Conversas que tive comigo | Nelson Mandela

Não me lembro qual foi a primeira vez que ouvi falar de Mandela. Talvez em algum filme de histórias de grandes líderes políticos que se tornaram “imortais” por seus feitos. Mandela foi muito mais que um grande líder político. O livro Conversas que tive comigo mostra com profundidade o Nelson Mandela (como é conhecido em todo mundo), Madiba, Tata, Rolihlahla alguns de seus nomes conhecido pelo povo da África. Nasceu na cidade de Transkei, África do Sul, em 18 de julho de 1918 e morreu numa quinta-feira no dia 05 de dezembro de 2013, aos 95 anos. Ele lutou contra o regime de segregação racial, o Apartheid, em seu país. O regime, como se sabe, negava aos africanos, o direito de viver livres em seu próprio território tradicional. O livro é constituído de escritos de Mandela, em sua maioria, nos quase 28 anos de sua vida que foi preso político.

A obra traz informações inéditas escritas de próprio punho. Uma delas é o fato de que Mandela, tinha o hábito de escrever o que para ele era importante em: visitas, reuniões e momentos de angústia. Relata que esses escritos eram uma forma de arquivar. Conhecíamos o líder político, o lutador incansável pelos direitos humanos, o homem que deu a volta por cima, mas sabia-se pouco sobre o Mandela escritor.

O fato é que ao perceber que os destinatários das inúmeras cartas que escrevia na prisão não respondiam, começou escrever para si, com a intenção de arquivar o cotidiano (SONTAG, 2004). Suas cartas eram escritas com cópias, que ele guardava. De 05 de agosto 1962, quando foi preso e condenado à prisão perpétua, ficou em reclusão até 1990, e escreveu, nesse período, centenas de cartas. Nela, além de questões políticas, estão demonstrados elementos de sua vida cotidiana como a preocupação com a mãe, os filhos, a esposa e os diversos companheiros de luta.

As cartas publicadas no livro não obedecem a uma cronologia. A obra está organizada em capítulos que retratam sua vida antes, durante e até liberdade; as cartas e anotações foram editadas e formam os textos dos capítulos.

Mandela foi preso pela primeira vez por desobediência às regras segregacionistas impostas pelo Estado. No livro, afirma que foi por usar um banheiro reservado exclusivamente para brancos. Em uma carta datada de 27 de dezembro de 1984 à sua esposa Winnie Mandela , afirma: “você sabe perfeitamente bem que passamos essa última parte de nossa vida na prisão exatamente por que nos opomos à ideia mesma de assentamentos separados, que nos torna estrangeiros em nosso próprio pais…” (MANDELA, p. 66.)

A obra de mais de 400 páginas se aproxima do que hoje chamaríamos de uma visão de colonial. Fala da necessidade de aprender da cultura Ocidental. Mas isso não fez com que abandonasse as línguas e a costumes tradicionais da África do Sul. Mandela era um Thembu, pertencia à casa real e sua vida pública o forçara a se afastar das suas tradições, mas nunca abandonara seus valores

“(…) Claro que não podemos viver sem a cultura ocidental, e então tive duas vias de influência cultural. Mas acho que seria injusto dizer que é uma peculiaridade minha, porque muitos dos nossos tiveram as mesmas influências… Hoje me sinto mais à vontade com o inglês, devido aos muitos anos que passei aqui e passei na prisão, por isso perdi contato com a literatura xhosa. Uma das coisas que estou ansioso para fazer quando me aposentar é poder ler a literatura que eu quiser, literatura africana (…) (MANDELA, 2010, p. 30).

Preocupado com quem governaria a África e com as mudanças que aconteceria, arriscava em seus escritos opinar qual seria o governo “ideal” para seu povo. Relata que enviou seus filhos e filhos de outros líderes para estudar fora do continente, mas defendia que um governante tinha que ser filho da África, e que ele deveria vivenciar seus costumes e cultura.

Atribui à colonização, aos erros das lideranças políticas africanas:

“Um corpo letrado de líderes tradicionais com boa formação terá toda probabilidade de aceitar o processo democrático. O complexo de inferioridade que os leva a se aferrar desesperadamente a as formas feudais de administração irá, no seu devido tempo, desaparecer”. (MANDELA, 2010, p. 35).

A democracia poderia ser construída com formação sólida das lideranças tradicionais que, assim, superariam o complexo de colonizado. (Memmi, 2007). Com isso afirma que…

“A civilização ocidental não apagou totalmente minha origem africana, e não esqueci meus dias de infância, quando nos reuníamos em torno dos mais velhos para ouvir a riqueza de sua sabedoria e experiência. Era o costume dos nossos antepassados, e na escola tradicional em que crescemos. Ainda hoje respeito os mais velhos da nossa comunidade e gosto de conversa com eles sobre os velhos tempos, quando tínhamos nosso próprio governo e vivíamos em liberdade.” (MANDELA, 2010, p. 43).

Das cartas aos cadernos de anotações buscou registrar sua indignação por não ter liberdade. Essa que não era pelo fato de estar preso, mas sim de ver seu povo restrito dentro de sua própria terra.

Ver os africanos, negros e indianos, serem obrigado a viver na pobreza, na miséria buscando trabalho nas fazendas de colonizadores dentro de seu próprio pais era o que levava a lutar, não só por sua liberdade, mas pela liberdade de todos. E culpa o colonialismo a isso. Como podemos perceber no trecho que a obra traz que e parte inédita de sua autobiografia.

“A pilhagem de terras de nativos, exploração de suas riquezas minerais e outras matérias-primas brutas, o confinamento de seu povo a áreas específicas, e a restrição de seus movimentos foram, com notáveis exceções, as pedras fundamentais do colonialismo por todo o país”. (MANDELA, 2010, p. 369).

Em suma, fala que houve aprendizados e não só momentos de dores durante sua vida na prisão. O respeito pelos outros povos e culturas diferentes, o tratar bem a quem lhe ofendia. Tristeza de não poder participar da vida de seus filhos. Ele fala da morte de primogênito Thembekile (13 de junho de 1969 na Cidade do Cabo), que quando foi preso o filho ainda era uma criança e que ele Mandela não esteve presente na cerimônia de seu casamento e nem poderia se fazer presente na da sua morte, pois o governo negara seu pedido como negou de ir a da sua mãe. Despedir dos seus entes em cerimônias que levava dias era algo de muito valor para ele, pois fazia parte de sua cultura, e essa é umas das dores mais agudas pelas quais passara. Mandela afirma que o ano de 1962 foi o pior de sua vida, pois além da perda de seu filho, de quem não pode acompanhar o crescimento, perdeu sua mãe e sua mulher havia sido presa.

A obra além de trazer esses escritos, mostra o cotidiano de um preso político que se opunha o multirracialismo e exigia uma sociedade não racializada. Em conversas com Richard Stengel, afirma: “estamos lutando por uma sociedade em que as pessoas parem de pensar em termos de cor… Não é uma questão de raça, é uma questão de ideias,” mostrando que ele advogava por uma sociedade desracializada.

As cartas e anotações mostram ao leitor o quanto Mandela foi engajado na luta contra o regime segregacionista sul africano, mesmo enfrentando momentos de muita dor. Durante todos os anos da prisão, ele sonhava com uma sociedade livre e democráti ca. Democracia que o elegeu presidente, sendo o primeiro homem negro a governar o seu país pela vontade da minoria em 1994.

Referências

MANDELA, Nelson. Conversas que tive comigo. São Paulo: Editora Rocco, 2010

MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

SONTAG, S. Sobre fotografia. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2004.

Josiel Santos – Universidade Federal do Tocantins.


MANDELA, Nelson. Conversas que tive comigo. São Paulo: Editora Rocco, 2010. Resenha de: SANTOS, Josiel. O que Tata escreveu. Revista Brasileira do Caribe. São Luís, v. 20, n. 38, p. 130- 133, jan./jun., 2019. Acessar publicação original [DR]

Antologia del Pensamiento Crítico Caribeño Contemporáneo (West Indies, Antillas Francesas y Antillas Holandesas) | Félix Valdés Garcia

O Caribe se constitui num imenso mosaico multidimensional (cultural, político, intelectual) marcado por uma ampla diversidade de dominações, colonizações, influências, resistências e reelaborações, que estão explicitadas em suas diversas denominações. Desta forma, uma parte da região, o Caribe hispânico é chamado de ‘El Caribe’, nas ilhas anglófonas é denominado de ‘West Indies ou The Caribbean’, na zona francesa é apontado como ‘Les Antilles’ ou ‘La Caraíbes’ e na área holandesa é designado como ‘Dansk Vestindien’.

Estas diferentes denominações demonstram o caráter uno e diverso da região, combinados dialeticamente, que explicitam, de uma ou outra forma, toda sua diversidade e potencialidade.

Desta forma, apesar de partilharmos com o Caribe uma história comum, que antecede a colonização européia, e dos laços históricos, econômicos e culturais desenvolvidos há séculos tal região e, principalmente, o pensamento crítico caribenho seguem ignorados ou apontados (ainda) pelo exotismo, já que a centralidade intelectual dos países do norte, principalmente em sua vertente anglo-saxã, continua condicionando nosso olhar e nossa reflexão sobre uma região tão próxima e, ao mesmo tempo, tão distante.

Sendo assim, pode-se afirmar que, apesar de alguns avanços, a maior parte da produção intelectual caribenha, e de seu pensamento crítico, segue desconhecida, com raras exceções, e a elaboração, as temáticas e concepções desenvolvidas por intelectuais caribenhos ainda se constitui num vasto campo a ser explorado e divulgado.

Neste sentido, esta obra se constitui num trabalho fundamental, e muito instigante, para o (re) conhecimento do pensamento crítico caribenho e seus laços com a realidade brasileira, principalmente das populações originárias e dos afrodescendentes, e a construção de alternativas para uma sociedade mais justa e equitativa.

A obra é parte integrante da série ‘Países’ da coleção de Antologías del Pensamiento Social Latinoamericano y Caribeño, publicada pelo Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO)2, na qual já foram divulgadas a produção crítica contemporânea de Uruguai, Panamá, El Salvador, Nicarágua, Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Cuba, México, República Dominicana, Peru, Paraguai e Venezuela, sendo que, em breve, novos volumes sobre outros países devem ser lançados.

A coleção é composta por cinco séries: Trayectorias, Países, Pensamientos Silenciados, Miradas Lejanas e CLACSO/SIGLO XXI (publicação conjunta), cujos textos podem ser considerados essenciais para conhecer e compreender o pensamento social latino-americano e caribenho, clássico e contemporâneo.

Desde o seu surgimento, CLACSO se tornou um espaço de reflexão autônoma das questões latino-americanas, de desenvolvimento do pensamento social e crítico e do compromisso com a superação da pobreza e desigualdade, através da construção de um caminho alternativo próprio. Neste sentido, as coleções produzidas realçam a importância desta para a construção e difusão do pensamento latino-americano3, procurando incentivar a produção própria, a compreensão autônoma e a construção de um caminho latino-americano para o desenvolvimento das ciências e, principalmente, das sociedades latino-americanas.

Este trabalho foi organizado pelo professor cubano Félix Valdés Garcia, membro da Cátedra sobre o Caribe da Universidade de Havana, da Associação de Estudos do Caribe (AEC) e do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO).

Esta obra, como a região retratada, é marcada pela diversidade de temáticas e perspectivas e se insere na dinâmica da coleção, procurando retratar uma ampla gama de autores e abordagens que possuem como fio condutor um pensamento crítico, alicerçado nas condições e desafios que a região enfrenta desde a colonização, apresentando tanto autores clássicos do pensamento caribenho como Frantz Fannon, Aimé Césaire, Eric Willians, Cyril Lionel Robert James, Edward Kamau Brathwaite e Maurice Bishop, como autores contemporâneos como Sir William Arthur Lewis, Kari Polanyi Levitt y Lloyd A. Best, Sylvia Wynter, Jean Bernabé, Patrick Chamoiseau e Raphaël Confiant.

Desta forma, o livro adquire uma coerência e uma relativa unidade, mesmo na diversidade, pois os autores apresentados conseguem demonstrar a profunda relação entre suas análises e a dinâmica social, política e econômica de seus países e região, produzindo um pensamento que procura contribuir para a transformação social, em suas diversas formas e movimentos, superando os colonialismos, em todas as suas manifestações e atualizações.

