O socialismo utópico – BUBER (Ph)

BUBER, Martin. O socialismo utópico. São Paulo: perspectiva, 2007.Resenha de: CARVALHO, José Mauricio de. Philósophos, Goiânia, v. 22, n.1, p.249-264, jan./jun., 2017.

O livro, elaborado em doze capítulos, começa examinando o legado intelectual daqueles pensadores que os marxistas chamavam de socialistas utópicos. Seguem-se as análises das propostas de Gustav Landauer, Karl Marx e Vladimir Ilitch Lênin para a reforma da sociedade. Nos antepenúltimo e penúltimo capítulos Buber comentou a criação do Estado de Israel e as dificuldades do seu tempo. No último capítulo o autor exporá sistematicamente as próprias ideias sobre os mecanismos de mudança na sociedade e a forma de socialismo que lhe parece mais adequada. Então criticará os rumos históricos do socialismo marxista, contrapondo a experiência soviética à que estava se realizando na terra de Israel.

No capítulo inicial, o autor considera as razões pelas quais os marxistas denominaram seus predecessores de utópicos. A razão fundamental, esclarece, é que eles queriam a reorganização da sociedade mantendo a mesma sociedade, mesmo sem saber exatamente que sociedade surgiria com a expansão do proletariado. Buber esclarece o essencial da análise marxista (p. 10): “Foi a impossibilidade de compreender e dominar o problema do proletariado que deu azo ao aparecimento desses sistemas, que só poderiam ser imaginários, fantásticos e utópicos e que, no fundo, propunham a abolição de uma diferença de classes que estava apenas começando a processar-se e que, um dia, iria provocar a transformação geral da sociedade”. A crítica a esses socialistas foi desenvolvida especialmente no Manifesto Comunista. Seu autor, o filósofo e sociólogo Karl Marx (1818-1883), pretendia dar tratamento científico à reorganização da sociedade, pois os precursores do socialismo não lhe pareciam conscientes do desenvolvimento e dos problemas da sociedade industrial.

Segue-se o estudo dos chamados socialistas utópicos. O socialismo como proposta teórica, Buber sintetiza, é o anseio pelo justo, (p. 18): “anseio que se experimenta na visão religiosa ou filosófica, como revelação ou ideia e que, por sua essência, não pode se realizar no indivíduo, mas somente na comunidade humana”. E o justo tanto na ordem religiosa – a escatologia teológica ou filosófica, possui um sentido realista, realiza-se na sociedade. Há duas formas de escatologia, explica Buber (p. 21): “uma profética, que faz depender a preparação da redenção […] da força da resolução de todo homem a que se dirija; uma apocalíptica, para a qual o processo de redenção foi fixado desde a eternidade com todos os pormenores, com suas datas e prazos, e para cuja realização os homens servem apenas de instrumento”.

O pensamento escatológico se tornou, depois da Revolução Francesa, uma utopia. Por força da laicidade do pensamento iluminista, a crença ou redenção do homem ficou restrita à construção de uma sociedade justa nascida do esforço humano. Encontrando-se nessa perspectiva moderna e próxima do iluminismo, Marx e seu parceiro Friedrich Engels (1820-1895) explicam que os socialistas utópicos pretendem reorganizar a sociedade valendo-se da razão e dos esforços do homem. Para Buber, enquanto os socialistas chamados utópicos assumiam a escatologia profética, o pensamento de Marx e Engels, tornou-se prevalentemente, mesmo que não exclusivamente, articulador de uma escatologia apocalíptica. Além disso, o marxismo incorporou, mesmo negando que o fizesse, uma fé secreta na utopia, que os marxistas apenas enxergam nos socialistas que os antecederam. Na revisão do sentido dessas formas primeiras de socialismo denominadas utópicas, Buber identifica um esforço de renovação da sociedade pela superação da solidão na alma e pelo máximo de autonomia comunitária.

Essa solidão é própria, ele aponta, de uma sociedade de massas em sentido próximo ao indicado pelo filósofo espanhol Ortega y Gasset (1883-1955) (p. 25): “a sociedade é amorfa, invertebrada, pobre de estrutura”.

O terceiro capítulo retoma a questão do socialismo utópico e aprofunda as teorias de Claude Henry de Rouvroy, filósofo e Conde de Saint-Simon (1760-1825), François Marie Charles Fourier (1772-1837), filósofo e economista francês e de Robert Owen (1771-1858), reformista social e considerado um dos fundadores do socialismo.

Esses homens esperam ver surgir uma sociedade socialista não no futuro, mas no seu tempo. Os socialistas utópicos, para Buber, poderiam ser agrupados em dois grupos, um que antecede a geração e ao trabalho de Marx e Engels e outro contemporâneo. No primeiro grupo, Buber destaca a contribuição desses três socialistas começando pelo Conde de Saint Simon, defensor de uma sociedade dirigida por industriais e trabalhadores. Saint Simon sabia que uma sociedade que não caminhasse para a unidade, mas permanecesse dividida em duas classes teria sempre uma dirigente e outra dirigida. Por sua vez, Fourier julgava haver descoberto o segredo da associação social e de uma sociedade constituída com base nela, contra a herança da Revolução Francesa que era contrária tanto a associação como ao sindicato. Para Fourier, somente a associação entre as pessoas resolveria os problemas do Estado, pois representa a união dos interesses. Com a organização, os trabalhadores assalariados se transformariam em associados, alcançando um novo patamar de evolução social. Esse pensamento influencia a formação de cooperativas, mas devido à suas limitações, o socialismo utópico somente pode incorporá-lo, superando-o. Uma terceira formulação foi a de Robert Owen para quem uma autêntica comunidade não viria da propriedade comum, (p. 33): “mas de uma igualdade de direitos e facilidades”. Ele pretendia modificar as relações entre governantes e governados. Essa dicotomia permanecerá enquanto o homem estiver separado numa organização social que não favorece relações autênticas. As relações verdadeiras, assim lhe parece, viriam de dentro das comunidades e renovariam as formas de organização social existentes. Temos em síntese, Saint Simon que espera construir uma sociedade unitária para superar a dualidade; Fourier para quem isso somente seria possível em pequenas comunidades que busquem o próprio sustento e Owen que pensa que a mudança deveria ocorrer tanto nas pequenas células como nas grandes, sendo que a justiça na sociedade total somente ocorreria se começasse em suas células menores. Temos assim três formas complementares de socialismo utópico.

Segue-se o capítulo dedicado ao filósofo e economista francês Pierre Joseph Proudhon (1809-1865) para quem o socialismo, avalia Buber, promoveria o desenvolvimento da sociedade no cumprimento do seu destino. Proudhon retomou os princípios essenciais das teorias anteriores e as reconstruiu.

Não assumiu o determinismo hegeliano, mas entendeu que a razão orienta a História para a liberdade, devendo o homem apenas respeitar as leis da História. Ao contrário de Hegel, que concebeu uma dialética triádica da negação da negação ou da síntese dos opostos, Proudhon espera realizar uma síntese de todas as contradições. O problema que enfrenta é que nenhum princípio que pudesse nascer dessa síntese consegue abarcar e explicar toda uma época. No espaço político, Proudhon desconfia de toda centralização, manifestando sua preferência pelos costumes comunais. Como os grupos que formam as nações não são geralmente ouvidos tenta-se escutar os indivíduos, mas é necessário, para fazê-lo, criar um princípio de organização.

O futuro da sociedade depende de se entender o trabalho como financiador da empresa e da sua coletivização.

Desse entendimento depende o futuro dos trabalhadores, trabalharem todos uns para os outros e não todos para o proprietário. Quanto a centralização, política esta devia ser evitada, pois ele não a diferencia do centralismo absolutista.

Então pode-se dizer que Proudhon desejava, como Saint Simon, a reestruturação da sociedade, mas não queria que ela viesse de cima. O problema de suas teses é que elas não explicam se as novas unidades sociais conservariam os princípios geradores das unidades antigas e se seriam suficientes para promover a nova sociedade que ele espera ver surgir.

Depois de Proudhon, Buber examina as teses centrais do geógrafo russo Piotr Kropotkin (1842-1921) que pretende renovar o legado desse último. Kropotkin substitui as antinomias sociais do seu antecessor por uma luta pela existência e colaboração mútua. Quanto a sua ideia de Estado, ele a identifica com a tese centralista e seu enfoque não é a proteção contra o terror generalizado, ou a luta de todos contra todos (Hobbes), mas a proteção que oferece às comunidades que o integram. Sua crítica não é propriamente contra o Estado, mas contra a máquina do Estado centralista moderno. O problema da tese de Kropotkin é que ela não diferencia o Estado prepotente que nasce da máquina centralizadora e o Estado legítimo e necessário, protetor das comunidades que o formam. O certo é que o Estado legítimo tanto convive com a liberdade dos indivíduos como jamais chega a constituir-se definitivamente. De Proudhon, Kropotkin recupera a tese de que a transformação da sociedade somente viria com a Revolução e considera que a Revolução produziu o fenômeno político da centralização, mas não se deu conta que, no âmbito social, a Revolução é um fator desagregador e não de união. E então Buber comenta o que considera o ponto frágil de seu pensamento. Ele tem consciência de que seu projeto não se realizaria dentro de um Estado como o que existia em seu tempo, mas espera promover uma reforma na sociedade que começasse naqueles dias e não num futuro distante.

