Historiografia: práticas de pesquisa / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2014

A proposta temática do dossiê deste número da revista Clio se inscreve no universo crítico das práticas de pesquisa e de escrita da história. O seu objetivo é apresentar as produções do conhecimento, em temporalidades e espacialidades diversas, abertas às análises que articulam a teoria – um diálogo profícuo com diversos textos no campo das humanidades – e a metodologia em seus aspectos peculiares.

Os artigos que compõem este dossiê problematizam uma temática, relacionando-a às questões e propostas metodológicas que se apresentam como resultado de pesquisas. Nesse sentido, as experiências com o “fazer história” possibilitam também explorar modos narrativos diversos. Nessa trilha, dialogam com vários estudos no campo da historiografia, sinalizando o seu lugar social e institucional, trazendo a contribuição fundamental de uma vasta e especializada bibliografia, bem como a pesquisa das fontes documentais. Trata-se de textos que privelegiam a reflexão acerca dos procedimentos metodológicos com os quais operam, delineando aproximações e afastamentos para com as análises historiográficas, atentos àquilo que o historiador mexicano Luís Gerardo Morales Moreno tão bem observa:

La historiografía contemporánea se sitúa en esa trama compleja de relaciones entre las formas del relato histórico y su legitimación mediante instituciones y comunidades que actúan dentro de una sociedad determinada. 1

Nessa perspectiva, os textos aqui relacionados partilham de reflexões que expressam as indagações dos historiadores quanto à produção do discurso ligado à sua prática, situada num campo complexo de relações e legitimações. É assim que convergem ao observarem a construção do tema, a prática da pesquisa e os procedimentos metodológicos que operam ao analisar os documentos e compor a escrita com as citações e as referências bibliográficas.

Há ainda outro aspecto fundamental a assinalar. Os artigos ao focalizarem os assuntos específicos, que cobrem problemas e questões, indagam o presente do historiador e o seu ofício, orientados pelas regras do campo historiográfico. Diante disso, os trabalhos apresentados no dossiê são reveladores de um grande esforço intelectual para a realização de leituras e de procedimentos metodológicos que constituem a matéria da escrita, tecendo pouco a pouco o relato historiográfico na difícil arte de significar o passado no presente.

Compartilhando uma longa experiência de pesquisa e reflexão com o trato de documentação oral, o Prof. Gerardo Necoechea Gracia (Instituto Nacional de Antropología e Historia / México) abre o dossiê com um artigo em que se propõe a apresentar Una propuesta para el análisis y la contextualización de la entrevista de historia oral. Recorrendo a múltiplos exemplos extraídos de suas pesquisas, e tomando como ponto de partida o princípio de que “la historia que recurre a la memoria rinde sus mejores frutos cuando sitúa el recuerdo en el tiempo y el espacio”, o autor esmiúça um bom número de procedimentos e cuidados metodológicos que evitem reduzir o rememorar a um fim em si mesmo. Fundamentalmente, o aporte metodológico que o autor sustenta se lastreia na idéia de que “es necesario primero llegar a una comprensión cabal de la entrevista, antes de despedazarla acorde a temas relevantes para la investigación”. Devendo-se cuidar, para tanto, de “comprender las relaciones lógicas y de sentido que dan integridad al documento, de manera que no violentemos el espíritu con que fue creada la fuente oral”. Tudo isto, diz-no o autor, é precisamente o que possibilita “colocar el recuerdo en su contexto y así realizar la relevancia histórica de la experiencia que narra el entrevistado”, bem como, compreender mais precisa e adequadamente “la intención e interpretación que el entrevistado imprime a su recuerdo”. O texto, assim, oferece-se ao leitor quase que como um pequeno manual no lidar com depoimentos orais.

