Revolução e Reforma | Vladimir Pomar

Apesar dos avanços recentes, boa parte da sociedade e da academia brasileira ainda possui um profundo desconhecimento ou distanciamento em relação à América Latina. Apesar da (suposta) especificidade brasileira, tal desconhecimento se relaciona ao distanciamento histórico de nosso país em relação à região alicerçado em diversas causas (políticas, econômicas, culturais, geopolíticas, …) que se acumularam ao longo do tempo.

Isto gerou o que Francisco de Oliveira denomina, para pensar tal relação, de “Fronteiras Invisíveis” que sempre foram mais sutis, profundas e efi cazes que as fronteiras oficiais1.

No caso de Cuba, além dos aspectos acima mencionados, e apesar do aparente número de publicações, tal desconhecimento é evidente e reforçado pelas barreiras ideológicas, a “eterna guerrafria”, que dificulta o desenvolvimento de análises objetivas, amplas e complexas da sociedade cubana contemporânea com suas características específicas, seus avanços e contradições, seus dilemas e desafios.

conhecimento da ilha caribenha e sua atualidade. Tal obra é parte da “Coleção Nossa América Nuestra2” da Fundação Perseu Abramo que, além da referência ao grande líder cubano José Martí e sua perspectiva latino-americana, pretende superar o desconhecimento e a escassa bibliografi a sobre a região e realizar um balanço sobre o denominado “ciclo progressista” na região em que conviveram os governos Lula e Dilma (Brasil), Chávez e N. Maduro (Venezuela), Evo Morales (Bolívia), Néstor e Cristina Kichner (Argentina) e Tabaré Vásquez e Pepe Mujica (Uruguai), Rafael Correa (Equador), Daniel Ortega (Nicarágua) e Mauricio Funes e Salvador Sánchez Cherén (El Salvador), além de Raul Castro (Cuba), dentre outros.

Desta forma, como mencionado na introdução do livro: “A coleção Nossa América Nuestra integra um programa de estudos e pesquisas mais amplo da Fundação Perseu Abramo (FPA), que visa reunir e produzir dados, análises e interpretações sobre os processos e signifi cados do que se convencionou chamar de “ciclo progressista” na América Latina. Deste programa participam estudiosos com longa trajetória acadêmica, profissional e/ou militante em relação à conjuntura da América Latina e Caribe. A Fundação pretende, assim, fomentar a investigação das dimensões políticas, sociais, econômicas e culturais desse processo, em cada país e na região tomada como um todo, avaliando também suas implicações geopolíticas, seja no que se refere aos projetos de integração regional, seja no que tange a sua inserção na ordem internacional” (POMAR, 2016, p. 11).

O livro sobre Cuba de Vladimir Pomar, jornalista, filho de comunistas e militante político com larga trajetória (atuou no PCB, PC do B e PT) e com uma produção expressiva voltada para a análise da China contemporânea, para a reflexão sobre a teoria e a prática de construção do socialismo e, finalmente, para o conhecimento da história do Brasil e da esquerda brasileira.

Esta obra procura compreender as características e impasses do processo revolucionário cubano, principalmente depois da queda do bloco soviético, pois como aponta na introdução: A partir daí, até 1998, Cuba fez um esforço sobrehumano para sobreviver ao naufrágio do socialismo de tipo soviético no contexto de uma forte ofensiva mundial de caráter neoliberal. Esse período, que os cubanos chamam de “especial”, foi suportado sem mudanças signifi cativas. Tal “modelo soviético” permaneceu mesmo quando a situação interna teve certa melhora, o que ocorreu quando emergiram governos progressistas e de esquerda na América Latina. No entanto, tendo em conta as difi culdades enfrentadas internamente pelos cubanos, a crise no mundo capitalista desenvolvido, a emergência da China e do Vietnã como países socialistas em forte desenvolvimento, bem como a transformação de antigas semicolônias africanas e asiáticas em países em processo de desenvolvimento industrial, fi cou evidente que o modelo de construção socialista em Cuba precisava de profundas reformas para enfrentar os novos desafi os nacionais e internacionais. Os debates sobre essas reformas, que os cubanos têm chamado de “atualização”, parecem representar uma retirada estratégica no contexto dos impasses da emergência progressista na América Latina, África e Ásia, do surgimento da China como país socialista de mercado e como grande potência econômica, da crise capitalista internacional e do reordenamento das relações com os Estados Unidos (POMAR, 2016, p. 19).

O livro, apesar de se constituir num estudo introdutório, possui inúmeros méritos que podem ser destacados. Em primeiro lugar, apresenta um excelente balanço histórico dos dois últimos séculos da história do país e da situação atuação do processo revolucionário cubano, apontando os efeitos da incorporação do modelo soviético, que se constitui numa herança que ainda continua difi cultando o desenvolvimento cubano e seu processo de atualização do modelo. Além disto, o trabalho apresenta, ainda que brevemente, os principais traços do debate cubano contemporâneo, discutindo as opções políticas e econômicas que são discutidas pelas lideranças e intelectualidade cubana, considerando diversos modelos para a sobrevivência, a renovação e o aprimoramento do socialismo cubano. Ainda, apresenta os elementos principais da aproximação com EUA, mostrando sua dinâmica e os desafi os para que a normalização das relações realmente ocorra e suas possíveis implicações para o destino do país. Finalmente, outro mérito da obra, refere-se a apresentação de documentos em anexo que, apesar de poucos, nos fornecem uma perspectiva interessante para refl etir sobre as origens, o desenvolvimento e o momento atual do processo revolucionário cubano com trechos de discurso de Raul Castro e trechos da obra de Juan Valdés Paz sobre as mudanças institucionais em curso, além de trechos das obras de José Martí, Fidel Castro, Charles Bettheleim e Ernest Mandel.