O capítulo 6 é dedicado ao exame das teses de seu amigo Gustav Landauer (1870-1919). Landauer percebeu que o Estado não é uma instituição que possa ser destruído pela revolução social, pois é (p. 63) “uma situação, uma relação entre os homens, um modo dos homens se conduzirem uns aos outros”. Para destruí-lo seria necessário criar novas formas de relação social que Landauer supõe possa estar no povo. Não se trata de uma categoria nova, mas da reformulação de comunidades que já existem nos Estados. Eis o essencial do seu pensamento (p. 67): “aqui se põe a descoberto a verdadeira relação entre nação e socialismo: a semelhança dos conacionais quanto à maneira de ser, linguagem, patrimônio de tradições, memória de um destino comum, constante predisposição para uma existência comunitária e, tão somente edificando essa existência, é que os povos podem ser reconstituídos”. O grande risco de pretender que as revoluções sociais modifiquem fundamentalmente os Estados é que eles não favorecerão sua própria destruição e as forças revolucionárias serão cooptadas pelas correntes políticas nele presentes. Acompanhando Proudhon e Kropotkin, Landauer entende que os ideais socialistas não podem se limitar ao que foi pensado numa geração.

Comenta Buber (p. 75): “o socialismo é uma criação contínua da comunidade dentro do gênero humano, na medida e na forma em que as condições momentâneas permitam que ele seja desejado e realizado”.

O capítulo seguinte é dedicado ao estudo das propostas cooperativistas. O método marxista que denominou de utópicos aos socialistas que o precederam, classificou as propostas cooperativistas de românticas, ou fora da realidade.

William King (1787-1865) médico inglês espera transformar as instituições sociais, valendo-se dos princípios do cristianismo. Para King, o trabalho é a base da organização social e ele está nas mãos dos trabalhadores. Ao se unirem os trabalhadores poderão adquirir os instrumentos de que necessitam para trabalhar, bem como a terra que necessitam para produzir. E as relações entre os homens nessa nova organização social nasceriam nessas cooperativas que, para King, traduzem a forma autêntica das relações humanas. Essas cooperativas são a base de uma realidade socialista que teria origem (p. 84): “com a criação de pequenas realidades socialistas em constante fusão e expansão”.

Embora essa trajetória não tenha se verificado, as cooperativas, especialmente as de consumo, se espalharam pela Europa. Outro defensor desse modelo de produção foi o francês Benjamin Buchez (1776-1860) que pensou, no seu país, a criação e expansão de cooperativas de produção.

Ele percebeu os riscos inerentes ao modelo cooperativista na medida em que os sócios fundadores podiam contratar empregados e funcionarem como capitalistas. É difícil superar a tentação de contratar pessoas para trabalhar para si. Para evitar esse encaminhamento na organização Buchez sugere medidas corretivas nas cooperativas como a incorporação dos empregados como novos cooperados e a necessidade de anualmente abrir a entidade a novos sócios.

Segue-se a proposta de Karl Marx de renovação social, tema do oitavo capítulo. Buber recorda que o socialismo utópico trabalha com a hipótese de que (p. 104): “uma sociedade profundamente estruturada poderá substituir ao Estado”. Essa seria a sociedade autêntica, formada em parte pelas comunidades já existentes e dentro de uma perspectiva temporal na qual as mudanças seriam as possíveis já naqueles dias. Buber considera que Marx pretende algo próximo aos socialistas utópicos, eliminar o Estado em geral, não apenas o Estado das classes. Se esse propósito era semelhante ao dos socialistas utópicos, Marx, diversamente, espera fazer isso (p. 107): “através de meios políticos, mediante um puro suicídio, por assim dizer, do princípio político”.

Ao propor que o proletariado vencedor do processo revolucionário tomasse conta do espaço político, fica-nos a dúvida de se não surgiria nesse grupo vencedor uma nova divisão social. Sem traçar uma linha clara sobre os limites do poder, o risco desse processo é gerar não uma disputa entre classes, mas entre indivíduos ou grupos. A partir de 1858, Marx começa a duvidar de que uma revolução socialista pudesse ser realizada numa escala mundial e mesmo se triunfaria na Europa. Nesse contexto, aproxima-se da ideia de uma reestruturação da sociedade, ainda que não aderisse a ela completamente. Considera a possibilidade de as cooperativas crescerem superando a ordem capitalista.

Porém, nos revela, no Manifesto Comunista, que essas pequenas experiências socialistas estavam fadadas ao fracasso.

E surge então um problema: como seria possível eliminar imediatamente o poder do Estado, antes mesmo de concluída a revolução se o processo revolucionário é ele mesmo autoritário? Parece a Buber, considerando o que escreve Engels em 1866, que a valorização das cooperativas era um pretexto. As cooperativas teriam, no marxismo, apenas função auxiliar no processo revolucionário. Portanto, o marxismo, conclui Buber, (p. 124): “não se empenhou em dar forma à nova existência social do homem”.

O capítulo nove é dedicado à herança soviética das ideias de Marx e Engels, pela análise das teses de Vladimir Ilitch Lênin (1870-1924). O caráter utópico dos socialistas antecessores a Marx parece estar em tentarem pensar os rumos do processo revolucionário. Marx nada diz disso. A contradição entre afirmar o princípio político ao invés do social, numa realidade que mantém o sistema político, foi disfarçada, por Lênin, com a tese de que o processo ainda estava em curso. E Lênin admite não saber o que surgiria com a extinção do Estado. Engels defendera a tese de (p.128): “que o Estado desaparecerá em consequência da futura revolução social, porque as funções públicas não serão mais políticas, mas administrativas”. E Lênin passou a falar do fim do Estado, mas ele, como Marx, não sabia como estruturar a sociedade depois da Revolução. Se destruir o Estado era o objetivo, ele não sabia contudo, como e nem quando isso seria possível. Ele explica que se refere aos resíduos burgueses presentes no Estado porque (p. 130): “o Estado, como poder especial de repressão, é indispensável”.

Lênin adota, então, posição oposta à pretendida por Marx e Engels. A partir dessa tese, Lênin e os bolchevistas, consideraram os soviets não órgãos de controle do governo, mas o próprio governo. A evolução do processo revolucionário mostra que Lênin irá apostar na crescente centralização do poder (p. 152): “de centros de produção governamentais e repartições governamentais um mecanismo de instituições de produção e consumo burocraticamente dirigidas e engatadas a uma engrenagem”. De um lado, admitia Lênin, a descentralização das cooperativas e de outro defendia a centralização das decisões, o que é uma incongruência traduzida pela avaliação crítica (p. 153): “quadratura do círculo”.

O capítulo X traz a experiência socialista em Israel. Essa experiência teve sucesso porque a união no novo país se baseou na construção de uma vida comunitária. Isso não se fez sem dificuldades, mas parecia alternativa mais bem sucedida que a experiência soviética. Ele explica (p. 162): “é a colônia cooperativa hebraica da Terra de Israel, com suas diferentes formas”. Apesar das dificuldades seu sucesso se explica: primeiro pela ausência de uma doutrina que a organizasse, sua evolução foi resposta aos problemas da vida real e da necessidade de trabalho dos produtores rurais.

Quando muito houve uma razão espiritual que os aproximou, mas que não afetou o caráter maleável da organização (p. 163): “as doutrinas bíblicas da justiça social”. Segundo: essas associações se formaram no espírito estabelecido no novo país, onde a elite dos precursores (halutzim) pensou o país como uma colônia comunitária. Assim os grupos comunitários não se fechavam em si mesmos, mas eram partes de uma comunidade nacional. Terceiro: a necessidade desses grupos comunitários (p. 164): “não só educasse para a autêntica vida comunitária aqueles que se incorporavam, mas que, também, exercesse uma influência construtiva e estruturadora sobre a periferia da sociedade”.

Embora colônia comunitária exercesse forte poder de atração, suas organizações eram ainda insuficientes para unificar a grande quantidade de pessoas que afluíam para a Terra de Israel. E a chegada desses novos moradores chamou atenção da elite de precursores que os aproximavam do destino comum. Aí se explicita a noção de comunidade autêntica para Buber. Ela (p. 166): “não precisa ser composta de homens que se façam constantemente companhia, deve ser constituída de homens, justamente como companheiros, sejam mutuamente receptivos e bem dispostos. Comunidade autêntica é aquela que, todos os aspectos de sua existência, possui potencialmente, o caráter de comunidade”.

Além do mais, essas pequenas comunidades de produtores possuíam força para resistir às tendências centralizadoras que pretendiam encerrá-las ou dividi-las. O problema foi que com o passar do tempo foi-se perdendo o sentido comunitário e apesar de colônias mais ricas ajudarem as mais pobres, a solidariedade diminuiu. Apesar dessas dificuldades, concluiu Buber, ao lado de Moscou, que é um dos polos do socialismo contemporâneo (p. 171): “atrevo- me a denominar o outro polo de Jerusalém”.

O penúltimo capítulo examina a crise que se estabeleceu depois da Primeira Grande Guerra. Não era a crise de um sistema da vida social, mas de todos e com sérias consequências. Buber escreveu (p. 173): “E, nessa crise, o que está em jogo é a própria existência do homem sobre a terra”.

Sobre o progresso humano, diz que não é uma avenida plana, mas uma marcha entre crises que se sucedem. Em seguida, Buber esclarece que a construção da vida social é a grande marca da presença humana no planeta e que ela, na modernidade, se acomodou ao Estado. O social ficou, pois, na dependência do político. O que fazer para enfrentar essa situação? Para Buber, o perigo a ser enfrentado era (p.177): “um centralismo planetário ilimitado que devore toda comunidade livre. Tudo depende de que o trabalho de cultivo da terra não seja entregue a um princípio político.” Perigo porque, para ele, o propósito da vida humana é a construção de uma comunidade autêntica o que equivale a uma organização (p. 178): “de conteúdo absolutamente comunitário”. Esse projeto não atende a um plano pré-concebido, mas à capacidade de responder aos problemas que a vida trouxer. E aqui se chega ao ponto central de sua tese, mesmo sem haver uma teoria definitiva que contemple o grande projeto de criação de uma comunidade autêntica, ela somente se forma em torno a um núcleo aglutinador. Ele explica a importância desse núcleo (p.180): “A gênese da comunidade só pode ser compreendida, quando se considera que seus membros têm uma relação comum com o centro e que essa relação é superior a todas as demais; o círculo é traçado pelos raios, não pelos pontos periféricos”. Esse centro, para o filósofo, é uma transparência para o divino. Há quem diga que a vida moderna não mais se organizará em torno desse centro, como era no passado. Contudo, contrapõe Buber, consiste nessa articulação entorno ao núcleo aglutinador e nas relações comunitárias menores inseridas em maiores, a melhor estratégia para enfrentar a crise. Ele concluiu (p. 183): “o ponto essencial é que o processo de formação de comunidades persista nas relações das comunidades entre si. Somente uma comunidade de comunidades poderá ser qualificada como ente comunitário”.

