Machado de Assis em perspectiva: ficção, história e manifestações sociais – SARAIVA; ZILBERMAN (MAEL)

SARAIVA, Juracy Assmann; ZILBERMAN, Regina. Machado de Assis em perspectiva: ficção, história e manifestações sociais. São Leopoldo: Oikos, 2019. 208 pp. Resenha de: KRAUSE, James Remington. Machado Assis Linha v.12 n.28 São Paulo Sept./Dec. 2019.

Organizado por duas machadianas renomadas, Juracy Assmann Saraiva e Regina Zilberman, Machado de Assis em perspectiva: ficção, história e manifestações sociais “é resultado de investigações dos membros dos grupos de pesquisa ‘Ficção de Machado de Assis: sistema poético e contexto'” (SARAIVA; ZILBERMAN, 2019, p. 7). Como explicam as organizadoras na introdução, o livro “atende a um amplo escopo de leitores, que encontram em Machado de Assis motivação para aprofundar seu conhecimento sobre a literatura e sobre os imponderáveis da natureza humana” (SARAIVA; ZILBERMAN, 2019, p. 12). Com esse fim, reúne-se uma dúzia de artigos de temas abrangentes de críticos já estabelecidos e emergentes. Apesar de seu enfoque, todo leitor crítico de Machado irá achar algo de grande valor nesse conjunto de ensaios.

No seu ensaio “O estranho narrador de Quincas Borba e o problema do realismo”, Antônio Marcos Vieira Sanseverino problematiza a “instabilidade de posição do narrador”. Por um lado, o narrador externo e heterodiegético tende a reforçar a “objetividade realista” oitocentista do cotidiano brasileiro, sob a ótica do período escravista (SANSEVERINO, 2019, p. 15). Por outro lado, ele “faz questão de interromper o fluxo narrativo para comentar, desqualificar [e] rebaixar” o protagonista Rubião (SANSEVERINO, 2019, p. 35). Através de uma análise nítida e meticulosa dos comentários sardônicos do narrador, Sanseverino (2019, p. 29; p. 36) demonstra que ele “é um cidadão culto, erudito, da elite letrada brasileira que olha para Rubião com desprezo”, e por extensão para o leitor, “mostrando que ambos são incapazes de compreender os acontecimentos narrados”.

Atílio Bergamini, em “Machado marmota: os primeiros anos do contista”, oferece uma análise dos primeiros contos de Machado “como um todo”. Ele focaliza em alguns topoi unificadores, como “a viagem, a negociação, a traição e o engano” nos seguintes contos: “Três tesouros perdidos”, “O país das quimeras: conto fantástico”, “Frei Simão”, “Virginius: narrativa de um advogado”, “O anjo das donzelas”, “Casada e viúva”, “Questão de vaidade” e “Confissões de uma viúva moça” (BERGAMINI, 2019, p. 50). Segundo Bergamini (2019, p. 53), ao longo dos anos, houve um deslocamento na perspectiva de Machado de um “encadeamento ‘externo’ de ações limitadas” a um “encadeamento ‘interno’, em que a consciência e personagens se torn[ou] o foco do interesse”. Outrossim, “o objeto dos modos de ler se tornou o sujeito da análise, com vistas a uma crítica do sujeito dos modos de ler” (BERGAMINI, 2019, p. 53). Desde o início é possível traçar esse percurso que iria caracterizar a ficção do período maduro do autor.

Em “Costura entre moda e literatura, em Dom Casmurro“, Cátia Silene Kupssinskü analisa a moda como mais um sistema simbólico de significação no romance machadiano. A moda parisiense na burguesia carioca oitocentista representava a modernização e civilização presentes do Brasil. Dentro desse sistema, os comentários de Bento Santiago sobre a moda servem predominantemente para assinalar diferenças de classe social, sobretudo dos personagens de José Dias e Capitu. Assim, Machado “oferece ao leitor a oportunidade de preencher lacunas propostas pelo jogo literário, questão que se dá por meio da apreensão dos significados sociais inerentes à moda” (KUPSSINSKÜ, 2019, p. 69).