Além disto, o trabalho está marcado por uma abordagem multidisciplinar e pelo diálogo frutífero de um conjunto de correntes, relacionadas ao pensamento crítico, no qual se destacam três tradições. Primeiro, o pensamento marxista, utilizado de forma criativa e distanciado de dogmatismo e esquematismo, associado ao marxismo ocidental e, principalmente, ao impulso renovador e originário intentado pela Revolução Cubana e pelas releituras marxistas desenvolvidas na África e na América Latina ao longo das últimas décadas. Além dele, se destaca o pensamento negro, originário da diáspora africana, e sua releitura da colonização e da escravidão, bem como da condição dos negros no mundo contemporâneo, procurando resgatar suas raízes, originalidade e relevância para a superação da condição subalterna e subdesenvolvida.

Por fim, emergem os trabalhos que, mantendo um diálogo com as perspectivas anteriores, incorporam as contribuições do pensamento decolonial, anti-colonial ou póscolonial, procurando descontruir a modernidade eurocêntrica, suas lógicas e determinações, resgatando os diversos elementos (culturais, políticos, sociais, econômicos, religiosos, …) associados a negritude, as populações originárias e as mulheres, dentre outras, que nos permitem repensar a condição colonial e, principalmente, a dependência e o desenvolvimento (econômico e social) da região.

Neste sentido, podemos apontar que a obra pode ser analisada a partir de cinco eixos fundamentais, que se entrecruzam e se desdobram em inúmeras reflexões.

O primeiro eixo, que perpassa toda a obra, está associado a temática do colonialismo, tanto em sua dimensão temporal como nos efeitos políticos, econômicos e culturais, ao promover um quadro de dominação econômica, política e cultural, associado a colonialidade do saber e do poder nesta região e em toda a América Latina. Neste sentido, se destacam as análises, que podem ser consideradas clássicas, de Frantz Fanon (“Los condenados de la tierra”- fragmentos) e de Aimé Césaire (“Discurso sobre el colonialismo”) e o trabalho, mais recente, de Sylvia Winter (“1492: Una nueva visión del mundo”), embora os demais textos do livro possam ser considerados um desdobramento deste eixo primordial e continuem, a seu modo, discutindo tal temática.

O segundo eixo é caracterizado pelo debate sobre a dependência e a condição periférica dos estados caribenhos, além dos desafios para a criação de uma dinâmica efetiva de desenvolvimento econômico e social. Neste sentido, são apresentados os trabalhos de Eric Willians (“Capitalismo y esclavitud” y “El futuro del Caribe”), Kari Polanyi Levitt y Lloyd A.

Best (“Un enfoque histórico e institucional del desarrollo económico caribeño” y “Bosquejo de una teoría general de la economía del Caribe” e Sir William Arthur Lewis (“La agonía de las ocho”- Teoría para el desarrollo económico y social del Caribe), dentre outros.

O terceiro eixo, presente em boa parte dos trabalhos, é relacionado a questão da negritude e da condição ‘criolla’, discutidas em múltiplas dimensões, em que se destacam os elementos culturais e políticos. No primeiro caso, estão presentes trabalhos que revisam o tema da escravidão, em sua implicação social e cultural, analisam a emergência da noção de negritude, em sua relação com o pan-africanismo, e, mais recentemente, da noção de ‘creolidad’, destacando-se os trabalhos de Edward Kamau Brathwaite (“La criollización en las Antillas de lengua inglesa”), de George Lamming (“Los placeres del exilio”) e de Jean Bernabé, Patrick chamoiseau y Raphaël confiant (“Elogio de la creolidad”- fragmentos).

No plano político e social, destacam-se trabalhos que discutem a emergência do movimento negro e de uma consciência e mobilização social regional como os trabalhos de Édouard Glissant (“El discurso antillano”), de Walter Rodney (“El Black Power. Su relevancia en el Caribe”) ou de Brian Meeks (Radical Caribbean: From Black Power to Abu Baker/ Caribe radical. Del Black Power a Abu Bakr), dentre outros.

O quarto eixo relaciona-se ao impacto das Revoluções, passadas e presentes, na constituição e desenvolvimento de um pensamento revolucionário e libertário, que incorpora as tradições culturais, africanas e ameríndias presentes na região, e procura desenvolver um projeto político-cultural que combine justiça social e valorização destas tradições subalternizadas ao longo da história caribenha. Neste sentido, diversos trabalhos promovem um contato e um diálogo com o impulso libertário da Revolução Cubana e dos processos de descolonização e independência na África, a partir dos anos 60, dos quais podemos destacar os textos de Cyril Lionel Robert James (“De Toussaint L’Ouverture a Fidel Castro”, extraído de ‘Os jacobinos negros’), de Maurice Bishop (“¡Siempre adelante! Contra el imperialismo y hacia la independencia nacional legítima y el poder del pueblo”) e de Lloyd A. Best (“Pensamiento independiente y libertad caribeña”), dentre outros.

O último eixo se relaciona a temáticas emergentes, dentre as quais se destacam as questões culturais e de gênero, que procuram, a partir da condição caribenha, redefinir o papel e a organização destas sociedades e, no segundo caso, revisar a condição subalterna das mulheres no mundo ocidental e contribuir para a superação desta condição e do empoderamento feminino. Neste sentido, se destacam os trabalhos de Elsa Goveia (“Estudio de la historiografía de las Antillas inglesas hasta finales del siglo XIX”), de Terry Agerkop (“Las culturas tradicionales y la identidad cultural en Surinam”) e, principalmente, de Alissa Trotz (“Género, generación y memorias: tener presente un Caribe futuro”).

Além dos aspectos já mencionados, outros elementos emergem da leitura desta obra. Como demonstram os textos, os diversos autores conseguem captar, com acerto, a dicotomia entre a unidade e a diversidade que caracterizam o Caribe, principalmente, ao destacar suas diversas tradições, mas que convergem para uma história e destinos comuns, além de revelar a dinâmica política e social das pequenas nações. Além disto, demonstram que tais autores procuram associar compromisso e sensibilidade social com rigor intelectual, tornando-se relevantes para o desenvolvimento de um pensamento próprio, caribenho e latino-americano, fundamentado tanto na realidade particular de cada ilha como nos desafios comuns que marcam a região e, de certa forma, toda a América Latina.

Neste sentido, também pode ser destacado que os textos são marcados pela convergência frutífera entre uma abordagem multidisciplinar, com destaque para história, economia, as ciências sociais e os estudos culturais e a utilização de múltiplos enfoques metodológicos e culturais, enriquecendo e ampliando o escopo analítico. Finalmente, vale mencionar que a obra contribui para o desenvolvimento de estudos comparados, produzindo um panorama (político, cultural, social e econômico) que consegue combinar o global e o regional, o regional e o local e uma análise multidimensional da conjuntura para compreender as sociedades caribenhas, seu passado e presente, com suas heranças estruturais e desafios atuais.

Entretanto, como toda coletânea, resultado de opções do organizador e dos limites da publicação, embora possua inúmeros méritos e tratar-se de um trabalho muito importante, possui limitações relacionadas, principalmente, a ausência de alguns pensadores e de algumas temáticas, como a análise das instituições e da dinâmica contemporânea da Integração Regional caribenha, as relações recentes com a herança e o continente africano, o agravamento de problemas sociais e ambientais, a emergência de novas formas de organização cultural e política e o papel das novas gerações na construção de um pensamento crítico caribenho, dentre outras.

Apesar disto, é possível apontar que a obra, assim como toda a coleção de CLACSO, ao apresentar as trajetórias fundamentais do pensamento latino-americano contemporâneo, é fundamental para o conhecimento da América Latina e do Caribe, em sua unidade e diversidade, dos problemas recorrentes e seculares que afetam a região (desigualdade, dominação, submissão, silenciamentos,…) e das possibilidades de construção de alternativas, alicerçadas na construção de direitos efetivos, de respeito as culturas e povos originários, de desenvolvimento económico e social, de democracia participativa e inclusiva e justiça social.

Neste sentido, conforme aponta o organizador Félix Valdés Garcia: Así, más allá de la obra de Jamaica, Trinidad y Tobago, Martinica o Barbados, los textos reunidos expresan el cuestionamiento de una totalidad mayor, dada con mayor frecuencia en las lenguas de Próspero que en creole, papiamento o sranang tongo, pero tan agudo como la plaga roja que Caliban pronunciara a Próspero. Ella expresa la unidad de lo diverso, de lo individual y lo universal de una experiencia, de islas que se repiten una y otra vez, sin ser iguales ni siquiera consigo mismas, más allá de la proximidad física, la fragilidad, la continuidad fáctica que la historia puso a merced de antojos imperiales y de experimentos sociales y culturales más impensados de la civilización occidental. Sirva la presente selección para rebasar las divisiones, el desconocimiento de pueblos que comparten una misma suerte, semejantes herencias y un mismo sol insular y de Nuestra América (GARCIA, 2017, p. 34).

À todos, boa leitura!!!

Notas

2. O Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO) é uma instituição não-governamental, criada em 1967 e associada a UNESCO, que reúne cerca de 394 centros de pesquisa, programas de pós-graduação ou instituições em ciências humanas e sociais de 26 países da América Latina. Além deste, também são filiadas diversas instituições de EUA, Europa, África e Ásia que se dedicam ao estudo de temas latino-americanos. Para conhecer a entidade pode-se acessar: http://www.clacso.org.ar 3 O Brasil possui, até o momento, cerca de 51 instituições, programas de pós-graduação ou centros de pesquisa filiados.

Marcos Antonio da Silva – Universidade Federal da Grande Dourados, Brasil.

 

VALDÉS GARCIA, Félix (org.). “Antologia del Pensamiento Crítico Caribeño Contemporáneo (West Indies, Antillas Francesas y Antillas Holandesas)”. Buenos Aires: CLACSO, 2017. Disponível em: http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/20170707025855/AntologiaDePensamientoCriticoCaribeno.pdf. Resenha de: SILVA, Marcos Antonio da. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.19, n.37, p.149-153, jul./dez., 2018. Acessar publicação original. [IF].

Invento/ luego resisto: El Período Especial en Cuba como experiencia y metáfora (1990-2015) | Elzbieta Sklodwska

Poucos países passaram, em tão pouco tempo, por mudanças tão intensas e profundas como Cuba, na segunda metade do século passado. Em menos de cinco décadas, o país vivenciou uma transformação que inseriu a ilha num processo de transição socialista, alinhado ao modelo soviético, atingindo todas as esferas da vida social e as relações políticas, econômicas, sociais e culturais.

Quando tal processo parecia se estabilizar, a derrocada do campo socialista e o desaparecimento da URSS, na última década do século XX, conduziram à ilha caribenha a mais profunda crise econômica e social de sua história, com efeitos que ainda persistem, apesar da recuperação de certos indicadores e foi denominado, oficialmente, de “Período Especial em Tempos de Paz”.

Sobre tal período, apesar de uma relativa quantidade de publicações literárias e acadêmicas ainda persistem inúmeros debates, questões e lacunas que merecem ser aprofundadas, por todos aqueles que se debruçam sobre a ilha caribenha. Neste sentido, podem ser analisados a validade (ou não) de tal denominação, o período exato de sua duração ou sua continuidade e, principalmente, a necessidade de construção de um quadro abrangente desta etapa, que incorpore as diversas dimensões e impactos na vida social (política, cultural, social, religiosa, populacional, …) e que se constitui na possibilidade de compreensão, adequada, da sociedade cubana contemporânea.

Disto decorre duas constatações fundamentais sobre o “Período Especial em Tempos de Paz”. Primeiro, toda a política e a sociedade cubana foi marcada pela ‘lógica da sobrevivência’, evidenciada nas mudanças econômicas e na reinserção internacional do país e foi marcado por profundas transformações. Desde então, o país vive numa transição que procura se adequar à nova realidade mundial e reorganizar o tecido social local. Além disto, a segunda constatação se refere ao fato de que, apesar das dificuldades intensas no momento inicial, uma narrativa multidimensional, da academia à literatura e as artes, vem emergindo e, apesar de sua diversidade, possibilita a compreensão de como os cubanos lidaram com tal situação, com drama, criatividade e, inclusive, senso de humor, apresentando inúmeras possibilidades de leitura, de reflexão e pesquisa sobre tal etapa.

Neste sentido, esta obra torna-se uma leitura fundamental, pois a partir dos estudos culturais, procura construir um quadro abrangente, envolvendo a noção ampla de cultura, que busca compreender a dinâmica e os impactos de tal período no dia-a-dia dos cubanos e seu reflexo no campo cultural, bem como a atuação dos principais autores e coletivos culturais que atuaram na ilha nas últimas três décadas.

A obra reflete o trabalho e a perspicácia da autora, Elzbieta Sklodowska, que se formou como latino-americanista nos EUA, com uma tese sobre o testemunho hispano-americano, e na Polônia, com uma tese sobre a paródia na narrativa hispano-americana, e, desde então, vem se dedicando aos estudos culturais e literários, com ênfase na literatura latino-americana e, principalmente, a narrativa caribenha dos séculos XIX e XX e a literatura e cultura cubana nos últimos dois séculos3.

