O socialismo utópico – BUBER (Ph)

BUBER, Martin. O socialismo utópico. São Paulo: perspectiva, 2007.Resenha de: CARVALHO, José Mauricio de. Philósophos, Goiânia, v. 22, n.1, p.249-264, jan./jun., 2017.

O livro, elaborado em doze capítulos, começa examinando o legado intelectual daqueles pensadores que os marxistas chamavam de socialistas utópicos. Seguem-se as análises das propostas de Gustav Landauer, Karl Marx e Vladimir Ilitch Lênin para a reforma da sociedade. Nos antepenúltimo e penúltimo capítulos Buber comentou a criação do Estado de Israel e as dificuldades do seu tempo. No último capítulo o autor exporá sistematicamente as próprias ideias sobre os mecanismos de mudança na sociedade e a forma de socialismo que lhe parece mais adequada. Então criticará os rumos históricos do socialismo marxista, contrapondo a experiência soviética à que estava se realizando na terra de Israel.

No capítulo inicial, o autor considera as razões pelas quais os marxistas denominaram seus predecessores de utópicos. A razão fundamental, esclarece, é que eles queriam a reorganização da sociedade mantendo a mesma sociedade, mesmo sem saber exatamente que sociedade surgiria com a expansão do proletariado. Buber esclarece o essencial da análise marxista (p. 10): “Foi a impossibilidade de compreender e dominar o problema do proletariado que deu azo ao aparecimento desses sistemas, que só poderiam ser imaginários, fantásticos e utópicos e que, no fundo, propunham a abolição de uma diferença de classes que estava apenas começando a processar-se e que, um dia, iria provocar a transformação geral da sociedade”. A crítica a esses socialistas foi desenvolvida especialmente no Manifesto Comunista. Seu autor, o filósofo e sociólogo Karl Marx (1818-1883), pretendia dar tratamento científico à reorganização da sociedade, pois os precursores do socialismo não lhe pareciam conscientes do desenvolvimento e dos problemas da sociedade industrial.

Segue-se o estudo dos chamados socialistas utópicos. O socialismo como proposta teórica, Buber sintetiza, é o anseio pelo justo, (p. 18): “anseio que se experimenta na visão religiosa ou filosófica, como revelação ou ideia e que, por sua essência, não pode se realizar no indivíduo, mas somente na comunidade humana”. E o justo tanto na ordem religiosa – a escatologia teológica ou filosófica, possui um sentido realista, realiza-se na sociedade. Há duas formas de escatologia, explica Buber (p. 21): “uma profética, que faz depender a preparação da redenção […] da força da resolução de todo homem a que se dirija; uma apocalíptica, para a qual o processo de redenção foi fixado desde a eternidade com todos os pormenores, com suas datas e prazos, e para cuja realização os homens servem apenas de instrumento”.

O pensamento escatológico se tornou, depois da Revolução Francesa, uma utopia. Por força da laicidade do pensamento iluminista, a crença ou redenção do homem ficou restrita à construção de uma sociedade justa nascida do esforço humano. Encontrando-se nessa perspectiva moderna e próxima do iluminismo, Marx e seu parceiro Friedrich Engels (1820-1895) explicam que os socialistas utópicos pretendem reorganizar a sociedade valendo-se da razão e dos esforços do homem. Para Buber, enquanto os socialistas chamados utópicos assumiam a escatologia profética, o pensamento de Marx e Engels, tornou-se prevalentemente, mesmo que não exclusivamente, articulador de uma escatologia apocalíptica. Além disso, o marxismo incorporou, mesmo negando que o fizesse, uma fé secreta na utopia, que os marxistas apenas enxergam nos socialistas que os antecederam. Na revisão do sentido dessas formas primeiras de socialismo denominadas utópicas, Buber identifica um esforço de renovação da sociedade pela superação da solidão na alma e pelo máximo de autonomia comunitária.

Essa solidão é própria, ele aponta, de uma sociedade de massas em sentido próximo ao indicado pelo filósofo espanhol Ortega y Gasset (1883-1955) (p. 25): “a sociedade é amorfa, invertebrada, pobre de estrutura”.

O terceiro capítulo retoma a questão do socialismo utópico e aprofunda as teorias de Claude Henry de Rouvroy, filósofo e Conde de Saint-Simon (1760-1825), François Marie Charles Fourier (1772-1837), filósofo e economista francês e de Robert Owen (1771-1858), reformista social e considerado um dos fundadores do socialismo.

