Meu adjetivo: sincero. Um livro sincero, um narrador sincero, uma história sincera. Sem pieguice, sem conquistas descritas em tom meloso, sem lágrimas fáceis de “histórias bonitas” – mas lágrimas sinceras de confissões que podem ser recebidas como um soco no estômago. A subversão de expectativas sociais em relação à paternidade: logo no início temos um pai que deseja secretamente a morte do filho assim que ele nasce. Durante todo o livro o leitor é confrontado com desejos e pensamentos ‘egoístas’ de um personagem, e esses fazem o leitor, a todo momento, pensar em seus desejos íntimos e secretos. A coragem aqui aparece nas revelações secas e cruéis dos desejos mais secretos de um personagem que não procura se redimir. E isso, para mim como leitora, é a força do romance. A preocupação do personagem em não se conformar, em não fazer parte de um sistema e em não ser mais um “idiota” é refletida na narrativa, que em nenhum momento se conforma aos moldes das narrativas “corajosas”.

O filho eterno é uma narrativa seca de desencantamento, em terceira pessoa, onde os personagens não têm nome, com exceção do filho, Felipe, e são chamados de “ele”, “o pai”, “a mulher”, “a mãe”, “a filha”, “a irmã”. Mesmo Felipe frequentemente aparece como “o filho” em contraposição ao “pai”. Não encontramos o lugar-comum, o apelo ao sentimento de pena e empatia, e, acredito, ser isso uma das qualidades de uma história que prende o leitor por não fornecer respostas e soluções óbvias, pelo contrário, a surpresa é uma constante durante a leitura. Percorremos a trajetória do personagem pai e, dentro de sua história, acompanhamos a trajetória do personagem filho, Felipe. O treinamento neurológico nos primeiros anos de vida do filho é contrastado com o ‘treinamento’ do pai em relação às tentativas de publicar seus livros e as recusas das editoras:

Eu também estou em treinamento, ele pensa, lembrando mais uma recusa de editora. A vida real começa a puxá-lo com violência para o chão, e ele ri imaginando-se no lugar do filho, coordenando braços e pernas para ficar em pé no mundo com um pouco mais de segurança (p. 130).

O crescimento e o desenvolvimento do filho são percebidos pelo pai nas representações de papéis sociais que o filho se esforça em cumprir (p. 211). Ao mesmo tempo, o pai descobre a alegria que a rotina traz e a tranquilidade conquistada com papéis sociais como “o professor universitário”, “o escritor”.

“O pai começa a descobrir sinais de maturidade no seu Peter Pan e eles existem, mas sempre como representação” (p. 218). O espelho no qual ambos, pai e filho, se veem é o espelho que reflete a representação dos papéis sociais. A percepção de mimetismo social no filho não está muito distante dos papéis que o pai é solicitado a cumprir socialmente na universidade, na família, na escola do filho, no campeonato de natação e na apresentação de teatro do filho. A dificuldade do pai é tão grande quanto a dificuldade do filho. A criança que vive eternamente no presente aprende a responder ao que é solicitado dela socialmente. O pai provisório, que só pensava em viver o presente, também aprende. E aqui é revelado o escritor por trás da narrativa. A sutileza ao contar os episódios na vida do pai e do filho é alcançda no contar da história, pois não há momentos de avaliação e reflexão em que paralelos são explicitamente estabelecidos. Esse trabalho é reservado ao leitor. E nesse momento me veio à cabeça um texto do qual eu gosto muito: “Freud’s Masterplot”, de Peter Brooks.6

Nesse texto, Brooks cria uma “teoria da narrativa” baseada no que ele chama de “teoria da vida”, criada por Freud em Além do princípio do prazer e baseada na leitura de Lacan dos conceitos freudianos de condensação e deslocamento, com seus análogos na linguagem, metáfora e metonímia, respectivamente. Se viver é a separação entre o nascimento e a morte, o meio da narrativa é o que separa o início do fim (sendo ambos, a morte e o fim, já presentes no nascimento e no início do texto). Sendo assim, resta ao indivíduo e ao leitor percorrer esse caminho árduo e prazeroso, evitando atalhos. Para Brooks, o meio do texto (o texto em si) é o local onde alguma forma de energia textual é ativada pelo leitor na interação entre leitor e texto. Na ficção, o perigo dos atalhos e da “morte repentina” é tarefa do escritor criador da narrativa e do leitor, que precisa ligar as redes metonímicas para alcançar a metáfora. Acredito que há no romance de Tezza essa preocupação em não deixar o leitor “morrer de repente”, ou, como indaga Roland Barthes sobre o prazer de ler, não abandonar o texto. E chego ao Barthes.

