Nietzsche: filosofo della libertà – LANGONE (RFMC)

LANGONE, Laura. Nietzsche: filosofo della libertà. Pisa: Edizioni ETS,2019. Resenha de: PAULA, Marcio Gimenes de. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.7, p. 335-338, n.3, dez. 2019.

Laura Langone, jovem pesquisadora italiana, nos apresenta em seu trabalho Nietzsche: filosofo della libertà os desafios de nos debruçarmos sobre a filosofia do pensador alemão como uma filosofia da liberdade. Para tanto, ela começa por caminhos já bastante explorados, a saber, o seu primeiro capítulo trata exatamente da famosa passagem de Zaratustra anunciando o segredo da liberdade na obra Assim falou Zaratustra. Contudo, parece errar quem aposta aqui que a filosofia é algo que se faz apenas com abordagens supostamente inovadoras ou, ainda pior, que pensa que visitar passagens já conhecidas (ou supostamente conhecidas) é algo reprovável ou de menor significado. Assim, revisitando a popular- ao menos em tese- passagem em que Zaratustra anuncia a morte de Deus, a pesquisadora nos apresenta sua leitura e interpretação, fruto não apenas de uma exegese de Nietzsche, mas também dos interpretes com os quais escolhe dialogar.

Nota-se aqui claramente a crítica nietzschiana aos aspectos metafísicos e morais construídos pela filosofia e pela religião no decorrer dos séculos. Tal caminho é bastante explorado e até mesmo exaustivamente explanado pela autora, o que nos prepara para compreender Nietzsche como um grande crítico da metafísica e da moral, fato que já atraiu a atenção de inúmeros pesquisadores da mais alta qualidade como, por exemplo. Heidegger e o compatriota de Langone, Gianni Vattimo, o que parece provar, desde os dias da edição de Giorgio Colli e Mazzino Montinari, o quanto os estudos nietzschianos devem ao pensamento italiano do século XX. Aqui, entretanto, penso que a autora nos apresenta outro importante pensador: o norte-americano Ralph Waldo Emerson, filósofo e poeta que viveu, tal como Nietzsche, no século XIX e, segundo relatos que se pode observar, teria exercido alguma influência também no pensamento nietzschiano. Como se trata de um autor pouco conhecido entre nós, e talvez até mesmo na academia italiana, penso que Laura Langone possui o grande mérito de apresenta-lo e de discutir suas teses lado a lado com as teses de Nietzsche, a saber, suas implicações para a metafísica e para a moral. Seria significativo também se, de algum modo, o nome do pensador norte-americano viesse agregado ao título principal da obra ou, talvez, num subtítulo, pois tal coisa ajudaria na localização do leitor que, a rigor, só percebe a presença de Emerson ao ler efetivamente a totalidade do texto.

O capítulo segundo segue discutindo o problema metafísico em Nietzsche e agora aprofunda a discussão ao tomar a metafísica como uma espécie de erro de linguagem, o que parece inserir Nietzsche dentro de outra fronteira, isto é, o pensador pode ser tomado também como um filósofo da linguagem. A autora trabalha de modo exegético, mas selecionando aspectos, passagens importantes das obras A Gaia Ciência e Assim falou Zaratustra. Aqui o texto é bastante apropriado para quem deseja aprofundar em Nietzsche (e em Emerson) a discussão sobre verdade e linguagem e também para a realização efetiva de uma crítica da ciência, notadamente nos seus aspectos metafísicos.

A moral escrava será o tema do capítulo terceiro. Especialmente por uma leitura de Humano, demasiado humano, a autora faz interlocução com as teses de Nietzsche e de Emerson. Desse modo, aprofundando a crítica da metafísica e da moral, Langone explicita de modo mais categórico que a moral escrava é, na verdade, consequência do equívoco metafísico. Assim, o capítulo quarto possui intrínseca relação com o capítulo que lhe antecede e, por isso, a cisão metafísica entre alma e corpo será tão importante para a exploração intelectual da temática de Laura Langone, mas também se poderá percebê-la não apenas na obra de Nietzsche, mas nos aspectos naturais discutidos por Emerson, o que totaliza um quadro significativo e cheio de profundidade.