Em seu ensaio “A mulher negra e a mestiça em obras de Machado de Assis”, Cláudia Santos Duarte e Marinês Andrea Kunz (2019, p. 75) analisam a presença de “mulheres negras escravizadas”, e até certo ponto “as mulheres livres das camadas mais pobres” no romance Esaú e Jacó, no poema “Sabina”, e nos contos “Mariana” e “O caso da vara”. Segundo afirmam as autoras, Machado “[descreve] suas personagens com seus anseios, suas paixões, as violações, a objetificação, as condutas e a situação periférica que instauraram na mulher negra uma história de abusos, de superação e, principalmente, de resistência” (DUARTE; KUNZ, 2019, p. 80).

Pisando em território familiar, Débora Bender analisa as alusões a peças teatrais em “Cultura dramática em Dom Casmurro“. Bender focaliza principalmente a intertextualidade entre Dom Casmurro e Fausto de Goethe e Otelo e Macbeth de Shakespeare, chamando o romance “um misto” dessas três peças, sobretudo na sua capacidade de “revelar e problematizar a essência humana” (BENDER, 2019, p. 93). No final das contas, a arte, para Machado, “tem a função de educar seus receptores e de denunciar mazelas sociais, daí ser um púlpito e uma tribuna” (BENDER, 2019, p. 93), o que sua inspiração em consagradas obras dramáticas providencia.

Em “‘A causa secreta’ sob a luz da semiótica: um estudo do limiar”, Ernani Mügge analisa o conto desde um olhar narratológico, segundo conceitos semióticos de Dino del Pino. Mügge divide o conto em três segmentos. Segmento 1, o limiar de entrada, consiste nos primeiros dois parágrafos do conto, nos quais se apresentam os personagens com um tom inquietante. O Núcleo Diegético apresenta-se em analepse, narrando os eventos desde os primeiros encontros entre Garcia e Fortunato até o clímax e o começo do dénouement, isso é, o momento de abertura do conto. Segmento 2, o limiar de saída, é o desfecho propriamente dito – a doença e morte de Maria Luísa, o beijo de Garcia no seu cadáver e os soluços sadomasoquistas de Fortunato. Neste enquadramento, Mügge analisa os posicionamentos relacionais entre sujeito e objeto através de estímulos distais e proximais. Uma vez que o narrador se situa fora do espaço-tempo diegético, o leitor também usufrui de uma focalização externa ao texto e assim presencia o universo artístico machadiano.

Juracy Assmann Saraiva estuda a importância de espaços festivos em “Reflexão estética e manifestações populares em Memórias póstumas de Brás Cubas“. Por um lado, os “leitores ilustrados”, com um conhecimento dos textos consagrados do cânone, podiam apreciar a intertextualidade que Machado tentava criar através das alusões (SARAIVA, 2019, p. 111). Por outro lado, os leitores contemporâneos de Machado também reconheciam as múltiplas referências a “aspectos da sociedade carioca” daquela época como “ritos de integração no espaço familiar, festas cívicas e religiosas, normas de ordenamento social, superstições ou crendices, a medicina popular [e] formas de lazer” (SARAIVA, 2019, p. 128; p. 112). Ao decifrarem as referências implícitas e explícitas aos dois âmbitos – o erudito e o cotidiano – os leitores, como assinala Saraiva (2019, p. 127), conseguem “compreender não só a metabiografia do autor-defunto, mas também aquilatar posicionamentos do escritor diante do texto que produz”.