A obra, fundamentada na abordagem dos estudos culturais, incorpora conceitos e abordagens de diferentes disciplinas das ciências humanas, desenvolvendo uma aproximação sócio-crítica do discurso social, oficial (e outros), e procura explorar as diversas perspectivas e formas que a literatura, as artes e o cinema cubano refletiram sobre tal período e os impactos na vida social das mudanças enfrentadas pelo fim do bloco soviético e a profunda crise que a ilha se viu submergida. Para tanto, o trabalho está organizado, além dos elementos introdutórios, em seis capítulos.

O primeiro capítulo, intitulado “Pretérito imperfecto: las metáforas del Período Especial”, oferece uma visão panorâmica sobre os aspectos mais representativos do período, discutindo a história política, social e econômica dos anos de 1990 e repassando os debates sobre sua denominação e duração. A partir de poemas, de Reina M. Rodríguez e Carlos A.

Alfonso Barroso, e a produção artística, de René de la Nuez e Eduardo A. Guirola, dentre outros, apresenta como a década foi marcada pelo catastrofismo, niilismo e desamparo, pela migração interna e como a estratégia de sobrevivência se tornou fundamental no dia-a-dia dos cubanos (‘la lucha’).

O segundo capítulo, denominado de “Sin pan, pero con palabras: escribir (en) el Período Especial”, discute, a partir da noção de ‘neofala’ de Michael Glowinski, a recriação paródica do discurso oficial, apontando uma resistência crítica de certos círculos intelectuais, como observados no compêndio, paródico, “No hay que llorar”, que apresenta uma reflexão sobre o impacto afetivo da crise.

O terceiro capítulo, com o título “Temas y anatemas: la revolución y la administración del hambre”, discute, evidentemente, o tema da fome nos anos de 1990. Neste sentido, analisa a origem e a evolução da ‘libreta’, a presença de tal temática na literatura, em obras como “Paisaje de Otoño” de Leonardo Padura (um dos principais escritores cubanos na atualidade), desenvolve uma análise linguística de livros e folhetos editados pelo editorial Verde Olivo (“Con nuestros propios esfuerzos” e “El libro de la família” e do programa televisivo de Nitza Villapol (‘Cocina al minuto’), demonstrando como eles contribuíram para a redefinição, cultural, do que seria comestível ou não.

O quarto capítulo, denominado de “Sin guarniciones: (re) invenciones gastronómicas y la (re) creación artística”, reflete sobre os testemunhos de tal período, discutindo a luta diária por sobrevivência de vários setores, as tensões entre a carência e as promessas e a ‘criatividade’ gastronômica da ilha. Neste sentido, analisa, dentre outros, o trabalho de Antonio José Ponte (Las comidas profundas”), de Alberto Pedro Torriente (“Manteca”) e a performance “Ping Pong” da dupla Luis Garciga Romay e Miguel Moya.

O quinto capítulo, intitulado “Entre lo sublime y lo abyecto: el Período Especial a través del lente de género”, analisa, a partir da temática de gênero, a inserção da mulher em tal período e como seu papel tradicional, de dona de casa, foi um dos mais afetados e politizados. Além disto, discute a emergência das ‘jineteras’ e os debates derivados de tal prática, analisando o alcance e os limites da perspectiva de que tal prática se constitui numa forma de empoderamento feminino, que nem sempre se fundamenta na realidade, ao discutir os maus tratos que este papel traz a mulher. Neste sentido, analisa, dentre outros, o filme ‘La película de Ana’ (de Daniel Díaz Torres), o trabalho híbrido de Reina Maria Rodríguez (“Variedades de Galiano”) e o relato de Damaris Calderón (‘Angelillo’).

Finalmente, o último capítulo, denominado de “Reinventar la rueda: el archivo material del Período Especial”, discute como o interesse pela cultura material tem emergido no caso cubano e como isto afeta a auto-produção e a reinvenção de objetos de uso cotidiano, diante do cenário de escassez material. Neste sentido, revela a emergência de uma ‘desobediência tecnológica’, de apropriação e ressignificação do uso de certos objetos, discutindo as obras de Laidi F. de Juan, do editorial artesanal Vigía, de Daniel V. Rodríguez (“De Buzos, leones y tanqueros”) e, principalmente, a obra dos integrantes do coletivo “Los Carpinteros”, que desenvolveram trabalhos de repercussão mundial.

Desta forma, a obra se constitui numa leitura instigante para a compreensão do período especial e se destaca pela perspicácia, abrangência e diversidade dos temas desenvolvidos e pela contraposição entre o discurso oficial e a experiência vivida (a ‘realidade’) envolvendo inúmeros atores do campo artístico. Neste sentido, a produção cultural que analisa inclui diversas manifestações como a literatura (poesia, contos, romances, teatro e narrativas), os meios audiovisuais (cinema e artes plásticas), a comida, performances artísticas e a cultura material.

Além disto, o trabalho possibilita a compreensão de que, até mesmo os tempos de crise e penúria material, podem servir de ‘inspiração’ e estímulo para o trabalho artístico e a inserção social e apresenta a extraordinária criatividade dos cubanos, persistente até os nossos dias e nos mais variados campos, para a (re) invenção e a resistência, como sugere o título.

Desta forma, se os problemas enfrentados, nos anos de 1990, determinaram o imaginário estético cubano, tal determinação não limitou a imaginação e a criatividade da população, e dos artistas, do país.

Outro elemento fundamental que pode ser inferido desta leitura, é que o ‘Período especial em tempos de Paz’ também pode ser compreendido como uma experiência e metáfora de toda a América Latina. Neste sentido, vale destacar que, embora a região tenha vivenciado, nos anos de 1980, a chamada “década perdida” (devido ao endividamento e a crise econômica e social), continua persistindo uma enorme dívida com amplos setores da população latinoamericana que são marcados pela carência, exclusão e marginalidade e, ainda, a região (assim como a maior das Antilhas) ainda não conseguiu se reinserir no mundo globalizado, de forma autônoma e ativa, possibilitando o desenvolvimento com equidade. Enfim, tal experiência e metáfora parece ser um componente da realidade latino-americana, adaptando-se as especificidades nacionais.

Apesar disto, a obra apresenta algumas limitações, que não desqualificam sua importância, mas se constituem em elementos que poderiam ser aprofundados. Em primeiro lugar, pode-se destacar que não realiza tal abordagem em direção a outras manifestações culturais que poderiam ser, igualmente, instigantes como a música, a linguagem corporal e os murais ou grafites, dentre outras. Além disto, poderia incorporar os processos que se passam em outros campos, como no religioso, e como em tal período ocorre um ‘reencantamento’ da ilha e ressurgimento de inúmeras práticas religiosas e seus efeitos culturais e materiais.

Também poderia ser explorado, tanto em termos de nostalgia como de continuidade nos processos culturais e na cultura material, a complexa e mal resolvida relação com a URSS.

Por fim, a abordagem, por vezes, idealiza a realidade cubana e analisa a atuação governamental como sendo somente ilusória ou negativa desconectada desta, o que acaba por desconsiderar os esforços, no sentido de superação de tal estado, e, principalmente, não considera a complexidade e a ambivalência de tal período, para além da dicotomia entre o discurso oficial e artístico.

De toda forma, trata-se de uma obra importante que, além de sua importância fundamental no campo dos estudos culturais e na excelente compilação sobre tal período, demonstra a necessidade de continuidade de pesquisas e reflexões sobre o “Período Especial em Tempos de Paz” em Cuba, tanto no que se refere a outros campos e produções artísticas (música, escultura, linguagem corporal, murais,…) como em outras dimensões da vida (social, política e econômica) que continuam desafiando as ciências sociais, incluindo a história, latino-americanas. Boa leitura!!

Marcos Antonio da Silva – Universidade Federal da Grande Dourados, Brasil.


SKLODWSKA, Elzbieta. Invento, luego resisto: El Período Especial en Cuba como experiencia y metáfora (1990-2015). Santiago de Chile: Editorial Cuarto Propio, 2006. 499p. Resenha de: SILVA, Marcos Antonio da. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.19, n.35, p.165-169, jul./dez., 2017. Acessar publicação original. [IF]

 

A História da Escravidão | Olivier Pétré-Grenouilleau

PÉTRÉ-GRENOUILLEUAU, Olivier. A História da Escravidão. São Paulo: Editora Boitempo, 2009. Resenha de: SANTOS, Fabio Luis Barbosa dos. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.10, n.20, jan./jun., 2010. Arquivo indisponível na publicação original. [IF].

Havana and the Atlantic in the Sixteenth Century (Envisioning Cuba) | Alejandro La Fuente

LA FUENTE, Alejandro. Havana and the Atlantic in the Sixteenth Century (Envisioning Cuba). Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2008. Resenha de: SANTOS, Ynaê Lopes. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.10, n.19, jul./dez., 2009. Arquivo indisponível na publicação original. [IF]

 

Tan lejos de Dios… Ensayos sobre las relaciones del Caribe con Estados Unidos | Antonio Gaztambide-Géigel

Tan Lejos de Dios… é o instigante título do livro de Antônio Gaztambide, uma co-edição, lançada simultaneamente (2006) em Porto Rico e Cuba. O historiador, no prefácio, completa a expressão que dá nome ao conjunto de ensaios: “Tan lejos de Dios… y tan cerca de los Estados Unidos”.

A anedota política tem origem mexicana, onde era precedida de um lamento: “Pobre México…”. Difundida em outras sociedades, a expressão reflete a experiência caribenha em sua dimensão de região. A proximidade com o poderoso vizinho tem influência na dinâmica de identidades e trocas regionais, fato diretamente relacionado às definições de Caribe. Reside aí a maior originalidade da abordagem, pensar o Caribe como categoria histórica. O livro se desdobra, então, num duplo movimento, investigar as políticas norteamericanas para a região no contexto das contradições internas àquele país, e, desde um lugar de fala demarcado, nuestra región, nela descortinar relações políticas e simbólicas, com ênfase no século passado. Tarefa cumprida com a autoridade de quem, como educador e pesquisador acostumado a construir pontes entre insularidades, conhece muito bem aquelas águas.

O primeiro ensaio, “A invenção do Caribe a partir de 1898”, nos remete à questão das concepções colonialistas, desde afuera, mas também à apropriação e redefinição conduzida regionalmente, desde adentro. A invenção tardia do Caribe seria resultado de arrafjos naquela “fronteira imperial”, que culminaram na hegemonia estadunidense. Não que a palavra fosse nova, havia sido empregada já por Colombo, para distinguir etnias que ‘resistiam à conquista’ e depois por ingleses (caribby). Porém, Antilhas e West Indies eram as designações mais comuns em diferentes concepções da região até o século XX. A partir daí emerge o signo Caribe e, no sentido de suas múltiplas definições, é que Gaztambide nos sugere pensar em muchos Caribes.

Duas tendências são discutidas no viés geopolítico. A primeira marca o período da intervenção militar norte-americana, iniciada com a ocupação de Cuba, ao fim da “Guerra Cubano-Hispano-Estadunidense” (p. 214) e com a anexação de Porto Rico. Este Caribe, aceito por boa parte da historiografia, reunia a princípio as Antilhas (quatro ilhas maiores) e o continente, de Belize ao Panamá, e, depois de 1945, todo o Caribe insular. A outra tendência propõe pensar um Grande Caribe, com a presença de México, Colômbia, Venezuela, originada em parte por interesses intrarregionais, mas também desde afuera, como ilustra a “contra-ofensiva” dos EUA sobre a Cuenca del Caribe. De maior complexidade são as definições menos territorializadas, o Caribe “etnohistórico” e o “cultural”. Trata-se de relações entre as Antilhas, sobretudo as hispanófonas (Cuba, República Dominicana e Porto Rico) e as repúblicas das West Indies, antes colônias inglesas, neerlandesas ou francesas, sempre associadas às Guianas e a Belize. No interior de cada um desses universos e entre eles, a afirmação de uma identidade caribenha permanece coftroversa: basta indicar que para uma dúzia de tarritórios a descolonização sequer se completou.