Outro tema nietzschiano bastante conhecido – ou ao menos citado – é retomado pela pesquisadora em seu capítulo quinto, isto é, o tema do espírito livre e a compressão da liberdade como consciência de si. Aqui novamente, com uma seleção especialmente feita de passagens de Aurora e A Gaia Ciência, a autora não apenas aproxima Nietzsche de temas tão significativos para a filosofia da vida (Lebensphilosophie), igualmente explorada por autores como Simmel e Arendt, como é capaz de perceber a relação do pensador alemão com Darwin, o que o aproxima de uma significativa discussão muito atualizada sobre a natureza. Desse modo, há aqui um vasto campo para os que se desejam aprofundar em tal investigação.

Já o capitulo sexto visitará outro tema bastante mencionado nos estudos nietzschianos: a vontade de potência. Aqui Langone é novamente exegética, no melhor sentido da palavra, e o aborda enfrentando diretamente A Gaia Ciência e Assim falou Zaratustra, além, é claro, dedialogar com ótima bibliografia de comentadores da obra nietzschiana. O mesmo ocorrerá no capítulo sétimo sobre a morte de Deus. A rigor, trata-se de um tema imenso para todo o pensamento moderno. Contudo, a autora sabiamente percebe que poderá explorá-lo melhor a partir da pista do niilismo ocidental e assim o desenvolve de maneira clara, sóbria, o que abre o campo para futuras investigações e indagações de toda a sorte, o que é profundamente filosófico.

Por fim, o capítulo oitavo dissertará sobre o eterno retorno do igual e aqui, ainda que se trate também de um tema bastante discutido por especialistas de Nietzsche, Langone consegue uma qualificação ao aprofundá-lo em consonância com as teses de Emerson. O mesmo sucederá no nono capítulo, quando o tema da liberdade como consciência poderá ser compreendido em modo ampliado e, assim, a afirmação da vida, a potência, o tema do além do homem e a transvaloração de todos os valores, passa a ter uma nova possibilidade de leitura e interpretação, o que fica ainda mais claro na conclusão de Laura Langone entre Nietzsche e Emerson.

Destaque-se ainda o fato da autora ser a primeira intérprete de Nietzsche a afirmar que o eterno retorno é uma teoria da consciência da filosofia pós-metafísica, tal como é argumentado por ela no último capítulo. Até então, pelo que se pode constatar, inúmeros outros estúdios os nietzschianos tenderam a tomar o eterno retorno como uma ontologia ou uma ética. A título apenas de sugestão, os capítulos, talvez, pudessem ter sido agregados e, desse modo, o texto se mostraria ainda mais claro e compacto. De todo modo, o trabalho da autora é apenas o início de um percurso. Elogiável início visto que nos ajuda a pensar.

Marcio Gimenes de Paula – Professor do Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília (UnB). E-mail: [email protected] ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5991-5710

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El idealismo de Kierkegaard – BINETTI (RFMC)

BINETTI, María J. El idealismo de Kierkegaard. Ciudad de Mexico: Universidad Iberoamericana, 2015. Resenha de: PAULA, Marcio Gimenes de. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.4, p. 112-115, n.2, 2016.

Maria José Binetti, pesquisadora argentina, seguindo a trilha dos maiores especialistas em Kierkegaard, traz para a América Latina – em parceria com os colegas mexicanos – um estudo que, a meu ver, será de importância singular no âmbito das investigações sobre o pensador dinamarquês em nosso continente. Penso que aqui já temos o primeiro grande mérito do seu trabalho. Tal atitude é fruto do seu compromisso de diálogo acadêmico, já firmado há alguns anos, com centros de investigação como Kierkegaard Hong Library – St. Olaf College (Estados Unidos), bem como com o S.Kierkegaard Research Centre (Dinamarca).