Em “Da leitura”, Barthes questiona a existência de um prazer de leitura, um prazer de ler, e conclui que existem, pelo menos, “três vias pelas quais a Imagem de leitura pode capturar o sujeito-leitor”: a) o estabelecimento de uma relação fetichista entre o leitor e o texto; b) “o prazer metonímico de toda narração”; e c) a leitura como condutora do desejo de escrever, desejo de Escritura.7 A leitura de O filho eterno foi, para mim, uma leitura permeada pelos três desejos destacados por Barthes. Como sujeito-leitor, passei de um “dever de leitura” para as vias assinaladas por Barthes, e, pessoalmente, foi o “prazer metonímico” da narrativa de Cristovão Tezza que tornou a leitura especial, uma “leitura desejante”.

Notas

1 Thomas BERNHARD apud Cristovão TEZZA.

2 Søren KIERKEGAARD apud TEZZA.

3 Antoine Compagnon, 2001.

4 Ítalo MORICONI, 2006.

5 Ítalo MORICONI, 2006, p. 161-162.

6 Peter BROOKS, 2007.

7 Roland BARTHES, 1988, p. 49.

Referências

BARTHES, Roland. “Da leitura”. In: ______. O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 43-52.         [ Links ]

BROOKS, Peter. “Freud’s Masterplot”. In: RICHTER, David H. (Ed.). The Critical Tradition. Boston: Bedford; St. Martin’s, 2007. p. 1161-1171.         [ Links ]

COMPAGNON, Antoine. “O valor”. In: ______. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte: UFMG, 2001. p. 225-255.         [ Links ]

MORICONI, Ítalo. “Circuitos contemporâneos do literário (indicações de pesquisa)”. Revista Gragoatá, Niterói, n. 20, p. 147-163, 1. sem. 2006.        [ Links ]

Marina Barbosa de Almeida – Universidade Federal de Santa Catarina

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San Manuel Bueno, Mártir | Miguel de Unamuno

Dentro de la narrativa de La Generación del Noventa y ocho en España, resulta imposible obviar a don Miguel de Unamuno y, con él, a una de sus obras menos difundida, San Manuel Bueno, Mártir. Novela que, según mi parecer, refleja de manera más intensa el conflicto mismo de su creador, dos fuerzas justificadas en una pugna irreconciliable: la razón y la intuición; esto es dos formas de conocer el mundo externo, lo que se traduce en el texto entre una oposición entre ciencia y fe; conocimiento positivo y saber significativo; un drama muy generalizado en el hombre globalizado y que resulta ser, en definitiva, una actualización del sentido trágico de la existencia propio del mundo griego; con Unamuno vivimos una incorporación de esta visión trágica que, en la literatura contemporánea, se universaliza en la oposición sistema-individuo, fundamento de la angustia contemporánea, drama que se refleja prácticamente en la totalidad de la literatura actual en cuyo contenido de la expresión subyace esta concepción dramática de la existencia humana.

Todo problema de lo trágico necesariamente encuentra sus raíces en la tragedia ática antigua, primer gran intento de objetivación de lo trágico1 (1) y es de allí que se proyecta de manera intermitente en la evolución de la literatura y del pensamiento occidental, reflejado en la obras de períodos inminentemente críticos. Don Miguel de Unamuno es uno de esos grandes centelleos, próximo a nuestros tiempos con plena vigencia y que resulta ser contradictorio en el tratamiento del tema en cuanto, cronológicamente se inserta en un período en que el positivismo de las ciencias lo copa todo y en donde es muy difícil el surgimiento de la percepción trágica de la existencia y, por cierto, de la angustia contemporánea; por lo que podemos suponer que su manifestación es un precedente importantísimo para las letras europea contemporáneas. Asimismo, en el seno de nuestra tradición hispana que, por su carácter religioso, aleja aún más toda posibilidad de manifestación trágica con una dimensión cósmica. Leia Mais

Os príncipes da Irlanda. Livro 1: a saga de Dublin | Edward Rutherfurd

O romance escrito pelo autor inglês radicado há mais de dez anos nas terras irlandesas – Edward Rutherfurd que, ao longo de suas quase setecentas páginas procura recontar a história da formação tanto de Dublin como da Irlanda, possui certa base de pesquisa histórica, alguma atualização nas discussões acadêmicas e historiográficas, mas, preservou em sua narrativa, imagens estereotipadas e temas polêmicos.

