Der rückstoss der methode: Kierkegaard und die indirekte mitteilung SCHWAB (ARF)

SCHWAB, Phillip. Der rückstoss der methode: Kierkegaard und die indirekte mitteilung. Berlin/Boston: Walter de Gruyter, 2012. Resenha de: BARROS, Wagner. Argumentos – Revista de Filosofia, Fortaleza, n. 17, jan./jun. 2017.

O livro de Phillip Schwab, intitulado Der Rückstoss der Methode, se apresenta como uma importante contribuição e indispensável para as pesquisas que versam sobre a comunicação indireta no pensamento de Kierkegaard. Ainda que inúmeros trabalhos tenham desenvolvido reflexões sobre o assunto, frequentemente o problema da comunicação é tratado de forma tangencial ou coadjuvante, dificilmente desempenhando um papel central. É neste contexto que a interpretação de Schwab se torna particular, pois o autor não concebe o discurso indireto como estilo literário ou um recurso utilizado por Kierkegaard para trazer a discussão sobre a existência, mas como elemento constitutivo do próprio processo de análise filosófica. Para Schwab, a comunicação indireta não é só principio estrutural, mas também o modo de realização essencial e a forma necessária do pensamento kierkegaardiano: A comunicação indireta não é uma peculiaridade estilística da forma, também não é uma roupagem literária do pensamento filosófico. A comunicação indireta não é […] uma tática maiêutico-pedagógica que serve ao objetivo de alcançar um resultado para o receptor da comunicação. A comunicação indireta é o método de Kierkegaard […] (p.12 – nossa tradução) Percebe-se, portanto, que a interpretação proposta não visa reduzir a comunicação indireta ao uso de pseudônimos, como sugere a explicação de Ponto de vista1. A leitura se afasta também da tese segundo a qual a comunicação indireta ou o discurso religioso adquirem sua significatividade mediante o reconhecimento da práxis religiosa, como apresenta Schönbaumsfeld2. Schwab entende o discurso indireto como um elemento central da filosofia de Kierkegaard que está articulado com todo o seu pensamento e se faz presente mesmo em obras que não exploram o tema de forma explícita, principalmente porque a comunicação indireta apontaria para um método que se auto revoga diante da tentativa de analisar a existência.

O objetivo da primeira seção do livro é realizar uma leitura “sistemática”, ou seja, explorar a estrutura da comunicação indireta e compreendê-la enquanto método. Embora não se encontre uma análise textual, o autor elabora um esquema conceitual que permite compreender a função do indireto. Assim, é destacado que a comunicação indireta representaria um contra-movimento [Rückstoss] do método, um movimento contrário a qualquer tentativa de definição. O contra-movimento do método descreveria o movimento fundamental de um método que trabalha contra si mesmo: é a tensão do pensamento. Este contra-movimento seria a primeira característica da comunicação indireta, uma vez que a busca de sua definição resulta em fracasso, ou melhor, é o próprio fracasso da representação que a comunicação indireta porta em si. Este fracasso da abordagem direta indicaria a inconclusividade [Unabschlossenheit] ou um contra-projeto que se opõe a qualquer pensamento sistemático.

Ainda na primeira parte do trabalho, o autor faz uma distinção entre o conceito [Begriff] e a realização [Durchführung] da comunicação indireta. No primeiro caso, trata-se das reflexões explícitas de Kierkegaard sobre a comunicação, enquanto o segundo diz respeito à comunicação indireta executada, ou seja, quando Kierkegaard a emprega. Por exemplo, Pós Escrito (1846) seria um texto que não só teoriza, mas também executa o método indireto.

É preciso ressaltar que, assim como o termo contra-movimento do método, a diferenciação entre realização e conceito não se encontra nos textos de Kierkegaard. A elaboração destes conceitos extrapola a análise textual e assinala o trabalho interpretativo de Schwab. Estes “conceitos” assumem a função de expor o discurso indireto enquanto método no interior das próprias obras de Kierkegaard. Desta forma, o livro de Schwab revela a unidade entre a leitura estrutural, histórica e exegética das obras, e a elaboração conceitual do próprio intérprete.

A segunda parte do livro se dedica a uma análise do discurso indireto em diversos períodos do pensamento kierkegaardiano e tem como objeto o conceito de comunicação. Schwab parte de Pós Escrito, onde o contra-movimento do método é descoberto na impossibilidade de uma representação da existência, sobretudo devido à incomensurabilidade entre interior e exterior. Para o autor, nesta obra a comunicação indireta não estaria restrita ao domínio religioso, mas abrangeria toda esfera existencial, uma vez que o existir não se deixaria representar pela linguagem. Segundo Schwab, Pós Escrito coloca a impossibilidade de uma comunicação objetiva sobre a existência devido à própria incapacidade de acesso direto à efetividade existencial. Assim, qualquer comunicação existencial direta é negada, visto que o existir não se deixa representar.

O próximo objeto de análise é a comunicação em Ponto de Vista explicativo da minha obra como escritor (1848). Neste texto, haveria um conceito maiêutico- -teológico da comunicação indireta, uma vez que comunicar indiretamente seria descrito por Kierkegaard como “enganar para a verdade”, retirar o indivíduo de uma falsa concepção de religiosidade para colocá-lo diante do verdadeiro cristianismo.

Schwab conclui então que o discurso indireto é considerado por Kierkegaard como algo transitório, pois o que é dito indiretamente poderia ser comunicado de forma direta. Assim, observa-se que Pós Escrito e Ponto de vista assumiriam concepções de comunicação divergentes, dado que, na primeira obra, o indireto diz respeito à impossibilidade da representação da existência, enquanto no segundo texto, o indireto é transição para o direto ou um simples recurso.

Enquanto a comunicação indireta, em Pós Escrito, tem como referência a existência que não pode ser pensada, em Ponto de vista Kierkegaard estaria preocupado com a explicação da totalidade de sua obra, ou seja, expor qual foi seu objetivo desde as primeiras publicações. Deste modo, Schwab considera um erro comparar ou estabelecer uma unidade entre as definições de discurso indireto, pois as estruturas e contextos de ambas as obras são totalmente diferentes. Em Pós Escrito, por exemplo, o uso do pseudônimo criaria um distanciamento e impediria qualquer relação direta com o escritor. Neste livro, não seria possível concordar ou discordar do autor porque não há a expressão da opinião daquele que redige o texto. Já em Ponto de vista, Kierkegaard se apresentaria como autoridade e explicaria como ele deve ser lido. Consequentemente, o espaço da apropriação do leitor é reduzido. Destarte, Schwab não tem a intenção de apresentar um conceito definido e determinado sobre a comunicação diante da totalidade das obras de Kierkegaad. Seu trabalho visa antes apresentar o contexto em que cada concepção é elaborada, trazendo assim os elementos que ocupam as reflexões de Kierkegaard. Para o autor, as obras são como constelações, autônomas entre si e possuem uma pergunta determinada que deve ser considerada quando se pretende interpretar as obras. Por estas razões, não seria possível estabelecer uma definição geral, uma vez que isso já implicaria em retirar o conceito de um texto e generalizar, esquecendo que cada livro se volta para um problema determinado: “ele [o indireto] se manifesta nos contextos respectivos de sua forma concreta e não se deixa determinar abstratamente e esquematicamente com antecedência.” (p. 301 – nossa tradução).

Entre os trabalhos que exploram o tema da comunicação indireta, é comum constatar a tentativa de defender uma concepção geral. Nos trabalhos de Clair (1997), Fahrenbach (1997) e Diep (2003), por exemplo, a comunicação indireta é apresentada como uma comunicação voltada para a existência e interioridade.