Os ensaios “A geopolítica do antilhanismo de fins do século XIX” e “Identidades internacionais e cooperação regional no Caribe” ampliam o debate anterior, sem perder de vista que as palavras “estão carregadas de histórias e, portanto, de ideologias e discursos, de imaginários”. Somos apresentados ao pensamento republicano e antilhanista de Ramón Betances e Eugenio Hostos, nascidos em Porto Rico, e às idéias do poeta e revolucionário cubano José Martí; ambos lutaram pela emancipação de Porto Rico e de Cuba. A proposta de Confederación de las Antillas surgiria em manifesto pioneiro de Betances, de 1867, logo partilhada, com nuanças, por Hostos. De um antilhanismo concebido para Cuba, República Dominicana, Porto Rico e Haiti, caminhava-se para a categoria Hispano-América; tendiam a excluir o Brasil, uma monarquia escravista. José Martí propõe uma categoria particular, Nuestra América. Ele postula, a partir da rejeição de modelos sociais e raciais derivados das metrópoles, a independência política e econômica diante da Europa e dos Estados Unidos. Mais tarde, Martí teria uma práxis mais antilhanista, com a fundação do Partido Revolucionário Cubano, em 1892.

As relações internacionais entre Estados Unidos e Caribe são o tema dos demais ensaios. Gaztambide defende uma história internacional que transcenda os espaços governamentais e a diplomacia, incluindo “classes, interesses e grupos culturais e étnicos” que atravessam as fronteiras nacionais.

O terceiro e o quarto estudo situam essas relações a partir da irrupção dos EUA como potência colonial ultramarina no fim do século XIX, passando pela(s) Política(s) de Boa Vizinhança, até 1945. As resistências internas não conseguiriam impedir a ambigüidade de um discurso anticolonial acompanhado de freqüentes agressões aos países vizinhos, tais como as intervenções no Haiti (1915) e na República Dominicana (1916). A luta pelo poder econômico e político sobre o Caribe continuaria mesmo sob a face da Buena Vecindad. Poucos “tratados de reciprocidade” repercutiram, de fato, nas economias do Caribe, mas o governo de Roosevelt, a partir da entrada na segunda grande guerra, ampliou a cooperação cultural e militar, “aparentando apoiar um sistema formal de Estados iguais” (p. 127).

“Hacia una historia social de las relaciones latinoamericanas” e “Estados Unidos, la idea de desarrollo y el Gran Caribe”, por sua vez, são parte, como se anuncia, de um próximo livro: “Camino al Desarrollismo”. Constituem uma análise profunda dos embates no interior da elite que conduz a política exterior norte-americana, e da transição para o imperialismo hegemônico.

Os confrontos entre corporações predominantemente nacionais, de um lado, e a burguesia internacional do Nordeste dos EUA, mais voltada para as articulações multinacionais, de outro, refletiam posições diferentes quanto à industrialização do continente. Nessa época, vemos surgir a política do “Bom Sócio”, nome genérico que se dá a vários ajustes a partir da Guerra Fria, marcada pelo combate ao desenvolvimento independente e ao comunismo, que implicaram ora em intervenções abertas, ora em apoio encoberto a regimes ditatoriais. Também surgem iniciativas no sentido de construir um modelo de desenvolvimento periférico. O autor destaca aí a trajetória da Comissão Econômica para América Latina (CEPAL), criada em 1948. O segundo livro de Gaztambide, certamente, trará análises ainda mais valiosas sobre esses fenômenos, centrais para uma história contemporânea do Caribe.

Trata-se, por tudo isso, de leitura proveitosa para os estudiosos das relações internacionais e da história caribenha. Os historiadores brasileiros, mais acostumados a olhar o Caribe desde o Brasil,1 provavelmente sentirão falta da presença brasileira no cenário das relações internacionais abordado pelo autor. Particularmente, na discussão sobre o Caribe cultural, baseada na concepção de Charles Wagley de esferas culturais americanas. Uma dessas esferas, relativa às heranças da empresa açucareira escravista (plantation), em que se inclui o Brasil, é adotada no livro para fundamentar a definição do Caribe como “Afro-América”. Embora outros autores pensem o Caribe nessa dimensão ampliada, Gaztambide enfatiza que seu entendimento do Caribe cultural é como “Afro-América Central”: ao sul dos Estados Unidos e ao norte do Brasil, “porém sem incluí-los” (p. 53). A pesquisa histórica, de outro modo, vem revelando, cada vez mais, os “matizes caribenhos” (cf.Maria T. Negrão de Mello) de realidades brasileiras, no passado e no presente.

A perspectiva cultural será enriquecida, como penso, quando integrar o Brasil na compreensão desses muchos Caribes. Afinal, Tan lejos de Dios nos alerta para a impossibilidade de uma definição inequívoca de Caribe. O mais importante para fazer avançar o debate será o esclarecimento, em cada contexto, de que Caribe se está falando e por quê.

Notas

1 Refiro-me, especialmente, aos inúmeros diálogos entre o Brasil e o Caribe presentes em alguns livros recentes e na Revista Brasileira do Caribe, organizados pelo Centro de Estudos do Caribe no Brasil, com a participação de pesquisadores como Olga Cabrera, Jaime de Almeida e Maria T. Negrão de Mello, entre outros.

Alex de Oliveira – Doutorando do PPGHIS/UnB.


GAZTAMBIDE-GÉIGEL, Antonio. Tan lejos de Dios… Ensayos sobre las relaciones del Caribe con Estados Unidos. San Juan: Ediciones Callejón; La Habana: Centro de Investigación y Desarrollo de la Cultura Cubana Juan Marinello, 2006. Resenha de: OLIVEIRA, Alex de. Tan lejos de Dios. Textos de História, Brasília, v.16, n.1, p.189-192, 2008. Acessar publicação original. [IF]

Tan lejos de Dios… Ensayos sobre las relaciones del Caribe con Estados Unidos | Antonio Gaztambide-Geigel

Ao nomear ensaios aparentemente dispersos sob o título de um dito popular, ainda mais estando este incompleto, uma idéia de unidade se entrelaça com o omitido e suspenso pelas reticências: “… e tão perto dos Estados Unidos”. A invocação de um dito popular não se dá de forma gratuita, dela decorre um sentido que expressa a novidade deste trabalho. Mesmo o dito sendo de origem mexicana, como Gaztambide-Geigel faz questão de ressaltar, este dito expressa uma condição de existência comum a países do continente meso e sul americano: a proximidade física em relação aos Estados Unidos, potência esta que teve uma sobressalente mudança hierárquica no cenário econômico mundial, na qual se elevara ao avatar de maior poderio atual. E a novidade deste trabalho é justamente se adentrar no conjunto de relações que presidiram o processo de emergência da potência norte americana em relação aos vizinhos do sul, particularmente os antilhanos. A atualidade do dito faz-se clara.

Seu sentido coloca em xeque o paradoxo implicado na bandeira política norte americana: um imperialismo salvífico quase natural que na prática é muito distante disso—a recente investida democrática em terras iraquianas é exemplo atual de peso. Além levar este paradoxo acerca da política americana com meticulosidade, e se servir de um avantajado corpo material, a apresentação do presente trabalho se releva não só entre os pesquisadores caribenhos, radicados no Brasil ou não, como também para interessados no tema da “identidade” na contemporaneidade.

É certo que as discussões identitárias provêem de pesquisas inscritas metodicamente no campo dos estudos culturais. Entretanto, o conceito de identidade não deixou de se atravessar por objetos os mais distintos, oriundos de outros campos de saber. De modo que tal temática fora incorporada nas ciências humanas, em geral, história, antropologia, sociologia, geografia e mesmo, a filosofia. O que atesta seu estatuto de relevante acontecimento no pensamento das ditas “ciências humanas”. Todavia, seria uma ingenuidade supor que seus métodos permaneceriam os mesmos submetidos a objetos tão singulares. Hoje oferece tal diversidade, que consuma ainda mais o seu valor analítico. São muitas as perspectivas de utilização.

E, apoiado em uma massa documentária de fôlego e decorrente de vários anos de pesquisa, Gaztambide-Geigel abordou tal temática numa dimensão bem delimitada. Seu problema foi como se construiu o termo Caribe em relação à política internacional norteamericana para os vizinhos antilhanos. Desse modo, se se pode falar de um tema central coordenador dos setes ensaios constituintes da presente coletânea, este sem dúvida é o jogo implícito em vista das circunstâncias pelas quais se forma o conceito Caribe, ou melhor, se formam as identidades postas em jogo ao evocar os Caribes.

No primeiro ensaio, “La invención del Caribe a partir de 1898”, submete o termo Caribe à sua análise historiográfica. Situa seu caráter enquanto invenção. Desse modo, tomado como invenção, o Caribe não é um objeto fixo e estático, que bastaria ao historiador expor suas formas e conteúdos, e sim um objeto inventado, que não cessa de se recriar e reiterar-se. E ao inquirir quanto às relações políticas embutidas no momento de sua construção, busca-se ver justamente as circunstâncias em jogo no momento de sua criação, as contingências e encontros que marcaram sua emergência.

O que o jogo em torno da criação do termo Caribe revela é que não há um Caribe, pronto e acabado, e sim como houve, e há, vários Caribes de maneira que, em cada situação histórica em que é invocado, o termo não se refere às mesmas coisas, não falam dos mesmos objetos. Em vista disso, o autor propôs uma historicização do termo, e pôde ver suas diversas usagens mediante as situações próprias e específicas à história antilhana: de um arquipélago atlântico fragmentado submisso à metrópoles coloniais ao “Gran Caribe” em vias de emancipação cultural, foram decorridas enunciações bem diversas para o conceito “caribe”.

Por conseguinte, Gaztambide cunhou quatro momentos que são decisivos para a significação do termo caribe, do final do século XIX aos dias atuais: o caribe insular, o caribe geopolítico, o Gran Caribe ou Cuenca del Caribe e o caribe cultural.

No segundo ensaio, “La geopolítica del antillanismo de fines del siglo XIX”, procura-se destacar as forças motrizes do latinoamericanismo, sob as luzes antilhanas. Mostra como, por volta da metade do século XIX, começa-se a convergir às idéias de hispanoamericanismo e de latinoamericanismo, numa engrenagem à qual as Antilhas estariam em função otimizada, dado sua localização estratégica em relação ao mercado mundial internacional. Assim, as Antilhas espanholas, Cuba, Porto Rico e República Dominicana, encabeçariam o sonho da “nuestra América”. Situação que muda, já na década de 90 deste mesmo século, diante da ameaça imperial norteamericana.

Gaztambide avalia as idéias antilhanas a partir de figuras históricas inseridas no redemoinho hispanoamericano e antilhano: Marti, Hostos e Betonces. Personagens que dedicaram à luta emancipatória dos territórios coloniais da metrópole espanhola.

Mesmo que uma primeira onda de independência arrebatara o continente décadas antes, persistia uma colonialidade já dita como “cultural” e combatida pelos libertários antilhanos. O papel deles expressam um movimento, cujo sentido atravessaria a história latinoamericana. E a emancipação devia ser alçada nem tanto em relação aos velhos impérios europeus, bem como devia ser buscada em vista da potência emergente: a República norte americana. A política imperial desta potência emergente aos fins do século XIX, que a partir da compra da Lousiana começou a deferir ações com finalidade de expandir sua soberania, estava constituída às voltas de ambigüidades visíveis. E a emergência dos Estados Unidos, como defende Gaztambide, foi fator de grande determinação no caso de invenção do Caribe, já que é das ambigüidades geradas no interior da política imperial americana a razão das variações acerca deste processo de invenção.

E explorar as ambigüidades por detrás das políticas internacionais norte americana é o tema central do terceiro ensaio: “El imperio ‘bueno’ del 98”. Pois ao mesmo tempo em que o final do século XIX foi marcado por projetos políticos de cunho expansionista, encontrava-se também mostras de uma ação não imperialista, defendida como verdadeira representante do ideal republicano. São ambigüidades deste tipo que se alocam no cerne da campanha norte americana rumo à ascensão econômica e que foi aplicada aos vizinhos do Sul, continentais e antilhanos. O conceito de ambigüidade, como atributo qualitativo da política externa norte americana, marca de maneira decisiva a postura específica de seu imperialismo.

Em “La Buena vencidad y populismo”, como o título mesmo diz, trata das relações da política internacional norte americana, posta em prática no terço inicial do século XX e alterada com o término da Segunda Guerra Mundial, com a práxis política do populismo. Ressaltando a particularidade do populismo caribenho, seguindo assim o exemplo do populismo de Porto Rico, este ensaio propõe a hipótese de como os efeitos da política de boa vizinhança fizeram valer no modo de organização interno dos países atingidos por tal postura ambígua.