O capítulo final aprofunda o problema da subordinação da sociedade ao Estado. A formação de uma sociedade depende (p. 186): “dos homens encontrarem um estado de intervinculação ou que se unam entre si e, assim formando uma união já existente ou a ser fundada, criem uma sociedade”.

Ao olhar a evolução dos grupos humanos, Buber comenta a confusão entre os princípios social e político na antiguidade. No mundo grego, por exemplo, (p. 188): “ainda que nos seja dito, expressamente, que o homem foi criado não apenas para a comunidade política, mas também para a doméstica, ainda assim a polis é a consumação da koinonia (companherismo, participação, compartilhamento).

O mundo romano não ultrapassa essa deficiência de entendimento (p. 189): “para Cícero, não só o Estado é uma sociedade, mas simplesmente, uma societas vivium.” A Idade Média também não melhorou tal compreensão, pois entendeu a comunidade humana inserida numa unidade: Igreja ou Estado universal. O mundo moderno, com a formação do Estado Nacional, principia com a anulação da sociedade. Na formulação de Hobbes (p. 192): “o Estado que alcançou a perfeição eliminará também o último resquício de sociedade. Tal Estado perfeito chegou bem próximo daquele que atualmente denominamos de totalitário”.

A construção de uma ideia de sociedade, à parte do Estado, emerge da Revolução Francesa, mas a sociedade que surge é a burguesa. As tentativas de aprofundar a distinção entre os sistemas social e político podem ser encontradas em Saint Simon e Hegel. Esse último entende faltar, no Estado do seu tempo, o que é necessário para a formação de uma autêntica comunidade (p. 195): “legítima cooperação, solidariedade, auxílio mútuo, camaradagem fiel e entusiasmo ativo”. Essas teorias estiveram no limiar da construção da Sociologia, que somente surgiria com Marx e Lorenz von Stein, mas ambos ao considerarem a nova realidade social, a sociedade burguesa, afastaram-se dos esforços dos seus antecessores. Em Marx, o Estado é um instrumento da classe burguesa em defesa de seus interesses.

Por isso, ele espera substituí-lo por um outro Estado que faça surgir uma sociedade sem classes e depois se dissolva nela. Portanto, o grande problema da Sociologia é encontrar formas de relação entre os princípios social e político.

O que Buber entende necessário para dar efetividade ao propósito humano de construir uma comunidade autêntica é o estabelecimento (p. 197): “de uma sociedade de uma comunidade de povo, que não é composta de indivíduos, mas de sociedades e não, como achava Comte, apenas de famílias”. Esse projeto enfrenta obstáculo no medo que cada povo tem de seus vizinhos. O resultado é que (p. 199): “o princípio político em relação ao social é sempre mais forte”.

Daí que o enfrentamento da crise contemporânea passa pela construção de uma sociedade com relativa autonomia das comunidades locais e regionais. Assim, a maior força da comunidade economicamente e culturalmente produtiva, passa pelo fortalecimento das organizações sociais face ao poder político. Essa é a proposta de Buber para o enfrentamento da crise humana que o socialismo tentou resolver. Este livro esclarece as posições de Buber sobre o socialismo.

Explica porque as soluções socialistas, que foram desqualificadas pelos marxistas como utópicas e românticas, contêm uma melhor compreensão da dicotomia entre o social e o político. Tais propostas também lhe parecem melhor concebidas do que as de Marx e Engels, isto é, propõem a afirmação da Sociedade ante o Estado. Buber rejeita a visão apocalíptica da história, que Marx laicizou em sua teoria da História. Ele ainda procurou dissociar essa visão apocalíptica que enxerga no socialismo marxista da tradição judaica. Para ele, o essencial da tradição judaica é que os caminhos da história, dependem da ação dos homens que, com liberdade, contribuem para os planos de Deus. Nos socialismos denominados utópicos, além do respeito ao empenho pessoal, estão os melhores elementos para tratar a questão social que emerge da sociedade burguesa. Autores como Saint Simon e Fourier não projetam a solução do problema social no futuro, mas o enfrentam no seu tempo, na concretitude do aqui e agora, encaminhamento da questão que lhe parece mais adequada que as propostas do socialismo marxista.

A perspectiva buberiana de existência humana, bastante próxima das posições da fenomenologia existencial explica o essencial da crítica ao marxismo. Suas teses filosóficas estão descritas na sua filosofia do diálogo e especialmente no clássico Eu e Tu. São essas ideias que formam o pano de fundo das reflexões propostas nesse livro. O livro nos coloca também diante do fato de que a construção da Terra de Israel representa uma alternativa de efetivação do socialismo com maiores chances de sucesso do que o socialismo soviético. Assim ele avalia porque esse socialismo encontra- se sustentado na visão de sociedade e fé ensinada pelos profetas judeus. O socialismo, tal como o filósofo vê surgir em Israel, parece-lhe expressar o projeto humano de construir uma comunidade autêntica. As razões que elenca são coerentes a visão de existência da fenomenologia existencial.

Uma tal comunidade tem um centro irradiador que a unifica e é formada de comunidades livres, de pessoas livres, responsáveis pelo destino de suas vidas, que se associam em comunidades maiores igualmente livres. A construção de uma comunidade autêntica é o lado exterior da aspiração ao divino que ultrapassa a existência temporal e são sua forma de reconhecer a transcendência. Ela expressa o propósito de se aproximar de Deus e realizar tal projeto pautado no código mosaico e no reino de justiça anunciado pelos profetas que é a base dos modelos éticos prevalentes no ocidente.

Referências

BUBER, Martin. O socialismo utópico. São Paulo: Perspectiva, 2007.

José Mauricio de Carvalho – Professor do Instituto Presidente Tancredo de Almeida Neves (IPTAN), São João Del Rei, MG, Brasil. E-mail: [email protected]

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Ciência: pesquisa, métodos e normas – DAU; DAU (ARF)

DAU, Shirley e DAU, Sandro. Ciência: pesquisa, métodos e normas. Mutum: Expresso, 2013, 173 p. Resenha de: CARVALHO, José Maurício. Argumentos – Revista de Filosofia, Fortaleza, n.13, jan./jun. 2015.

Os autores são professores de Filosofia e trabalham com Metodologia Científica há anos, havendo publicado diversas obras sobre o assunto. Sandro é Doutor em Filosofia com estágio de pós-doutorado em Ética e Shirley é mestre em Filosofia e estuda Filosofia analítica, Lógica e Linguagem. Dedicam-se também a Epistemologia e História das ciências.

Este livro foi organizado em 16 capítulos e trata da pesquisa científica e sua divulgação. Parte da fundamentação teórica dos estudos científicos para a especificidade das práticas de investigação que contribuem para o desenvolvimento da ciência. Os autores abordam, como atividades práticas, o processo de construção: do projeto e da pesquisa em geral, dos resumos, referências, monografias, relatórios técnico-científicos e artigos científicos.

No capítulo inicial os autores examinam a especificidade dos textos científicos e oferecem técnicas de divisão e interpretação das partes que permitam a boa compreensão desses textos. Esclarecem a diferença entre comentário e explicação, mostrando que a segunda prevalece sobre o primeiro, porque é anterior e restringe-se ao texto, enquanto o comentário pressupõe a explicação, interroga e não se restringe ao texto.

Segue-se o capítulo dedicado aos métodos utilizados na ciência. Eles são apresentados como “caminho estabelecido por determinada ciência, a fim de conseguir conhecimentos válidos por intermédio de instrumentos confiáveis” (p. 17) ou, mais rigorosamente, citando os autores L. Liard, como “conjunto de processos de conhecimento que constituem a forma de uma determinada ciência” (id, p. 17). Neste caso o método possui uma base lógica e dois pontos básicos: reprodutibilidade e falsificabilidade. O primeiro ponto significa que a pesquisa ou experimento pode ser repetido por qualquer pesquisador e o outro que suas hipóteses podem ser recusadas ou falsificadas. As ciências usam variados métodos e, portanto, a escolha do método deve se adequar ao problema e tratamento escolhidos pelo pesquisador. Os autores explicam que a ciência moderna desenvolveu-se partindo da observação, da formulação de hipóteses falsificáveis, da indução ou colocação das hipóteses à prova, da interpretação dos resultados e formulação da teoria, estabelecimento da conclusão.