Trata-se de uma comunicação que não se pauta na objetividade, porém de uma comunicação aberta capaz de expressar o movimento do devir que caracteriza a efetividade existencial. É possível assumir ainda que comunicação indireta se caracteriza principalmente pelo uso dos pseudônimos, um recurso estilístico que está a serviço de um objetivo mais amplo, como o aprofundamento existencial ou retirar o leitor de um falso cristianismo3. Seguindo o quadro exposto por Schwab, observa-se que, caso a comunicação indireta seja compreendida como uma comunicação existencial que tem o sentido da existência como problema, então toma- -se Pós Escrito como ponto de partida. Por outro lado, Ponto de vista ofereceria a base para se interpretar a comunicação indireta como emprego de pseudônimos ou instrumento maiêutico-teológico. Neste contexto, o discurso indireto não estaria relacionado com a inexpressividade do existir, mas a um artifício que auxilia o leitor a sair de um erro.

Quando Schwab enfatiza a importância da avaliação das estruturas interna das obras e a necessidade em considerar sua autonomia, portanto não confundir o conceito comunicação proposto por Pós Escrito com aquele de Ponto de vista, o autor visa desfazer o embate entre as tentativas conflitante que procuram estabelecer um conceito universal do indireto. De acordo sua leitura, as diferentes abordagens de Kierkegaard sobre o tema da comunicação revelariam uma reflexão em movimento, uma reflexão e que é retomada em diversas fases. Cada texto do filósofo dinamarquês apresentaria elementos distintos no que diz respeito à comunicação. Por estes motivos, as reflexões de Kierkegaard não possuiriam uma unidade conceitual fixa.

Após expor e discutir as concepções divergentes de Pós Escrito e Ponto de vista, a próxima tarefa é elucidar como esta transformação ocorreu. O trabalho se concentra nos textos escritos por Kierkegaard durante os anos de 1846 até 1848.

Neste momento, o livro apresenta uma rica análise histórico-interpretativa sem perder do horizonte a tese defendida. Manuscritos e esboços de Kierkegaard pertencente a esta época, como os NB3, NB 4, NB 5, NB 6, NB 7, além de obras publicadas, como Obras do amor, a terceira versão de Livro sobre Adler e a segunda parte de Exercício no cristianismo, que foi concebida em 1848, são comentados e explorados detalhadamente. Estes textos apresentariam diferentes abordagens sobre a comunicação indireta, indispensáveis para a formulação final de Ponto de vista. Schwab evidencia que, se em Pós Escrito o tema da impossibilidade da representação da existência perpassa a comunicação, nos anos posteriores o filósofo dinamarquês começa a questionar o seu lugar pessoal em relação à totalidade das obras, sobre a produção pseudonímica e se ele próprio, enquanto pessoa, poderia ou deveria comunicar diretamente.

As explicações de Ponto de vista se tornam questionáveis principalmente devido à publicação, anos mais tarde, de Doença para morte e Exercício do cristianismo, cujo autor é o pseudônimo Anti-Climacus. Ora, Ponto de vista defende que toda comunicação indireta pode ser transformada em comunicação direta. Quais foram os motivos que levaram Kierkegaard a retornar os pseudônimos ou o indireto? Por que o filósofo, após explicar como deveria ser lido, volta a se expressar indiretamente? Esta dificuldade é explorada no final da segunda seção do texto de Schwab, que tem o objetivo de se aprofundar no conceito de comunicação após os anos de 1848. Para realizar esta tarefa, o autor se concentra nos escritos dos anos de1848-9, incluindo as anotações não publicadas. Estes textos enfatizariam a dúvida de Kierkegaard no que diz respeito à publicação de Ponto de vista e se tanto Doença para morte quanto Exercício do cristianismo deveriam ser assinados por algum pseudônimo. Schwab defende que, durante este período, a comunicação indireta não pode ser desvinculada do auto-questionamento de Kierkegaard. O conceito de comunicação estaria atrelado à decisão de como e se realmente as obras deveriam ser publicadas.

A segunda seção da obra de Schwab termina analisando as observações finais de Kierkegaard sobre comunicação. O autor ressalta que, nos últimos anos, o discurso indireto é submetido a diversas reformulações e reinterpretações.

Schwab conclui assim que, diante da ausência de uma definição fixa, a indeterminação seria um dos traços essenciais da comunicação indireta, pois significa que não é possível pensá-la in abstracto, mas apenas em situações específicas e contextualizadas, reforçando a independência dos textos e a necessidade de situar cada definição.

Esta pesquisa “histórica” de Schwab, que recorre principlamente aos NB e busca apontar os problemas singulares que cada obra enfrenta, merece destaque.

Algumas passagens apresentada pelo autor são traduções inéditas e revelam elementos fundamentais para um entendimento do tema da comunicação em Kierkegaard. Sem dúvida, havia a necessidade de um estudo que percorresse os desdobramentos da comunicação indireta no corpus kierkegaardiano e o trabalho de Schwab assume não só esta responsabilidade, mas realiza a tarefa de forma bem sucedida. Além disso, seu livro é um dos poucos estudos que procuram adentrar nas estruturas internas dos textos e realizar uma comparação sistemática durante os diversos períodos da produção de Kierkegaard, verificando em que medida há ou não modificações conceituais e como estas são concretizadas.

Após explorar os diferentes escritos kierkegaardianos que problematizam diretamente a comunicação indireta, a quarta parte do livro se volta para a relação entre ironia e comunicação. O foco passa a ser O conceito de ironia constantemente referido a Sócrates. Apesar de Kierkegaard não mencionar o termo comunicação indireta no estudo dedicado a Sócrates, Schwab defende que a forma indireta realizada já se encontra presente naquele texto. Os traços do indireto poderiam ser localizados na figura de Sócrates, que expressaria a incomensurabilidade entre o interior e o exterior. Esta incomensurabilidade é o que aproximaria a ironia com o discurso indireto, pois o aspecto da representação do método indireto apontaria para a ambivalência de uma forma de representação que se volta contra si e é inconclusa, indicando a representação essencial do irrepresentável.

Um detalhe interessante é que, para Schwab, este elemento seria constatável também na ironia romântica. A comunicação indireta se negaria a um acesso direto, sistemático, tal como a ironia romântica escaparia de toda tentativa de uma determinação abrangente, direta, não irônica. Mas se é possível afirmar que o contra-movimento do método já se encontra pré-figurado nos românticos, a diferença fundamental consistiria em que, enquanto a ironia romântica a representação do absoluto é impossível, a comunicação indireta kierkegaardiana traz o particular como o irrepresentável.

O último tópico do livro traz a realização da comunicação indireta para o debate. Este capítulo se delimita a análise de três textos de Kierkegaard: A repetição, O conceito de Angústia e Doença para morte. Em A repetição, Schwab diagnostica processo indireto a partir do momento em que a própria obra não busca o conceito, mas como e se a repetição é atingida ou pode ser executada. Esta efetivação, porém, não se deixaria representar ou descrever, mas assumida. Neste aspecto, o autor entende que A repetição coloca o problema do querer dirigir-se a algo (repetição) que não pode ser representado diretamente, pois a repetição consiste exatamente na execução. A obra de Kierkegaard apresentaria um duplo movimento, o querer-dizer e não-poder-dizer, o falar e a frustração constante da fala que deve garantir paradoxalmente a efetividade da realização existencial que emerge no espelho da possibilidade.

Já no caso de O Conceito de Angústia, Schwab descobre o contra-movimento do método ou a realização da comunicação indireta quando Virgilius estabelece um limite para a ciência. Este limite seria o particular que permanece inacessível para método abstrato cientifico. O que poderia ser constatado, nas explanações de Virgilius, é o processo cientifico apontando sempre para algo que reside fora da especulação, como o “não lugar do pecado” ou a incomensurabilidade entre a esfera das ciências e a efetividade [Wirklichkeit]. Apesar de o texto ter a aparência de uma comunicação de saber ou teórico, Schwab defende que o indireto está presente na forma do tratamento conceitual do problema da angústia, posto que Virgilius levaria o leitor para a fronteira da abordagem científica.