Esses homens esperam ver surgir uma sociedade socialista não no futuro, mas no seu tempo. Os socialistas utópicos, para Buber, poderiam ser agrupados em dois grupos, um que antecede a geração e ao trabalho de Marx e Engels e outro contemporâneo. No primeiro grupo, Buber destaca a contribuição desses três socialistas começando pelo Conde de Saint Simon, defensor de uma sociedade dirigida por industriais e trabalhadores. Saint Simon sabia que uma sociedade que não caminhasse para a unidade, mas permanecesse dividida em duas classes teria sempre uma dirigente e outra dirigida. Por sua vez, Fourier julgava haver descoberto o segredo da associação social e de uma sociedade constituída com base nela, contra a herança da Revolução Francesa que era contrária tanto a associação como ao sindicato. Para Fourier, somente a associação entre as pessoas resolveria os problemas do Estado, pois representa a união dos interesses. Com a organização, os trabalhadores assalariados se transformariam em associados, alcançando um novo patamar de evolução social. Esse pensamento influencia a formação de cooperativas, mas devido à suas limitações, o socialismo utópico somente pode incorporá-lo, superando-o. Uma terceira formulação foi a de Robert Owen para quem uma autêntica comunidade não viria da propriedade comum, (p. 33): “mas de uma igualdade de direitos e facilidades”. Ele pretendia modificar as relações entre governantes e governados. Essa dicotomia permanecerá enquanto o homem estiver separado numa organização social que não favorece relações autênticas. As relações verdadeiras, assim lhe parece, viriam de dentro das comunidades e renovariam as formas de organização social existentes. Temos em síntese, Saint Simon que espera construir uma sociedade unitária para superar a dualidade; Fourier para quem isso somente seria possível em pequenas comunidades que busquem o próprio sustento e Owen que pensa que a mudança deveria ocorrer tanto nas pequenas células como nas grandes, sendo que a justiça na sociedade total somente ocorreria se começasse em suas células menores. Temos assim três formas complementares de socialismo utópico.

Segue-se o capítulo dedicado ao filósofo e economista francês Pierre Joseph Proudhon (1809-1865) para quem o socialismo, avalia Buber, promoveria o desenvolvimento da sociedade no cumprimento do seu destino. Proudhon retomou os princípios essenciais das teorias anteriores e as reconstruiu.

Não assumiu o determinismo hegeliano, mas entendeu que a razão orienta a História para a liberdade, devendo o homem apenas respeitar as leis da História. Ao contrário de Hegel, que concebeu uma dialética triádica da negação da negação ou da síntese dos opostos, Proudhon espera realizar uma síntese de todas as contradições. O problema que enfrenta é que nenhum princípio que pudesse nascer dessa síntese consegue abarcar e explicar toda uma época. No espaço político, Proudhon desconfia de toda centralização, manifestando sua preferência pelos costumes comunais. Como os grupos que formam as nações não são geralmente ouvidos tenta-se escutar os indivíduos, mas é necessário, para fazê-lo, criar um princípio de organização.

O futuro da sociedade depende de se entender o trabalho como financiador da empresa e da sua coletivização.

Desse entendimento depende o futuro dos trabalhadores, trabalharem todos uns para os outros e não todos para o proprietário. Quanto a centralização, política esta devia ser evitada, pois ele não a diferencia do centralismo absolutista.

Então pode-se dizer que Proudhon desejava, como Saint Simon, a reestruturação da sociedade, mas não queria que ela viesse de cima. O problema de suas teses é que elas não explicam se as novas unidades sociais conservariam os princípios geradores das unidades antigas e se seriam suficientes para promover a nova sociedade que ele espera ver surgir.

Depois de Proudhon, Buber examina as teses centrais do geógrafo russo Piotr Kropotkin (1842-1921) que pretende renovar o legado desse último. Kropotkin substitui as antinomias sociais do seu antecessor por uma luta pela existência e colaboração mútua. Quanto a sua ideia de Estado, ele a identifica com a tese centralista e seu enfoque não é a proteção contra o terror generalizado, ou a luta de todos contra todos (Hobbes), mas a proteção que oferece às comunidades que o integram. Sua crítica não é propriamente contra o Estado, mas contra a máquina do Estado centralista moderno. O problema da tese de Kropotkin é que ela não diferencia o Estado prepotente que nasce da máquina centralizadora e o Estado legítimo e necessário, protetor das comunidades que o formam. O certo é que o Estado legítimo tanto convive com a liberdade dos indivíduos como jamais chega a constituir-se definitivamente. De Proudhon, Kropotkin recupera a tese de que a transformação da sociedade somente viria com a Revolução e considera que a Revolução produziu o fenômeno político da centralização, mas não se deu conta que, no âmbito social, a Revolução é um fator desagregador e não de união. E então Buber comenta o que considera o ponto frágil de seu pensamento. Ele tem consciência de que seu projeto não se realizaria dentro de um Estado como o que existia em seu tempo, mas espera promover uma reforma na sociedade que começasse naqueles dias e não num futuro distante.