Na interpretação de nossa colega sulamericana, seguindo a esteira do já renomado pesquisador norte-americano Jon Stewart, e ao contrário do que uma dada tradição nos parece haver legado, Kierkegaard é um pensador que se encontra bem no cerne do idealismo e suas discussões e, nesse sentido, pode ser tomado como um pensador idealista. Por isso, sua tese afirma categoricamente que o pensador de Copenhague não apenas é um pensador idealista, mas que seu idealismo parte de uma dada metafísica absoluta. Por isso, parece exemplar a definição que ela mesma nos fornece nas primeiras páginas do seu primeiro capitulo sobre a caracterização básica do idealismo (Sinzarones y razones del idealismo hegeliano):

Do ponto de vista histórico, o idealismo se apresenta como um projeto libertário de cunho metafísico, inspirado na atmosfera política da Revolução francesa e gestado em dois grandes epicentros: O Seminário Teológico de Tübingen (1788-1793), onde se formaram F.Schelling, F. Holderlin y F. Hegel; e o Ateneu de Iena (1798-1800), fundado pelos irmãos Schlegel, e visitado entre outros por F. Schleiermacher, Novalis, J.L.Tieck e F. Schelling. Todos esses autores compartilharam o interesse pelas Lições de J.G.Fichte em Iena (1794-1799) e a simpatia por Espinosa. (BINETTI, 2015: 15- tradução minha)

Em outras palavras, o idealismo possui uma parte política, uma forte herança protestante e um antecedente que remonta a Espinosa. Se observarmos com cuidado esse será exatamente o quadro que teremos diante dos olhos aos estudarmos os póshegelianos. De igual modo, mas também como fruto de sua época, podemos verificar aqui as sementes já lançadas pela clássica interpretação de Karl Löwith no seu De Hegel a Nietzsche, ainda que Binetti apresente suas discordâncias pontuais em relação a ele.

Assim, com extrema audácia e coragem para romper com preconceitos, Binetti afirma o quanto é descabida, a tese tradicional sobre Kierkegaard que tende a tomá-lo como uma espécie de autor antihegeliano de modo extremamente banal:

Apesar da vacuidade de sua polêmica contra a filosofia hegeliana, moderna e especulativa em geral, e ainda apesar de que o próprio Kierkegaard alguma vez se tenha reconhecido hegeliano, o certo é que a imagem de um Kierkegaard anti-idealista e anti-hegeliano dominou a história da filosofia contemporânea e se instituiu como um dos seus lugares mais comuns. (BINETTI, 2015: 21- tradução minha)

Desse modo, a tese de Binetti, seguindo já os passos de Jon Stewart no seu Kierkegaard ´s relations to Hegel reconsidered, é instigante na medida em que nos impulsiona a pensar Kierkegaard não de modo estático e acabado, mas a compreendê-lo como um pensador do seu tempo, como um idealista e até mesmo como um hegeliano. O que talvez pode variar – e certamente será muito rico. Além, é claro, de perguntar-se que tipo de idealismo ou hegelianismo ele parecia trazer no bojo de sua reflexão filosófica. Assim, ao romper com um antihegelianismo dado como certo do pensador de Copenhague, Binetti problematiza o autor e seus temas, o que é bastante fecundo na discussão filosófica, isto é, pensar com o autor e, se for o caso, pensar mesmo contra ele. Por isso, nossa colega não se omite quando deve criticar Kierkegaard e o faz de forma contundente quando julga que ele se equivocou, por exemplo, ao ver em Hegel um final da história e um fechamento do sistema:

Nesse sentido não é possível atribuir a Hegel um fim da história, nem um fechamento definitivo do sistema, tal como Kierkegaard o faz… (BINETTI, 2015: 27- tradução minha).

Assim, no seu entender, o tema do singular e da dialética, que muitos tomam como uma invenção do autor dinamarquês, se constituem em provas da influência hegeliana e idealista no pensamento kierkegaardiano e devem ser tomados dentro de um quadro crítico amplo, o que não significa diminuir o mérito de sua abordagem filosófica.