Entretanto, passada a Segunda Guerra Mundial e com a efetivação do poderio norte americano, a política da boa vizinhança cede lugar à política do bom sócio. Essa transição é o tema dos ensaios “Hacia uma historia social de las relaciones interamericanas: El camino del desarrollismo: 1946-1960” e “Estados Unidos, la idea del desarrolismo y el Caribe: Los orígenes”. A política do bom sócio nada mais é que a adaptação da política externa norte americana no momento em que esta nação acede ao topo econômico da economia mundial. O projeto desenvolvimentista que esta política visa suplantar nos sócios do sul adapta-os aos moldes do capitalismo mundial integrado sob a égide do desenvolvimento econômico, ajustando de forma a assegurar ainda mais a supremacia americana.

O tema do ultimo ensaio, “Identidades internacionales y cooperación regional en el Caribe”, é o modo como a política do bom sócio criou um imaginário internacional que abaixo suas variações locais possibilitou a criação de identidades multiculturais, o Gran Caribe e o latinoamericano.

Desse modo o que o trajeto destes ensaios evidenciam é como as políticas internacionais não são exercidas de forma aleatória, e sim são efeitos da historicidade que perpassam as formações históricas. E também que não é simplesmente a modulação dos estratos interiores de uma sociedade por um fora, e sim o que se dá é um complexo jogo no qual relações de forças heterogêneas se interagem incessantemente.

Leonardo de Melo Rodrigues


GAZTAMBIDE-GEIGEL, Antonio. Tan lejos de Dios… Ensayos sobre las relaciones del Caribe con Estados Unidos. San Ruan: Edicines Callejón, Porto Rico; 2006. 242 p. Resenha de: RODRIGUES, Leonardo Melo Rodrigues. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.8, n.15, p.283-287, 2007. Acessar publicação original. [IF].

 

Représentations des Noir(e)s dans les pratiques discursives et culturelles em Caraïbes | Victorien Lavou Zoungbo

A obra Représentations des Noir(e)s dans les pratiques discursives et culturelles en Caraïbes editado por Victorien Lavou Zoungbo, Coordenador do Grupo de Etudes sur lês Noirs d´Amérique Latine (GRENAL), editada no ano de 2006 em Perpignan, France, reúne vários autores com artigos sobre os negros como sujeitos históricos em Cuba, Costa Rica, Colômbia, México, Argentina e Brasil. No prólogo o editor destaca as dificuldades para escrever sobre representações negras quando existem estereótipos, ideologias que dominam esses discursos. A análise dos autores que trabalham com a temática passa pela desconstrução dos discursos, transformando-se em um complicador para o especialista.

Nos primeiros quatro artigos da coletânea, três desenvolvem suas idéias em torno ao conceito transculturação de Fernando Ortiz.

A cubana Nancy Morejón defende a atualidade do conceito em “Para una poética de los altares”, no entanto, este é criticado pelas autoras Danielle Ada Ondo em “De la transculturation dans Paradiso de José Lezama Lima et dans Lês três tristes tigres de Guillermo Cabrera Infante” e Amandine Semat em: ”Identities dans la Caraïbe, transculturation et creolisation: Points de repére”. Apoiados nos ensaios e conceitos de Edouard Glissant, as autoras assinalam o caráter fixo do conceito transculturação e sua familiaridade com um outro conceito muito criticado na obra, mestiçagem.

Este último tem servido para ocultar a historicidade do negro e também para mascarar as teorias do branqueamento, O artigo de Victorien Lavou Zoungbo, ”Représentations identitaires e creolisation en Caraïbe” questiona as construções do Caribe pelos latinoamericanistas brancos que procuram ocultar a presença histórica do negro. Destaca o conceito crioulização face a mestiçagem e crioulidade. Para o autor este conceito permite estudar a relação afastando-se dos enfoques generalizantes e extremos, tanto o da latinidade quanto o da negritude. Faltou, porém, explicitar melhor esta questão tão debatida e que resulta de grande interesse para o Brasil, cuja identidade caribenha é reconhecida por todos os autores do volume. A neo América, sustantivo utilizado por Glissant, é a Afro América ou o Caribe, que abrange Brasil, as Guianas, Colômbia, Venezuela, uma grande parte de América Central e de México, sul de Estados Unidos, além das ilhas.

Cinco artigos estudam o espaço do negro em Costa Rica: “Sur le ritme d´ un calypso, analyse du roman Calypso de la costariciense Tatiana Lobo (1996)” de Brigitte Robert; “Manuels scolaires de lecture au Costa Rica: pratiques et enjeux de la représentation dês Noir(e)s”, de Marlene Marty; “Los cuatro espejos de Quince Duncan et Limon blues d´Ana Cristina Rossi ou une double recherche identitaire dês noirs constariciens” de Mariannick Guennec; “Medición com referencia a normas: declaracion pública de un naufrágio educativo” de Lady Meléndez Rodríguez e “Limon blues: Uma novela de Ana Cristina Rossi” de Iván Molina Jiménez. Todos estes artigos recriam a ausência dos negros de Limón, Costa Rica, na literatura e ne historiografia. Alguns estudam o papel da educação formal no processo de estigmatização, na marginalização e na reprodução da pobreza nestas comunidades caribenhas. Mais grave ainda, é a submissão destas populações à violência simbólica imposta pelo estado através da educação formal. Não é aceita pela escola pública a língua creole materna e que é a única usada para a comunicação nas comunidades negras de Limón. Outros autores estudam através de alguns romances históricos, a situação de exclusão dos negros, carentes de direitos cidadãos. Outro aspecto contido nos estudos citados é a invisibilidade a que ficam submetidos os povos que morão na região quando apenas se estuda a geografia da costa Atlântica de Costa Rica nos textos escolares.

Outros dois artigos estudam o Haiti desde visões diferentes.

O primeiro de Sabine Manigat “Se nommer, se qualificar-affirmation et alienation dans parler em Haiti une lecture historique” e ‘Le noir haitien dans la societé dominicain: l´exemplo da “Corte” de Milka Valentin-Humbert. Os conceitos negro e haitiano, segundo as autoras, têm servido de mola unificadora e de agente de ocultação da diferenciação no Haití. As definições em base a cor da pele, no Haiti, são eminentemente políticas porque marcaram as representações sociais. As imagens e a linguagem traduzem também a imagem auto-degradante que os discursos nascidos no Haiti, durante a luta pela independência, tentaram destruir. Essas permanências estão relacionadas às representações degradantes do negro, criadas no vizinho país, vinculando raça e nação. Os dominicanos negam qualquer herança africana na sua formação. Por sua parte, o trabalhador haitiano internalizou que o fenótipo predispõe a exploração, sem atender à presença de profundas diferenças sociais entre os haitianos, sejam de uma ou outra cor.

Juliette Smeralda em “L´interculturalidade comme strategia d´ascension sócio racial: l´exemplo du choix de partenaire féminin de l´homme noir” relaciona a criação das construções da inferioridade do negro ao colonialismo A presença das culturas afros em dois carnavais o de Barranquilla (Colômbia) e o de Salvador (Brasil) evocam os quilombos e a religiosidade, segundo as autoras Martha Lizcano e Joseania de Freitas no artigo “Afro carnaval no Caribe: Barranquilla (Colombia) e Salvador (Brasil)”; Rafael Perechalá Alumá no artigo “La salsa: síntesis de la música afroamericana” resgata a afroamericanidade do ritmo e atribui sua decadência aos controles exercidos por alguns grupos no exílio cubano. Em “Afromexicanité: quelques pieste pour une nouvelle lecture dês identités au Méxique” Sébastien Lefevre se utiliza do conceito traços-memória de Glissant para abordar a presença afro nas comunidades de Costa Chica no México. Entretando, o autor rejeita a idéia de um novo resultado, uma outra cultura, a mestiça responsável da invisibilidade das culturas afros. A leitura do romance “El interprete: sous lê signe du blanc et du noir” permite a Maryse Renaud-Mai penetrar no estudo das relações raciais na Argentina do século XIX e da herança negra que vislumbra-se não apenas no tango. A peculiaridade da discriminação racial no Brasil é estudada no artigo “Violência racial a subjetividade em discussão” de Nara Corte Andrade e Marcus Vinicius de Oliveira Silva.

E por último a maneira de épilogo, uma argumentada crítica ao antropólogo cubano Fernando Ortiz e ao seu conceito culinário ajiaco é desenvolvida por Victorien Lavou Zoungbo no artigo “Metaphore culinaire et discours sur l’ìdentité em Caraibe, um ethnocentrisme naturalisé. Lê cãs de F Ortiz à Cuba. Um état de la reflexion du GRENAL (instituição que agrupa a estudiosos sobre a temática afro americana.).

A obra no seu conjunto é de indispensável consulta para os estudiosos das temáticas afroamericanas.

Olga Cabrera


LAVOU ZOUNGBO, Victorien. (Ed.) Représentations des Noir(e)s dans les pratiques discursives et culturelles em Caraïbes. Perpignan: GRILAUP – Presses Universitaires de Perpingan, 2006. Resenha de: CABRERA, Olga. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.7, n.13, jul./dez., p.289-292, 2006. Acessar publicação original. [IF]

Revolução e Reforma | Vladimir Pomar

Apesar dos avanços recentes, boa parte da sociedade e da academia brasileira ainda possui um profundo desconhecimento ou distanciamento em relação à América Latina. Apesar da (suposta) especificidade brasileira, tal desconhecimento se relaciona ao distanciamento histórico de nosso país em relação à região alicerçado em diversas causas (políticas, econômicas, culturais, geopolíticas, …) que se acumularam ao longo do tempo.

Isto gerou o que Francisco de Oliveira denomina, para pensar tal relação, de “Fronteiras Invisíveis” que sempre foram mais sutis, profundas e efi cazes que as fronteiras oficiais1.

No caso de Cuba, além dos aspectos acima mencionados, e apesar do aparente número de publicações, tal desconhecimento é evidente e reforçado pelas barreiras ideológicas, a “eterna guerrafria”, que dificulta o desenvolvimento de análises objetivas, amplas e complexas da sociedade cubana contemporânea com suas características específicas, seus avanços e contradições, seus dilemas e desafios.

conhecimento da ilha caribenha e sua atualidade. Tal obra é parte da “Coleção Nossa América Nuestra2” da Fundação Perseu Abramo que, além da referência ao grande líder cubano José Martí e sua perspectiva latino-americana, pretende superar o desconhecimento e a escassa bibliografi a sobre a região e realizar um balanço sobre o denominado “ciclo progressista” na região em que conviveram os governos Lula e Dilma (Brasil), Chávez e N. Maduro (Venezuela), Evo Morales (Bolívia), Néstor e Cristina Kichner (Argentina) e Tabaré Vásquez e Pepe Mujica (Uruguai), Rafael Correa (Equador), Daniel Ortega (Nicarágua) e Mauricio Funes e Salvador Sánchez Cherén (El Salvador), além de Raul Castro (Cuba), dentre outros.

Desta forma, como mencionado na introdução do livro: “A coleção Nossa América Nuestra integra um programa de estudos e pesquisas mais amplo da Fundação Perseu Abramo (FPA), que visa reunir e produzir dados, análises e interpretações sobre os processos e signifi cados do que se convencionou chamar de “ciclo progressista” na América Latina. Deste programa participam estudiosos com longa trajetória acadêmica, profissional e/ou militante em relação à conjuntura da América Latina e Caribe. A Fundação pretende, assim, fomentar a investigação das dimensões políticas, sociais, econômicas e culturais desse processo, em cada país e na região tomada como um todo, avaliando também suas implicações geopolíticas, seja no que se refere aos projetos de integração regional, seja no que tange a sua inserção na ordem internacional” (POMAR, 2016, p. 11).

O livro sobre Cuba de Vladimir Pomar, jornalista, filho de comunistas e militante político com larga trajetória (atuou no PCB, PC do B e PT) e com uma produção expressiva voltada para a análise da China contemporânea, para a reflexão sobre a teoria e a prática de construção do socialismo e, finalmente, para o conhecimento da história do Brasil e da esquerda brasileira.

Esta obra procura compreender as características e impasses do processo revolucionário cubano, principalmente depois da queda do bloco soviético, pois como aponta na introdução: A partir daí, até 1998, Cuba fez um esforço sobrehumano para sobreviver ao naufrágio do socialismo de tipo soviético no contexto de uma forte ofensiva mundial de caráter neoliberal. Esse período, que os cubanos chamam de “especial”, foi suportado sem mudanças signifi cativas. Tal “modelo soviético” permaneceu mesmo quando a situação interna teve certa melhora, o que ocorreu quando emergiram governos progressistas e de esquerda na América Latina. No entanto, tendo em conta as difi culdades enfrentadas internamente pelos cubanos, a crise no mundo capitalista desenvolvido, a emergência da China e do Vietnã como países socialistas em forte desenvolvimento, bem como a transformação de antigas semicolônias africanas e asiáticas em países em processo de desenvolvimento industrial, fi cou evidente que o modelo de construção socialista em Cuba precisava de profundas reformas para enfrentar os novos desafi os nacionais e internacionais. Os debates sobre essas reformas, que os cubanos têm chamado de “atualização”, parecem representar uma retirada estratégica no contexto dos impasses da emergência progressista na América Latina, África e Ásia, do surgimento da China como país socialista de mercado e como grande potência econômica, da crise capitalista internacional e do reordenamento das relações com os Estados Unidos (POMAR, 2016, p. 19).