Em História, memória e sujeito: a narrativa histórica e as reapropriações do sujeito, o Prof. Marcelo de Sousa Neto (Universidade Estadual do Piauí) se propõe a perscrutar as novas abordagens que a historiografia brasileira tem dedicado aos estudos biográficos. A partir da análise do caso de figura de destaque no mundo político e intelectual do Piauí no séc. XIX, Pe. Marcos de Araújo Costa, o autor dirige suas reflexões menos à figura histórica do Pe. Marcos do que às escolhas que possibilitaram a criação de uma determinada memória sobre ele, em detrimento de outras tantas possíveis. Ao chamar a atenção para essa operação, o autor não faz outra coisa que evidenciar algo de suma importância para qualquer empreendimento historiográfico: que toda construção narrativa se faz por meio do recurso ao apagamento e silenciamento de inúmeras outras. Nos termos de Certeau, autor reiteradamente invocado ao longo do texto, trata-se de evidenciar a “topografia de interesses” que organiza as narrativas e fixação de memórias as mais diversas.

O artigo escrito pela Profa. Patricia Pensado Leglise (Instituto de Investigaciones Dr. José Ma. Luis Mora / México), El acontecer histórico en el relato de vida, mais uma vez nos oferece a oportunidade de adentrarmos num universo de reflexões pautado por pesquisas cujo recurso documental privilegiado é o das narrativas orais. Preocupada em situar o campo da história oral como modalidade de história social, a autora desenvolve seu argumento a partir de três problemáticas que, a seu ver, são as mais prementes e recorrentes entre pesquisadores que trabalham com testemunhos orais: o debate em torno das questões de memória e identidade; do tempo; e do papel do sujeito no fazer histórico. Tendo sempre o cuidado de invocar alguns dos autores mais relevantes para esse debate, a Profa. Patricia Pensado, entretanto, enriquece sobremaneira sua exposição mediante o recurso a extratos de relatos orais produzidos em suas pesquisas. Resulta deste esforço um texto marcado pelo propósito de aprofundar uma reflexão de caráter mais geral a partir de experiências efetivas de pesquisa. Em outras palavras, como conclui a autora, “el hecho de recordar, la oportunidad de que se suscite la memoria de su pasado mediante la historia oral le ofrece una nueva ocasión no sólo para la reflexión de lo vivido sino también para su interpretación contando con una visión más amplia y profunda de los tiempos aciagos que a todo los seres humanos experimentamos al vivir”.

Na sequência, o leitor encontrará o artigo da Profa. Virgínia Maria Almoêdo de Assis, Velhos papéis, novas histórias: a justiça para os órfãos na Capitania de Pernambuco, que focaliza as estratégias adotadas pela Câmara de Olinda quanto à utilização do legado pecuniário pertencente aos órfãos da capitania de Pernambuco, que se encontrava sob a sua guarda. A autora, historiadora especialista em paleografia, muito contribui neste texto para analisar as relações entre o conhecimento histórico e as práticas de leitura paleográficas, atendo-se a um conjunto de questões teóricas e métodos, que visa a escrita da história.

A seção dossiê se encerra com o artigo Três possibilidades metodológicas de estudo aplicadas à analise de casos em áreas de fronteira no interior do Brasil, de autoria dos Profs. Leonice Aparecida de Fátima Alves, Vitale Joanoni Neto e João Carlos Barrozo (todos da Universidade Federal de Mato Grosso), no qual são explorados variados recursos teóricometodológicos voltados para pesquisas dirigidas ao mundo rural, aos processos de migrações e ocupação do interior do território brasileiro, às políticas de colonização postas em prática pelo Estado brasileiro. Em consonância com os diferentes aportes teórico-metodológicos, são apresentadas as estratégias de pesquisa e acervos documentais correlatos. Assim, temos desde uma “reflexão sobre o papel dos periódicos nas áreas de colonização no Mato Grosso”, que possibilita compreender o uso destas publicações por moradores de áreas de fronteira, e as maneiras “como registram seu cotidiano, como se representam, como dizem de si, de seus desafetos, como se relacionam com o meio, seus estranhamentos e das estratégias para superar as dificuldades encontradas”; passando pelo uso de determinada estratégia metodológica, a construção de portraits, “que permite a compreensão das trajetórias dos indivíduos a partir dos dados coletados em questionários e entrevistas biográficas”; para, por fim, se debruçar “acerca da utilização de fontes legislativas federais e estaduais para compreensão do processo de colonização”. Como resultado, temos um texto que se abre em leque para diferentes formas de tratamento e enfrentamento de questões recorrentes quando se debruça sobre áreas de fronteira agrícola.