O capítulo 6 é dedicado ao exame das teses de seu amigo Gustav Landauer (1870-1919). Landauer percebeu que o Estado não é uma instituição que possa ser destruído pela revolução social, pois é (p. 63) “uma situação, uma relação entre os homens, um modo dos homens se conduzirem uns aos outros”. Para destruí-lo seria necessário criar novas formas de relação social que Landauer supõe possa estar no povo. Não se trata de uma categoria nova, mas da reformulação de comunidades que já existem nos Estados. Eis o essencial do seu pensamento (p. 67): “aqui se põe a descoberto a verdadeira relação entre nação e socialismo: a semelhança dos conacionais quanto à maneira de ser, linguagem, patrimônio de tradições, memória de um destino comum, constante predisposição para uma existência comunitária e, tão somente edificando essa existência, é que os povos podem ser reconstituídos”. O grande risco de pretender que as revoluções sociais modifiquem fundamentalmente os Estados é que eles não favorecerão sua própria destruição e as forças revolucionárias serão cooptadas pelas correntes políticas nele presentes. Acompanhando Proudhon e Kropotkin, Landauer entende que os ideais socialistas não podem se limitar ao que foi pensado numa geração.

Comenta Buber (p. 75): “o socialismo é uma criação contínua da comunidade dentro do gênero humano, na medida e na forma em que as condições momentâneas permitam que ele seja desejado e realizado”.

O capítulo seguinte é dedicado ao estudo das propostas cooperativistas. O método marxista que denominou de utópicos aos socialistas que o precederam, classificou as propostas cooperativistas de românticas, ou fora da realidade.

William King (1787-1865) médico inglês espera transformar as instituições sociais, valendo-se dos princípios do cristianismo. Para King, o trabalho é a base da organização social e ele está nas mãos dos trabalhadores. Ao se unirem os trabalhadores poderão adquirir os instrumentos de que necessitam para trabalhar, bem como a terra que necessitam para produzir. E as relações entre os homens nessa nova organização social nasceriam nessas cooperativas que, para King, traduzem a forma autêntica das relações humanas. Essas cooperativas são a base de uma realidade socialista que teria origem (p. 84): “com a criação de pequenas realidades socialistas em constante fusão e expansão”.

Embora essa trajetória não tenha se verificado, as cooperativas, especialmente as de consumo, se espalharam pela Europa. Outro defensor desse modelo de produção foi o francês Benjamin Buchez (1776-1860) que pensou, no seu país, a criação e expansão de cooperativas de produção.

Ele percebeu os riscos inerentes ao modelo cooperativista na medida em que os sócios fundadores podiam contratar empregados e funcionarem como capitalistas. É difícil superar a tentação de contratar pessoas para trabalhar para si. Para evitar esse encaminhamento na organização Buchez sugere medidas corretivas nas cooperativas como a incorporação dos empregados como novos cooperados e a necessidade de anualmente abrir a entidade a novos sócios.

Segue-se a proposta de Karl Marx de renovação social, tema do oitavo capítulo. Buber recorda que o socialismo utópico trabalha com a hipótese de que (p. 104): “uma sociedade profundamente estruturada poderá substituir ao Estado”. Essa seria a sociedade autêntica, formada em parte pelas comunidades já existentes e dentro de uma perspectiva temporal na qual as mudanças seriam as possíveis já naqueles dias. Buber considera que Marx pretende algo próximo aos socialistas utópicos, eliminar o Estado em geral, não apenas o Estado das classes. Se esse propósito era semelhante ao dos socialistas utópicos, Marx, diversamente, espera fazer isso (p. 107): “através de meios políticos, mediante um puro suicídio, por assim dizer, do princípio político”.