O capítulo terceiro trata do resultado dos experimentos consolidados em teorias que são fundamentais em qualquer ciência. Os autores aproximam a origem da Ciência com o da Filosofia, remetendo-a ao século VI a. C. na antiga Grécia. Esclarecem que a Ciência moderna, cujo método foi desenvolvido por Galileu Galilei, ganhou perfil diferente e afastou-se da Filosofia e Ciência antes praticadas, adotando “experiências rigorosas, organizadas em leis gerais, por outras palavras, é qualquer corpo de conhecimentos fundado em observações dignas de fé e organizado no sistema de proposições ou leis gerais” (p. 26). Ao tratar da especificidade da Ciência moderna estruturada na razão aplicada (experimental), os autores a diferenciam da Filosofia que se baseia na razão pura; da Religião que usa a fé, possui caráter mais subjetivo e depende da crença de cada um, e da Arte baseada na intuição e não na razão. Eles diferenciam o método indutivo, que vai do particular para o geral, do método dedutivo, que segue o caminho inverso. O conhecimento científico, de modo geral, possui os seguintes traços: “classificar os conhecimentos, descrever os fatos, explicar os fenômenos; interpretar os diferentes casos; ser autocorretivo, experimental, descritivo, particular, cumulativo, operativo” (p. 31). Os autores esclarecem que o conhecimento científico é parcimonioso, isto é, prefere explicações simples. Salientam o propósito da ciência de construir teorias que expliquem os fenômenos e se referem à estas teorias como “uma visão sobre um tema” (p. 40). Eles as caracterizam como possuidoras de “definição rigorosa; coerência interna, generalização por meio de deduções, ampliação do conhecimento” (p. 40). Destacam ainda a utilidade das teorias como critério para sua continuidade.

O capítulo IV é dedicado ao estudo dos conceitos, que são a base da ciência. Contudo, comentam os autores, que não basta reunir conceitos para chegar a uma ciência, é preciso que os conceitos estejam organizados em teorias, cujas características foram examinadas no capítulo anterior. O conhecimento adequado dos conceitos é um bom critério para saber se se conhece uma teoria e para organizar o debate, pois “aquele que afirma e aquele que pergunta, devem ter claro qual o significado do conceito empregado” (p. 44).

Um conceito científico caracteriza-se “por ter um significado claro, preciso e abstrato, que não resulta de preferências, de gostos e de anseios individuais” (p. 44). Contudo, a característica principal de um conceito científico é “identificação dos elementos centrais daquilo que é estudado” (p. 45) e não se referir “a um caso único, a um fenômeno, mas a classes, a grupos, a relações, etc.” (p. 45). A compreensão de um grupo de conceitos que estão numa ciência dirige o olhar do cientista, assim ele perceberá o fenômeno com os olhos da ciência que lhe é familiar, ou “cada um perceberá o mundo com os conceitos que for condicionado” (p. 46).

Segue-se um capítulo dedicado a verdade. Os autores tratam dos critérios de verdade estabelecidos por três grandes escolas filosóficas: realismo (relação entre a consciência e a coisa), idealismo (coerência interna) e pragmatismo (utilidade das afirmações). No que se refere propriamente às verdades científicas, elas se dividem em três tipos: as que se limitam a formular o que pode ser exato, as que aceitam a probabilidade e aquelas que se abrem à possibilidade do mundo de cada pessoa influir no conhecimento. Estas últimas são as ciências humanas que, com base na fenomenologia, reconhecem, por baixo dos fatos objetivamente descritos, elementos do chamado mundo da vida. No que se refere à relação dos fatos, os autores distinguem as verdades lógico-formais, das objetivas, ontológicas e morais. Poderíamos entender as primeiras como as da Lógica e Matemática, as segundas como as das Ciências da natureza e as duas últimas da Filosofia. Quanto a relação com a verdade ela pode produzir quatro tipos de dúvidas: “espontânea, refletida, metódica e universal.” (p. 53). A primeira é aquela em que a pessoa não emite juízo sobre algo, mesmo que tenha elementos para fazê-lo, a segunda nasce da ausência de elementos necessários à conclusão, a terceira é um tipo de método empregado para chegar a uma verdade indubitável e a última refere-se à posição dos céticos, que negam a possibilidade de chegar a verdades fundamentais.

Quanto aos critérios de verdade os autores apontam seis: a autoridade (abandonada pelas ciências modernas), a evidência (o que aparece para o indivíduo), o senso comum (uma espécie de instinto comum), a necessidade lógica (ausência de contradição) e a experiência.

O capítulo VI estuda a pesquisa científica e os autores a definem como a que utiliza “métodos racionais, científicos, na comprovação ou não, das teorias apresentadas” (p. 57). Eles apresentam como objetivo da pesquisa científica “encontrar respostas coerentes, para os problemas (questões) propostos pelo pesquisador” (p. 58) e diferenciam as pesquisas quantitativas, que trabalham com a quantificação das variáveis, das qualitativas, mais empregadas nas ciências humanas. Esclarecem que essas últimas se desenvolveram no século passado e resumem o debate então realizado entre os intérpretes das chamadas ciências duras e as outras. Tratam, ainda que superficialmente, dos limites da razão experimental que foi desenvolvida na modernidade para tratar dos problemas do homem, assunto da fenomenologia.

A partir do capítulo VII o livro ganha um caráter prático, orientando o leitor em como utilizar as técnicas empregadas na pesquisa científica. Distinguem esquema, resumo e fichamento. Esclarecem que esquema “permite ao estudante compreender uma obra em seu todo” (p.63). Eles propõem no capítulo VIII o resumo como “apresentação concisa de um texto qualquer” (p. 65) e tratam no capítulo IX de um tipo especial de Resumo denominado Resenha.

Explicam que Resenhas são um tipo específico de resumo seguido de comentário crítico, por isto dizem que eles devem ser “elaborados por especialistas” (p. 67). Normalmente as revistas científicas recebem bem este tipo de resumo dedicando-lhe uma parte própria, porque é importante aos especialistas da área terem um resumo comentado das obras daquela ciência pois não é possível, hoje em dia, ler tudo que se publica nas diversas áreas da ciência.

O capítulo X é dedicado ao fichamento, definido como técnica para “guardar um grande número de informações sobre um documento em pequeno espaço.” (p. 69). O fichamento pode ser da obra toda ou de uma parte, além de conter citações que serão úteis na elaboração do trabalho que pretende fazer. O capítulo XI é um resumo da NBR 10520 e explica como fazer citações curtas e longas. Segue-se um capítulo sobre como fazer referências, resumo da NBR 6023, de livros, monografias, periódicos, eventos, trabalhos em eventos, legislação, jurisprudência, doutrinas, filmes, documentos cartográficos e sonoros.

O capítulo XIII explica como se faz um projeto de pesquisa, apresentado como “caminho que será percorrido, no estudo do problema proposto” (p. 97).

Os autores detalham os elementos imprescindíveis do projeto (capa, folha de rosto, sumário, apresentação, justificativa, área de concentração, natureza, delimitação do assunto, revisão da literatura, problema, hipóteses, procedimento, análise dos dados, objetivos, conteúdo, metodologia, cronograma, referências, anuência do orientador).

O capítulo seguinte é dedicado à monografia, definida como “texto sobre um único assunto” (p. 129), e que pode ser desde um TCC até uma tese de doutoramento. Consiste num resumo da NBR 14724. Suas características básicas são: sistematicidade, metodologicidade e relevância. Uma monografia se divide, geralmente, em cinco partes: “introdução, desenvolvimento, conclusão, bibliografia, notas.” (p. 131). Os autores finalmente afirmam que a estrutura formal da monografia são três grandes partes: os elementos pré-textuais, os textuais e os pós-textuais.

Os capítulos finais explicam como fazer um relatório e um artigo científico, respectivamente comentando as NBRs 10719 e a 6022. Os artigos científicos, matéria do último capítulo, são definidos como: “publicação com autoria declarada, que apresenta e discute ideias, métodos, técnicas, processos e resultados nas diversas áreas do conhecimento.” (p. 163). O artigo serve para divulgar um tema estudado e deve vir em linguagem “clara, coerente, objetiva, impessoal” (p. 163) e conter os elementos pré-textuais, textuais, pós-textuais.

Este livro é importante porque coloca o leitor diante do fato de que fazer ciência é mais do que aprender conceitos e teorias, exige produzi-la. Esta atitude é própria de um tipo de ciência desenvolvido na modernidade, com os estudos de Francis Bacon, Isaac Newton e os iluministas, que contrapunham a nova formulação da ciência à antiga construída na velha Grécia por Platão e Aristóteles. A ciência moderna nunca está pronta, mas em continuado processo de construção. Por isso, o estudo das técnicas de pesquisa é essencial numa atividade que está sempre se fazendo. O movimento iluminista reforçou a confiança na razão aplicada e no modelo de ciência moderna pautada na observação dos fatos, experiência e cálculos. Os autores incorporam aspectos importantes dos estudos de filosofia da ciência. Entre eles o entendimento de que a enumeração dos fatos ou descrição dos conceitos não é suficiente para fazer ciência, antes é preciso comparar os fatos observados e julgá-los para construir teorias. Isto é o que ensinava, por exemplo, o médico e fisiologista francês Claude Bernard no século XIX. Os autores incorporaram ainda uma concepção mais atual de ciência que trata da sua validade em virtude da autocorreção, princípio baseado na falibilidade das teorias, conforme postulado por Charles Sanders Peirce e pela falsificabilidade, conceito desenvolvido por Karl Popper. Para este último uma teoria é válida não devido a sua demonstração, mas por sua permanência provisória, enquanto não vingam os esforços por refutá-la.

No capítulo IX os autores tocaram numa questão importante da ciência moderna, a sua necessária especialização. Como lembra Ortega y Gasset no capítulo XII de La rebelión de las masas (O.C., Madrid, Alianza, v. IV, 1994): “nem sequer a ciência empírica, tomada em sua integridade, é verdadeira se separada da Matemática, da Lógica, da Filosofia. Porém o trabalho em que nela se tem, irremediavelmente, tem que ser especializado.” (p. 217). Esta especialização exigida pela ciência moderna contém, contudo, um grave risco que o Ortega repetiu em mais de um lugar e isto não foi mencionado no livro.