Por fim, Doença para a morte apresentaria o indireto a partir do momento em que desespero não é descrito por Anti-Climacus como transição, mas diferentes formas auto-realização que é estática e contínua. A análise do desespero é horizontal e isto revelaria o processo indireto, dado que as múltiplas formas de desespero se revela incomensurável com a oposição conceitual abstrata.

No que diz respeito à estrutura do livro de Schwab, percebe-se a ausência de uma conclusão ou considerações finais. Porém, é necessário ressaltar que o texto não analisa as singularidades para chegar a uma tese geral conclusiva, mas apresenta o movimento inverso, ou seja, parte primeiro de uma concepção sistemática e, em seguida, expõe como o contra-movimento do método se realiza em cada obra. O leitor perceberá também a falta de uma discussão sobre os Discursos edificantes. O autor não investiga em que medida o indireto poderia estar (ou não) presente nestas obras e muito menos adentra na polemica travada por Pattinson (2002, p.12-34). segundo a qual os discursos edificantes também podem ser concebidos enquanto indireto, contrariando assim as afirmações de Ponto de vista. Todavia, apesar do silêncio, Schwab pode indicar caminhos para solucionar esta questão quando enfatiza a necessidade de se considerar o contexto específico de cada obra e evitar generalizações. Enfim, se o livro não encerra as controvérsias sobre o tema da comunicação indireta ou um conceito definitivo, a análise sistemática e histórica realizada por Schwab deve servir de modelo para os próximos estudos.

Referências

CLAIR, A. Kierkegaard, existence et éthique. Paris: PUF, 1997.

CONANT, J. Kierkegaard’s Postscript and Wittgenstein’s Tractatus: Teaching how to pass from disguised to patent nonsense. Wittgenstein Studies, 1997, v. 2, 1997. Disponível em: http://sammelpunkt.philo.at:8080/520/ Acesso em: 12 abr. 2016.

DIEP, P. Ética y sinsentido. Kierkegaard y Wittgenstein. Topicos, 2003, n. 24, p. 9 – 29.

SCHÖNBAUMSFELD, G. A Confusion of the Spheres: Kierkegaard and Wittgenstein on Philosophy and Religion. Nova York: Oxford Press, 2007.

FARENBACH, H. Grenzen der Sprache und indirekte Mitteilung: Wittgenstein und Kierkegaard über den philosophischen Umgang mit existentiellen Argumentos, ano 9, n. 17 – Fortaleza, jan./jun. 2017 165 Der rückstoss der methode: Kierkegaard und die indirekte mitteilung – Wagner Barros (ethischen und religiösen) Fragen. Wittgenstein Studies, v. 2, 1997. Disponível em: http://sammelpunkt.philo.at:8080/520/ Acesso em: 12 abr. 2016.

PATTISON, G. Kierkegaard’s Upbuilding Discurses: Philosophy, Theologie and Literature. Londres/Nova Iorque: Routledge, 2002.

HONG, H. V., & HONG, E. H. (1998). Historical introduction. In: KIERKEGAARD; S. The point of view. Nova Jersey: Princenton University Press, p. 9-27.

Notas

1 Maiores detalhes, C.f. HONG, H. V., & HONG, E. H. (1998)

2 Maiores detalhes, C.f. SCHÖNBAUMSFELD (2007).

3 Algo semelhante pode ser encontrado na leitura de Conant. O autor compreende a comunicação indireta enquanto tática que visa atingir determinado fim, embora critique a possibilidade do indireto apresentar algum tipo de verdade “inefável”. C.f. Conant, J. (1997). Kierkegaard’s Postscript and Wittgenstein’s Tractatus: Teaching how to pass from disguised to patent nonsense. Wittgenstein Studies, v. 2, 1997. Recuperado de: http://sammelpunkt.philo.at:8080/520/ Acesso em: 12 abril 2016.

Wagner Barros – Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

Acesso à publicação original

 

El idealismo de Kierkegaard – BINETTI (RFMC)

BINETTI, María J. El idealismo de Kierkegaard. Ciudad de Mexico: Universidad Iberoamericana, 2015. Resenha de: PAULA, Marcio Gimenes de. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.4, p. 112-115, n.2, 2016.

Maria José Binetti, pesquisadora argentina, seguindo a trilha dos maiores especialistas em Kierkegaard, traz para a América Latina – em parceria com os colegas mexicanos – um estudo que, a meu ver, será de importância singular no âmbito das investigações sobre o pensador dinamarquês em nosso continente. Penso que aqui já temos o primeiro grande mérito do seu trabalho. Tal atitude é fruto do seu compromisso de diálogo acadêmico, já firmado há alguns anos, com centros de investigação como Kierkegaard Hong Library – St. Olaf College (Estados Unidos), bem como com o S.Kierkegaard Research Centre (Dinamarca).

Na interpretação de nossa colega sulamericana, seguindo a esteira do já renomado pesquisador norte-americano Jon Stewart, e ao contrário do que uma dada tradição nos parece haver legado, Kierkegaard é um pensador que se encontra bem no cerne do idealismo e suas discussões e, nesse sentido, pode ser tomado como um pensador idealista. Por isso, sua tese afirma categoricamente que o pensador de Copenhague não apenas é um pensador idealista, mas que seu idealismo parte de uma dada metafísica absoluta. Por isso, parece exemplar a definição que ela mesma nos fornece nas primeiras páginas do seu primeiro capitulo sobre a caracterização básica do idealismo (Sinzarones y razones del idealismo hegeliano):

Do ponto de vista histórico, o idealismo se apresenta como um projeto libertário de cunho metafísico, inspirado na atmosfera política da Revolução francesa e gestado em dois grandes epicentros: O Seminário Teológico de Tübingen (1788-1793), onde se formaram F.Schelling, F. Holderlin y F. Hegel; e o Ateneu de Iena (1798-1800), fundado pelos irmãos Schlegel, e visitado entre outros por F. Schleiermacher, Novalis, J.L.Tieck e F. Schelling. Todos esses autores compartilharam o interesse pelas Lições de J.G.Fichte em Iena (1794-1799) e a simpatia por Espinosa. (BINETTI, 2015: 15- tradução minha)

Em outras palavras, o idealismo possui uma parte política, uma forte herança protestante e um antecedente que remonta a Espinosa. Se observarmos com cuidado esse será exatamente o quadro que teremos diante dos olhos aos estudarmos os póshegelianos. De igual modo, mas também como fruto de sua época, podemos verificar aqui as sementes já lançadas pela clássica interpretação de Karl Löwith no seu De Hegel a Nietzsche, ainda que Binetti apresente suas discordâncias pontuais em relação a ele.

Assim, com extrema audácia e coragem para romper com preconceitos, Binetti afirma o quanto é descabida, a tese tradicional sobre Kierkegaard que tende a tomá-lo como uma espécie de autor antihegeliano de modo extremamente banal:

Apesar da vacuidade de sua polêmica contra a filosofia hegeliana, moderna e especulativa em geral, e ainda apesar de que o próprio Kierkegaard alguma vez se tenha reconhecido hegeliano, o certo é que a imagem de um Kierkegaard anti-idealista e anti-hegeliano dominou a história da filosofia contemporânea e se instituiu como um dos seus lugares mais comuns. (BINETTI, 2015: 21- tradução minha)

Desse modo, a tese de Binetti, seguindo já os passos de Jon Stewart no seu Kierkegaard ´s relations to Hegel reconsidered, é instigante na medida em que nos impulsiona a pensar Kierkegaard não de modo estático e acabado, mas a compreendê-lo como um pensador do seu tempo, como um idealista e até mesmo como um hegeliano. O que talvez pode variar – e certamente será muito rico. Além, é claro, de perguntar-se que tipo de idealismo ou hegelianismo ele parecia trazer no bojo de sua reflexão filosófica. Assim, ao romper com um antihegelianismo dado como certo do pensador de Copenhague, Binetti problematiza o autor e seus temas, o que é bastante fecundo na discussão filosófica, isto é, pensar com o autor e, se for o caso, pensar mesmo contra ele. Por isso, nossa colega não se omite quando deve criticar Kierkegaard e o faz de forma contundente quando julga que ele se equivocou, por exemplo, ao ver em Hegel um final da história e um fechamento do sistema:

Nesse sentido não é possível atribuir a Hegel um fim da história, nem um fechamento definitivo do sistema, tal como Kierkegaard o faz… (BINETTI, 2015: 27- tradução minha).