O livro, apesar de se constituir num estudo introdutório, possui inúmeros méritos que podem ser destacados. Em primeiro lugar, apresenta um excelente balanço histórico dos dois últimos séculos da história do país e da situação atuação do processo revolucionário cubano, apontando os efeitos da incorporação do modelo soviético, que se constitui numa herança que ainda continua difi cultando o desenvolvimento cubano e seu processo de atualização do modelo. Além disto, o trabalho apresenta, ainda que brevemente, os principais traços do debate cubano contemporâneo, discutindo as opções políticas e econômicas que são discutidas pelas lideranças e intelectualidade cubana, considerando diversos modelos para a sobrevivência, a renovação e o aprimoramento do socialismo cubano. Ainda, apresenta os elementos principais da aproximação com EUA, mostrando sua dinâmica e os desafi os para que a normalização das relações realmente ocorra e suas possíveis implicações para o destino do país. Finalmente, outro mérito da obra, refere-se a apresentação de documentos em anexo que, apesar de poucos, nos fornecem uma perspectiva interessante para refl etir sobre as origens, o desenvolvimento e o momento atual do processo revolucionário cubano com trechos de discurso de Raul Castro e trechos da obra de Juan Valdés Paz sobre as mudanças institucionais em curso, além de trechos das obras de José Martí, Fidel Castro, Charles Bettheleim e Ernest Mandel.

O trabalho também é importante pois ao refletir sobre os dilemas atuais que enfrenta tal processo e as ações que desenvolve conclui que: Em termos gerais, trata-se de realizar uma retirada estratégica do socialismo totalmente estatista para um socialismo de transição nacional em que o capitalismo, sob o comando do Estado socialista, deve contribuir para o desenvolvimento das forças produtivas e esgotar seu papel histórico em condições em que o mercado não seria totalmente burguês. Na União Soviética e no Leste Europeu essa retirada não chegou a ser realizada e o sistema socialista de tipo soviético afundou no mar do soerguimento do capitalismo. Na China e no Vietnã, cada um com suas características nacionais próprias, a retirada estratégica continua em curso, com os riscos e perigos que todo tipo de retirada envolve. Cuba parece haver sustentado o socialismo de tipo soviético até seus limites (…) (POMAR, 2016, p. 94).

Apesar dos aspectos acima destacados, o trabalho apresenta, mesmo considerando o espaço limitado e a amplitude das questões envolvidas, algumas limitações que, embora não prejudiquem sua qualidade, podem ser observadas. Em primeiro lugar, os dados apresentados não estão atualizados e alguns indicadores (crescimento econômico, desemprego, turismo, migração, indicadores de desigualdade, dentre outros) já possuem números mais recentes e alguns podem ser acessados no site da Ofi cina Nacional de Estatística e Informação (ONEI) ou da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL). No que se refere à luta revolucionária e a construção do socialismo, algumas dimensões (como a cultura, o debate econômico envolvendo Che Guevara) importantes foram marginalizadas e o papel das organizações revolucionárias deve ser analisado com cuidado, pois novos estudos tem rediscutido tal questão.

Neste sentido, também se destaca a ausência de algumas questões, relacionadas ao ciclo progressista, como a questão racial e mesmo a transparência e abertura do Estado á população.

Além disto, o texto, em certos momentos, faz uma generalização excessiva (POMAR, 2016, p. 71) e não consegue nomear certos autores que seriam importantes para todo leitor (POMAR, 2016, p.66 e 67). Por fi m, não consegue se aprofundar algumas críticas, como a relação entre Estado e propriedade privada, a relação com a Venezuela (e em que medida reproduziu o “modelo soviético”) e, mais complexo, a viabilidade (ou não) dos diversos aspectos (quais?) do socialismo cubano.

Em suma, trata-se de uma análise importante que, no entanto, somente pode ser compreendida com o aprofundamento de certas questões e a superação da “ilusão do progressismo e do socialismo do século XX” e deve ser lida, como todo bom trabalho, como um convite à refl exão, sem ufanismo. Ou seja, em tal etapa e considerando as especifi cidades de cada nação certamente ocorreram avanços em diversos planos (diminuição da desigualdade, maior autonomia no cenário internacional e fortalecimento da integração regional, crescimento econômico, melhoria de indicadores sociais, empoderamento de certos grupos, indígenas, por exemplo, dentre outros), no entanto, estas e outras transformações estruturais não podem ser tomadas como consolidadas ou nos induzir a pensar que a América Latina encontrou, fi nalmente, o caminho de democracia, desenvolvimento e justiça social. Há um longo caminho a percorrer e Cuba, assim como a esquerda, deverá se reinventar para tal processo tenha continuidade ou se aprofunde.

Finalmente, convém destacar que tal coleção é fundamental para todo leitor interessado em América Latina e que, embora incompleta, já nos fornece um quadro amplo e profundo da dinâmica e dos desafi os políticos contemporâneos na região.

Neste sentido, como mais um esforço para a superação das “fronteiras invisíveis”, já mencionadas, pode contribuir para uma efetiva refl exão (um “descobrimento”) e engajamento tornandose, portanto, leitura fundamental para todo latino-americano e para a construção de “Nuestra América” com desenvolvimento, justiça e igualdade. Boa Leitura!

Notas

1 Como aponta Oliveira: “A sugestão do título deste ensaio é de que fronteiras invisíveis entre o Brasil e América Latina sempre foram mais efi cazes para a falta de intercâmbio que as fronteiras ofi ciais. Terão perdido efi cácia tais fronteiras invisíveis? Parece que foram substituídas pela globalização como a nova fronteira, invisível, mas bem presente. (…) Enfim, num mundo de crescente complexidade, o projeto latinoamericano ainda não conseguiu se construir como outro pólo de poder, economia e cultura. Continuamos a erguer entre nós fronteiras invisíveis” (Oliveira, Francisco de. Fronteiras Invisíveis. In: Oito Visões sobre a América Latina. Adauto Novaes- org. São Paulo: Editora Senac, 2006, pgs. 23-48).

2. Além do livro sobre Cuba foram lançados os seguintes títulos: Bolívia de Igor Fuser, professor da Universidade Federal do ABC; Chile de José Renato Viera Martins, professor da Unila e presidente do FOMERCO; e Uruguai de Silvia Portela, socióloga e assessora de Relações Internacionais. Em breve serão lançados novos volumes discutindo outros países. Todos estão disponíveis no site da fundação: http://novo.fpabramo.org.br.

Marcos Antonio da SilvaUniversidade de São Paulo, USP, São Paulo, Br.


POMAR, Vladimir. Cuba: Revolução e Reforma. São Paulo: FPA, 2016. Resenha de: SILVA, Marcos Antonio da. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.17, n.33, p.227-232, jul./dez., 2006. Acessar publicação original. [IF]

El discurso de Gertrudis Gómez de Avellaneda: Identidad femenina y otredad | Brígida Pastor

A emergência das mulheres à condição de objeto e sujeito da história é um fato relativamente novo entre aqueles que se dedicam ao estudo e compreensão do passado humano. O recente e progressivo interesse pelo estudo das mulheres, nessa dupla acepção, enfrenta, entretanto, um grave desafio, representado pela escassez de fontes e vestígios acerca do passado feminino, produzidos pelas próprias mulheres, na medida em que as representações que dispomos sobre elas têm sido histórica e majoritariamente oriundas de fontes e discursos masculinos. Diante de tal quadro de escassez de fontes e de uma crescente preocupação interdisciplinar capaz de dar conta das diversas e complexas dimensões desse objeto, destacam-se, como uma das poucas e privilegiadas formas de expressão desse universo feminino, as obras literárias escritas por mulheres e que, em maior ou menor medida, abordam direta ou indiretamente a própria condição feminina. Tais obras literárias ganham ainda maior relevo quando geradas em contextos históricos de sociedades patriarcais nos quais as idéias do que hoje poderíamos chamar de feminismo não contavam ainda com quaisquer outras possibilidades alternativas de expressão. Esse é o caso, por exemplo, do contexto da produção literária de uma das mais importantes escritoras do meio cubano-espanhol do século XIX, a cubana Gertrudis Gómez de Avellaneda (1814-1873).

A propósito, um rico e instigante conjunto de ensaios sobre o discurso feminista de Gómez de Avellaneda, que partem da análise dos principais escritos pessoais—memórias, autobiografia e epistolário—e de algumas obras ficção literária da escritora cubana, encontram-se no livro El discurso de Gertrudis Gómez de Avellaneda: identidad femenina y otredad (Alicante, Espanha: Universidad de Alicante, 2002, 158p.), da investigadora espanhola Dra. Brígida Pastor, professora de letras hispânicas da Universidade de Glasgow, Escócia.

O primeiro ensaio desse livro, intitulado “La expresión feminista en la Cuba del siglo XIX: La mujer escritora”, divide-se em duas partes. Na primeira, a professora Pastor procura demonstrar como algumas características da sociedade cubana do século XIX exerciam uma forte repressão nas mulheres em geral e, em particular, como tal repressão repercutia no desenvolvimento das idéias liberais e feministas de um tipo especial de mulher que se forjou naquele momento: a mulher escritora e intelectual. Para a autora, algumas peculiaridades caracterizaram o feminismo hispano-americano: significou uma ameaça à tradição, uma negação dos valores da família e das convenções sociais. Exatamente por tal característica, esse feminismo se deparou com a forte resistência de uma arraigada cultura patriarcal, o que contribuiu para postergar o processo de emancipação da mulher, especialmente em Cuba. Por outro lado, em que pese a educação e a igreja católica terem fortalecido a cultura da submissão, mesmo nessas condições adversas algumas mulheres de status privilegiado, aspirando seu reconhecimento intelectual, se rebelaram contra essa sociedade discriminadora e patriarcal por meio da escrita. Contudo, conforme demonstra a autora, os escritos e a rebeldia dessas mulheres se viram limitados por sua própria condição cultural, refletindo o conflito entre a sua vocação literária e o seu papel de esposas e mães. Além do mais, essas mulheres se defrontaram com as barreiras impostas por um mundo literário de domínio exclusivamente masculino no qual a feminilidade e a intelectualidade eram tidas como inconciliáveis.

Na segunda parte desse primeiro ensaio, Brígida Pastor destaca ainda como a escritora cubana iniciou de forma pioneira o debate feminista tanto em Cuba como na Espanha. A partir da análise da autobiografia, das memórias e do epistolário de Avellaneda, Pastor demonstra como as suas idéias feministas emergiam de forma recorrente nas abordagens de temas como o do casamento, da educação e da marginalização da mulher, ressaltando como a escritora cubana combatia veementemente todas as convenções e imposições sociais no âmbito de cada uma dessas esferas. A autora destaca como Avellaneda já denunciava, em meados do século XIX, a prática do casamento forçado e a própria instituição do casamento, a desigualdade entre a educação de homens e mulheres e, ainda, a discriminação sofrida pela mulher dentro do mundo literário e da sociedade em geral. Tais preocupações feministas, ao serem expressas publicamente por Avellaneda, lhe renderam perseguições e discriminações por parte das autoridades e do meio social cubano, sendo que algumas de suas obras literárias foram proibidas sob a alegação de que portavam idéias subversivas ao sistema escravista, bem como idéias que atentavam contra a moral e os costumes da época. Gómez de Avellaneda converteu-se, assim, segundo Pastor, numa vítima dos próprios códigos sociais discriminatórios que atacava, numa exceção entre as demais mulheres escritoras de sua época, por ter radicalizado e levado mais adiante que aquelas a bandeira feminista, com a crítica contundente dos valores discriminatórios e excludentes da sociedade patriarcal cubana.

Sob o título “Autobiografia y discurso estratégico: la escritura ginocrítica”, o segundo ensaio do livro se propõe a demonstrar que várias das estratégias narrativas empregadas na elaboração das cartas autobiográficas de Gómez de Avellaneda encontram-se limitadas pelos recursos teóricos que estavam ao alcance da mulher cubana daquela época para expressar sua identidade em uma cultura patriarcal. O termo “ginocrítica” designaria, no caso específico, algo como a abertura dos textos escritos por mulheres para as distintas formas femininas de analisá-los. O grande desafio e objetivo de Avellaneda, segundo Brígida Pastor, seria inventar, pela escrita, uma identidade genuinamente feminina, alternativa à identidade cultural do sistema patriarcal. Ou, mais precisamente, seria transformar a mulher, de objeto, desprovida de linguagem própria, em sujeito, com linguagem e direito próprios. Mas, para tanto, era necessário enfrentar, quase sempre de forma contraditória, os rígidos parâmetros que a sociedade impunha à mulher. Avellaneda enfrentará esse desafio por meio de sua própria pessoa, no âmbito privado—o único então que lhe era permitido—, em sua Autobiografia y cartas.