No capítulo segundo, Binetti faz uma profunda investigação sobre o tema do romantismo depois do romantismo. Em outras palavras, avalia dois aspectos da história da filosofia fundamentais para compreender o romantismo, a saber, a herança espinosana e o traço da fé. Seguindo a mesma lógica desenvolvida na definição do que seria um pensador idealista, a autora vê em Kierkegaard uma dubiedade, talvez como igualmente podemos vê-la diante do hegelianismo do autor dinamarquês frente ao romantismo. Contudo, isso é muito mais forte, ou seja, a dubiedade diante do romantismo na verdade só ocorre por conta da dubiedade kierkegaardiana diante do hegelianismo. Aliás, o próprio romantismo carrega no seu corpo tal traço, isto é, ele mescla elementos de um espinosismo com aspectos constituintes e centrais da fé cristã. Aqui reside aquilo que os alemães chamavam de Bildung e Binetti a explicita com muita clareza ao avaliar o tema do romantismo na obra de Kierkegaard:

Alguns autores tem entendido que Kierkegaard superou a irreligiosidade e a imoralidade românticas em virtude seu apriori cristão. Nossa opinião, pelo contrário, é que precisamente em virtude do seu apriori cristão, Kierkegaard se converteu em um pensador romântico, uma vez que poetizava seu inalcançável ideal cristão. O cristianismo de Kierkegaard não é uma doutrina, nem uma comunicação direta, nem uma dogmática, sim ‘uma comunicação de existência’, uma potencialização da subjetividade, cujo esgotamento reflexivo produz a fé como unidade dialética do divino. A fé kierkegaardiana é paixão e onde há paixão e fé há romantismo. Por isso, entendemos que Kierkegaard é romântico na sua mesma concepção cristã, nesse esforço renovador e liberador da consciência cristã, que repete o absoluto da idealidade romântica e o consuma como reduplicação amorosa. (BINETTI, 2015: 63- tradução minha)

Entretanto, é bem verdade que, nesse mesmo capítulo, nossa colega, sabedora das teses de Kierkegaard no Conceito de ironia, apresenta claramente que, em alguns momentos, mesmo com o seu romantismo, o autor dinamarquês parece se postar ao lado de Hegel contra determinadas teses românticas. Tal coisa no seu entender, não afeta a posição romântica de Kierkegaard, mas a coloca dentro de um amplo quadro de entendimento, a saber, a herança que o próprio romantismo recebe de Hegel e trabalha criticamente.

No capítulo terceiro, que é o de maior fôlego da obra e certamente envolve um domínio de boa parte da reflexão hegeliana, Binetti nos apresenta, com extrema competência discussões bastante centrais do hegelianismo, buscando compreender como Kiekegaard está posicionado dentro de tal contexto. Por isso, explora aqui novamente o tema de Hegel em oposição aos românticos mas, ao contrário de uma leitura mais previsível e comum, apresenta também uma tese muito instigante e que vale a pena investigar: a possibilidade de que não apenas Kierkegaard pode ser tomado num dado sentido como pensador romântico, mas que o mesmo também ocorre com Hegel. Sua interpretação é claramente tributária das teses de Jon Stewart e, nesse sentido, coloca-se em clara oposição às teses de Niels Thulstrup que, na sua clássica obra Kierkegaard´s relation to Hegel, defende peremptoriamente a tese de que Hegel e Kierkegaard são pensadores absolutamente distintos. Binetti, juntamente com Stewart, contesta tal tese com energia. A fim de melhor fundamentar sua argumentação, a autora baseia-se num tríplice divisão da obra kierkegaardiana proposta por Stewart. Segundo tal cronologia, a primeira parte da produção iria de 1834 a 1843, sendo tal período tomado como um período de recepção positiva da obra de Hegel. Aqui situam-se, por exemplo, obras importantes de Kierkegaard como Conceito de ironia, Ou Ou e Temor e Tremor. O segundo período iria de 1843 a 1846 e aqui percebemos claramente um confronto do idealismo de Kierkegaard com o hegelianismo dinamarquês de sua época. Aqui entra uma forte acentuação da tese de que, quando Kierkegaard criticava fortemente Hegel (ou parecia criticar), no fundo criticava ao hegelianismo dinamarquês que já era, por sua vez, uma degeneração do que havia escrito o próprio filósofo alemão. Por fim, a terceira e última fase vai de 1847 a 1855. Aqui Kierkegaard parece voltar à filosofia hegeliana que havia sido tão criticada por ele próprio e que parece agora receber também inúmeras outras críticas em tantos outros contextos. Data de tal período boa parte de suas polêmicas com Heiberg, Martensen e outros autores do contexto hegeliano dinamarquês. Alguns temas aqui recuperados por Kierkegaard são claramente de inspiração hegeliana: o tema dos estádios é de fundo hegeliano, uma vez que tem inspiração nas etapas do caminho da consciência, o tema da subjetividade, a discussão em torno de pecado e consciência do pecado possui igualmente uma coloração hegeliana. Aqui Maria Binetti deixa categoricamente expressa sua posição ao lado de Jon Stewart:

A conclusão de Stewart é clara: Kierkegaard nunca objetou seriamente o pensamento hegeliano, mas o caricaturou ironicamente com a finalidade de atacar de maneira encoberta os seus contemporâneos imitadores. (BINETTI, 2015: 96- tradução minha).

Por fim, na quarto e último capítulo, Binetti nos apresenta outro tema profundamente merecedor de investigação, a saber, o tema da filosofia da religião póshegeliana. Aqui, com precisão, a autora aponta historicamente a data de publicação das Lições sobre a filosofia da religião, isto é, 1832. Tal obra é publicada postumamente, uma vez que Hegel morreu um ano antes. Contudo, muito mais do que apontar datas ou fazer referências históricas pontuais, o cerne da argumentação reside em apontar que Hegel trata de religião e filosofia como conceitos, ainda que fizesse entre eles diferenças. Kiekegaard recebe tal influência em seu pensamento notadamente pelas aulas que assistiu de um hegeliano bastante famoso no contexto dinamarquês: Martensen. Ali, nas suas aulas de Teologia, aprendeu teses centrais do pensador alemão, notadamente aquelas relacionadas com a sua filosofia da religião. Igualmente importante aqui é a citação que Binetti faz de Karl Löwith que na sua já citada De Hegel a Nietzsche, situa Kierkegaard entre os pós-hegelianos de esquerda, inclusive aproximando-o, com certo exagero, de Marx. A autora, profunda conhecedora do contexto de origem do hegelianismo dinamarquês e do debate entre hegelianos de esquerda e de direita, move-se com extrema competência no intuito de fazer um balanço do que seria de fato o idealismo (e o hegelianismo) de Kierkegaard. Por isso, com o intuito de nos estimular a pensar afirma, segundo os passos de Derrida, que em Kierkegaard encontramos o tema da “religião sem religião”. Ponto que poderíamos tomar como marcante e constitutivo de boa parte da tradição pós-hegeliana.

A título de conclusão, a autora mostra que o idealismo de Kierkegaard é, na verdade, muito próprio do seu modo de pensar. Se quisermos nos mover rigorosamente numa definição kierkegaardiana poderíamos quiçá dizer que ele é, no fundo, uma reapropriação: “O idealismo de Kierkegaard não é o de Schlegel, nem o de Hegel, nem o de Feuerbach. É sua própria expressão, no cálculo combinado de matizes, acentos e preferências” (BINETTI, 2015: 174- tradução minha). Por isso, a autora parece ter razão quando afirma que “Kierkegaard recolhe um idealismo pós-hegeliano que se questiona e debate a si mesmo” (BINETTI, 2015: 176- tradução minha).

Na concepção de Binetti, o idealismo kiekegaardiano é um idealismo cristão e por isso parece ser original e paradoxal notadamente dentro do contexto onde ele se situa. Desse modo, Kierkegaard avalia temas centrais tanto na herança do cristianismo como nos debates acerca do indivíduo, ou seja, a escolha, a liberdade, etc. Fornece, para todos eles, uma nova feição tanto no campo da filosofia como da própria teologia. Assim, de modo muito curioso, a autora pode afirmar que “paradoxalmente a inspiração deste idealismo é a que refrata sua figura antiidealista” (BINETTI, 2015: 176- tradução minha). Desse modo, “Cristo expressa o escândalo dialético da existência, o enorme paradoxo que é o modelo e o caminho de cada pobre homem singular” (BINETTI, 2015: 177- tradução minha).