Assim, no seu entender, o tema do singular e da dialética, que muitos tomam como uma invenção do autor dinamarquês, se constituem em provas da influência hegeliana e idealista no pensamento kierkegaardiano e devem ser tomados dentro de um quadro crítico amplo, o que não significa diminuir o mérito de sua abordagem filosófica.

No capítulo segundo, Binetti faz uma profunda investigação sobre o tema do romantismo depois do romantismo. Em outras palavras, avalia dois aspectos da história da filosofia fundamentais para compreender o romantismo, a saber, a herança espinosana e o traço da fé. Seguindo a mesma lógica desenvolvida na definição do que seria um pensador idealista, a autora vê em Kierkegaard uma dubiedade, talvez como igualmente podemos vê-la diante do hegelianismo do autor dinamarquês frente ao romantismo. Contudo, isso é muito mais forte, ou seja, a dubiedade diante do romantismo na verdade só ocorre por conta da dubiedade kierkegaardiana diante do hegelianismo. Aliás, o próprio romantismo carrega no seu corpo tal traço, isto é, ele mescla elementos de um espinosismo com aspectos constituintes e centrais da fé cristã. Aqui reside aquilo que os alemães chamavam de Bildung e Binetti a explicita com muita clareza ao avaliar o tema do romantismo na obra de Kierkegaard:

Alguns autores tem entendido que Kierkegaard superou a irreligiosidade e a imoralidade românticas em virtude seu apriori cristão. Nossa opinião, pelo contrário, é que precisamente em virtude do seu apriori cristão, Kierkegaard se converteu em um pensador romântico, uma vez que poetizava seu inalcançável ideal cristão. O cristianismo de Kierkegaard não é uma doutrina, nem uma comunicação direta, nem uma dogmática, sim ‘uma comunicação de existência’, uma potencialização da subjetividade, cujo esgotamento reflexivo produz a fé como unidade dialética do divino. A fé kierkegaardiana é paixão e onde há paixão e fé há romantismo. Por isso, entendemos que Kierkegaard é romântico na sua mesma concepção cristã, nesse esforço renovador e liberador da consciência cristã, que repete o absoluto da idealidade romântica e o consuma como reduplicação amorosa. (BINETTI, 2015: 63- tradução minha)

Entretanto, é bem verdade que, nesse mesmo capítulo, nossa colega, sabedora das teses de Kierkegaard no Conceito de ironia, apresenta claramente que, em alguns momentos, mesmo com o seu romantismo, o autor dinamarquês parece se postar ao lado de Hegel contra determinadas teses românticas. Tal coisa no seu entender, não afeta a posição romântica de Kierkegaard, mas a coloca dentro de um amplo quadro de entendimento, a saber, a herança que o próprio romantismo recebe de Hegel e trabalha criticamente.

No capítulo terceiro, que é o de maior fôlego da obra e certamente envolve um domínio de boa parte da reflexão hegeliana, Binetti nos apresenta, com extrema competência discussões bastante centrais do hegelianismo, buscando compreender como Kiekegaard está posicionado dentro de tal contexto. Por isso, explora aqui novamente o tema de Hegel em oposição aos românticos mas, ao contrário de uma leitura mais previsível e comum, apresenta também uma tese muito instigante e que vale a pena investigar: a possibilidade de que não apenas Kierkegaard pode ser tomado num dado sentido como pensador romântico, mas que o mesmo também ocorre com Hegel. Sua interpretação é claramente tributária das teses de Jon Stewart e, nesse sentido, coloca-se em clara oposição às teses de Niels Thulstrup que, na sua clássica obra Kierkegaard´s relation to Hegel, defende peremptoriamente a tese de que Hegel e Kierkegaard são pensadores absolutamente distintos. Binetti, juntamente com Stewart, contesta tal tese com energia. A fim de melhor fundamentar sua argumentação, a autora baseia-se num tríplice divisão da obra kierkegaardiana proposta por Stewart. Segundo tal cronologia, a primeira parte da produção iria de 1834 a 1843, sendo tal período tomado como um período de recepção positiva da obra de Hegel. Aqui situam-se, por exemplo, obras importantes de Kierkegaard como Conceito de ironia, Ou Ou e Temor e Tremor. O segundo período iria de 1843 a 1846 e aqui percebemos claramente um confronto do idealismo de Kierkegaard com o hegelianismo dinamarquês de sua época. Aqui entra uma forte acentuação da tese de que, quando Kierkegaard criticava fortemente Hegel (ou parecia criticar), no fundo criticava ao hegelianismo dinamarquês que já era, por sua vez, uma degeneração do que havia escrito o próprio filósofo alemão. Por fim, a terceira e última fase vai de 1847 a 1855. Aqui Kierkegaard parece voltar à filosofia hegeliana que havia sido tão criticada por ele próprio e que parece agora receber também inúmeras outras críticas em tantos outros contextos. Data de tal período boa parte de suas polêmicas com Heiberg, Martensen e outros autores do contexto hegeliano dinamarquês. Alguns temas aqui recuperados por Kierkegaard são claramente de inspiração hegeliana: o tema dos estádios é de fundo hegeliano, uma vez que tem inspiração nas etapas do caminho da consciência, o tema da subjetividade, a discussão em torno de pecado e consciência do pecado possui igualmente uma coloração hegeliana. Aqui Maria Binetti deixa categoricamente expressa sua posição ao lado de Jon Stewart:

A conclusão de Stewart é clara: Kierkegaard nunca objetou seriamente o pensamento hegeliano, mas o caricaturou ironicamente com a finalidade de atacar de maneira encoberta os seus contemporâneos imitadores. (BINETTI, 2015: 96- tradução minha).

Por fim, na quarto e último capítulo, Binetti nos apresenta outro tema profundamente merecedor de investigação, a saber, o tema da filosofia da religião póshegeliana. Aqui, com precisão, a autora aponta historicamente a data de publicação das Lições sobre a filosofia da religião, isto é, 1832. Tal obra é publicada postumamente, uma vez que Hegel morreu um ano antes. Contudo, muito mais do que apontar datas ou fazer referências históricas pontuais, o cerne da argumentação reside em apontar que Hegel trata de religião e filosofia como conceitos, ainda que fizesse entre eles diferenças. Kiekegaard recebe tal influência em seu pensamento notadamente pelas aulas que assistiu de um hegeliano bastante famoso no contexto dinamarquês: Martensen. Ali, nas suas aulas de Teologia, aprendeu teses centrais do pensador alemão, notadamente aquelas relacionadas com a sua filosofia da religião. Igualmente importante aqui é a citação que Binetti faz de Karl Löwith que na sua já citada De Hegel a Nietzsche, situa Kierkegaard entre os pós-hegelianos de esquerda, inclusive aproximando-o, com certo exagero, de Marx. A autora, profunda conhecedora do contexto de origem do hegelianismo dinamarquês e do debate entre hegelianos de esquerda e de direita, move-se com extrema competência no intuito de fazer um balanço do que seria de fato o idealismo (e o hegelianismo) de Kierkegaard. Por isso, com o intuito de nos estimular a pensar afirma, segundo os passos de Derrida, que em Kierkegaard encontramos o tema da “religião sem religião”. Ponto que poderíamos tomar como marcante e constitutivo de boa parte da tradição pós-hegeliana.