Ao propor que o proletariado vencedor do processo revolucionário tomasse conta do espaço político, fica-nos a dúvida de se não surgiria nesse grupo vencedor uma nova divisão social. Sem traçar uma linha clara sobre os limites do poder, o risco desse processo é gerar não uma disputa entre classes, mas entre indivíduos ou grupos. A partir de 1858, Marx começa a duvidar de que uma revolução socialista pudesse ser realizada numa escala mundial e mesmo se triunfaria na Europa. Nesse contexto, aproxima-se da ideia de uma reestruturação da sociedade, ainda que não aderisse a ela completamente. Considera a possibilidade de as cooperativas crescerem superando a ordem capitalista.

Porém, nos revela, no Manifesto Comunista, que essas pequenas experiências socialistas estavam fadadas ao fracasso.

E surge então um problema: como seria possível eliminar imediatamente o poder do Estado, antes mesmo de concluída a revolução se o processo revolucionário é ele mesmo autoritário? Parece a Buber, considerando o que escreve Engels em 1866, que a valorização das cooperativas era um pretexto. As cooperativas teriam, no marxismo, apenas função auxiliar no processo revolucionário. Portanto, o marxismo, conclui Buber, (p. 124): “não se empenhou em dar forma à nova existência social do homem”.

O capítulo nove é dedicado à herança soviética das ideias de Marx e Engels, pela análise das teses de Vladimir Ilitch Lênin (1870-1924). O caráter utópico dos socialistas antecessores a Marx parece estar em tentarem pensar os rumos do processo revolucionário. Marx nada diz disso. A contradição entre afirmar o princípio político ao invés do social, numa realidade que mantém o sistema político, foi disfarçada, por Lênin, com a tese de que o processo ainda estava em curso. E Lênin admite não saber o que surgiria com a extinção do Estado. Engels defendera a tese de (p.128): “que o Estado desaparecerá em consequência da futura revolução social, porque as funções públicas não serão mais políticas, mas administrativas”. E Lênin passou a falar do fim do Estado, mas ele, como Marx, não sabia como estruturar a sociedade depois da Revolução. Se destruir o Estado era o objetivo, ele não sabia contudo, como e nem quando isso seria possível. Ele explica que se refere aos resíduos burgueses presentes no Estado porque (p. 130): “o Estado, como poder especial de repressão, é indispensável”.

Lênin adota, então, posição oposta à pretendida por Marx e Engels. A partir dessa tese, Lênin e os bolchevistas, consideraram os soviets não órgãos de controle do governo, mas o próprio governo. A evolução do processo revolucionário mostra que Lênin irá apostar na crescente centralização do poder (p. 152): “de centros de produção governamentais e repartições governamentais um mecanismo de instituições de produção e consumo burocraticamente dirigidas e engatadas a uma engrenagem”. De um lado, admitia Lênin, a descentralização das cooperativas e de outro defendia a centralização das decisões, o que é uma incongruência traduzida pela avaliação crítica (p. 153): “quadratura do círculo”.

O capítulo X traz a experiência socialista em Israel. Essa experiência teve sucesso porque a união no novo país se baseou na construção de uma vida comunitária. Isso não se fez sem dificuldades, mas parecia alternativa mais bem sucedida que a experiência soviética. Ele explica (p. 162): “é a colônia cooperativa hebraica da Terra de Israel, com suas diferentes formas”. Apesar das dificuldades seu sucesso se explica: primeiro pela ausência de uma doutrina que a organizasse, sua evolução foi resposta aos problemas da vida real e da necessidade de trabalho dos produtores rurais.

Quando muito houve uma razão espiritual que os aproximou, mas que não afetou o caráter maleável da organização (p. 163): “as doutrinas bíblicas da justiça social”. Segundo: essas associações se formaram no espírito estabelecido no novo país, onde a elite dos precursores (halutzim) pensou o país como uma colônia comunitária. Assim os grupos comunitários não se fechavam em si mesmos, mas eram partes de uma comunidade nacional. Terceiro: a necessidade desses grupos comunitários (p. 164): “não só educasse para a autêntica vida comunitária aqueles que se incorporavam, mas que, também, exercesse uma influência construtiva e estruturadora sobre a periferia da sociedade”.