Tais textos expressam, ao mesmo tempo, segundo Pastor, os conflitos da própria escritora com as normas da sociedade e como a força dessas mesmas normas praticamente impede Avellaneda de reagir e libertar-se totalmente delas por sua própria conta. Em outras palavras, expõem o dilema da escritora cubana que, embora inserida numa sociedade que considerava a mulher objeto, assumiu abertamente o desafio de revelar-se em sua linguagem como sujeito autônomo e essencialmente feminino. Em seu afã de apresentar-se como uma mulher diferente, a escritora acaba por se mostrar como um ser dividido, em constante tensão e contradição com as convenções sociais que a perseguiam e limitavam. Tal fenômeno foi denominado por algumas teóricas feministas de “ansiedade de autoria”, como um sintoma do medo que as escritoras do século XIX experimentaram ao se atreverem a adentrarem no âmbito do mundo masculino.

O primeiro romance de Gómez de Avellaneda, intitulado Sab, de 1841, que narra o caso de um amor impossível de um mulato escravo (Sab) por uma mulher branca, é o foco central do terceiro ensaio do livro, “Discurso de marginación híbrida: género y esclavitud en Sab”. Nele a doutora Pastor pretende demonstrar, distanciandose de algumas outras interpretações críticas dessa obra, que o propósito principal de Avellaneda não foi o de narrar uma história de amor mais ou menos conflitiva e nem o de apresentar uma denúncia premeditada contra a escravidão, mas sim o de afirmar sua ideologia feminista, estabelecendo o paralelismo entre a situação de escravidão da raça negra e o estado de marginalização da mulher branca no seio da sociedade burguesa. Ou seja, com este romance a escritora cubana procurou, de acordo com a autora, estabelecer uma analogia entre a posição dos escravos e a da mulher, constituindo-se um discurso de marginalização híbrida que vincula a posição e a condição social da mulher com a representação do “outro”, nesse caso o escravo. Uma construção híbrida em razão de que esse escravo negro, embora do sexo masculino, é apresentado como um personagem sexualmente ambíguo, uma mescla de masculino e feminino, na medida em que se identifica com a condição social da mulher e questiona, ainda que de forma indireta, os valores patriarcais. Mas também porque esse escravo, na verdade, não é totalmente branco, nem completamente negro, sendo mais uma mescla de branco e negro e de africano e europeu. Por tudo isso, trata-se, segundo Pastor, de um personagem que desafia o discurso masculino dominante. Ainda que Avellaneda não tenha sido obcecada pelo ideal abolicionista, o personagem do escravo teria sido mais um meio ou um instrumento do qual a autora se serviu para proclamar os direitos da mulher e seu desejo de igualdade social.

Dividido entre duas realidades sociais, o escravo Sab não pertencia a nenhuma: se encontrava, como as mulheres, à margem da sociedade, em uma posição de subordinação, carente de poder e de voz própria.

Por fim, no quarto e último ensaio do livro, intitulado “Discurso identitario femenino em Dos Mujeres”, Brígida Pastor analisa outro romance de Avellaneda, Dos Mujeres (1842). Para a autora, este romance, mais do que uma simples crítica à instituição do casamento, representa um dos primeiros discursos feministas em língua castelhana que ataca as convenções sociais que discriminam e oprimem a mulher. A obra narra a história de duas mulheres (Luisa e Catalina) que representam os estereótipos bipolares comuns na sociedade patriarcal cubana: de um lado a mulher “anjo”, tradicional, submissa, carente de toda identidade própria, perfil que caracteriza a maioria das mulheres nesse contexto; e, de outro, a mulher intelectual, culta e liberada, rebelde, pouco convencional, tida pela sociedade como um “monstro”. Para a autora, com esse romance, Avellaneda, identificando-se claramente com a personagem intelectual e transgressora, oferece duas imagens diferentes da mulher do século XIX em sua constante batalha pela expressão de sua própria identidade feminina. Em que pese as diferenças óbvias entre esses dois estereótipos de mulheres, ao longo da narrativa Avellaneda faz com que ambas as personagens terminem por buscar, contraditoriamente, suas respectivas identidades genuinamente femininas.

Com esses quatro ensaios de crítica literária, a professora Brígida Pastor—com a autoridade de uma das mais respeitadas especialistas na obra de Gertrudis Gómez de Avellaneda—nos brinda com um conjunto de reveladoras imagens da realidade feminina do contexto sócio-cultural hispano-americano do século XIX. Analisando e confrontando, de forma minuciosa e crítica, os escritos públicos e privados daquela que foi sem dúvida uma das mais importantes escritoras do mundo hispano-americano do século XIX, Pastor revela, com uma invejável sensibilidade e requinte de detalhes, os traços fundamentais que caracterizaram e marcaram o discurso feminista de Avellaneda. Assim, este livro constitui mais um bom exemplo de como a literatura, sobretudo quando esta constitui uma das raras alternativas e possibilidades de expressão das mulheres sobre suas próprias condições de vida, pode se constituir numa riquíssima via ou caminho para se compreender esse intrincado, complexo e contraditório universo feminino. Tendo como veículo e instrumento a obra literária de Avellaneda, o que Brígida Pastor capta e nos revela é, no fundo, a experiência reprimida e encoberta vivida pelas mulheres cubanas em meados do século XIX e, sobretudo, as entranhas e contradições de um mundo social discriminador e excludente, no qual praticamente todas as suas representações eram limitadas e moldadas por uma arraigada cultura patriarcal e discriminadora.

Eugênio Rezende de Carvalho Universidade Federal de Goiás.


PASTOR, Brígida. El discurso de Gertrudis Gómez de Avellaneda: Identidad femenina y otredad. (Cuadernos de América sin nombre, Centro de Estudios Iberoamericanos Mario Benedetti, 6). Alicante: Universidad de Alicante, 2002, 158 p. Resenha de: CARVALHO, Eugênio Rezende de. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.6, n.11, p.285-291, jul./dez., 2005. Acessar publicação original. [IF]

 

From Bomba to Hip-Hop. Puerto Rican Culture and Latino Identity | Juan Flores

During the first part of the 1990s, a considerable number of publications on the “Hispanic” or “Latino” experience emerged, but Juan Flores’ book, From Bomba to hip-hop is one of the few scholarly studies to reveal the complexities of Latino identity. In addition, it is a homage that constitutes one of the few pioneer pieces of research on Puerto Rican culture and artistic expression. The title of this book, From Bomba to Hip-Hop, is one that catches the reader’s attention and is more than a phonetic and musical juxtaposition of words. I will try to define this phrase, adopting the author’s definition: “A celebration of the continuity of Puerto Rican Culture” (p. I). Juan Flores’ study lucidly traces the evolving distinctiveness of Puerto Rican culture in both New York and Puerto Rico and the title attempts to combine these locations. Thus, “bomba” refers to the folkloric origins of Puerto Rican popular dance and music, which is the ancestor of the “hip-hop” music that emerged in 1970s and 1980s in the marginalised areas of New York, becoming a prominent feature of Puerto Rican youth culture in New York.

The book is structured in ten rather brief chapters, with a short introduction and a concluding Postscript. The introduction, though brief and anecdotal, is based on Flores’ observations of an event entitled “From Bomba to Hip-Hop” at his Hunter College alma mater.

It addresses many of the issues that the subsequent chapters of the book will deal with and invites us to read more. Although the book does not have a clear connecting thread, each of the chapters is written clearly and leads in to the next, allowing the reader to enjoy a progressive understanding of the main theme of the book.

At the very beginning of the book the reader is introduced to the notion of “popular culture” in a clear manner, Flores defining the concept “popular” as that belonging to the majority of people (i.e. poor and low middle classes, the common people). Flores distinguishes the different meanings that “popular” has acquired over time, convincingly showing how the term has evolved from its earlier definition as the survival of traditions or folklores, to its current definition of “mass culture”.

The most interesting aspect of this scholarly researched book is the account it gives of how Puerto Rican identity has developed in New York, providing an exhaustive description of its national roots, cultural space, musical and literary expressions. Flores continues to argue consistently the shaping of Puerto Rican identity is not defined by geographical, linguistic or behaviour models, but by a close kinship with its origins, the people and the culture that define the genuine self, rather than being defined by its condition in the Diaspora. An important characteristic of this study is the emphasis placed on the Puerto Rican’s experience of being “in between” two cultures, leading in Flores’ opinion to “the possibility of an intricate politics of freedom and resistance” (p. 55). Like Díaz Quiñones in La memoria rota, which analyses the construction and breaking of Puerto Rican nation, Flores emphasises the continuity of the Puerto Rican cultural development in the Diaspora. He gives the eloquent example of the emergence of Spanglish in Puerto Rican culture, as a symbiosis between language and place, between identity and memory. The main idea proposed here is that the apparently fragmented image of Puerto Rican culture is actually connected by a constant process of re-construction, where unity and diversity maintain a robust Puerto Rican identity that is bond by its historical memory.

The book reveals how the cohabitation of diverse ethnic minorities in the Diaspora leads to the emergence of hip-hop, via the interaction between Puerto Ricans and Black youngsters within the shared context of New York, creating a common space for a fusion of African American and Latino musical expression. However the author describes how “this fusion” has obscured Puerto Rican cultural and musical heritage. He supports this hypothesis by referring to the neglect of Puerto Rico’s native Spanish language and to how Latin styles have been subsumed by the American label. Flores expands this issue by highlighting how bands and singers of Cuban, Panamanian, and Ecuadorian origins in the USA have gained fame and popularity as Spanish-language reggae-rap in the Caribbean and Latin America. Whereas New York Puerto Ricans with their hip-hop backgrounds have become dispersed and have lost their Puerto Rican identity. Flores stresses how the prevailing racial hierarchy with which Puerto Ricans find themselves confronted in the American Diaspora can explain the invisibility of this Hispanic community.

The book includes a number of case studies to illustrate its main points, as well as a valuable selection of contemporary Puerto Rican and other Latino rap songs. These lyrics illustrate the innovation and heritage of minorities such as Puerto Ricans, despite their apparent invisibility in New York. In his analysis of the complexities of Latino life, Flores shows that although Latino Studies is a growing area in further education institution in the USA, this has involved a complex and arduous process of development. In other words, the struggle of Latino people to adapt to in the colonial context of North America has been paralleled by the academic struggle encountered in establishing Latino Studies as an independent discipline. In an admirably challenging manner, Flores proposes that Latino Studies should be integrated urgently into academia as a social movement and in the name of human rights. He adds that this also will address the need to awaken awareness of historical memory among Puerto Ricans and other Latino immigrants.

This book undoubtedly represents a comprehensive study of contemporary Puerto Rican culture and is a valuable contribution to the field. Although several studies have already been carried out, these are restricted to mainstream issues in Latino culture. Flores’ book emphasises the complex particularities of Puerto Rican cultural experience and is an insightful exploration of the complexity and contradictions of contemporary Puerto Rican and Latino culture, informed by a contemporary cultural theory. From Bomba to hiphop is a well-researched and valuable work that uncovers many enigmas of “Latinos” in New York and invites us to re-evaluate the issue of Puerto Rican culture and identity in the United States. It undoubtedly provides the groundwork for important studies on ethnic minorities yet to come.

Brígida M. Pastor University of Glasgow.


FLORES, Juan. From Bomba to Hip-Hop. Puerto Rican Culture and Latino Identity. NewYork: Columbia University Press, 2000, 265p. Resenha de: PASTOR, Brígida M. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.6, n.11, jul./dez., 2005. Acessar publicação original. [IF].

Aguaita. Revista del Observatório del Caribe Colombiano / Observatório del Caribe Colombiano

Aguaita. Revista del Observatório del Caribe Colombiano. Cartagena das indias: Observatório del Caribe Colombiano. n. 10, jun. 2004. Resenha de: RAMOS JR., Dernival Venancio. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.5, n.9, jul./dez., 2004. Arquivo indisponível na publicação original. [IF].

América para a humanidade: o americanismo universalista de José Martí | Eugênio R. Carvalho

CARVALHO, Eugênio Rezende de. América para a humanidade: o americanismo universalista de José Martí. UFG, 2003. Resenha de: SANTANA, Marcio Antonio. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.4, n.8, jan./jun. 2004. Arquivo indisponível na publicação original. [IF].