É que a especialização não legitima o conhecedor de uma ciência opinar sobre outros assuntos. Quando ele assim faz torna-se uma espécie de novo bárbaro, detalhadamente estudado por Ortega. Este especialista deverá passar por uma reciclagem, se estiver correto o que diz Ortega na continuidade do livro, pois se:

o especialismo tornou possível o progresso da ciência experimental durante um século, aproxima-se uma etapa nova em que ele não poderá avançar por si mesmo se não encarregar uma geração melhor de construir um novo aparelho mais poderoso. (p. 219-220). Este novo especialista é uma exigência dos nossos dias, mas ainda assim será ele um especialista.

O assunto nuclear, da perspectiva epistemológica, consiste na discussão entorno à verdade levada a cabo no capítulo V. E aí também há virtudes. Parece importante a distinção dos conceitos de verdade construídos por diferentes escolas filosóficas: realismo, idealismo e pragmatismo. Também parece fundamental a diferença entre os critérios de verdade adotados por diferentes ciências: a verdade exata da linguagem matemática, as afirmações aproximativas da estatística e as verdades cuja objetividade relativa está em disputa com as referências subjetivas do mundo da vida. Faltou indicar que essas diferentes visões de verdade científicas nascem em diferentes tipos de ciência, as primeiras da natureza e as últimas do homem. A distinção entre os diferentes tipos de dúvida também foi muito criativo. O que ficou a merecer maior aprofundamento é o fato de que as verdades são diferentes nas Ciências, na Filosofia, na Religião e até as Pessoais. Todas as formas de verdade são importantes, mas se organizam em níveis distintos. Neste aprofundamento sobre as diferentes verdades faltou também um esclarecimento sobre os limites das chamadas ciências duras, ou a ciência experimental, pois suas teorias começaram a ser refutadas pelo desenvolvimento da própria filosofia da natureza no século que passou.

José Maurício Carvalho – Doutor e professor de Filosofia na UFSJ. Email: [email protected]

Acesso à publicação original

Humanismo do outro homem – LÉVINAS (ARF)

LÉVINAS, Emmanuel. Humanismo do outro homem. Petrópolis: Vozes, 1993. 131p. Resenha de: CARVALHO, José Maurício de. Argumentos – Revista de Filosofia, Fortaleza, n. 9 jan./jun. 2013.

A tradução deste livro de Emmanuel Lévinas nasceu de seminário sobre o autor realizado no programa de mestrado da PUCRS. Ele reúne três ensaios e foi publicado em 1993. Embora seja publicação relativamente antiga, o autor não é bem conhecido dos estudantes de Filosofia e a temática abordada é atual frente às dificuldades que enfrenta o humanismo em nossos dias. O próprio autor sugere que o termo humanismo não significa o mesmo que há algumas décadas, o que exige encontrar novas justificativas para o conceito. Por outro lado, o crescente reconhecimento do mérito intelectual do filósofo aumentou, nos últimos anos, o interesse por conhecê-lo.

Como o filósofo pensa em fundamentar o humanismo num tempo que questiona os parâmetros do ocidente? Ele o estabelece na descoberta do outro, o que justifica do seguinte modo:

É ali na alteridade que abriga infinitamente grande tempo num entretempo intransponível. O um é para o outro um ser que se desprende, sem se fazer contemporâneo do outro, sem poder colocar-se a seu lado numa síntese, expondo-se como tema, um- -para-o-outro como um guardião-de-seu-irmão, como um responsável- pelo-outro. (p. 15).

A descoberta do outro suscita uma meditação de raiz fenomenológica sobre “a não-indiferença da responsabilidade.” (p. 15). É esta responsabilidade pelo outro que amarra a fraternidade universal, estando nela a raiz do novo humanismo proposto por Lévinas. A presença do outro não se revela na percepção transcendental, ou melhor, a percepção que dele se tem não apresenta o que o outro é verdadeiramente, fato que pede uma crítica da experiência fenomenológica como fonte de sentido. O outro em sua infinitude não chega pela percepção transcendental porque o outro se mostra a partir do seu rosto – que não está encerrado na forma do aparecer – nu, despojado de sua forma, desnudado de sua presença que o marcaria ainda como seu próprio retrato; pele enrugada, vestígio de si mesmo. (p. 16).

A alteridade do próximo aponta para um vazio escondido atrás do seu rosto cujos vestígios o sujeito apenas vislumbra. O outro não se revela inteiramente no rosto fenomênico. A identidade do outro nasce de um sinal, sem figura, sem presença, fora da civilização. Assim o filósofo conclui o prólogo julgando que a descoberta do outro representa as bases de um novo humanismo.

Seguem-se três ensaios independentes e subdivididos. São eles: A significação e o sentido; Humanismo e anarquia e Sem identidade. O primeiro é o maior e examina o significado oculto que transcendente a percepção transcendental do outro. Os conteúdos ausentes no ato dão a ele significado, apontando a distância que há entre o percebido e a realidade.

Esta condição humana se esclarece quando contraposta à condição divina, como ele explica: “Para Deus, capaz de uma percepção ilimitada, não haveria significação distinta da realidade percebida, compreender equivaleria a perceber.” (p. 22). A condição humana é desafiada pelo uso da metáfora, pois ela é capaz de sugerir uma realidade para além da percepção. O significado ganha sentido quando inserido num horizonte cultural “com tudo o que de aventura e de já feito comporta – que é o lugar em que, consequentemente, se situa a significação.” (p. 24). A linguagem amplia a experiência da percepção que não se limita a elementos isolados presentes nos dados perceptivos. Diz o filósofo que “a significação precede os dados e os clareia.” (p. 26). A linguagem mostra e interpreta o mundo. O ato de ler, neste contexto, fornece uma hermenêutica, traz uma exegese do dado. Assim ele interpreta as meditações de Martin Heidegger e o que “ele quis dizer quando nos ensinou que a linguagem é a casa do ser.” (p. 27).

No segundo item o autor amplia o estudo da cultura afirmando que nela se encontra a noção de ser, vista como totalidade existente além do dado percebido. Afirma: É por esta referência da totalidade clareadora do gesto criador da subjetividade que se pode caracterizar a originalidade da noção da significação, irredutível à integração de conteúdos dados.

(p. 29).

Esta totalidade passa pela linguagem, mas também pelos sentidos, ou pela corporalidade, como dizia Merleau-Ponty. A visão da realidade se estrutura em objetos culturais, que são reunidos em grupos ou totalidades que “exprimem ou iluminam uma época.” (p. 32). O pensamento é parte da cultura e é nela que a criação verbal descobre uma nova forma de descrever o ser. A atividade cultural revela o ser através do sujeito que se torna seu servo e guia. Este é o esquema da fase final do pensamento heideggeriano e influencia o pensamento contemporâneo no esforço de superar a relação sujeito-objeto.

O item seguinte traz uma crítica à metafísica platônica a partir da noção de totalidade que a Filosofia pretende estabelecer. Ela não pode ser fixada, contudo, como no mundo das ideias de Platão o é, de uma vez para sempre. Ao contrário, ele esclarece: “o inteligível não é concebível fora do devir que o sugere.” (p. 37). Nisto consiste a grande contribuição da fenomenologia ao aproximar “a função transcendental da espessura concreta de nossa existência corporal.” (p. 39). Dito de outro modo, a significação não se separa do modo como é concebida.

O quarto item trata da significação econômica dos bens, inserindo- -a num contexto cultural amplo: “Toda necessidade humana é, desde logo, interpretada culturalmente.” (p. 43), esclarece.

No item seguinte Lévinas afirma que a totalidade expressa na linguagem cultural não é reconhecida da mesma forma em todo o mundo.

Para entender o significado de totalidade para o europeu e para o chinês é necessário aprender a linguagem de ambos e outros referentes culturais que eles empregam em sua descrição. Assim, a mundialização da comunicação instaura uma crise de sentido melhor sentida nas diferentes concepções sobre Deus presentes nas diversas regiões do mundo. Ele afirma: “a crise do sentido é ressentida pelos contemporâneos como uma nova crise do monoteísmo.” (p. 47). A ideia bíblica de Deus perdeu a força entre os homens de hoje. Isto sugere o seguinte desafio: “é a análise do sentido que deve ensejar a noção de Deus que o sentido encobre” (p. 48).

O item VI trata da busca do sentido encoberto na relação intersubjetiva.

O elemento determinante na intersubjetividade é o outro. O movimento que vai da consciência do sujeito ao outro é denominada de obra. E o que é mesmo a obra? Trata-se do movimento que vai até o outro, mas não retorna à consciência mesma. Isto traz para a consideração o ser para além de mim e de minha morte pessoal, porque o processo não depende do retorno à consciência de si para ser elaborado. É um ir que fica inconcluso. Obra representa o valor da esperança e o sentido de nobreza expresso na preocupação com o outro concretizada na mudança de atitude para com o futuro. Afirma que a atitude esperançosa não se justifica se ficamos apenas no presente. Ele escreve: Um homem na prisão continua a crer num futuro não revelado e convida a trabalhar no presente, para as mais distantes coisas às quais o presente é irrecusável desmentido. (p. 54).

No item VII o autor aprofunda o significado deste outro: ele não é adversário como pensou Hobbes, nem o complemento natural das relações humanas sugerido por Platão. O outro aparece na consciência como orientação e busca de sentido. A presença do outro na existência recebe luz da cultura e representa um tipo de relação diferente da realizada com outros seres: “a epifania do outro comporta significação própria, independente da significação recebida do mundo” (p. 58). Este outro aparece para mim como rosto desnudo. Rosto que questiona a consciência e o que dele penso: “A epifania do absolutamente outro é o rosto com que o outro me interpela.” (p. 61). A emergência deste outro é pautada pela ética, considerando- se que a relação com ele deva ser guiada pela retidão.

No penúltimo item deste ensaio, o autor destaca a relação da ética com a cultura. Ele a emprega como referência objetiva para julgar e comparar culturas numa circunstância difícil e complexa da história, numa época em que várias culturas querem se mostrar válidas. Este momento multicultural gera confusão e, adicionalmente, questiona a excelência da cultura ocidental, considerando-a historicamente determinada. Ao tratar das normas morais como elemento comparativo ele descobre no humanismo que nasce do reconhecimento do outro como valor com peso universal.