O trabalho também é importante pois ao refletir sobre os dilemas atuais que enfrenta tal processo e as ações que desenvolve conclui que: Em termos gerais, trata-se de realizar uma retirada estratégica do socialismo totalmente estatista para um socialismo de transição nacional em que o capitalismo, sob o comando do Estado socialista, deve contribuir para o desenvolvimento das forças produtivas e esgotar seu papel histórico em condições em que o mercado não seria totalmente burguês. Na União Soviética e no Leste Europeu essa retirada não chegou a ser realizada e o sistema socialista de tipo soviético afundou no mar do soerguimento do capitalismo. Na China e no Vietnã, cada um com suas características nacionais próprias, a retirada estratégica continua em curso, com os riscos e perigos que todo tipo de retirada envolve. Cuba parece haver sustentado o socialismo de tipo soviético até seus limites (…) (POMAR, 2016, p. 94).

Apesar dos aspectos acima destacados, o trabalho apresenta, mesmo considerando o espaço limitado e a amplitude das questões envolvidas, algumas limitações que, embora não prejudiquem sua qualidade, podem ser observadas. Em primeiro lugar, os dados apresentados não estão atualizados e alguns indicadores (crescimento econômico, desemprego, turismo, migração, indicadores de desigualdade, dentre outros) já possuem números mais recentes e alguns podem ser acessados no site da Ofi cina Nacional de Estatística e Informação (ONEI) ou da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL). No que se refere à luta revolucionária e a construção do socialismo, algumas dimensões (como a cultura, o debate econômico envolvendo Che Guevara) importantes foram marginalizadas e o papel das organizações revolucionárias deve ser analisado com cuidado, pois novos estudos tem rediscutido tal questão.

Neste sentido, também se destaca a ausência de algumas questões, relacionadas ao ciclo progressista, como a questão racial e mesmo a transparência e abertura do Estado á população.

Além disto, o texto, em certos momentos, faz uma generalização excessiva (POMAR, 2016, p. 71) e não consegue nomear certos autores que seriam importantes para todo leitor (POMAR, 2016, p.66 e 67). Por fi m, não consegue se aprofundar algumas críticas, como a relação entre Estado e propriedade privada, a relação com a Venezuela (e em que medida reproduziu o “modelo soviético”) e, mais complexo, a viabilidade (ou não) dos diversos aspectos (quais?) do socialismo cubano.

Em suma, trata-se de uma análise importante que, no entanto, somente pode ser compreendida com o aprofundamento de certas questões e a superação da “ilusão do progressismo e do socialismo do século XX” e deve ser lida, como todo bom trabalho, como um convite à refl exão, sem ufanismo. Ou seja, em tal etapa e considerando as especifi cidades de cada nação certamente ocorreram avanços em diversos planos (diminuição da desigualdade, maior autonomia no cenário internacional e fortalecimento da integração regional, crescimento econômico, melhoria de indicadores sociais, empoderamento de certos grupos, indígenas, por exemplo, dentre outros), no entanto, estas e outras transformações estruturais não podem ser tomadas como consolidadas ou nos induzir a pensar que a América Latina encontrou, fi nalmente, o caminho de democracia, desenvolvimento e justiça social. Há um longo caminho a percorrer e Cuba, assim como a esquerda, deverá se reinventar para tal processo tenha continuidade ou se aprofunde.

Finalmente, convém destacar que tal coleção é fundamental para todo leitor interessado em América Latina e que, embora incompleta, já nos fornece um quadro amplo e profundo da dinâmica e dos desafi os políticos contemporâneos na região.

Neste sentido, como mais um esforço para a superação das “fronteiras invisíveis”, já mencionadas, pode contribuir para uma efetiva refl exão (um “descobrimento”) e engajamento tornandose, portanto, leitura fundamental para todo latino-americano e para a construção de “Nuestra América” com desenvolvimento, justiça e igualdade. Boa Leitura!

Notas

1 Como aponta Oliveira: “A sugestão do título deste ensaio é de que fronteiras invisíveis entre o Brasil e América Latina sempre foram mais efi cazes para a falta de intercâmbio que as fronteiras ofi ciais. Terão perdido efi cácia tais fronteiras invisíveis? Parece que foram substituídas pela globalização como a nova fronteira, invisível, mas bem presente. (…) Enfim, num mundo de crescente complexidade, o projeto latinoamericano ainda não conseguiu se construir como outro pólo de poder, economia e cultura. Continuamos a erguer entre nós fronteiras invisíveis” (Oliveira, Francisco de. Fronteiras Invisíveis. In: Oito Visões sobre a América Latina. Adauto Novaes- org. São Paulo: Editora Senac, 2006, pgs. 23-48).

2. Além do livro sobre Cuba foram lançados os seguintes títulos: Bolívia de Igor Fuser, professor da Universidade Federal do ABC; Chile de José Renato Viera Martins, professor da Unila e presidente do FOMERCO; e Uruguai de Silvia Portela, socióloga e assessora de Relações Internacionais. Em breve serão lançados novos volumes discutindo outros países. Todos estão disponíveis no site da fundação: http://novo.fpabramo.org.br.

Marcos Antonio da SilvaUniversidade de São Paulo, USP, São Paulo, Br.


POMAR, Vladimir. Cuba: Revolução e Reforma. São Paulo: FPA, 2016. Resenha de: SILVA, Marcos Antonio da. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.17, n.33, p.227-232, jul./dez., 2006. Acessar publicação original. [IF]