As duas primeiras partes do romance, Dubh Linn e Tara, envolvem o passado céltico da ilha, enfatizando os aspectos religiosos e sociais. A religiosidade pagã é mostrada com respeito e reverência, porém, com certo referencial da literatura esotérica atual, possuindo pouca ou nenhuma semelhança com as narrativas míticas irlandesas, embora conserve alguns nomes próprios que aparecem em textos como “Deidre” e “Noise”, por exemplo. Na questão do sacerdócio, o autor, ao mesmo tempo em que se mostra conhecedor de bibliografia especializada – ao descrever os druidas portando roupas e acessórios de pássaros, portanto realizando práticas xamânicas (ver AldhouseGreen, 2005: 195-197) em outras passagens da obra acaba cometendo erros (a posição de druida era hereditária, p. 30) ou assumindo posições equivocadas (as druidesas tendo o mesmo poder dos druidas e a mesma tonsura, p. 84, ou mesmo tendo um poder maior que os reis, p. 87).

Sobre polêmicas envolvendo o papel das druidesas ver Ellis (2001: 105-130). Na realidade, em nenhuma sociedade antiga a mulher teve papel religioso predominante em relação ao masculino, sendo essa representação da sacerdotisa amplamente poderosa um referencial anacrônico. Em seu estudo The World of the Druids, Miranda Green apresenta uma análise das fontes clássicas onde são descritas as funções dos druidas. Nessa obra, Green menciona que existiam mulheres sábias que poderiam ser aliadas dos druidas, mas, em hipótese alguma, podem ser consideradas druidesas. O uso da tonsura druídica por mulheres como aparece descrita no romance é uma licença poética do autor que, dentro do universo ficcional tem liberdade para criar, mas jamais pode conferir um caráter verdadeiro a essas criações. Essas descrições parecem estar aliadas ao discurso esotérico atual que procura mostrar que as mulheres eram realmente poderosas e detentoras de um conhecimento que foi perdido e que precisa ser resgatado.

Outras situações envolvendo mulheres também apresentam problemas, como a suposta liberdade feminina em relação à escolha do casamento (p. 42), outro anacronismo muito comum nos escritos contemporâneos e esotéricos sobre os Celtas. Essa liberdade feminina descrita e defendida no romance de Rutherfurd pode ter sido influenciada pelo romance As brumas de Avalon, onde a autora Marion Zimmer Bradley confere às personagens femininas um grande poder de decisão e de autoridade interferindo nas decisões de governantes e reis e subordinando os druidas ao seu comando. Essa visão da mulher é extremamente fantasiosa, pois descreve um poder feminino que nunca existiu, transformando a vida das mulheres radicalmente para melhor, mostrando assim que, no passado, as sociedades realmente eram harmônicas porque viviam sob uma ginecocracia e, tudo se degradou depois que as mulheres foram destituídas. Essa visão equivocada é infelizmente hoje defendida por correntes esotéricas que instigam as mulheres modernas a buscarem àquela liberdade; utopia essa que seria um retrocesso para as mulheres. Essa reivindicação de um grande poder feminino que foi perdido, mas que ainda persiste em alguma regiões, é defendido ferozmente por alguns acadêmicos que insistem em atribuir um poder druídico a algumas mulheres da Armórica atual. Conhecidas como “avós druidas”, essas mulheres seriam as detentoras e guardiãs de todo o saber que fora extinto com a chegada do cristianismo. O mais apropriado a dizer dessas mulheres é que elas não são os receptáculos do conhecimento advindo dos druidas, mas sim guardiãs das tradições folclóricas que podem sim ter reminiscências da cultura celta. Afirmações como estas partindo de acadêmicos estão travestidas de uma militância semelhante ao discurso esotérico que querem provar a todo custo que a cultura celta ainda se mantém pura e viva como nos séculos que antecederam a cristianização e que cabe às mulheres estabelecer esse resgate no presente. Teses como essas figuram muito bem no campo da ficção, não devendo em hipótese alguma ser levadas a sério no campo da investigação científica comprometida com a análise séria e criteriosa das fontes.