No último item Lévinas trata do vestígio, concebendo-o como sinal que remete e traz até nós uma realidade oculta. Ele usa o conceito de vestígio para representar algo escondido no rosto do outro que aparece para mim de modo residual. Um rosto mostra algo ausente e para além do que revelam as manifestações fenomênicas. Assim o diz: “o outro é um puro buraco do mundo.” (p. 72). O rosto do outro me coloca em contato com o transcendente sem destruí-lo, um transcendente que vai além do fenômeno sem anulá-lo. Nisto consiste o vestígio, ele revela mais do que o sinal mostra, ele inclui todo o passado do ente que emitiu o sinal. A noção de Deus veiculada na tradição judaico-cristã vem permeada por esta noção de vestígio, ela “conserva todo o infinito da consciência que está na ordem pessoal própria.” (p. 80). Deus apenas se mostra nos vestígios que deixa.

No ensaio seguinte denominado Humanisno e anarquia, o filósofo volta ao tema da crise de civilização, cuja raiz é a “ineficácia humana posta em acusação pela própria abundância de nossos meios de agir e pela extensão de nossas ambições.” (p. 82). Para o fato também contribuiu a destruição da consciência, que na forma meditada por René Descartes e aceita até então foi posta em cheque pela psicanálise e pela fenomenologia ao instaurar a subjetividade transcendental. O resultado da crise é o aparecimento de uma civilização que não é nem humana nem inumana. Sua superação, na avaliação do filósofo “depende do surgimento do ente na matriz do algo ou do modelo do uno no seio do ser, ou seja, no seio do que se chama o ser do ente.” (p. 87).

No segundo item do ensaio, Lévinas lembra que o conteúdo da consciência é o presente, ainda que parte de seu conteúdo seja formado pela memória. O eu exercita a liberdade ao pensar além de si. Ele é confrontado com limites como a morte, mas é questionado pelo outro e por ele é acusado. Diante dos limites descobre uma liberdade originária na forma de lidar com as coisas, uma liberdade que se apresenta antes das escolhas que faz.

No item seguinte examina o componente anterior à escolha e observa que ser dominado pelo bem “não é escolher o bem a partir de uma neutralidade axiológica. O conceito de tal bipolaridade já se refere à liberdade.” (p. 96). Esta é a relação que Deus tem com o bem, ele não escolhe praticar o bem, ele está no bem. Além disto, Deus revela uma responsabilidade pelo outro que não tem origem nas escolhas. Portanto, Deus aparece nesta meditação como um Outro privilegiado diante de mim.

No quarto item mostra que o contato com o bem originário pode ser intuído por uma alma encarnada. No entanto, obedecer ao bem antes de fazer escolhas não é algo possível ao homem, pois “a responsabilidade pré-original pelo outro não se mede pelo ser, não é precedida de uma decisão e a morte não a pode reduzir ao absurdo.” (p. 101). Isto obriga cada indivíduo a construir o sentido da própria vida sem medi-lo pela ontologia. Trata-se de chegar ao sentido construído e aberto ao transcendente que chega pelo outro e em meio aos limites existenciais e da cultura.

O último dos ensaios, dividido em cinco itens é denominado Sem identidade. Nele o autor recorda o desafio humano de construir o sentido.

O grande problema é que a construção do sentido não atinge o significado real da liberdade e introduz o problema da verdade. A questão do sentido inverte a busca pela verdade, “não é mais o homem, por vocação própria, que procura a verdade, é a verdade que suscita e possui o homem.” (p. 111).

No item seguinte o autor examina a contribuição de Martin Heidegger para o assunto. Diz que o filósofo alemão associa a noção de subjetividade transcendental da fenomenologia com a metafísica. Assim, o esquecimento do ser apregoado por Heidegger significa que o homem “enclausura-se como uma mônada; ele se faz alma, consciência, vida psíquica” (p. 114). É preciso superar tal forma do pensamento para entender a filosofia de Heidegger e acompanhando a destruição da subjetividade compreender o motivo pelo qual “o poema ou a obra de arte guarda o sistema, deixa de ser a essência do ser, como o pastor guarda seu rebanho.” (p. 114).

O item seguinte examina como se dá a abertura da consciência às coisas e outros eus. Lévinas entende que a abertura ao ser significa uma forma de considerar a consciência do ser e do contato com o outro.

É nestas aberturas que o sujeito expõe a fragilidade da sua pele exposta à dor e à ofensa. Trata-se de fraqueza “que todo ser em sua altivez natural teria vergonha de confessar.” (p. 119), especialmente quando é agredido e recebe bofetadas. É a forma como se refere ao sofrimento recebido, lembrando que se expor ao ultraje está além do razoável para o homem comum.

No item IV, Lévinas trata do processo de esquecimento do ser sugerido por Martin Heidegger na releitura que fez do pensamento platônico.

No último item menciona as aspirações da juventude de mudar o mundo dizendo que elas dispensam reflexão sobre a subjetividade. Reporta-se ao movimento de 1968 na França como a procura da autenticidade e o vê como espaço de aproximação com o outro e expressão da humanidade do homem.

O livro de Lévinas é especialmente importante por recolocar a questão do humanismo como assunto central da meditação nos tempos de diálogo entre culturas. Ele justifica o humanismo na descoberta do outro que surge para o sujeito como um infinito diante do qual sua consciência se amplia e se depara com o significado da experiência intersubjetiva.

Espera, desta forma, superar a justificativa do valor do homem pela falta de justificação convincente da excelência ocidental. Falta-lhe, contudo, perceber que, enxergar o outro como sendo entrada para o infinito só significa dignidade pelo reconhecimento de seu valor na cultura ocidental ou numa crença religiosa. O reconhecimento do outro como valor só se torna a base de um humanismo se tivermos a cultura ocidental como referência ou admitirmos a crença religiosa como elemento universal.

José Maurício de Carvalho – Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Del Rei (UFSJ). E-mail:: [email protected].

Acesso permitido apenas pela publicação original

La idea de principio en Leibniz y la evolución de la teoría deductiva. obras completas – ORTEGA Y GASSET (Ph)

ORTEGA Y GASSET, Jose. La idea de principio en Leibniz y la evolución de la teoría deductiva. obras completas. 2. reimpresión. V. 8. Madrid: Alianza, 1994. Resenha de: CARVALHO, José Maurício de. Philósophos, Goiânia, v.16, n. 2, p.387-396, jul./dez., 2011.

O livro de Ortega y Gasset, escrito no verão de 1947, em Lisboa, expressa sua maturidade intelectual, período inicia-do com a publicação de Meditaciones del Quijote e desenvolvido durante a escrita dos oito livros de El Especta-dor (1916-1934). Nesta obra o autor aprofunda, de modo único, o historicismo raciovitalista, aplicado às questões de epistemologia e lógica. Daí a importância deste livro para o entendimento de seu pensamento filosófico.

Ortega y Gasset examina, na obra, o conceito de expe-riência básico para a ciência moderna, que se torna assunto central da filosofia durante a modernidade. No livro, o au-tor compara a forma moderna de pensar o mundo, representada pelas ideias de Descartes e Leibniz, com a ma-neira tradicional utilizada por Aristóteles e Euclides. Também aprofunda a noção de crença, que para ele é as-sunto fundamental do conhecimento humano, como indicaremos adiante.

A referência a Leibniz como o autor em torno do qual Ortega y Gasset desenvolve suas considerações sobre o co-nhecimento humano deve-se ao pensador alemão ser, por excelência, um filósofo de princípios, ou de fazer com ma-estria o que todo filósofo espera realizar: propor princípios que forneçam certezas para pensar o real. O conhecimento, para Ortega y Gasset (1994, 63), é atividade que se faz com princípios. Ele afirma: ―Em filosofia isto se leva a extremos […], se exige dos princípios que sejam últimos, isto é, em sentido radical, princípios‖. Leibniz, avalia o autor, é ainda o filósofo mais completo da modernidade e, pela extensão de seus interesses e estudos, pode ser comparado ao que A-ristóteles representou na Idade Antiga. O estudo de Leibniz, o confronto de suas teses com Aristóteles, pede que se separe o aristotelismo de suas interpretações escolás-ticas. Ortega y Gasset entende que os princípios construídos em determinado tempo cristalizam uma con-cepção de mundo e que essa solidificação é a base das crenças que representam a forma de pensar de certo tempo.

Na tentativa de estabelecer princípios radicais para es-truturar o real cada filósofo desenvolve um método novo, uma forma própria de pensar, ainda que como filosofar conserve algo da tradição. A filosofia antiga pensa que as coisas são ou parecem ser de determinado modo, não fala de necessidades, ―as coisas não dependem de nosso arbítrio reconhecer ou não‖ (p. 72), elas são como são. Quando do surgimento da ciência moderna, Galileu afirmou que os te-oremas geométricos valem para os fenômenos físicos, isto é, ―basta a Física supô-los para eles serem válidos‖ (p. 76). Essa forma de pensar o mundo foi modificada nos séculos se-guintes, chegando-se à conclusão de que apenas alguns pontos da teoria coincidem com a realidade. A mudança fez surgir os símbolos e, mais recentemente, a ideia de probabi-lidade.

No momento em que viveu Leibniz, a Física já fazia um discurso aceito como verdadeiro sobre a realidade. Leibniz é um filósofo de princípios e representa bem a visão que a nova ciência tem do mundo, ou melhor, ―a Filosofia tem que contar com o modo de pensar destas ciências, quer di-zer, tem que se considerar Ciência‖ (p. 90).