A título de conclusão, a autora mostra que o idealismo de Kierkegaard é, na verdade, muito próprio do seu modo de pensar. Se quisermos nos mover rigorosamente numa definição kierkegaardiana poderíamos quiçá dizer que ele é, no fundo, uma reapropriação: “O idealismo de Kierkegaard não é o de Schlegel, nem o de Hegel, nem o de Feuerbach. É sua própria expressão, no cálculo combinado de matizes, acentos e preferências” (BINETTI, 2015: 174- tradução minha). Por isso, a autora parece ter razão quando afirma que “Kierkegaard recolhe um idealismo pós-hegeliano que se questiona e debate a si mesmo” (BINETTI, 2015: 176- tradução minha).

Na concepção de Binetti, o idealismo kiekegaardiano é um idealismo cristão e por isso parece ser original e paradoxal notadamente dentro do contexto onde ele se situa. Desse modo, Kierkegaard avalia temas centrais tanto na herança do cristianismo como nos debates acerca do indivíduo, ou seja, a escolha, a liberdade, etc. Fornece, para todos eles, uma nova feição tanto no campo da filosofia como da própria teologia. Assim, de modo muito curioso, a autora pode afirmar que “paradoxalmente a inspiração deste idealismo é a que refrata sua figura antiidealista” (BINETTI, 2015: 176- tradução minha). Desse modo, “Cristo expressa o escândalo dialético da existência, o enorme paradoxo que é o modelo e o caminho de cada pobre homem singular” (BINETTI, 2015: 177- tradução minha).

Uma última palavra: a obra de Binetti possui, ao mesmo tempo, uma clareza e uma profundidade admiráveis. Nem sempre os especialistas conseguem essa virtude, o que torna o livro ainda mais recomendável em tempos de falsa intelectualidade e esnobismo infrutífero. A bibliografia é igualmente rica e pode ser um excelente guia para os que querem aprofundar seus estudos na obra do pensador dinamarquês, bem como em Hegel e nos pós-hegelianos.

Marcio Gimenes de Paula – Professor Universidade de Brasília.

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Kierkegaard’s Indirect Politics: Interludes with Lukács, Schmitt, Benjamin and Adorno – RYAN (RFA)

RYAN, Bartholomew. Kierkegaard’s Indirect Politics: Interludes with Lukács, Schmitt, Benjamin and Adorno. New York; Amsterdam: Editions Rodopi B. V., 2014. Resenha de: LAZZARETTI, Lucas Piccinin. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.26, n.39, p.905-915, jul./dez, 2014.

Trilhada quase que exclusivamente sob uma linha mestra que desemboca em uma única vereda, a pesquisa sobre Sören Kierkegaard é demasiadamente pautada ora pelas migalhas que o autor dinamarquês legou, ora pelo interesse que ricocheteia sobre Kierkegaard. Explica-se: certa linha de pesquisa é ainda muito adstrita aos termos kierkegaardianos, realizando uma espécie de exegese textual que, embora essencial, por vezes apresenta limitação pelos próprios horizontes delineados; outra linha de pesquisa tangencia a obra de Kierkegaard quase como que por acidente, vindo a buscar nos textos do pensador de Copenhague uma solução específica e, não raramente, distorcida do autor. Assim, por um lado ocorre a consideração de categorias filosóficas engendradas por Kierkegaard — como instante, salto, angústia, desespero, liberdade, etc. —, por outro lado há uma aproximação capciosa, em que tanto a teologia — em um embate por certa sustentação da fé cristã por via de uma reforma — quanto a filosofia — pela influência exercida sobre Heidegger, Jaspers e outros — acabam gerando uma pesquisa circular e incapaz de corresponder ao devir da obra kierkegaardiana.

O grande mérito de Bartholomew Ryan com seu livro Kierkegaard’s Indirect Politics – Interludes with Lukács, Schmitt, Benjamin and Adorno é deslocar, desde o início, a pesquisa realizada em torno da obra de Kierkegaard. Para além dos termos já marcadamente conhecidos acerca da produção kierkegaardiana, tais como existência, subjetividade ou religiosidade, Ryan arrisca-se na abordagem de uma temática pouco atribuída a Kierkegaard, ou seja, a questão política. E, conjuntamente, como o próprio título indica, faz essa abordagem temática exercendo uma conversação diferenciada, não com os já habituais filósofos do século XX que costumam acompanhar Kierkegaard (ou seja, o dito existencialismo francês e alemão), mas realizando um diálogo com o conturbado cenário político-cultural do início do século XX na Alemanha. Carl Schmitt, Theodor Adorno e Walter Benjamin são notoriamente figuras de relevância na construção do pensamento político alemão do período entreguerras. György Lukács, húngaro de nascimento, mas culturalmente germânico, é devidamente agrupado por Ryan à intelligentsia alemã. A força política dos autores do início do século XX é notória; o que não restaria evidente é o aspecto político presente na obra de Kierkegaard.

Ryan inicia seu livro assentando seus pressupostos teóricos. Prudentemente, põe-se a questão: “Faz sentido escrever um livro sobre ‘Sören Kierkegaard’ e ‘política’?”1 , tendo em vista a relutância kierkegaardiana de abordar a política manifesta em uma carta, onde o filósofo dinamarquês afirmaria: “Não, política não é para mim”. A aposta de Ryan visa a abordar a política em Kierkegaard não pela via direta, já que esta enfrentaria a resistência confessa do próprio autor, mas pela via indireta, servindo-se de aspectos biográficos, bibliográficos e filosóficos de Kierkegaard. A categoria filosófica, que também opera como método autoral, denominada pelo filósofo dinamarquês de comunicação indireta, é um dentre os pressupostos que Ryan utiliza para engendrar sua política indireta. Tal como no sentido da comunicação indireta, em que um conteúdo, não podendo ser comunicado diretamente, só pode ser feito indiretamente com o uso de recursos autorais dos mais sofisticados, também a política indireta só será comunicada lateralmente quando buscada dentro da obra kierkegaardiana, de forma que o conteúdo primeiro e mais imediato nunca é eminentemente político, mas que as profundezas de um conteúdo, o arcabouço e, mais, as consequências, possam, essas sim, ser políticas. Ryan expõe seu método com clareza:

Em um sentido simples, não podemos falar de Kierkegaard e política juntos. Mas a política indireta de Kierkegaard existe em um nível geral de duas maneiras. Primeiro, porque Kierkegaard não escreve teses políticas e despreza a política tradicional, sua política só pode ser indireta. Se o todo da autoria de Kierkegaard existe para transformar os seres humanos, então a ideia é que se as pessoas tornam-se mais conscientes [self-aware] de si mesmas como indivíduos formados por suas próprias decisões, isto pode levá-los também a questionar mais radicalmente as estruturas da autoridade que frequentemente buscam mascarar a autonomia humana, ou seja, o Estado e certas formas de dogmatismo político (RYAN, 2014, p.2).

A tentativa, portanto, não é retirar um conteúdo eminentemente político dos textos de Kierkegaard, mas estabelecer, por sua vez, um diálogo que, pela própria conversação, faça emitir conteúdos políticos. Não por outra razão os autores escolhidos possuem uma evidência política. Contudo, mais do que isso, os quatro autores escolhidos por Ryan para dialogarem com Kierkegaard são, curiosamente, leitores e estudiosos do pensador dinamarquês. O leitmotiv está, portanto, em definir um meio caminho entre a produção e originalidade da obra de Kierkegaard por um lado, a autoria e participação política dos filósofos escolhidos para o diálogo por outro lado e, em meio a esse trajeto, firmar um ponto de encontro que vá além do mero fato de que Kierkegaard foi lido por Lúkacs, Schmitt, Benjamin e Adorno.