Kenneth David Jackson (2019, p. 131), em “A miscelânea machadiana: os estranhos objetos e as criaturas das fábulas morais”, analisa como Machado segue e desenvolve a tradição de fabulista ao personificar uma porção de “objetos esdrúxulos”. Machado apresenta esses “agentes independentes e inusitados” como sinédoques ou metonímias, convertendo-os em fetiches que “afastam os tabus ao dizer de outra maneira o que não pode ser dito [e que] servem de referência irônica e satírica à melancólica humanidade” (JACKSON, 2019, p. 133). Os leitores que desenredam a “retórica de dissimulação e de substituição” conseguirão “perceb[er] e particip[ar] da estratégia sutil do jogo, armado por um autor que fala por inferências, subentendidos e alusões, inventando novos contextos para fábulas sobre o comportamento e a sabedoria humanos” (JACKSON, 2019, p. 140).

Marcelo Diego começa seu artigo, “A obra de arte total de Machado de Assis”, delineando as influências principais no desenvolvimento do romance brasileiro: o romance europeu setecentista, o romance-folhetim, as narrativas de viagem, os tratados naturais e a ópera. Diego (2019, p. 148) alega que a ópera europeia “teve um impacto maior sobre a literatura brasileira do que sobre a ópera brasileira”. Ele observa que “espacialmente, a cultura da ópera e a cultura do romance floresceram em um mesmo ambiente, junto a um mesmo público” (DIEGO, 2019, p. 149). O compositor alemão Richard Wagner desenvolveu seu conceito de ópera total que possibilitava a imersão total do espectador em todas as formas de arte (literatura, teatro, música, artes visuais). Do mesmo modo, Machado procurava uma totalidade mergulhadora no romance. Se Wagner “buscava o sentido de totalidade ao aproximar ao máximo o espectador da ação de suas óperas, Machado buscava esse mesmo sentido ao afastar o leitor da ação dos seus romances, chamando atenção para a natureza ficcional deles” (DIEGO, 2019, p. 149).

Em “‘Capítulo dos chapéus’: uma epopeia invertida”, Paul Dixon analisa várias alusões a poemas épicos em alguns dos mais célebres textos machadianos. Depois de apresentar exemplos do tropo machadiano (Quincas Borba e a OdisseiaDom Casmurro e Os Lusíadas), Dixon faz uma leitura comparada – mas, como o título indica, invertida – entre A Ilíada, o épico clássico de Homero, e o conto “Capítulo dos chapéus”. Ao trocar papéis e características dos personagens (Mariana por Aquiles e Conrado por Agamenão), Dixon oferece uma interpretação do “desfecho um pouco indefinido” que também é uma reviravolta. Em vez de ver Mariana como “uma pessoa débil, sem estômago para escaramuças na guerra dos sexos, [ela] é uma pessoa com uma consciência mais aguda das posições autênticas de uma pessoa justa e livre (DIXON, 2019, p. 159).

Em “‘A Sereníssima República’ – ética e política na última década da monarquia brasileira”, Regina Zilberman (2019, p. 164) alega que na década de 1880 foi através do conto que Machado divulgava “suas preocupações estéticas e políticas”. O conto, segundo uma nota do autor, aborda o tema de “nossas alternativas eleitorais […] através da forma alegórica” (ZILBERMAN, 2019, p. 164). Zilberman (2019, p. 164) explica que Machado se referia à Lei Saraiva que “instituiu a eleição direta para todos os cargos do império e o uso do título de eleitor, documento que habilitava à participação no pleito”. Para poder votar, ela explica, “cada cidadão deveria ser alfabetizado e comprovar” que possuía certo valor de renda líquida, “o que restringiu drasticamente o número de eleitores no país” (ZILBERMAN, 2019, p. 164-165). Se há uma moral na alegoria sobre a república das aranhas, segundo Zilberman (2019, p. 175), “não se trata de escolher entre monarquia e república, voto direto ou sorteio, mas de honestidade eleitoral, ausente nos pleitos”. Para Machado, “não era a forma de governo que fazia a diferença, e sim a ação das pessoas que almejavam o poder e utilizavam os mecanismos legais disponíveis para obtê-lo” (ZILBERMAN, 2019, p. 175).