Uma última palavra: a obra de Binetti possui, ao mesmo tempo, uma clareza e uma profundidade admiráveis. Nem sempre os especialistas conseguem essa virtude, o que torna o livro ainda mais recomendável em tempos de falsa intelectualidade e esnobismo infrutífero. A bibliografia é igualmente rica e pode ser um excelente guia para os que querem aprofundar seus estudos na obra do pensador dinamarquês, bem como em Hegel e nos pós-hegelianos.

Marcio Gimenes de Paula – Professor Universidade de Brasília.

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O crucificado encontra Dionísio – estudos sobre Kierkegaard e Nietzsche – VALLS (RFMC)

VALLS, Álvaro. O crucificado encontra Dionísio – estudos sobre Kierkegaard e Nietzsche. São Paulo: Edições Loyola, 2013. Resenha de: PAULA, Marcio Gimenes de. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.2, p.177-179, n.1, 2014.

O ano de 2013 marcou uma efeméride significativa no universo kierkegaardiano: a data do bicentenário de nascimento do autor dinamarquês. Em decorrência disso, mas não apenas por isso, muitos eventos significativos foram realizados em vários locais onde existe o interesse pela pesquisa kierkegaardiana. Nesse sentido, o mercado editorial brasileiro brindou o leitor interessado em Filosofia e na obra do pensador de Copenhague com duas instigantes obras do professor Álvaro Valls, célebre tradutor de Kierkegaard e um dos pioneiros na pesquisa desse autor em solo brasileiro. Uma dessas obras foi, na verdade, publicada em 2012 (Kierkegaard cá entre nós, resenhada logo a seguir).

A primeira obra, O crucificado encontra Dionísio – estudos sobre Kierkegaard e Nietzsche, é fruto de anos de trabalho e de uma pesquisa com mérito reconhecido por inúmeros colegas e também pelo CNPQ, que a financia. O pesquisador gaúcho congrega aqui, em seus doze capítulos, treze ensaios sobre Kierkegaard e Nietzsche. Talvez, por receio de ser excessivamente cobrado por alguns nietzschianos, o pesquisador parece deixar claro, logo de saída, que não é um especialista na obra do pensador alemão, mas apenas um leitor interessado e que, num dado grau desse interesse, Nietzsche se encontra com o autor estudado por ele há alguns anos, a saber, Kierkegaard.

Ironia e melancolia é o primeiro ensaio da coletânea e dialoga com as teses de Kierkegaard desde o Conceito de Ironia, passeando ainda pela temática da melancolia em autores brasileiros como Machado de Assis, Gregório de Mattos e o compatriota gaúcho do autor, Moacyr Scliar. Trata-se de um muito curioso diálogo que atravessa o frio da Dinamarca, chega até os trópicos e dialogo ainda com temas já mencionados por autores como os paulistas Paulo Prado e Mário de Andrade.

O texto que se segue, denominado Sócrates oscilando entre Kierkegaard e Nietzsche é uma curiosa interpretação da figura do pensador de Atenas pelas lentes de Nietzsche, talvez mais conhecidas do público brasileiro. Com efeito, trata-se também da interpretação do conceito da ironia socrática e a percepção de como essa tornou-se central para a obra kierkegaardiana. Trata-se de uma tentativa de mostrar, ao menos em nuance, as múltiplas faces de Sócrates na obra do autor dinamarquês, comparando-a com o modo nietzschiano de entendê-las. O ensaio que se segue, Ironia socrática e Ironia kierkegaardiana, aprofunda um pouco mais tal questão, fazendo um mergulho filosófico.