O terceiro capítulo, São Patrício, envolve o processo de cristianização da região. Neste momento, o autor mostra-se bem atualizado, demonstrando que o conhecimento sobre este personagem histórico é controverso e muito polêmico. Rutherfurd constrói a narrativa seguindo a atual concepção de que Patrício não teria sido o primeiro evangelizador da Irlanda, sendo antecedido por várias comunidades e até bispos, que após sua morte foram transformados em seus discípulos. Ou seja, uma construção hagiográfica dos fatos históricos (p. 220). A estratégia de evangelização adotada, primeiro converter os druidas e membros importantes para depois o restante das comunidades, também está presente no romance. Mesmo o intenso conflito entre mosteiros rivais foi citado (p. 202), demonstrando que o escritor não adotou nenhuma concepção idealista da fé cristã. No romance há uma perfeita integração entre cristão e pagãos, principalmente por parte dos druidas convertidos que aceitam a nova religião de forma pacífica encontrando pontos em comum com a antiga crença e até exaltando o cristianismo como a verdadeira religião e que só ela é capaz de conduzir os homens ao único criador. Uma passagem interessante da narrativa apresenta um diálogo entre a personagem Deirdre e o druida convertido Larine, onde este relata à sua interlocutora que “(…) a Igreja Cristã contém todo o saber do mundo romano”. (p.166). Essa afirmação do personagem demonstra o cristianismo como possuidor de uma herança do mundo clássico, e, aqueles que se convertem têm acesso a toda verdade humana. Por essa passagem é possível perceber uma clara exaltação ao cristianismo e da figura do bispo Patrício em detrimento da antiga religião e do conhecimento druídico.

O processo de invasão e colonização dos Vikings foi desenvolvido nos capítulos 4 e 5. O contexto social foi bem descrito, mostrando tanto os conflitos entre noruegueses e irlandeses, quanto suas interações e casamentos interétnicos. A descrição da famosa batalha de Clontarf, envolvendo o também famoso líder Brian Boru, ao contrário, foi pouco explorada em termos de narrativa militar, sendo por isso muito decepcionante.

Os piores momentos da obra foram a permanência de dois estereótipos. O primeiro é referente aos Celtas usarem um crânio como taça para brinde em comemorações e festas (p. 34). Trata-se de uma imagem literária fantasiosa, criada pelos gregos e perpetuada pelo medievo em diante (Langer 2003: 32). O segundo estereótipo, mais grave ainda, é a caracterização dos guerreiros Vikings portando elmos com chifres (p. 191). Uma fantasia criada e popularizada no Oitocentos, totalmente desmentida pela pesquisa acadêmica (Langer 2002: 07).

O romance de Rutherfurd possui muito mais qualidades que as obras do escritor brasileiro Orlando Paes Filho (como a série Angus), que deixa explícito em suas linhas uma profunda militância cristã mostrando desprezo por outras crenças que não estejam subordinadas à Igreja Católica, fato esse que compromete em muito a narrativa. Desagradando àqueles que, admiradores da literatura de aventura, não professam a mesma religião defendida com tanta veemência nos romances de Paes Filho, que jamais pode ser comparado a outros romances históricos como os escritos por Margareth Yourcenar, Bernard Cornwell ou José Saramago, deve este livro ser lido com critério.[1]

Nota

1. Esta resenha contou com a colaboração do Prof. Dr. Johnni Langer, especialmente nos capítulos 4 e 5, referentes aos Vikings na história da Irlanda.

Referências

ALDHOUSE-GREEEN, Miranda & Stephen. The Quest for the Shaman: shapeshifters, sorcerers and spirit-healers of Ancient Europe. London: Thames & Hudson, 2005.

CORRÁIN, Donnchadh Ó. Ireland, Wales, Man, and the Hebrides. In: SAWYER, Peter (Org.). The Oxford Illustrated History of the Vikings. London: Oxford Press, 1997, pp. 83-109.

ELLIS, Peter Berresford. Mujeres druidas. In: Druidas: el espíritu del mundo Celta. Madrid: Oberon, 2001, pp. 105-130.