Em “Também se goza por influxo dos lábios que narram: Dom Casmurro e o ensino de Literatura”, Tatiane Kaspari apresenta um roteiro de leitura do romance machadiano baseado nas teorias de recepção (Jauss e Iser) e performance (Zumthor). A abordagem pedagógica, alicerçando-se nos princípios de roteiros de leitura estabelecidos por Juracy Saraiva Assmann, apresenta três etapas metodológicas: “preparação para a recepção do texto; leitura compreensiva e interpretativa; transferência e aplicação de leitura” (KASPARI, 2019, p. 183). O roteiro de leitura é dividido em nove módulos com exercícios de pré-leitura, leitura e pós-leitura, acompanhados por “comentários ao professor”. Kaspari fornece uma análise cuidadosa do texto que será de utilidade para leitores experientes e iniciantes de igual forma.

Referências

BENDER, Débora. Cultura dramática em Dom Casmurro. In: SARAIVA, Juracy Assmann; ZILBERMAN, Regina (Orgs). Machado de Assis em perspectiva: ficção, história e manifestações sociais. São Leopoldo: Oikos, 2019. [ Links ]

BERGAMINI, Atílio. Machado marmota: os primeiros anos do contista. In: SARAIVA, Juracy Assmann; ZILBERMAN, Regina (Orgs). Machado de Assis em perspectiva: ficção, história e manifestações sociais. São Leopoldo: Oikos , 2019. [ Links ]

DIEGO, Marcelo. A obra de arte total de Machado de Assis. In: SARAIVA, Juracy Assmann; ZILBERMAN, Regina (Orgs). Machado de Assis em perspectiva: ficção, história e manifestações sociais. São Leopoldo: Oikos , 2019. [ Links ]

DIXON, Paul. ‘Capítulo dos chapéus’: uma epopeia invertida. In: SARAIVA, Juracy Assmann; ZILBERMAN, Regina (Orgs). Machado de Assis em perspectiva: ficção, história e manifestações sociais. São Leopoldo: Oikos , 2019. [ Links ]

DUARTE, Cláudia Santos; KUNZ, Marinês Andrea. A mulher negra e a mestiça em obras de Machado de Assis. In: SARAIVA, Juracy Assmann; ZILBERMAN, Regina (Orgs). Machado de Assis em perspectiva: ficção, história e manifestações sociais. São Leopoldo: Oikos , 2019. [ Links ]

JACKSON, Kenneth David. A miscelânea machadiana: os estranhos objetos e as criaturas das fábulas morais. In: SARAIVA, Juracy Assmann; ZILBERMAN, Regina (Orgs). Machado de Assis em perspectiva: ficção, história e manifestações sociais. São Leopoldo: Oikos , 2019. [ Links ]

KASPARI, Tatiane. Também se goza por influxo dos lábios que narram: Dom Casmurro e o ensino de Literatura. In: SARAIVA, Juracy Assmann; ZILBERMAN, Regina (Orgs). Machado de Assis em perspectiva: ficção, história e manifestações sociais. São Leopoldo: Oikos , 2019. [ Links ]

KUPSSINSKÜ, Cátia Silene. Costura entre moda e literatura, em Dom Casmurro. In: SARAIVA, Juracy Assmann; ZILBERMAN, Regina (Orgs). Machado de Assis em perspectiva: ficção, história e manifestações sociais. São Leopoldo: Oikos , 2019. [ Links ]

SANSEVERINO, Antônio Marcos Vieira. O estranho narrador de Quincas Borba e o problema do realismo. In: SARAIVA, Juracy Assmann; ZILBERMAN, Regina (Orgs). Machado de Assis em perspectiva: ficção, história e manifestações sociais. São Leopoldo: Oikos , 2019. [ Links ]

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ZILBERMAN, Regina. ‘A Sereníssima República’ – ética e política na última década da monarquia brasileira. In: SARAIVA, Juracy Assmann; ZILBERMAN, Regina (Orgs). Machado de Assis em perspectiva: ficção, história e manifestações sociais. São Leopoldo: Oikos , 2019. [ Links ]

James Remington Kraus – É professor adjunto na Universidade Brigham Young e já publicou diversos artigos sobre a recepção de Machado de Assis e João Guimarães Rosa em tradução inglesa e também sobre o desenvolvimento do conto fantástico brasileiro. https://orcid.org/0000-0001-8129-5389. E-mail: [email protected].