Embora colônia comunitária exercesse forte poder de atração, suas organizações eram ainda insuficientes para unificar a grande quantidade de pessoas que afluíam para a Terra de Israel. E a chegada desses novos moradores chamou atenção da elite de precursores que os aproximavam do destino comum. Aí se explicita a noção de comunidade autêntica para Buber. Ela (p. 166): “não precisa ser composta de homens que se façam constantemente companhia, deve ser constituída de homens, justamente como companheiros, sejam mutuamente receptivos e bem dispostos. Comunidade autêntica é aquela que, todos os aspectos de sua existência, possui potencialmente, o caráter de comunidade”.

Além do mais, essas pequenas comunidades de produtores possuíam força para resistir às tendências centralizadoras que pretendiam encerrá-las ou dividi-las. O problema foi que com o passar do tempo foi-se perdendo o sentido comunitário e apesar de colônias mais ricas ajudarem as mais pobres, a solidariedade diminuiu. Apesar dessas dificuldades, concluiu Buber, ao lado de Moscou, que é um dos polos do socialismo contemporâneo (p. 171): “atrevo- me a denominar o outro polo de Jerusalém”.

O penúltimo capítulo examina a crise que se estabeleceu depois da Primeira Grande Guerra. Não era a crise de um sistema da vida social, mas de todos e com sérias consequências. Buber escreveu (p. 173): “E, nessa crise, o que está em jogo é a própria existência do homem sobre a terra”.

Sobre o progresso humano, diz que não é uma avenida plana, mas uma marcha entre crises que se sucedem. Em seguida, Buber esclarece que a construção da vida social é a grande marca da presença humana no planeta e que ela, na modernidade, se acomodou ao Estado. O social ficou, pois, na dependência do político. O que fazer para enfrentar essa situação? Para Buber, o perigo a ser enfrentado era (p.177): “um centralismo planetário ilimitado que devore toda comunidade livre. Tudo depende de que o trabalho de cultivo da terra não seja entregue a um princípio político.” Perigo porque, para ele, o propósito da vida humana é a construção de uma comunidade autêntica o que equivale a uma organização (p. 178): “de conteúdo absolutamente comunitário”. Esse projeto não atende a um plano pré-concebido, mas à capacidade de responder aos problemas que a vida trouxer. E aqui se chega ao ponto central de sua tese, mesmo sem haver uma teoria definitiva que contemple o grande projeto de criação de uma comunidade autêntica, ela somente se forma em torno a um núcleo aglutinador. Ele explica a importância desse núcleo (p.180): “A gênese da comunidade só pode ser compreendida, quando se considera que seus membros têm uma relação comum com o centro e que essa relação é superior a todas as demais; o círculo é traçado pelos raios, não pelos pontos periféricos”. Esse centro, para o filósofo, é uma transparência para o divino. Há quem diga que a vida moderna não mais se organizará em torno desse centro, como era no passado. Contudo, contrapõe Buber, consiste nessa articulação entorno ao núcleo aglutinador e nas relações comunitárias menores inseridas em maiores, a melhor estratégia para enfrentar a crise. Ele concluiu (p. 183): “o ponto essencial é que o processo de formação de comunidades persista nas relações das comunidades entre si. Somente uma comunidade de comunidades poderá ser qualificada como ente comunitário”.

O capítulo final aprofunda o problema da subordinação da sociedade ao Estado. A formação de uma sociedade depende (p. 186): “dos homens encontrarem um estado de intervinculação ou que se unam entre si e, assim formando uma união já existente ou a ser fundada, criem uma sociedade”.

Ao olhar a evolução dos grupos humanos, Buber comenta a confusão entre os princípios social e político na antiguidade. No mundo grego, por exemplo, (p. 188): “ainda que nos seja dito, expressamente, que o homem foi criado não apenas para a comunidade política, mas também para a doméstica, ainda assim a polis é a consumação da koinonia (companherismo, participação, compartilhamento).

O mundo romano não ultrapassa essa deficiência de entendimento (p. 189): “para Cícero, não só o Estado é uma sociedade, mas simplesmente, uma societas vivium.” A Idade Média também não melhorou tal compreensão, pois entendeu a comunidade humana inserida numa unidade: Igreja ou Estado universal. O mundo moderno, com a formação do Estado Nacional, principia com a anulação da sociedade. Na formulação de Hobbes (p. 192): “o Estado que alcançou a perfeição eliminará também o último resquício de sociedade. Tal Estado perfeito chegou bem próximo daquele que atualmente denominamos de totalitário”.