René Descartes, ao lado de Leibniz, é outro pensador importante daquele século e está envolvido com a revisão da álgebra. A álgebra parte de uma intuição básica, a saber, a possibilidade de o número traduzir o real, isto é, ―há uma correspondência entre o número e a extensão‖ (p. 98). Des-cartes utilizou tal entendimento e percebeu que ele abria infinitas possibilidades, dando início à Geometria Analíti-ca. O resultado é que a busca da verdade e da relação entre as coisas ganhou, com o propósito de precisão da lógica, uma nova possibilidade nas formulações da ciência e filoso-fia modernas.

A tradição matemática euclidiana e aristotélica pensa o mundo com um princípio tido como verdadeiro, usado pa-ra justificar outros princípios. O exame da matemática aristotélico-euclidiana nos permite uma comparação com o modo de pensar moderno. Eis como Ortega y Gasset (1994, 127) se refere a essa tradição: ―A teoria dedutiva do tipo aristotélico-euclidiana consiste em deduzir proposições par-tindo de princípios cuja verdade é evidente‖. Essa forma de pensar se aproxima do procedimento dedutivo usado pelos filósofos, mas possui caráter próprio. A definição de ponto, por exemplo, possui significado puramente lógico, não é al-go que se refira a um ente que exista no mundo. Logo, uma verdade anunciada por Euclides não assegura a existência da coisa. A verdade que traduz a expressão matemática não tem coincidência exata com as coisas do mundo, pois a ex-pressão matemática quer possuir uma exatidão que o olhar humano não possui. No caso das formulações de Descartes e Leibniz, os princípios matemáticos se comparam não com a intuição dos seres, mas com uma visão íntima que a cons-ciência forma do mundo. Nem uma maneira nem outra conseguem a exatidão que pretende possuir a geometria. As duas posições: a antiga e a moderna, ainda que com este as-pecto semelhante, a saber, a falta de correspondência entre o mecanismo do mundo e a representação matemática, dei-xam ver uma diferença fundamental: os antigos pensam a partir dos seres, os modernos tomam as ideias como ponto de partida. A teoria aristotélico-euclidiana parte do real, tentando extrair das coisas o que há de comum entre elas. O problema dessa forma de pensar é entender como se ex-trai o universal do que nos vem pela sensibilidade. Ao sugerir esse caminho, Aristóteles entende que a razão toca o ser, o que dá aos dados sensíveis uma nova função e sugere uma continuidade entre a ordem sensível e a espiritual. Os princípios aristotélicos devem estar sob a forma inteligível retirada dos dados sensíveis. Para Aristóteles, é pela defini-ção das coisas que o raciocínio deve começar, buscando apreender o que é invariável no que se modifica no mundo. Os modernos seguem outra trilha, eles se perguntam como fazer para chegar ao essencial das coisas a partir da imagina-ção.

Antes de prosseguir a comparação entre as formas de proceder à dedução no mundo antigo e moderno, o autor considera essencial esclarecer um aspecto fundamental de seu pensamento historicista: separar o aristotelismo de suas interpretações medievais. O fato parece-lhe inevitável e ne-cessário porque os escolásticos não eram capazes de penetrar na circunstância em que se formou o modo de pensar dos gregos. Dito de outra forma: ―Os frades da Idade Média recebem a filosofia grega, porém não recebem, claro está, os pressupostos, as peripécias históricas que obrigaram os gregos a criar a filosofia‖ (p. 215). A escolástica foi uma espécie de recepção de ideias desconectadas da realidade histórica em que foram pensadas e isso é uma tragédia na avaliação orteguiana. O filosofar não pode ser separado dos desafios do tempo. Ortega y Gasset denominará escolásticas todas as tentativas existentes, ao longo da história da filoso-fia, para reproduzir elaborações filosóficas fora do contexto em que foram concebidas. Ele afirma, a título de exemplo: ―a Ontologia é uma coisa que se passou aos gregos, e não pode voltar a se passar a ninguém‖ (p. 217).

O pensamento escolástico e as limitações decorrentes de sua inadequada apropriação de ideias fora do contexto foram abandonados pelos modernos. O autor do livro ob-serva que: ―Descartes começa esvaziando a tradição cultural européia, isolando-a, aniquilando-a‖ (p. 225). Lembramos que Aristóteles estabelece uma continuidade entre a maté-ria e os números, procedimento euclidiano que ganhou continuidade na Idade Média. O pensamento analógico não tinha força científica para Aristóteles, afastava-se da rea-lidade e é esse caminho, rejeitado por Aristóteles, que foi seguido por René Descartes, para quem as coisas aparecem como relações. Escreve o autor: ―Descartes toma as correla-ções como correlações, enquanto Aristóteles as toma como se fossem coisas não relativas, mas absolutas independentes da relação, quer dizer, formalmente como coisa‖ (p. 238). Assumida como forma de entendimento, Descartes entende a dedução como um método válido para aplicação em qualquer ciência e propõe o método como preâmbulo da ciência. Ele não necessita valer-se da Metafísica, como fizera Aristóteles. Eis a razão pela qual ―a nova ciência não se o-cupa das coisas como coisas, mas como suas relações e proporções‖ (p. 244). Reside nisso a diferença fundamental entre a antiga e a nova ciência.

A evolução do aristotelismo produziu, no decorrer da história, outro problema que Descartes e Leibniz precisa-ram superar: a aproximação entre o sensualismo e o materialismo. Esse vínculo entre essas teorias, assumido pe-la escola estoica, era uma espécie de extensão do aristotelismo e consiste em uma crença. O critério de ver-dade do estoicismo é uma crença usada na relação com o mundo. Quem não vive na crença mergulha na dúvida. Ao tratar da concepção estoica de mundo, Ortega y Gasset des-cobre que a crença é um importante elemento cognitivo de uma pessoa ou geração, sendo uma verdade vivida pelas pessoas sem o menor questionamento.

A inserção das crenças na concepção historicista de Or-tega y Gasset se explicita no uso dos conceitos ideoma e draoma. Toda teoria filosófica se apresenta em proposições, um conjunto sistemático de ideias ou ideoma. A filosofia é a reunião de ideias, mas o conjunto de proposições elabora-das por um filósofo tem pressupostos implícitos que ele toma como absolutamente certos. Essas assertivas não são sequer pensadas porque parecem absolutamente evidentes ao pensador e aos seus contemporâneos, isto é, o draoma. O draoma não é a crença, mas sim o ingrediente dela. Os pres-supostos, as verdades vividas e nem sequer pensadas são os componentes das crenças. Como a crença se explicita no es-tudo dos filósofos? Ortega y Gasset assim exemplifica: ―As causas mais radicais em que Aristóteles acreditava, isto é, que os sentidos nos mostram verdadeiramente o ser […] elas estão, não em Aristóteles, mas em toda a vida grega de três séculos anteriores a ele‖ (p. 259). O draoma é, portanto, uma ação vivente ou um ingrediente dela.

Entendida a relação entre o ideoma e o draoma nos de-paramos com outro aspecto fundamental do historicismo raciovitalista, a explicação para a origem do filosofar. Quando o filósofo se coloca a pensar e a descobrir os prin-cípios capazes de conferir entendimento ao mundo ele responde a problemas vitais, a questões impossíveis de pas-sar adiante sem novas considerações. Essas questões já não podem ser respondidas pelas filosofias elaboradas em ou-tros tempos porque elas já não respondem às necessidades vitais do novo tempo. Assim, o filosofar significa a busca de princípios que respondem às necessidades vitais do pensa-dor, uma vez que ele já não encontra na tradição resposta para seus problemas.

O entendimento orteguiano de que o filosofar é uma resposta aos problemas vitais nos coloca diante do filosofar. Trata-a como parte do esforço que o homem faz para dar um sentido à sua vida. Em outras palavras, ―o homem se dedica a esta estranha ocupação que é filosofar quando, por haver perdido as crenças tradicionais, se encontra perdido na vida‖ (p. 267). O que o faz filosofar não é, portanto, uma espécie de disposição natural para investigar o que é ser. Essa dúvida não consiste no mais radical problema que o homem pode formular. Essa é a razão do afastamento de Ortega y Gasset das posições heideggerianas: ―O fenômeno sistemático é a vida humana e é de sua intuição e análise que temos que partir‖ (p. 273). Chegamos ao núcleo do en-tendimento raciovitalista: é a vida o desafio e o problema a ser enfrentado.

Ortega y Gasset considera Wilhelm Dilthey um grande filósofo porque ele intuiu, antes de todos, que era a vida o grande problema a ser meditado. Apesar disso, Dilthey não chega ao núcleo do raciovitalismo porque tratou o filosofar como uma disposição natural, e esta só nasce quando há desencanto com uma crença. Quando uma crença já não responde aos problemas vitais, ela e o sistema de ideias ao qual se associa são questionados. Diz o filósofo: ―Uma ânsia de certeza se apodera dele e ele viverá sem sossego, cutuca-do, em grande perturbação, até que consiga fabricar para a crença fraturada o aparelho ortopédico que é uma certeza‖ (p. 290).

Ao referir-se à vida como problema radical do filosofar o filósofo rejeita a tese heideggeriana de que o componente essencial do viver é a angústia. Se a tanto se resumisse o vi-ver, o caminho natural para todo homem seria o suicídio, mas a vida não é só desespero. Existe a tragédia na vida, mas a vida é também esportiva. O sentimento trágico da vi-da foi uma invenção romântica que precisa ser superada. Entre os gregos o sentido do filosofar era diverso do roman-tismo. A filosofia é a combinação de ideias, ―sua índole própria é jovial como corresponde a um jogo‖ (p. 305). Daí o apelo do filósofo: ―Deixemos, pois, de intempestivos me-lodramas e filosofemos jovialmente, que dizer, como é devido‖ (p. 316).