TEIXEIRA, I. S.; BASSI, R. A escrita da história na Idade Média (RH-USP)

TEIXEIRA, I. S.; BASSI, Rafael. A escrita da história na Idade Média. São Leopoldo: Oikos, 2015. 183 pp. Resenha de: SANTOS, Fernando Pereira dos. Os fazeres da História: de Eusébio de Cesareia a Gomes Eanes de Zurara. Revista de História (São Paulo) n.174 São Paulo Jan./June 2016.

Desde que a história tornou-se uma disciplina acadêmica em meados do século XIX,1 o seu fazer tem sido alvo de constantes inquirições por aqueles que se dedicam a esse ofício. Uma das questões perscrutadas é aquela que discute a existência ou não de “historiadores” durante os períodos anteriores a supracitada institucionalização e, mais especificamente, no decorrer dos séculos balizados como Idade Média.2 Não há dúvidas de que Otto de Freising ou Jean Bossuet, por exemplo, tenham realizado empreitadas que hoje são classificadas como “históricas” e, a seu modo, todos aqueles empenhados em atividades congêneres produziram narrativas em que evidenciaram-se elementos imbuídos de sentido e verossimilhança atribuídos às configurações das formas de pensar existentes no momento de sua composição. Logo, é justamente da análise de parâmetros constituintes de verdades e, paralelamente, dos elementos que compõem alguns dos “gêneros” discursivos entendidos como históricos durante o medievo que trata a obra A escrita da história na Idade Média, publicada pela Editora Oikos sob organização de Igor Salomão Teixeira e Rafael Bassi.

Dividida em oito capítulos escritos por diferentes autores, dentre os quais figuram grandes nomes da pesquisa em âmbito nacional, como Néri de Barros Almeida e Susani Silveira Lemos França, o livro conta também com a colaboração de José Miguel de Toro Vial, da Universidad Católica de la Santísisma Concepción, Chile. Em termos gerais, a obra apresenta ensaios que investigam alguns dos principais lugares comuns da composição histórica no medievo, como o recorrente eixo narrativo sobre guerra e governança, bem como o exercício das funções moralistas e memorialistas daqueles escritos para as sociedades em que foram concebidos. Esse é justamente um dentre seus vários destaques positivos, uma vez que permite ao leitor atentar-se para a existência daqueles parâmetros em escritos apartados entre si tanto no sentido do espaço geográfico temporal em que foram compostos como pelos homens que os conceberam, isto é, Eusébio de Cesareia (c. 264 – 339), Iacopo de Varagine (1228 – 1298), Jean Froissart (1337 – 1405), Gomes Eanes de Zurara (1410 – 1474), dentre tantos, e o afamado Jean Froissart. A esse fato somam-se outros de igual relevância: a observância que se faz acerca dos usos da retórica e da forte influência dos escritos clássicos e sagrados ao longo de todo o período, bem como as questões relevantes sobre a audiência pretendida por aqueles homens (e mulher), no caso, Anna Comenna, uma das únicas mulheres a produzir relatos históricos de que se tem notícia.3

A relação existente entre todo esse conteúdo é de suma importância para a compreensão dos problemas que cercaram a produção da história no medievo, como o número reduzido de leitores, o parco acesso a outros textos, a “censura” que poderiam vir a sofrer em diversos âmbitos,4 e mesmo o próprio processo de produção, cópia e manutenção dos escritos que poderiam trazer sérias implicações ao seu conteúdo.5 Ao relevarmos esses temas segundo seu horizonte de produção, é possível buscar seus possíveis significados para o exercício de reconstituição do passado caro a atividade do historiador.