MELLA: una historia em la política mexico-cubana | Olga Cabrera

CABRERA, Olga. MELLA: una historia em la política mexico-cubana. México: Universidade de Guadalajara, 2002. Resenha de: RIBEIRO, Fernando Rosa. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.4, n.7, jul./dez., 2003. Arquivo indisponível na publicação original. [IF].

Black Imagination and the middle passage | Maria Diedrich, Henry L. Gates e Carl Pedersen

Danilo Rabelo

DIEDRICH, Maria; GATES, Henry Louis; PEDERSEN, Carl. Black Imagination and the middle passage. Oxford University Press, 1999. 320p. Resenha de: RABELO, Danilo. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.3, n.6, jan./jun., 2003. Arquivo indisponível na publicação original. [IF]

 

Nossa América: A Utopia de um Novo Mundo | Eugênio R. Carvalho

Com o titulo Nossa América: a utopia de um Novo Mundo, o historiador Eugênio Rezende de Carvalho nos apresenta o pensamento de José Martí, grande poeta, escritor de uma obra bastante densa e também revolucionário cubano. Sem dúvidas, uma das figuras substantivas do pensamento americanista do século XIX. Eugênio Carvalho há alguns anos vem trilhando pelos caminhos tortuosos do estudo da História das idéias e do pensamento latino-americano, tendo como foco central de sua atenção a produção intelectual de José Martí. Este livro é sua primeira obra, permitindo identificar um escritor refinado com uma linguagem densa mas sumamente acessível ao público universitário e geral. Trata-se de uma obra síntese em que o autor se propõe a nos apresentar as premissas básicas que estruturaram o pensamento de José Martí sobre o mundo latino-americano; principalmente no que concerne ao seu projeto identitário de construção de uma América que fosse ‘Nossa’. Seu livro merece destaque por introduzir a obra de José Martí no mercado editorial nacional; vindo desta forma, suprir uma carência de estudos desta figura importantíssima do pensamento latino-americano.

Pela leitura da obra, percebe-se que o projeto contido em Nossa América de José Martí é a proposta da construção de uma indentidade continental, expressão de um desejo de integração que se estrutura na convicção de que se possui um destino próprio, diferenciado porém comum. É um desejo que funciona como fator de identificação. É o nome de uma ‘comunidade imaginada’, e imaginada não por irreal e sim por ideológica, por ser sonhada, cobiçada. O discurso americanista de Martí representa uma ação a nível real e simbólico, contribui na produção de uma realidade e é a expressão de um imaginário social, um desejo e uma identidade, um desejo de identidade. E como todo produto social e cultural, o americanismo tem sua história, afinal, as condições de enunciação do discurso, que permitiram tanto sua gestação quanto sua difusão são de suma importância a qualquer estudo histórico. É o chamado contexto, tão caro a nós historiadores, e que nos permite penetrar no diálogo que o escritor estabelece com as demandas de seu tempo, com suas carências que são também as carências de sua sociedade, e, acima de tudo nos possibilita buscar quais são os interlocutores deste autor – qual o debate de idéias que está sendo travado, as visões e projetos que estão em combate. É exatamente por este caminho que nos conduz a leitura do livro de Eugênio Carvalho.

O autor busca e consegue proporcionar uma visão panorâmica do século XIX, século das independências dos países da América Latina, contexto social e político propiciador do surgimento de projetos utópicos.

Afinal, é o momento em que a identidade representa uma preocupação premente para a intelectualidade latinoamericana. Para a elaboração de um projeto é condição imprescindível o diálogo com os antecedentes históricos para se estabelecer a diagnose do período que se vive; uma espécie de inventário para identificar os erros e desvios tendo em vista apontar e legitimar o caminho a seguir para mudar o estado das coisas.

Estas são algumas das questões tratadas no capítulo primeiro de Nossa América. Eugênio Carvalho mostra qual foi o diagnóstico estabelecido por José Martí, e como seu discurso se estrutura no sentido de revelar os perigos que rondavam a América Latina.

José Martí, dono de uma narrativa permeada por um emaranhado abundante e complexo de figuras literárias e metafóricas de riqueza ímpar, faz uso destas últimas para nomear os perigos que assolavam o mundo latinoamericano. A estes ele nomeou de tigres, os de dentro e os de afuera, tigres que deveriam ser o objeto primeiro das preocupações dos homens de nossa América, pois, traiçoeiros, poderiam estar a espreita atrás de qualquer árvore. A segunda categoria de tigres, os de fora, é identificada pelos Estados Unidos (Martí é um dos primeiros a identificar o perigo que representava para a America Latina o espírito imperialista deste país). Já os primeiros, são os tigres internos, os fantasmas pessoais do mundo latinoamericano, ele aponta como sendo o produto da herança colonial, o localismo também chamado de espírito aldeão, a falta de raízes fruto de um sentimento de inferioridade, a importação cega de modelos e formas alienígenas, os falsos eruditos ou letrados artificiais, etc.

Eugênio Carvalho também procura trabalhar o processo da ‘evolução do pensamento’ de José Martí rumo a uma tomada de consciência maior sobre a realidade da América que ele propunha nossa.

Nos apresenta quais foram as experiências significativas para a configuração desta percepção consistente, assim como, exibe as teorias sociais e filosóficas em voga no período. Teorias que se propunham tanto a interpretar quanto a modernizar a América Latina, tirando-a do estado de bárbarie e levando a se constituir como civilização. Estas representavam o outro projeto de identidade com o qual Martí se bateu e debateu por considerá-lo incompatível com a realidade latinoamericana – um programa que era o fruto do desconhecimento dos reais problemas da América Latina.

No capítulo II, sob o título, A proposta, o autor mostra as figuras recorrentes no discurso martiano, a retórica construída para ilustrar a especificidade do mundo latinoamericano, que por sua vez demandava a busca de um caminho próprio e não a cópia de modelos oriundos de outra realidade histórica. A utopia martiana é considerada uma utopia realista por estar ancorada numa realidade concreta, em um profundo conhecimento das limitações e possibilidades efetivas existentes. O autor busca mostrar esta lucidez do pensamento de José Martí, clarea algumas questões que poderiam se apresentar contraditórias no pensamento de Martí, enfatizando assim possuir grande intimidade com seu objeto. Neste capítulo o autor demonstra a preocupação com os conceitos utilizados por Martí, como o de Nossa América, América Latina e modernidade.

Frente a uma realidade confessadamente fragmentada o exercício ordenador de Martí busca defender a América dos tigres tanto internos quanto externos. Defende a idéia da unidade latinoamericana por via de dois níveis interligados. O primeiro seria a necessidade de defesa frente a um inimigo comum, consubstanciado na ameaça de intervenção estrangeira (norteamericana); o outro ponto, foi o que José Martí designou como sendo a unidade de alma e espírito (acreditava que existia um espírito prórpio latinoamericano). Para ele, conseguir a sobrevivência de Nossa América só seria possível se hovesse a unidade destes dois níveis; uma vez que, estes representavam o componente sentimental essencial na consolidação de um projeto de “identidade-nós”. Um projeto que despertasse o sentimento de co-pertencimento numa realidade que se apresentava fragmentária, propugnando um passado e um futuro semelhantes.

Com relação ao conceito de identidade em Marti, este pregava a busca de equilíbrio entre a parte e o todo, entre a especificidade da cultura latinoamericana e sua integração a uma totalidade cultural a nível universal. Não é contra o diálogo com outras culturas (o que ele denomina de enxertos), mas defende a necessidade de preservação das raízes culturais próprias (o tronco). Considerava que o mundo latinoamericano muito teria a dar em contribuição às outras culturas, desde que despertasse do estado de inautenticidade e apatia em que se encontrava.

No capitulo terceiro, Eugênio Carvalho analisa a questão do sujeito que deveria encabeçar o projeto utópico elaborado por Martí, o chamado homem natural. Como nos capítulos anteriores o autor procura mostrar como foi ocorrendo a evolução do pensamento de José Martí até a definição final de homem natural. Para ele, este seria o mestiço, uma espécie de síntese superadora do europeu e do indígena autóctone, síntese esta que posteriormente englobaria os elementos de origem africana.

Todavia, como é apresentado pelo autor, quando Martí fala de mestiçagem, não está se referindo no sentido biológico, uma vez que ele é contra o conceito de raça. Quando ele usa tal conceito, está se referindo a uma comunidade cultural, a mestiçagem seria, portanto, uma mistura de culturas, fruto de um processo contínuo de enxertos e depurações.

Na época estava muito em voga a teoria da eugenia, como representante maior desta no continente temos a figura de Domingos Faustino Sarmiento (1811-1888), este considerava o elemento estrangeiro como sendo a figura responsável pela purificação do sangues do povo latino assim como alavancador da civilização moderna nos trópicos. Martí, ao contrário via com certa cautela esta migração, não que a ele fosse indesejada, mas considerava outro o protagonista da nova América. Para ele, o elemento indígena seria uma figura de suma importância para o futuro do continente, este mesmo elemento que na atualidade estava dormido, mas que uma vez desperto (livre dos vícios da escravidão e servidão) e instruído, assumiria o papel de verdadeiros sujeitos históricos do munto latinoamericano.

Como podemos observar, Eugênio Carvalho nos coloca algumas questões interessantes sobre o fenômeno das identidades. Perguntas bastante pertinentes a quem se aventura no campo da história das idéias e do fenômeno da constituição de identidades. Questiona sobre a produção dos discursos e os envolvidos em tal processo, sobre quem nomeia e quem é nomeado, porque silenciado (sem voz), assim como da autoridade e legitimidade de tal discurso. O realismo utópico de José Martí, baseado em um criterioso diagnóstico e em uma proposta/projeto de igual forma lucido muito tem a contribuir para uma reflexão maior sobre as especificidades/identidades das sociedade latinoamericanas. Martí buscou descobrir o homem latinoamericano a partir de uma visão própria, não com os olhos do outro, não com o pensamento impregnado de teorias (pré-conceitos) alienígenas, fruto de outras realidades sociais e históricas.

Constitui um truísmo o fato de que quando o historiador se volta para o passado esta viagem é levada a termo tendo em vista a busca de respostas às inquietações e carências do presente. Partindo desta premissa, a obra aqui resenhada mostra uma grande relevância por tratar de questões que são bastante caras à atualidade histórica. A identidade é uma questão central das sociedades modernas, a fragmentação do sujeito, o desaparecimento das fronteiras culturais devido aos meios de comunicação de massa, a sociedade de consumo e os avanços imperialistas reclamam uma reflexão maior sobre este fenômeno.

Constitui uma necessidade para que estas possam continuar existindo como unidades autônomas ainda que inter-dependentes.

Como José Martí pregava, “injértese en nuestras repúblicas el mundo; pero el tronco há de ser el de nuestras repúblicas”. Mas para que os enxertos realizem sua função de desenvolver/fortalecer a planta é necessário que se conheça bem o solo que esta habita. E, da mesma forma que é necessário distinguir as características daquela que irá acolher o enxerto também o é para a que será enxertada.

A obra aqui apresentada constitui material rico que muito estimula uma reflexão maior quanto às especificidades do mundo latinoamericano e seus projetos identitários. O diagnóstico feito por José Martí no século XIX pode facilmente ser transposto para o atual momento histórico sem incorrermos em muitos anacronismos. Afinal, os tigres, os de afuera e os de adentro estão nitidamente materializados e seus perigos apresentam-se cada vez mais reais e concretos. Quanto ao entorpecimento do homem latinoamericano, este ainda constitui um dado de nossa dura realidade que reclama por mudanças iminentes.

Márcio Antônio de Santana – Mestrando em História pela Universidade Federal de Goiás. Pesquisador do Centro de Estudos do Caribe no Brasil.


CARVALHO, Eugênio Rezende de. Nossa América: A Utopia de um Novo Mundo. São Paulo: Editora Garibaldi, sd. 106p. Resenha de: SANTANA, Márcio Antônio de. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.2, n.4, jan./jun., 2002. Acessar publicação original. [IF].

Caribe | UFMA | 2000

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A Revista Brasileira do Caribe (São Luís, 2000-) tem como foco o estudo das culturas Afro-Americanas na sua relação com outras culturas e com suas matrizes africanas. A missão da revista está orientada pela compreensão da relação Brasil/Caribe.

É uma publicação do Grupo de Pesquisa de Estudos Caribenhos e do Programa de Pós-Graduação em História da UFMA.

Periodicidade semestral.

Acesso livre

ISSN 1984-6169 (Online)

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