Na seção de artigos livres, temos o artigo assinado pelo Prof. Flávio Weinstein Teixeira (Universidade Federal de Pernambuco), Recife: notas em torno da gênese de um campo cultural, que apresenta um painel dos debates intelectuais e culturais no Recife dos anos 1920-50. Recorrendo à noção de campo em Bourdieu, o autor procura evidenciar as linhas de força, as sociabilidades letradas, bem como os espaços de reconhecimento e consagração do fazer artístico / intelectual que, em diálogo do que ocorria em âmbito nacional, resultaram em uma dinâmica própria e específica ao campo cultural do Recife. Para tanto, dá especial atenção à atuação de um grupo teatral local (TEP – Teatro dos Estudantes de Pernambuco) e à sua contribuição para a renovação das práticas artísticas e intelectuais.

Em seguida, temos o artigo do Prof. João Carlos Barrozo (Universidade Federal de Mato Grosso), A colonização em Mato Grosso como “portão de escape” para a crise agrária no Rio Grande do Sul, que que apresenta um expressivo painel dos inúmeros conflitos e movimentos rurais que desde os anos 1950 até a década de 1970 colocaram a disputa pela terra no centro da agenda nacional, além de, simultaneamente, aprofundar esse debate a partir de uma reflexão que, como o próprio título enuncia, procura compreender a colonização no Mato Grosso à luz da aguda crise que engolfava essa outra região de antiga e intensa ocupação rural – o Rio Grande do Sul. Conforme esclarece, as políticas adotadas pelos governos militares para a grave crise agrária e agrícola no Rio Grande do Sul, baseadas em dois pilares (“remembramento dos minifúndios no Rio Grande do Sul, e colonização por empresas ou cooperativas de colonização”), tiveram sucesso muito relativo. Mais importante, porém, que evidenciar os meandros de tais políticas, parece ser a abordagem dada pelo autor à questão, que relaciona as muitas e diversas experiências rurais do país em análise mais englobante e apropriada para compreender as forças e disputas em jogo.

Fechando este número da Clio, o Prof. Antonio Paulo Rezende (Universidade Federal de Pernambuco), em seu artigo Itinerários de um historiador: as portas entreabertas, nos apresenta sua trajetória de formação e de afirmação de um fazer historiográfico. Os itinerários apresentados pelo autor tanto dizem de sua trajetória pessoal, sua formação profissional, quanto, no que expõem as temáticas trabalhadas, os autores com quem dialogou, os enfoques, os privilegiamentos teórico-metodológicos, possibilitam, igualmente, visualizar algumas das veredas percorridas pela historiografia brasileira nos últimos 30 anos. Uma obra que se desdobra em muitas outras. Um fazer que é um permanente refazer, um constante exercício de repensar a prática historiadora. Uma escrita que tensiona e se aventura, que explora algumas das fronteiras do dizer e do pensar histórico. Um artigo, em suma, que à sua maneira percorre uns quantos pontos nodais que tanto tem mobilizado a atenção dos historiadores nas últimas décadas.

Em face do exposto, tendo em vista a proposta desta edição da revista Clio, os textos apresentados desenham um amplo mosaico de temas e problemas que se desdobram em referências teóricas fundamentais para lidarmos com as práticas de pesquisa. Contudo, tecer as histórias depende de uma ampla mobilização metodológica a fim de montar o quebracabeça que a discussão crítica de cada tema envolve, observando os limites do conhecimento histórico. Pois se entende que as teorias e as citações documentais não trazem implícitas as histórias e, portanto, não eximem o historiador de analisar ponto a ponto os diversos sinais e indícios que oferecem. O relato que se apresenta, em cada artigo, no movimento de ocupar o lugar do passado no presente é resultado de múltiplas operações como os capítulos dessa coletânea demonstraram. Sendo assim, agradecemos aos autores a sua generosidade para debater conosco diferentes experiências historiográficas.