Feitos esses esclarecimentos, volta Ortega y Gasset à his-tória da filosofia para concluir. A diferença do pensamento moderno de Descartes e Leibniz do aristotélico-euclidiano revela uma diferença básica. Para os antigos, a proposição trata da coisa mesma; para os modernos, a relação descrita do mundo é uma ideia e a verdade uma relação entre idei-as.

O livro termina com dois textos em forma de apêndice colocados pela editora. No primeiro, escrito também em 1947 para o XIX Congresso Espanhol Para o Progresso da Ciên-cia, Ortega y Gasset reafirma que Leibniz representa o momento de reintegração cultural depois da desintegração ocorrida ao final da Idade Média, ocasião em que as antigas crenças já não diziam nada às novas gerações. A verdade desse tempo, bem expressa por Leibniz, é a verdade de uma proposição. Quanto ao entendimento de mundo, estáva-mos diante do melhor dos mundos possíveis porque ele foi o escolhido por Deus. O racionalismo da época exigia para tudo uma explicação. O segundo texto, deixado de lado por Ortega, era provavelmente um parágrafo do livro. Ele trata o Renascimento como um momento de rompimento com a escolástica, avaliada como um cadáver ao final da Idade Média. O mundo pedia novas formas de entendimento e foi o que tentou fazer o pensamento moderno, conclui Or-tega y Gasset.

O livro, por sua extensão, detalhamento de assuntos fundamentais no raciovitalismo, como a origem desportiva do filosofar, a formação e o papel das crenças na vida hu-mana, a evolução da consciência humana ao longo da história como resposta a desafios específicos das circunstân-cias, a diferença entre o mundo moderno e o antigo, tem um papel de destaque na reflexão orteguiana. O método historicista do raciovitalismo, tema de Historia como sistema, aqui é retomado e contrasta com o racionalismo do século XVII, tão bem estudado no livro. Essa razão não consegue alcançar a realidade cambiante e temporal da vida humana, a vida só pode ser compreendida em sua evolução histórica. Também fica bem esclarecida a razão pela qual o homem fi-losofa, assunto tratado no ensaio Apuntes sobre el pensamiento, pois, depois de desaparecida uma crença, este se acha perdido e precisa descobrir novas razões às quais se dedicar.

José Maurício de Carvalho – Professor titular da Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ)., São João Del-Rei, Goiás. E-mail:  [email protected]

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Os mestres da humanidade – JASPERS

JASPERS, Karl. Os mestres da humanidade. Coimbra: Almedina, 2003. 165p. Resenha de: CARVALHO, José Mauricio de. Argumentos – Revista de Filosofia, n.6, p.161-164, 2011.

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A questão do sentido em psicoterapia – FRANKL (ARF)

FRANKL, Victor. A questão do sentido em psicoterapia. Campinas: Papirus, 1990. Resenha de: CARVALHO, José Maurício de. Argumentos – Revista de Filosofia, Fortaleza, n.5, 2011.

O livro de Victor Frankl foi publicado há muitos anos, mas conserva atualidade pelo diálogo que obriga entre a Filosofia e a Psicologia. Ele possui introdução, três conferências e um esboço autobiográfico. Nestes textos enfrenta uma questão fundamental que ocupou parte significativa dos filósofos no século XX: possui a vida humana um sentido? Esta questão se mistura a outras de caráter existencial que ajudam a clareá-la.

Eis algumas: será que a finitude da existência aniquila seu sentido? O sofrimento físico e mental contribui para a elaboração do sen tido ou o destrói? Como pensar o sentido diante daquilo que nos acontece? Exemplo do que nos ocorre é uma doença incurável ou ser levado para o campo de extermínio.

É para enfrentar estas questões que Frankl escreveu este livro. A pergunta é essencial- mente filosófica e ela será tratada assim. No entanto, o autor estende as conseqüências da meditação para o campo da Psicologia ao colocar a questão do sentido como eixo orientador de uma abordagem psicológica que ele desenvolve. Entender o modo como filosoficamente Frankl pensa o problema do sentido e depois perceber os resultados que daí deriva para a Psicologia é o que confere nexo ao livro.

Victor Frankl começa sua obra retomando a questão que Albert Camus consagrou como a única digna de ser efetivamente meditada: como é o sentido da vida humana? A vida vale a pena ou o suicídio é o que se nos oferece como alternativa mais plausível? O filósofo francês trata a questão do sentido nos romances A Peste e O Estrangeiro, bem como nas peças de teatro Calígula e Os Justos . Ao optar pelo sentido construído pelo existente coloca em evidência o problema da liberdade humana, pois nela reside o sentido e não numa construção lingüística rebuscada ou erudita. Este sentido da vida como expressão de liberdade é assunto fundamental dos existencialistas observa outro filósofo francês Roger Garaudy. A vida não tem um sentido prévio ou pronto, ele diz, “como se tem uma casa ou uma conta no banco. Seria (se assim fosse) um cenário já escrito, fora de nós e sem nós; teríamos apenas que representar aparentando crer em nossa liberdade.” ( Palavra de homem , p. 52).

A questão do sentido para Frankl vai além da meditação filosófica porque o problema expresso pelo sentimento de vazio de sentido obrigou as pessoas hoje em dia a procurar o psicólogo e o psiquiatra. O vazio existencial e a depressão são as doenças do século XXI e isto aumenta o interesse pelo livro de Frankl. O homem não sabe o que quer e esta ignorância não apenas serve para ele meditar melhor sobre a vida, “a sensação de falta de sentido é patogênica, isto é, leva a doenças, a neuroses específicas.” (p. 20). Este A rgumentos , Ano 3, N°. 5 – 2011 181 sentimento se manifesta de muitos modos como: na chamada crise de meia idade ou no medo do domingo tão comum em nosso tempo. Em ambos os fenômenos o que verdadeiramente aparece é a falta de sentido.

Esta falta de sentido coloca em evidência o problema de ir além de si, trata-se da auto – transcendência sem a qual a vida parece ficar sem sentido. Afirma o autor: O homem não é apenas um ser que reage e abreage, mas também que se autotranscende. E a existência humana aponta para além de si mesma, mostra sempre algo que não é de novo ela mesma – a algo ou alguém, a um sentido, ou a um ser companheiro. (p. 29).

O que há de singular nesta posição de Frankl é que ele coloca a questão do sentido como sendo de interesse primário do homem e não como meditação que lhe confere algo a mais, algo que lhe adensa o sentido, mas sem o qual é possível viver. O sentido para Frankl é questão fundamental. Ao referir- se ao comportamento dos prisioneiros nos campos de concentração fica claro o que ele quer dizer: “não foi menos importante a lição que eu pude levar para casa de Auschwitz e Dachau: que os mais capazes, inclusive de sobreviver a tais situações-limite, eram os direcionados para o futuro, para algo ou alguém que os esperava.” (p. 34). Esta questão filosófica fundamental foi deixada de lado pelos psicólogos, comenta o autor. Os psicanalistas a consideram parte dos processos psicodinâmicos e os comportamentalistas um tipo de aprendizagem que precisa ser removido para que o sujeito fique “espontaneamente curado.” (p. 37). Ora o problema não pode ser resolvido deste modo, a falta de sentido é um tipo de sofrimento, mas não uma doença no sentido médico ou uma ignorância a ser suprimida. Também não se confunde falta de sentido com desespero, pois este último só ocorre quando a pessoa não enxerga sentido para o sofrimento. E aqui surgem questões fundamentais: A vida tem sentido e se tem podemos nós comunicá-lo? Frankl considera que a vida tem sentido e que podemos percebê-lo. Com isto não invalida o trabalho dos psicanalistas, pois muita coisa tida como sentido deve ser desmascarada, mas tentar desmascarar o problema do sentido produz uma deshumanização, porque estamos diante de “um fenômeno que não se deixa desmascarar porque é autêntico” (p.41). A conclusão de Frankl é que “o homem é um ser à procura de sentido” (p. 45). E considera que esta questão fundamental da filosofia existencial seja o centro de sua uma orientação psicológica. A raiz desta linha psicológica é a intencionalidade no sentido de Bren- tano, Husserl e Scheler, que produz a relação com os sujeitos intencionais, ou seja, entre os atos intencionais que deles provém e os objetos intencionais. Tão logo deixemos de contemplar o ser sujeito do sujeito, nós perdemos de vista que ele tem objetos próprios. (p. 35).

Trata-se, portanto, de uma psicologia fenomenológica como as de Karl Jaspers, Ludwig Binswanger, o representante da Es- cola gestáltica de Berlim Wolfgang Köhler, além do que escreveu o existencialista e personalista Gabriel Marcel, filósofos e psi- cólogos cujos nomes Frankl cita textualmente em sua autobiografia, o último dos textos do livro (p. 112).

As questões associadas ao sentido fo – ram desenvolvidas em três conferências que Frankl pronunciou sobre o sentido e valor da vida na Universidade para o povo em Viena- Ottaring. Ele entende que o pensamento europeu reconheceu a dignidade humana com a formulação ética de Immanuel Kant, mas depois vieram as guerras e em especial a Segunda Guerra Mundial onde o homem foi colocado a serviço da morte. Nos campos de refugiados os presos não valiam o prato de sopa e a vida humana foi exterminada em massa, a sociedade européia desonerou- se da dignidade. Esta atitude não foi uma decisão coletiva, o reconhecimento do valor da vida é singular. Isto se demonstra pela atitude do chefe nazista que gastava o próprio dinheiro para comprar remédio para os doentes do campo. No mesmo Campo havia prisioneiros mais antigos que maltratavam os companheiros recém-chegados. A direção fundamental assumida por Frankl remonta a Kant, viver é um dever. Há alegria na vida, mas ela não é um fim, apenas o resultado.

José Mauricio de Carvalho – Doutor em Filosofia e Professor da UFSJ-MG.

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