GREEN, Miranda. The World of the Druids. London: Ed. Thames and Hudson, 1997.

LANGER, Johnni. The origins of the imaginary Viking. Viking Heritage Magazine 4, 2002, p. 07-09. Disponível em: http://www.abrem.org.br/viking.pdf Acessado em 20 de setembro de 2006.

_____ Mitos e verdades sobre um povo guerreiro. Universo fantástico da Idade Média 1 (1), 2003, pp. 31-33.

LANGER, Johnni & CAMPOS, Luciana de. Mini-curso: história da Irlanda Celta e Viking. Resumos, II Ciclo Internacional de Estudos Antigos e Medievais/VIII Ciclo de Estudos Antigos e Medievais. Assis: UNESP, 2006, pp. 58.

LUPI, João. Os druidas. Brathair 4 (1), 2004, pp. 70-7. Disponível em: www.brathair.com Acessado em 05 de Janeiro de 2007.

GUYONVARC’H, Christian-J. Magie, médicine et divination chez les Celtes. Paris: Éditions Payot, 1997.

OLIVIERI, Filippo Lourenço. A literatura irlandesa e as fontes clássicas e arqueológicas. Brathair 5 (1), 2005, pp. 45-55. Disponível em: www.brathair.com Acessado em 05 de Janeiro de 2007.

RAFTERY, Barry. Ireland: a world without the Romans. In: GREEN, Miranda J. (org.). The Celtic world. London: Routledge, 1996, pp. 636-653.

Luciana de Campos – Doutoranda em Letras UNESP/SJRP. E-mail: [email protected]


RUTHERFURD, Edward. Os príncipes da Irlanda. Livro 1: a saga de Dublin. São Paulo: Record, 2006. Resenha de: CAMPOS, Luciana de. A História da Irlanda, dos Celtas ao Medievo1. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.6, n.2, p. 122-124, 2006. Acessar publicação original [DR]

A misteriosa chama da Rainha Loana. Romance ilustrado | Umberto Eco

ECO, Umberto. A misteriosa chama da Rainha Loana. Romance ilustrado. Rio de Janeiro: Record, 2005. Resenha de: NEVES, Lucilia de Almeida. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.24, n.1, p.307-311, jan./jun. 2006.

Acesso apenas pelo link original [DR]

Eyewitness – THOMPSON (CSS)

THOMPSON, Margaret. Eyewitness. Vancouver: Ronsdale Press, 2000. 190p. Resenha de: MANDZUK, David; MANDZUK, Jayne. Canadian Social Studies, v.37, n.1, 2002.

Eyewitness by Margaret Thompson is a nicely crafted piece of historical fiction that is sure to appeal to young adolescents and adults alike. It tells the tale of Peter Mackenzie, a young boy who grows up without his parents in Fort St. James during the time of the Fur Trade in what is now British Columbia. In the book, Thompson interweaves a variety of interesting characters such as Sir George Simpson, Carrier Chief Kwah and James Douglas, many of whom actually lived during the time.

In our view, the book’s three major strengths are its rich descriptive passages, its ability to capture what life must have been really like for a child at the time, and its ability to capture both the respect and tension that characterized the relationship between Canada’s native people and the Europeans whose arrival changed the natives’ way of life forever. There are many passages throughout the novel that are rich in description and demonstrate Thompson’s love of language. One of these passages is found on page 70 where the protagonist of the story, Peter, describes the sled dogs and the beauty of a cold, winter’s night:

But on those winter nights so clear and cold that it seemed that the air must splinter and shiver into a million, tinkling shards, when the Northern Lights rippled and swelled across the sky, the dogs would waken and howl, filling the night with song, as if they, too, sensed the great silent chords that I could feel shuddering in my head as the lights swirled majestically overhead.

Another strength of the book is Thompson’s ability to recreate what life must have really been like for a child during the time of the Fur Trade. For instance, we learn what it is like to wake up with a skiff of snow at the foot of your bed, what it is like to eat fish for months on end, and the sheer tedium of waiting out the long Canadian winters. The following passage is particularly effective in this last regard:

There was little traffic between posts once the fish had been stored, the wood cut and the year’s returns packed and hauled away. The Fort settled into its dreamy winter state, the grey buildings huddled in the snow on their little eminence above the frozen lake, smoke from the tiny chimneys standing straight up in the still air, the inhabitants concentrating on keeping warm and whiling away the empty hours (p. 119).