Nota

1. “Introducción”. In: Luís Gerardo Morales Moreno (compilador) Historia de La historiografia contemporânea (de 1968 a nuestros dias). Cidade do México: Instituto Mora, 2005, p.12.

Regina Beatriz Guimarães Neto – Universidade Federal de Pernambuco


GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.32, n.2, jul / dez, 2014. Acessar publicação original [DR]

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Historiografia: práticas de pesquisa / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2014

A proposta temática do dossiê deste número da revista Clio se inscreve no universo crítico das práticas de pesquisa e de escrita da história. O seu objetivo é apresentar as produções do conhecimento, em temporalidades e espacialidades diversas, abertas às análises que articulam a teoria – um diálogo profícuo com diversos textos no campo das humanidades – e a metodologia em seus aspectos peculiares.

Os artigos que compõem este dossiê problematizam uma temática, relacionando-a às questões e propostas metodológicas que se apresentam como resultado de pesquisas. Nesse sentido, as experiências com o “fazer história” possibilitam também explorar modos narrativos diversos. Nessa trilha, dialogam com vários estudos no campo da historiografia, sinalizando o seu lugar social e institucional, trazendo a contribuição fundamental de uma vasta e especializada bibliografia, bem como a pesquisa das fontes documentais. Trata-se de textos que privelegiam a reflexão acerca dos procedimentos metodológicos com os quais operam, delineando aproximações e afastamentos para com as análises historiográficas, atentos àquilo que o historiador mexicano Luís Gerardo Morales Moreno tão bem observa:

La historiografía contemporánea se sitúa en esa trama compleja de relaciones entre las formas del relato histórico y su legitimación mediante instituciones y comunidades que actúan dentro de una sociedad determinada. [1]

Nessa perspectiva, os textos aqui relacionados partilham de reflexões que expressam as indagações dos historiadores quanto à produção do discurso ligado à sua prática, situada num campo complexo de relações e legitimações. É assim que convergem ao observarem a construção do tema, a prática da pesquisa e os procedimentos metodológicos que operam ao analisar os documentos e compor a escrita com as citações e as referências bibliográficas.

Há ainda outro aspecto fundamental a assinalar. Os artigos ao focalizarem os assuntos específicos, que cobrem problemas e questões, indagam o presente do historiador e o seu ofício, orientados pelas regras do campo historiográfico. Diante disso, os trabalhos apresentados no dossiê são reveladores de um grande esforço intelectual para a realização de leituras e de procedimentos metodológicos que constituem a matéria da escrita, tecendo pouco a pouco o relato historiográfico na difícil arte de significar o passado no presente.

Compartilhando uma longa experiência de pesquisa e reflexão com o trato de documentação oral, o Prof. Gerardo Necoechea Gracia (Instituto Nacional de Antropología e Historia / México) abre o dossiê com um artigo em que se propõe a apresentar Una propuesta para el análisis y la contextualización de la entrevista de historia oral. Recorrendo a múltiplos exemplos extraídos de suas pesquisas, e tomando como ponto de partida o princípio de que “la historia que recurre a la memoria rinde sus mejores frutos cuando sitúa el recuerdo en el tiempo y el espacio”, o autor esmiúça um bom número de procedimentos e cuidados metodológicos que evitem reduzir o rememorar a um fim em si mesmo. Fundamentalmente, o aporte metodológico que o autor sustenta se lastreia na idéia de que “es necesario primero llegar a una comprensión cabal de la entrevista, antes de despedazarla acorde a temas relevantes para la investigación”. Devendo-se cuidar, para tanto, de “comprender las relaciones lógicas y de sentido que dan integridad al documento, de manera que no violentemos el espíritu con que fue creada la fuente oral”. Tudo isto, diz-no o autor, é precisamente o que possibilita “colocar el recuerdo en su contexto y así realizar la relevancia histórica de la experiencia que narra el entrevistado”, bem como, compreender mais precisa e adequadamente “la intención e interpretación que el entrevistado imprime a su recuerdo”. O texto, assim, oferece-se ao leitor quase que como um pequeno manual no lidar com depoimentos orais.