Em nosso entendimento, A escrita da história na Idade Média em grande medida atende às expectativas dos estudiosos que, em algum momento de suas pesquisas, se depararam com essa rica e ampla temática. Em vários momentos da obra, levantam-se pontos de extrema relevância à inquirição acerca do fazer histórico medieval: por que em seus primórdios os cristãos não se interessavam pelo modelo clássico de se escrever história?6 Se tais modelos foram posteriormente mesclados e adaptados pelos mesmos cristãos,7 que forneceram os pilares para o registro histórico por ao menos um milênio no Ocidente, ora ativeram-se a tais paradigmas8 ora extrapolaram o que se esperava deles (p. 157), mas nem por isso deixaram de partilhar premissas em comum na configuração de saberes sobre outrora para a realização de suas narrativas.9

Além dessas, pontuamos algumas dentre as diversas questões lançadas pelos autores que, a nosso ver, igualmente dialogam entre si: o que se pode inferir das possíveis intencionalidades dos responsáveis por aquela escrita da história a partir da leitura de seus prólogos,10 uma vez que ali muitas vezes o responsável pela composição textual enuncia seus interesses para o desempenho da escrita. Não obstante, quem seria seu possível público em uma era em que a capacidade técnica da escrita e a habilidade para a leitura restringiu-se a uma fração das sociedades em pauta?11 Talvez a grande questão que permeia todas as outras seja, enfim, refletir sobre os porquês e a utilidade em se registrar a história em suporte escrito.12 Muito embora tais questionamentos tenham sido realizados ao longo da obra a partir de documentos específicos tendo em vista momentos esporádicos, o que pudemos notar através de sua leitura é a presença de tópicos em comum partilhados por homens muitas vezes sem contato entre si, mas, de alguma forma, continuadores e transformadores de formas prévias de organização do conhecimento.

Contudo, no nosso entendimento, a obra não explora todo o seu potencial, e deixa escapar boas oportunidades de discussão – quiçá para uma futura continuação – acerca de outras matérias que circundam a problemática da escrita da história na Idade Média. Notamos que os ensaios, de modo geral, ainda se concentram em grande medida no medievo latino – Portugal, Espanha, França, Itália – da baixa Idade Média (séculos XIV-XV), reflexo talvez da incidência sobre tal eixo nos cursos de história no Brasil, onde ainda são poucas, mas não menos significativas, as pesquisas sobre outros lugares, tempos e “povos”, como os britânicos, escandinavos e germânicos, e mesmo sobre o mundo não cristão ou mesmo apartado dos ditames da Igreja: árabes, asiáticos e reinos africanos.13 Uma breve, porém valiosa, inquirição nesse sentido foi feita por Marcella Guimarães, que analisou a introdução dos Prolegômenos do tunisiano Ibn Khaldun (1332-1406) em face aos escritos de Jean Froissart (1337-1405), Pero Lopez de Ayala (1332-1407) e Fernão Lopes (1390-1460). Porém o que mais podem nos dizer outras vozes coevas não confinadas ao claustro monástico ou mesmo às atividades burocráticas no Mediterrâneo? Nesse sentido, o capítulo que finaliza o livro, de José Miguel de Toro Vial, oferece uma perspectiva interessante ao analisar o panorama da construção de uma cosmovisão partilhada por crônicas “universais”,14 uma das possíveis formas de se conceber a escrita da história iniciada na Antiguidade tardia e que perdurou para muito além do período abarcado na obra, embora igualmente sua análise se concentre nos textos da Europa cristã.15

Outro ponto praticamente ignorado foi o da contribuição de laicos nesse contexto a partir do século XIV. André Luis Pereira Miatello lança bons questionamentos sobre a escrita do bispo Iacopo de Varegine e a relação com a não inserção de Gênova, ao contrário das outras cidades italianas, no movimento humanista, em que afirma que os litterati leigos escassearam e os dominicanos assumiram a produção cultural local.16 Entretanto, em uma obra que trata em sua maioria de ensaios feitos a partir de textos concebidos com funções primordialmente religiosas, uma inversão de perspectiva poderia oferecer novos ângulos de observação ao leitor, isto é, lançando olhares para o crescente número de laicos que despontou para fins diversos na escrita da história, e para os elementos e interesses presentes em sua forma de registar o passado, como a difusão de textos para além de círculos nobiliárquicos, para finalidades que extrapolavam o entretenimento e a moralização e nem sempre escritos apenas em latim, mas também em idiomas vernáculos.17 Assim, até que ponto eles teriam continuado a escrita da história amparada por elementos cristãos? Seria possível notar novos elementos na abordagem, na escrita, ou mesmo na escolha do que figurar em seus escritos, que destoavam de uma escrita marcadamente escatológica?18