Em seu primeiro capítulo, os apetrechos de que se vale Ryan para esse esforço são três: os termos Mellemspil (interlúdio), Skillevei (encruzilhada ou, mais liricamente, vereda) e Dagdriver (andarilho ou flâneur). O interlúdio [Mellemspil] é o instrumento que permite criar o diálogo entre os autores. Como pontua Ryan, “a política indireta é a brecha ou interlúdio que abre espaço para o salto dialético, a exceção, o exílio e o andarilho, e a esquiva negativa a toda totalidade” (RYAN, 2014, p.1). A vereda [Skillevei] diz respeito à vida de Kierkegaard, mais precisamente ao ano de 1848, ponto de virada em que o pensador dinamarquês escreve e publica uma série de textos que dizem respeito ao ambiente de revolução político-social dinamarquesa, como também da revolução pessoal de Kierkegaard. Em 1848 são escritos Duas Épocas: Uma Resenha Literária, Ponto de Vista Explicativo de Minha Obra Enquanto Escritor, A Crise e uma crise na vida de uma atriz, parte dos Discursos Cristãos. Também nesse ano, Kierkegaard havia iniciado a escrita de Prática no cristianismo. Um ano de muita produção, em que grande parte dos textos busca responder ao ambiente social e político da Dinamarca daquele tempo. Por fim, Dagdriver, dificilmente traduzido como andarilho, tendo mais a característica de um flâneur, advém da característica de Kierkegaard de comportar-se como um observador e analisador cosmopolita e urbano, característica que se reflete nos textos e encontra similitudes com os autores escolhidos para os diálogos. Esses são os aparatos utilizados por Ryan, desde o início audaciosos e bastante inovadores quanto à pesquisa sobre Kierkegaard. Ainda que se tratem de categorias independentes e não correlacionadas em uma hierarquia, é certo que ao longo do livro o termo Skillevei tem maior ocorrência e relevância. Isso porque há maior proximidade entre a tese da política indireta e do produtivo ano de 1848 se considerado esse termo como central:

A imagem do Skillevei, traduzida como encruzilhada [vereda], é outro motivo limítrofe (literalmente) que é simbólico do ano de 1848. Como parte da política indireta, o Skillevei é o espaço, o entre, outro Mellemspil [interlúdio] entre momentos na história humana, entre viver e morrer, e na formação do indivíduo em si mesmo que é desafiado pela sociedade e, em contrapartida, confronta a sociedade. Isto está de acordo com o conceito de política indireta que é, antes de tudo, o espaço negativo entre disciplinas (RYAN, 2014, p.20).

Mais do que simplesmente embasar sua tese acerca da política indireta, Ryan realiza uma ponderação sobre textos que não raras vezes não estabelecem um diálogo dentro do corpo da obra kierkegaardiana. É por colocar lado a lado textos como os Discursos Cristãos e Duas Épocas que Ryan é capaz de apresentar um Kierkegaard que, de maneira plausível, poderia apresentar uma política indireta. A preparação do primeiro capítulo, no entanto, tem como pressuposto enunciado o fato de que os quatro autores que estabelecerão o diálogo com Kierkegaard são, dentre outros aspectos, pensadores políticos, de modo que se espera que se justifique com mais ênfase, por meio dos diálogos, a tese da comunicação indireta, sobretudo pela recepção que teriam exercido os filósofos políticos do início do século XX.

O método utilizado por Ryan para criar um cenário possível em que se realizem os diálogos é encontrar pontos de encontro que podem se transformar, conforme a análise, em uma aproximação ou em um distanciamento entre os autores. É assim que se procede, por exemplo, com o diálogo realizado entre Kierkegaard e Lukács no segundo capítulo. Pela via da influência kierkegaardiana na obra de Lukács, Ryan abre suas considerações:

Ao examinar os textos de Lukács, seja naqueles ainda fortemente sob a influência de Kierkegaard, como Alma e Forma e A Teoria da Novela, bem como na explosiva conversão ao marxismo em História e Consciência de Classe, ao período stalinista de A Destruição da Razão, que coloca Kierkegaard como um dos fundadores do irracionalismo e precursor do nacional-socialismo, Lúkacs transforma a interioridade de Kierkegaard em práxis revolucionária, mas no processo tenta aniquilar todos os traços de ambiguidade em uma homogeneidade, em um mundo totalmente unificado (RYAN, 2014, p.43).

Ao longo do segundo capítulo é possível acompanhar essa análise sobre a obra de Lukács e a possível influência de Kierkegaard presente no desenvolvimento do pensador húngaro. A proximidade entre Kierkegaard e Lúkacs no entorno da leitura e as impressões sobre o Fausto de Goethe, apresentadas logo no início do segundo capítulo, parecem ter antes o caráter de comprovar a relação entre os dois autores do que necessariamente lançar luz sobre a tese principal do livro: a política indireta. Isso porque, como Ryan afirma, a primeira fase da vida de Lukács, na qual ocorre a publicação de Alma e Forma, por exemplo, é ainda uma fase pré-marxista e mais voltada para a cultura e para a literatura do que propriamente para a política. A grande questão do diálogo realizado entre Kierkegaard e Lukács se dá pela apresentação da transformação que faz Lukács com a interioridade kierkegaardiana, alterando-a ou, mais precisamente, realocando-a para uma práxis revolucionária. Valendo-se de uma suposta linha de continuidade presente na produção do pensador marxista, Ryan afirma que uma vez que

no início de História e Consciência de Classe Lukács declara ‘postular-se, produzir-se e reproduzir-se — isto é realidade’”, esta seria a comprovação de que se teria utilizado “a interioridade como uma expressão da práxis revolucionária, componente que Lukács carrega para seu período marxista desde Alma e Forma e A Teoria da Novela (RYAN, 2014, p.57).

Entretanto, a influência de Kierkegaard sobre Lukács teria encontrado sua interrupção nesse pequeno adorno, ou seja, no fato de que, de alguma forma, o jovem Lukács, interessado por Kierkegaard — ao qual teria dedicado, inclusive, um belo ensaio em seu livro Alma e Forma —, teria se permitido levar para dentro do marxismo a concepção de interioridade kierkegaardiana. Porém, e isso Ryan parece tentar pontuar, Lukács leva Kierkegaard para dentro do marxismo, não para dentro do stalinismo, já que este condena o subjetivismo do filósofo dinamarquês e rejeita os pensamentos vindos de Copenhague, dando preferência aos prisioneiros da Sibéria. E aqui repousa todo contato Kierkegaard–Lukács.

No que diz respeito ao diálogo ocorrido entre Carl Schmitt e Kierkegaard, a análise depende em grande parte do que Schmitt expressa em uma carta para Ernst Jünger e que acertadamente Ryan escolhe como epígrafe de seu capítulo: “Tais influências indiretas, que iludem qualquer documentação, são as mais fortes e de longe as mais autênticas.” É preciso admitir, como faz Ryan, que “pouco foi escrito sobre Carl Schmitt e Kierkegaard apesar da reverência que Schmitt faz ao pensador dinamarquês”, sobretudo pelo uso do termo exceção, empregado por Kierkegaard em Temor e Tremor e Repetição, e utilizado por Schmitt em sua definição de soberania no livro Teologia Política. Grande parte da análise de Ryan quanto a esse diálogo se fundamenta pelo uso feito por Schmitt da exceção e pela leitura que faz o pensador alemão dos textos do pensador dinamarquês:

Ler a leitura que faz Schmitt sobre Kierkegaard é um exercício frutífero em trazer à tona várias questões não resolvidas nos últimos escritos, e também acrescenta outro surpreendente membro à lista de radicais pensadores europeus na Weimar dos anos de entreguerras que caiu sob o feitiço de Kierkegaard e apropriou seu pensamento de formas excitantes e polarizadas. Neste capítulo iremos mais a fundo na política indireta da forma que esta fez seu caminho para a vanguarda da política global no século XX. O que é frequentemente negligenciado quando se lê Schmitt é, como em Kierkegaard, a injeção do teatro em seu trabalho, e como os motivos, máscaras e figuras do palco informam e inspiram seu trabalho. Aqui temos o ponto de advertência de uma tentativa de preencher o espaço negativo e Mellemspil que é a política indireta (RYAN, 2014, p.90).