A construção de uma ideia de sociedade, à parte do Estado, emerge da Revolução Francesa, mas a sociedade que surge é a burguesa. As tentativas de aprofundar a distinção entre os sistemas social e político podem ser encontradas em Saint Simon e Hegel. Esse último entende faltar, no Estado do seu tempo, o que é necessário para a formação de uma autêntica comunidade (p. 195): “legítima cooperação, solidariedade, auxílio mútuo, camaradagem fiel e entusiasmo ativo”. Essas teorias estiveram no limiar da construção da Sociologia, que somente surgiria com Marx e Lorenz von Stein, mas ambos ao considerarem a nova realidade social, a sociedade burguesa, afastaram-se dos esforços dos seus antecessores. Em Marx, o Estado é um instrumento da classe burguesa em defesa de seus interesses.

Por isso, ele espera substituí-lo por um outro Estado que faça surgir uma sociedade sem classes e depois se dissolva nela. Portanto, o grande problema da Sociologia é encontrar formas de relação entre os princípios social e político.

O que Buber entende necessário para dar efetividade ao propósito humano de construir uma comunidade autêntica é o estabelecimento (p. 197): “de uma sociedade de uma comunidade de povo, que não é composta de indivíduos, mas de sociedades e não, como achava Comte, apenas de famílias”. Esse projeto enfrenta obstáculo no medo que cada povo tem de seus vizinhos. O resultado é que (p. 199): “o princípio político em relação ao social é sempre mais forte”.

Daí que o enfrentamento da crise contemporânea passa pela construção de uma sociedade com relativa autonomia das comunidades locais e regionais. Assim, a maior força da comunidade economicamente e culturalmente produtiva, passa pelo fortalecimento das organizações sociais face ao poder político. Essa é a proposta de Buber para o enfrentamento da crise humana que o socialismo tentou resolver. Este livro esclarece as posições de Buber sobre o socialismo.

Explica porque as soluções socialistas, que foram desqualificadas pelos marxistas como utópicas e românticas, contêm uma melhor compreensão da dicotomia entre o social e o político. Tais propostas também lhe parecem melhor concebidas do que as de Marx e Engels, isto é, propõem a afirmação da Sociedade ante o Estado. Buber rejeita a visão apocalíptica da história, que Marx laicizou em sua teoria da História. Ele ainda procurou dissociar essa visão apocalíptica que enxerga no socialismo marxista da tradição judaica. Para ele, o essencial da tradição judaica é que os caminhos da história, dependem da ação dos homens que, com liberdade, contribuem para os planos de Deus. Nos socialismos denominados utópicos, além do respeito ao empenho pessoal, estão os melhores elementos para tratar a questão social que emerge da sociedade burguesa. Autores como Saint Simon e Fourier não projetam a solução do problema social no futuro, mas o enfrentam no seu tempo, na concretitude do aqui e agora, encaminhamento da questão que lhe parece mais adequada que as propostas do socialismo marxista.

A perspectiva buberiana de existência humana, bastante próxima das posições da fenomenologia existencial explica o essencial da crítica ao marxismo. Suas teses filosóficas estão descritas na sua filosofia do diálogo e especialmente no clássico Eu e Tu. São essas ideias que formam o pano de fundo das reflexões propostas nesse livro. O livro nos coloca também diante do fato de que a construção da Terra de Israel representa uma alternativa de efetivação do socialismo com maiores chances de sucesso do que o socialismo soviético. Assim ele avalia porque esse socialismo encontra- se sustentado na visão de sociedade e fé ensinada pelos profetas judeus. O socialismo, tal como o filósofo vê surgir em Israel, parece-lhe expressar o projeto humano de construir uma comunidade autêntica. As razões que elenca são coerentes a visão de existência da fenomenologia existencial.

Uma tal comunidade tem um centro irradiador que a unifica e é formada de comunidades livres, de pessoas livres, responsáveis pelo destino de suas vidas, que se associam em comunidades maiores igualmente livres. A construção de uma comunidade autêntica é o lado exterior da aspiração ao divino que ultrapassa a existência temporal e são sua forma de reconhecer a transcendência. Ela expressa o propósito de se aproximar de Deus e realizar tal projeto pautado no código mosaico e no reino de justiça anunciado pelos profetas que é a base dos modelos éticos prevalentes no ocidente.

Referências

BUBER, Martin. O socialismo utópico. São Paulo: Perspectiva, 2007.

José Mauricio de Carvalho – Professor do Instituto Presidente Tancredo de Almeida Neves (IPTAN), São João Del Rei, MG, Brasil. E-mail: [email protected]

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