Uma última questão, a nosso ver, que permeia as discussões sobre a escrita da história na Idade Média e que foi pouco discutida refere-se aos supracitados “gêneros” discursivos. No prólogo, seus responsáveis afirmam ser importante questionarmos se houve a escrita da história, quem escrevia, com quais intuitos e, também, destacamos aqui de que forma era feita19. Inúmeras são as elucubrações sobre a relação existente entre formas de escrita, como crônicas, anais e hagiografias e o relato histórico,20 pois como se pergunta Igor Salomão Teixeira em seu ensaio, “o que se entendia por história na Idade Média? Mais especificamente, qual o estatuto de um texto entitulado (sic) por história escrito no início do século XIV?”21 Sucintamente, uma vez que a pretensão à veracidade está ligada não apenas ao que se narra, mas ao como se narra,22 é importante que se traga à tona de que maneira se relaciona a forma organizacional do texto, em sentido mais amplo, com as funções da história na Idade Média. A escrita em qualquer uma das formas assumidas não ocorreu de modo linear, mas simultaneamente: o que isso nos diz sobre o entendimento daqueles indivíduos sobre o objeto que produziram, refletiram e empregaram para fins diversos?

De qualquer forma, para além de registros em que, muitas vezes, imperou o maravilhoso,23 a constante reinterpretação dos trabalhos de cunho historiográfico produzidos no medievo alerta sobre a necessidade de atentarmo-nos para tais textos como produtos complexos em que estavam envolvidos representações e simbolismos que extrapolam a simples relação com textos sagrados e clássicos, mas que se configuram como testemunhos coevos do momento de seu fazer, em que sua análise nos permite, até certo ponto, reconstituir uma cadeia não linear de saberes. É nesse sentido, portanto, que se inserem as ponderações de A escrita da história na Idade Média, um trabalho meritório não apenas por figurar como uma obra que reúne inquietações sobre esse importante tema escrita por pesquisadores brasileiros, mas que igualmente suscita a divulgação mais ampla sobre aquela parte fundamental da produção de conhecimentos realizada durante um período chave da história ocidental.

Referências

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2GALBRAITH, Vivian Hunter. Historical research in medieval England. Londres: University of London, 1951. GIVEN-WILSON, Christopher. Chroniclesthe writing of history in late medieval England. Londres: Hambledon and London, 2004. GRANSDEN, Antonia. Historical writing in England. Londres: Routledge, 1996. GUENÉE, Bernard. História. In: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean Claude (coord.). Dicionário temático do Ocidente medieval. Tradução de Hilário Franco Júnior. Bauru: Edusc; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002. HAY, Dennis. Annalists and historians: western historiography from eighth to eighteenth centuries. Londres: Methuen; Nova York: Harper & Row, 1977. SMALLEY, Beryl. Historians in the Middle Ages. Londres: Thames & Hudson, 1974. TAYLOR, John. English historical literature in the fourteenth century. Oxford: Clarendon Press, 1987.

3De forma geral, os cronistas integravam um universo composto por homens de meia idade, majoritariamente clérigos e pertencentes às elites terratenentes (GIVEN-WILSON, Christopher, op. cit., p. 60-64).

4GIVEN-WILSON, Christopher, op. cit., p. 207-212.

5The manuscript experience: what medieval vernacular manuscripts tell us about authors and texts. In: CAIE, Graham & REVENEY, Denis (ed.). Medieval texts in context. Londres: Routledge, 2008, p. 10-27.