A proposta é encontrar, portanto, elementos que justifiquem a tese sobre a política indireta na influência de Kierkegaard sobre Schmitt. Correntemente referido, o ponto inicial é o conceito de exceção, o qual Schmitt realoca desde o emprego que faz Kierkegaard em seus textos — de maneira interior e existencialmente concreta — para um âmbito político. Ryan demonstra o vivo interesse que Schmitt manifestou na leitura de Kierkegaard e reúne diversas citações sobre como o jurista alemão era um vivaz entusiasta dos ensinamentos de Kierkegaard. No entanto, não é oferecida tese consubstancialmente relevante que permita crer que o conceito de exceção, tão arraigadamente existencial, individual e próprio do homem concreto, tenha saltado para a aplicação política feita por Schmitt senão por uma influência que, mais do que indireta, seria quase opaca, lateral.

Em contrapartida ao emprego do conceito de exceção por parte de Schmitt em sua possível influência kierkegaardiana, Ryan faz. uma excelente análise ao considerar a severa crítica realizada por Schmitt contra o romantismo político em paralelo com a crítica social- -existencial feita por Kierkegaard contra o romantismo germânico. O conceito em questão é a decisão e Ryan demonstra haver similitudes entre as duas críticas. Tanto Kierkegaard quanto Schmitt se voltariam contra o romantismo, uma vez que essa corrente produz uma característica de inação e indecisão. O esteta kierkegaardiano não decide concretamente da mesma maneira que o parlamentar burguês também não o faz. Contudo, a decisão kierkegaardiana é própria do indivíduo, enquanto a decisão demandada por Schmitt é própria da estrutura jurídica e política de um Estado. As consequências são bem pontuadas por Ryan: pelo lado de Kierkegaard a decisão produz a singularização do indivíduo; pelo lado de Schmitt, produz a dicotomia amigo-inimigo, bem como todos os efeitos que dessa dicotomia decorrem. Por fim, ao avançar em sua análise, apresentando o soberano como desespero, Ryan assume posições que já são marcadas por uma interpretação de Schmitt que é pautada pelas leituras de críticos do século XX, dentre eles Agamben, obtendo, com isso, os mesmos resultados relutantes acerca da produção teórica de Schmitt.

É sem dúvida pelo diálogo entre Walter Benjamin e Kierkegaard que o livro encontra seu ponto de maior efervescência. A começar pelas personalidades dos dois autores: ambos, Benjamin e Kierkegaard, exerceram uma espécie de fascinação por possuírem certas idiossincrasias que atraiam os leitores. Não são raros os escritos que dão mais importância às particularidades das vidas de Benjamin e Kierkegaard do que propriamente aos seus escritos. O que normalmente seria cotado como mera curiosidade sem fundo teórico relevante, no caso dos dois pensadores em questão parece ser o contrário, uma vez que suas idiossincrasias encontram reflexo em suas obras, como nota Ryan:

Igualmente ao corpo da obra de Kierkegaard, a variedade e riqueza dos escritos de Walter Benjamin levam o leitor a um vasto labirinto, pois como Kierkegaard oferece uma variedade de perspectivas e modos de vida por via de seus pseudônimos, Benjamin escreve com igual presença de espírito e paixão sobre tópicos como Marxismo, Kafka, A Bíblia, haxixe, cidades como Paris e Nápoles e o quase esquecido barroco alemão (RYAN, 2014, p.135).

Sugestivamente, o quarto capítulo intitula-se Loafers of History, o que põe em questão um conceito que parecer ser caro a Ryan, ou seja, o loafer, Dagdriver ou flâneur, figura representativa do século XIX e XX que bem representa Kierkegaard e Benjamin. Descrever minuciosamente os interiores e os exteriores de um centro urbano é mais do que simplesmente uma atividade poética, é parte de considerações filosóficas que vão se compondo conforme a própria descrição. Nesse ponto, pela potencialidade imagética e por se tratar de uma capacidade criativa e estética avantajada, Benjamin e Kierkegaard encontram-se, conforme a análise de Ryan, em uma esquina para, em uma caminhada, passar a tecer considerações que inevitavelmente levam à política: Kierkegaard, na crítica ácida à Dinamarca de seu tempo, e Benjamin, nas considerações sobre a Paris de Baudelaire, sobre Nápoles ou Berlim. O grande impacto do diálogo estabelecido entre Benjamin e Kierkegaard repousa sobre o fato de que, ao contrário dos outros diálogos, Benjamin parece ter algo a oferecer à leitura da obra kierkegaardiana:

Quem era Kierkegaard? Aos olhos do público ele era um preguiçoso [loafer] de esquina, o Dagdriver, um ocioso sagaz. Kierkegaard via a percepção das pessoas sobre ele como um flâneur como algo negativo, mas o que Kierkegaard se torna por meio de seus escritos é exatamente isso, no sentido de Benjamin; como observador, transeunte e crítico da cidade e da sociedade dentro da qual se vive e respira (RYAN, 2014, p.147).

Lateralmente, a questão da política indireta fica adstrita a uma espécie de embate entre Benjamin e Schmitt, no qual Kierkegaard parece ter pouco a oferecer, salvo algumas considerações pontuais. A aproximação da questão messiânica surge no livro como uma abertura temática que encontra poucas linhas de intersecção entre Kierkegaard e Benjamin, restando a imagem de que se trata de autores de suma potência no pensamento, mas que ainda não trilharam caminhos suficientemente paralelos.

O último diálogo, por sua vez, diz o limite daquilo que as análises de Theodor Adorno podem dizer. Se por um lado Benjamin e Schmitt não dedicam nenhum escrito específico a Kierkegaard e Lukács o faz em meio a tantos outros ensaios e estudos, por outro lado Adorno apresentou de fato um trabalho mais extenso sobre o filósofo dinamarquês. É acertado quando Ryan afirma que “dentre todos os pensadores em conversa com Kierkegaard neste livro, Adorno cita o trabalho de Kierkegaard mais extensivamente” (RYAN, 2014, p.177). Contudo, é também acertado considerar que tal trabalho, Kierkegaard: Konstruktion des Ästhetischen, é fruto de uma série de desentendimentos de Adorno não tanto com Kierkegaard, mas com tudo aquilo que não serve ao hegelianismo do teórico de Frankfurt. Ryan delineia essa questão ao fazer uma análise sobre a utilização que faz Adorno de um trecho de um conto de Edgar Alan Poe. A desolação de Poe é usada como imagem para o que Adorno considera sobre Kierkegaard:

O que resta após se ler esta notável prosa é uma imagem de niilista interioridade, suspensa entre haver e não haver chão, aliada a nada, uma abundância de copes atrás das quais repousa um buraco negro de futilidade. Esta é a filosofia de Kierkegaard de acordo com Adorno (RYAN, 2014, p.179).

Sentencialmente está sanada toda a relação entre Adorno e Kierkegaard. Havia Hegel entre eles e Adorno já havia prestado seu juramento de ortodoxia. Ainda que se queira afirmar que há qualquer resquício de influência de Kierkegaard na dialética negativa de Adorno, isso é mais benevolência do autor do que necessariamente uma posição embasada. O diálogo entre eles é, em verdade, negativo: não acontece.

Considerando, por fim, a tese da política indireta de Kierkegaard e os efeitos que podem advir do diálogo, é Ryan quem afirma que “um aspecto central da política indireta, como explorada neste livro, é a influência de Kierkegaard sobre a formação do pensamento político de Lukács, Schmitt, Benjamin e Adorno”, mas, para além disso, “como esses quatro interlocutores por sua vez leem e criticam uns aos outros à sombra de Kierkegaard” (RYAN, 2014, p.233). Ao ter frisado a importância das veredas, Ryan adentra em um grande sertão que muitas vezes o põe como um loafer diante das obras e autores abordados. A política indireta emerge de forma colateral, não à maneira que uma tese se evidenciaria. E uma vez que a política indireta é a própria tese, resta certa aporia em meio a alguns dos diálogos propostos.

Em comparação à pesquisa realizada acerca da obra de Kierkegaard, Ryan propõe um ponto de vista singular e perspicaz, seguindo os caminhos que inicialmente foram trilhados por George Pattison. Contudo, como esses caminhos levam a veredas, é preciso ser uma espécie de viandante para seguir a senda ainda muito vasta que se apresenta para aqueles que visam concluir a tese intuída por Ryan acerca da política indireta de Kierkegaard.