Já o texto Heiberg e Brandes, críticos contemporâneos de Kierkegaard e Nietzsche, investiga dois desses autores, talvez ainda pouco conhecidos no Brasil, mas que foram importantes para o hegelianismo dinamarquês (Heiberg) e para a divulgação cultural da obra de Kierkegaard na Europa (Brandes). Ambos foram estudiosos de temas de estética e valem efetivamente uma aproximação. Brandes foi, inclusive, amigo particular de Nietzsche com quem trocou inúmeras correspondências e, numa delas, recomendou-lhe a leitura de um psicólogo dinamarquês profundo: Søren Kierkegaard. Tal fato foi, infelizmente, impossibilitado pela doença de Nietzsche e dele, ao que parece, temos apenas esse registro. A ética dos discursos kierkegaardianos é o tema do quinto ensaio da obra de Valls. Nele, o autor, fortemente influenciado pela interpretação de Henri-Bernard Vergote, começa pela pergunta de como se deve ler a obra kierkegaardiana, comprendendo-a, na esteira do pensador francês, como ironia do inicio ao final. Tal tom, serve para modular também aquilo que Vergote denominará como segundo percurso kierkegaardiano. O momento onde o autor dinamarquês parece se aliar aqueles que, segundo alguns podem supor, seriam seus adversários como Feuerbach e outros críticos do cristianismo. Contudo, tais autores tornam-se seus aliados na crítica à cristandade e na tentativa de articulação de um novo conceito: o de cristicidade ou tipicamente cristão. Tal segundo percurso tem uma ligação também com aquilo que se denomina de segunda ética, isto é, a ética tipicamente cristã, diferente da ética grega do bem e do belo. Tal discussão aqui iniciada é ainda mais aprofundada, especialmente ao levar em conta As Obras do Amor (e alguns outros discursos kierkegaardianos), no ensaio seguinte denominado Estética, ética e religião nos discursos de 1847.

A discussão ética também será o tema do texto apresentado no capítulo sétimo, O amor dos poetas e o que se torna dever. Aqui, bem ao gosto kierkegaardiano, Valls aponta, a partir de duas obras centrais do autor dinamarquês (Temor e Tremor e Obras do Amor) em que implica uma ética do dever de amar e em que ela se difere de uma ética do dever racional kantiano. O diálogo com as teses do pensador alemão são excelentes e o ensaio vale não apenas pelo que aponta, mas especialmente pelas lacunas que ele deixa em aberto, pistas possíveis para uma investigação de maior fôlego. Nesse mesmo sentido, O Elogio do amor desinteressado, texto que vem logo a seguir, faz o aprofundamento do mesmo tema dentro da análise das Obras do Amor.

Nietzsche reaparece no ensaio seguinte, Sobre a saúde e a doença. Trata-se de uma discussão que busca resgatar uma função muitas vezes negligenciada da filosofia: a cura, o cuidado, a preocupação com temas de vida e de morte. Valls convida, para essa discussão que se encaixa muito bem também nas discussões contemporâneas de bioética, inclusive, o filósofo Michel Foucault.

Os dois próximos capítulos, Temor, Medo e Angústia I e II, trabalham com um tema bastante caro aos estudos kierkegaardianos. O autor busca, através de uma leitura atenciosa de O Conceito de Angústia, aproximar conceitos éticos importantes em Kierkegaard e em Nietzsche, compreendendo ainda tais inquietações dentro do contexto da antiga literatura dinamarquesa. O mesmo Conceito de Angústia será, não fortuitamente recuperado no ensaio final, que tem o significativo título Enfim, ler o Conceito de Angústia.

Já o penúltimo ensaio do livro de Valls, Um leitor de Nietzsche avant la lettre, é, talvez, um dos mais provocativos e instigantes da obra. Nele, o professor nos apresenta um Kierkegaard que, talvez, teria sido “nietzschiano” antes mesmo de Nietzsche, recuperando muito de suas críticas, notadamente aquelas feitas ao cristianismo.

Por todos os motivos elencados, penso que não faltam boas razões para ler a obra de Valls que mais do que nos provocar, parece que nos desperta o apetite, serve como um aperitivo filosófico, preparatório para os que estiverem dispostos a um banquete.

Marcio Gimenes de Paula

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