6ALMEIDA, Neri de Barros & DELLA TORRE, Robson Murilo Grando. A História eclesiástica de Eusébio de Cesareia frente à tradição historiográfica clássica. In: TEIXEIRA, Igor Salomão & BASSI, Rafael, obra desta resenha, p. 15.

7FRANÇA, Susani Silveira Lemos. A rememoração do passado no rastro da prudência. In: TEIXEIRA, Igor Salomão & BASSI, Rafael (org.), obra desta resenha, p. 66-68.

8MIATELLO, André Luis Pereira. Iacopo de Varagine a escrita da história no século XIII. In: TEIXEIRA, Igor Salomão & BASSI, Rafael (org.), obra desta resenha, p. 119-124.

9BASSI, Rafael. Anna Commena, historiadora. Um estudo sobre a escrita da história no Império bizantino: o caso d’A Alexíada (séculos XI – XII). In: TEIXEIRA, Igor Salomão & BASSI, Rafael (org.), obra desta resenha, p. 44-45.

10GUIMARÃES, Marcella Lopes. As intenções da escrita da História no outono da Idade Média. In: TEIXEIRA, Igor Salomão & BASSI, Rafael (org.), obra desta resenha, p. 76-77.

11SIQUEIRA, André Luiz. Fantasmas celanenses: os usos do “Memoriale beati Francisci in desiderio aimae” na formação de uma consciência histórica franciscana no século XIII. In: TEIXEIRA, Igor Salomão & BASSI, Rafael (org.), obra desta resenha, p. 93.

12MIATELLO, André Luis Pereira. Iacopo de Varagine a escrita da história no século XIII. In: TEIXEIRA, Igor Salomão & BASSI, Rafael (org.), obra desta resenha, p. 114.

13MACEDO, José Rivair. Os estudos medievais no Brasil: uma tentativa de síntese. Reti Medievali Rivista, Firenze, vol. 7, n. 1, 2006, p. 1-9. Disponível em: http://www.dssg.unifi.it/_RM/rivista/saggi/RivairMacedo.htm. Acesso em: 03/03/2016.

14VIAL, José Miguel de Toro. As crônicas universais e a cosmografia medieval. In: TEIXEIRA, Igor Salomão & BASSI, Rafael (org.), obra desta resenha, p. 177-179.

15Idem, p. 159.

16MIATELLO, André Luis Pereira. Iacopo de Varagine a escrita da história no século XIII. In: TEIXEIRA, Igor Salomão & BASSI, Rafael (org.), obra desta resenha, p. 116.

17RICHARDSON, Malcolm. Middle-class writing in late medieval London. Londres: Pickering & Chatto, 2011.

18VIAL, José Miguel de Toro. As crônicas universais e a cosmografia medieval. In: TEIXEIRA, Igor Salomão & BASSI, Rafael (org.), obra desta resenha, p. 162-164.

19TEIXEIRA, Igor Salomão. Ystoria sancti Thome de Aquino: hagiografia ou história? In: TEIXEIRA, Igor Salomão & BASSI, Rafael (org.), obra desta resenha, p. 7.

20SMALLEY, Beryl. Historians in the Middle Ages. Londres: Thames & Hudson, 1974.

21TEIXEIRA, Igor Salomão. Ystoria sancti Thome de Aquino: hagiografia ou história? In: TEIXEIRA, Igor Salomão & BASSI, Rafael (org.), obra desta resenha, p. 144.

22WHITE, Hayden. The content of formnarrative discourse and historical representation. Baltimore; Londres: John Hopkins University Press, 1987, p. 1-25.

23LE GOFF, Jacques. The medieval imagination. Traduzido por Arthur Goldhammer. Chicago: University of Chicago Press, 1988.

Fernando Pereira dos Santos – Mestre e Doutorando em História pelo Programa de Pós Graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais e bolsista da Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal do Nível Superior – Capes. E-mail: [email protected].