Nota

1 As citações feitas com base no texto original do livro de Bartholomew Rya são traduções livres feitas exclusivamente para a presente resenha. Quaisquer lapsos estilísticos são antes deslizes do tradutor que falhas do autor.

Referência

RYAN, B. Kierkegaard’s Indirect Politics: Interludes with Lukács, Schmitt, Benjamin and Adorno. New York; Amsterdam: Editions Rodopi B. V., 2014.

Lucas Piccinin Lazzaretti – Mestrando em Filosofia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba, PR – Brasil. E-mail: [email protected]

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[DR]

O crucificado encontra Dionísio – estudos sobre Kierkegaard e Nietzsche – VALLS (RFMC)

VALLS, Álvaro. O crucificado encontra Dionísio – estudos sobre Kierkegaard e Nietzsche. São Paulo: Edições Loyola, 2013. Resenha de: PAULA, Marcio Gimenes de. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.2, p.177-179, n.1, 2014.

O ano de 2013 marcou uma efeméride significativa no universo kierkegaardiano: a data do bicentenário de nascimento do autor dinamarquês. Em decorrência disso, mas não apenas por isso, muitos eventos significativos foram realizados em vários locais onde existe o interesse pela pesquisa kierkegaardiana. Nesse sentido, o mercado editorial brasileiro brindou o leitor interessado em Filosofia e na obra do pensador de Copenhague com duas instigantes obras do professor Álvaro Valls, célebre tradutor de Kierkegaard e um dos pioneiros na pesquisa desse autor em solo brasileiro. Uma dessas obras foi, na verdade, publicada em 2012 (Kierkegaard cá entre nós, resenhada logo a seguir).

A primeira obra, O crucificado encontra Dionísio – estudos sobre Kierkegaard e Nietzsche, é fruto de anos de trabalho e de uma pesquisa com mérito reconhecido por inúmeros colegas e também pelo CNPQ, que a financia. O pesquisador gaúcho congrega aqui, em seus doze capítulos, treze ensaios sobre Kierkegaard e Nietzsche. Talvez, por receio de ser excessivamente cobrado por alguns nietzschianos, o pesquisador parece deixar claro, logo de saída, que não é um especialista na obra do pensador alemão, mas apenas um leitor interessado e que, num dado grau desse interesse, Nietzsche se encontra com o autor estudado por ele há alguns anos, a saber, Kierkegaard.

Ironia e melancolia é o primeiro ensaio da coletânea e dialoga com as teses de Kierkegaard desde o Conceito de Ironia, passeando ainda pela temática da melancolia em autores brasileiros como Machado de Assis, Gregório de Mattos e o compatriota gaúcho do autor, Moacyr Scliar. Trata-se de um muito curioso diálogo que atravessa o frio da Dinamarca, chega até os trópicos e dialogo ainda com temas já mencionados por autores como os paulistas Paulo Prado e Mário de Andrade.

O texto que se segue, denominado Sócrates oscilando entre Kierkegaard e Nietzsche é uma curiosa interpretação da figura do pensador de Atenas pelas lentes de Nietzsche, talvez mais conhecidas do público brasileiro. Com efeito, trata-se também da interpretação do conceito da ironia socrática e a percepção de como essa tornou-se central para a obra kierkegaardiana. Trata-se de uma tentativa de mostrar, ao menos em nuance, as múltiplas faces de Sócrates na obra do autor dinamarquês, comparando-a com o modo nietzschiano de entendê-las. O ensaio que se segue, Ironia socrática e Ironia kierkegaardiana, aprofunda um pouco mais tal questão, fazendo um mergulho filosófico.

Já o texto Heiberg e Brandes, críticos contemporâneos de Kierkegaard e Nietzsche, investiga dois desses autores, talvez ainda pouco conhecidos no Brasil, mas que foram importantes para o hegelianismo dinamarquês (Heiberg) e para a divulgação cultural da obra de Kierkegaard na Europa (Brandes). Ambos foram estudiosos de temas de estética e valem efetivamente uma aproximação. Brandes foi, inclusive, amigo particular de Nietzsche com quem trocou inúmeras correspondências e, numa delas, recomendou-lhe a leitura de um psicólogo dinamarquês profundo: Søren Kierkegaard. Tal fato foi, infelizmente, impossibilitado pela doença de Nietzsche e dele, ao que parece, temos apenas esse registro. A ética dos discursos kierkegaardianos é o tema do quinto ensaio da obra de Valls. Nele, o autor, fortemente influenciado pela interpretação de Henri-Bernard Vergote, começa pela pergunta de como se deve ler a obra kierkegaardiana, comprendendo-a, na esteira do pensador francês, como ironia do inicio ao final. Tal tom, serve para modular também aquilo que Vergote denominará como segundo percurso kierkegaardiano. O momento onde o autor dinamarquês parece se aliar aqueles que, segundo alguns podem supor, seriam seus adversários como Feuerbach e outros críticos do cristianismo. Contudo, tais autores tornam-se seus aliados na crítica à cristandade e na tentativa de articulação de um novo conceito: o de cristicidade ou tipicamente cristão. Tal segundo percurso tem uma ligação também com aquilo que se denomina de segunda ética, isto é, a ética tipicamente cristã, diferente da ética grega do bem e do belo. Tal discussão aqui iniciada é ainda mais aprofundada, especialmente ao levar em conta As Obras do Amor (e alguns outros discursos kierkegaardianos), no ensaio seguinte denominado Estética, ética e religião nos discursos de 1847.

A discussão ética também será o tema do texto apresentado no capítulo sétimo, O amor dos poetas e o que se torna dever. Aqui, bem ao gosto kierkegaardiano, Valls aponta, a partir de duas obras centrais do autor dinamarquês (Temor e Tremor e Obras do Amor) em que implica uma ética do dever de amar e em que ela se difere de uma ética do dever racional kantiano. O diálogo com as teses do pensador alemão são excelentes e o ensaio vale não apenas pelo que aponta, mas especialmente pelas lacunas que ele deixa em aberto, pistas possíveis para uma investigação de maior fôlego. Nesse mesmo sentido, O Elogio do amor desinteressado, texto que vem logo a seguir, faz o aprofundamento do mesmo tema dentro da análise das Obras do Amor.

Nietzsche reaparece no ensaio seguinte, Sobre a saúde e a doença. Trata-se de uma discussão que busca resgatar uma função muitas vezes negligenciada da filosofia: a cura, o cuidado, a preocupação com temas de vida e de morte. Valls convida, para essa discussão que se encaixa muito bem também nas discussões contemporâneas de bioética, inclusive, o filósofo Michel Foucault.

Os dois próximos capítulos, Temor, Medo e Angústia I e II, trabalham com um tema bastante caro aos estudos kierkegaardianos. O autor busca, através de uma leitura atenciosa de O Conceito de Angústia, aproximar conceitos éticos importantes em Kierkegaard e em Nietzsche, compreendendo ainda tais inquietações dentro do contexto da antiga literatura dinamarquesa. O mesmo Conceito de Angústia será, não fortuitamente recuperado no ensaio final, que tem o significativo título Enfim, ler o Conceito de Angústia.

Já o penúltimo ensaio do livro de Valls, Um leitor de Nietzsche avant la lettre, é, talvez, um dos mais provocativos e instigantes da obra. Nele, o professor nos apresenta um Kierkegaard que, talvez, teria sido “nietzschiano” antes mesmo de Nietzsche, recuperando muito de suas críticas, notadamente aquelas feitas ao cristianismo.

Por todos os motivos elencados, penso que não faltam boas razões para ler a obra de Valls que mais do que nos provocar, parece que nos desperta o apetite, serve como um aperitivo filosófico, preparatório para os que estiverem dispostos a um banquete.

Marcio Gimenes de Paula

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