A third strength of the book is Thompson’s ability to capture both the respect and tension between the native people and those of the Hudson’s Bay Company. In fact, Peter realizes how his friend’s people have probably been changed forever when he states that, in a sudden, bleak understanding, I realized how complicated life had become for Cadunda’s people, now that we were there, a different clan, with very different ideas, spreading everywhere and more of us coming all the time (p. 179).

Although we would recommend this book for young readers, we do have a few suggestions for the author and for teachers thinking of using this book with their classes. First, we felt that the cover was neither colourful enough nor eye-catching enough to attract the eyes of young readers who often rely on the title page to attract them to a book. Second, we both felt that a glossary would have helped the reader follow the story by explaining terms such as babiche and capot, words quite specific to Canada and the Fur Trade era. Finally, we believe that the novel might be reduced simply to an adventure story if students read the book without any knowledge of the Fur Trade and how it influenced settlement in Canada.

In general, however, we highly recommend this book for young adolescents and their teachers in the middle grades; in fact, it would be a wonderful complement to a Social Studies unit on the Fur Trade. For those middle years teachers who also integrate Social Studies with Language Arts, we believe that this book would be an excellent companion to Joan Clark’s The Hand of Robin Squires. Both books involve the interaction between white and native cultures, both take place in Canada, and both are jam-packed with action which is certainly an advantage in encouraging young adolescents to read!

David Mandzuk – Ph.D. Faculty of Education. University of Manitoba. Winnipeg, Manitoba.
Jayne Mandzuk – Grade 4 Student. Ryerson School. Winnipeg, Manitoba.

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A majestade do Xingu Z Moacyr Scliar

O novo romance de Moacyr Scliar, A majestade do Xingu, parece ser, a princípio, uma biografia romanceada do médico sanitarista Noel Nutels, imigrante russo de origem judaica que dedicou vida e profissão a cuidar dos índios brasileiros. Até aí não haveria nada de especial a destacar, uma vez que o romance seria unicamente a moldura que permitiria narrar a vida do biografado. A literatura seria apenas o expediente para cativar o leitor, e o interesse do texto reduzir-se-ia às peripécias da vida do médico. Mas, felizmente para a literatura, para a medicina e especialmente para o leitor, estamos diante de um texto que vai muito além de qualquer mecanismo mercadológico daquela espécie.

Felizmente para a literatura porque, ao invés de ser uma biografia romanceada, o livro constitui, antes de tudo, um romance, em que a biografia funciona como um catalisador, um ponto de partida e não de chegada. A diferença é vital: mais do que a vida do “médico dos índios”, o que importa ao autor são as relações dessa vida com o mundo que a cerca e, por extensão, com o mundo que nos cerca, a nós leitores. Não por acaso, a figura do narrador, um homem comum no leito de morte, meditando sobre sua vicia, ganha muito mais vulto do que a personagem de Noel Nutels. O médico paira sobre o texto, mas nunca é o seu centro absoluto, servindo antes de contraponto à vida e à narrativa desse moribundo, de onde emerge uma reflexão sobre a própria condição humana. Leia Mais

Santa Evita | Tomás Eloy

Resenhista

Regina Maria Rodrigues Behar


Referências desta Resenha

MARTÍNEZ, Tomáz Eloy. Santa Evita. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. Resenha de: BEHAR, Regina Maria Rodrigues. Não chores por mim, Argentina. SÆCULUM – Revista de História. João Pessoa, n. 3, p. 197-202, jan./dez. 1997.

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O último dos moicanos | James Fenimore Cooper

Resenhista

Alômia Abrantes

Referências desta Resenha


COOPER, James Fenimore. O último dos moicanos. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d. Resenha de: ABRANTES, Alômia. O último dos moicanos: uma aventura no estudo da América. SÆCULUM – Revista de História. João Pessoa, n. 1, p. 145-150, jul./dez. 1995.

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Bartleby, o escrivão – MELVILLE (RBH)

MELVILLE, Herman. Bartleby, o escrivão. Rio de Janeiro: Editora Record, s.d, 99p. Prólogo de Jorge Luis Borges. Resenha de: TRONCA, Italo A. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.5, n.8/9, p.217-220, set.1984/abr.1985.

Italo A. Tronca – Departamento de História/Unicamp

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