Em História, memória e sujeito: a narrativa histórica e as reapropriações do sujeito, o Prof. Marcelo de Sousa Neto (Universidade Estadual do Piauí) se propõe a perscrutar as novas abordagens que a historiografia brasileira tem dedicado aos estudos biográficos. A partir da análise do caso de figura de destaque no mundo político e intelectual do Piauí no séc. XIX, Pe. Marcos de Araújo Costa, o autor dirige suas reflexões menos à figura histórica do Pe. Marcos do que às escolhas que possibilitaram a criação de uma determinada memória sobre ele, em detrimento de outras tantas possíveis. Ao chamar a atenção para essa operação, o autor não faz outra coisa que evidenciar algo de suma importância para qualquer empreendimento historiográfico: que toda construção narrativa se faz por meio do recurso ao apagamento e silenciamento de inúmeras outras. Nos termos de Certeau, autor reiteradamente invocado ao longo do texto, trata-se de evidenciar a “topografia de interesses” que organiza as narrativas e fixação de memórias as mais diversas.

O artigo escrito pela Profa. Patricia Pensado Leglise (Instituto de Investigaciones Dr. José Ma. Luis Mora / México), El acontecer histórico en el relato de vida, mais uma vez nos oferece a oportunidade de adentrarmos num universo de reflexões pautado por pesquisas cujo recurso documental privilegiado é o das narrativas orais. Preocupada em situar o campo da história oral como modalidade de história social, a autora desenvolve seu argumento a partir de três problemáticas que, a seu ver, são as mais prementes e recorrentes entre pesquisadores que trabalham com testemunhos orais: o debate em torno das questões de memória e identidade; do tempo; e do papel do sujeito no fazer histórico. Tendo sempre o cuidado de invocar alguns dos autores mais relevantes para esse debate, a Profa. Patricia Pensado, entretanto, enriquece sobremaneira sua exposição mediante o recurso a extratos de relatos orais produzidos em suas pesquisas. Resulta deste esforço um texto marcado pelo propósito de aprofundar uma reflexão de caráter mais geral a partir de experiências efetivas de pesquisa. Em outras palavras, como conclui a autora, “el hecho de recordar, la oportunidad de que se suscite la memoria de su pasado mediante la historia oral le ofrece una nueva ocasión no sólo para la reflexión de lo vivido sino también para su interpretación contando con una visión más amplia y profunda de los tiempos aciagos que a todo los seres humanos experimentamos al vivir”.

Na sequência, o leitor encontrará o artigo da Profa. Virgínia Maria Almoêdo de Assis, Velhos papéis, novas histórias: a justiça para os órfãos na Capitania de Pernambuco, que focaliza as estratégias adotadas pela Câmara de Olinda quanto à utilização do legado pecuniário pertencente aos órfãos da capitania de Pernambuco, que se encontrava sob a sua guarda. A autora, historiadora especialista em paleografia, muito contribui neste texto para analisar as relações entre o conhecimento histórico e as práticas de leitura paleográficas, atendo-se a um conjunto de questões teóricas e métodos, que visa a escrita da história.

A seção dossiê se encerra com o artigo Três possibilidades metodológicas de estudo aplicadas à analise de casos em áreas de fronteira no interior do Brasil, de autoria dos Profs. Leonice Aparecida de Fátima Alves, Vitale Joanoni Neto e João Carlos Barrozo (todos da Universidade Federal de Mato Grosso), no qual são explorados variados recursos teóricometodológicos voltados para pesquisas dirigidas ao mundo rural, aos processos de migrações e ocupação do interior do território brasileiro, às políticas de colonização postas em prática pelo Estado brasileiro. Em consonância com os diferentes aportes teórico-metodológicos, são apresentadas as estratégias de pesquisa e acervos documentais correlatos. Assim, temos desde uma “reflexão sobre o papel dos periódicos nas áreas de colonização no Mato Grosso”, que possibilita compreender o uso destas publicações por moradores de áreas de fronteira, e as maneiras “como registram seu cotidiano, como se representam, como dizem de si, de seus desafetos, como se relacionam com o meio, seus estranhamentos e das estratégias para superar as dificuldades encontradas”; passando pelo uso de determinada estratégia metodológica, a construção de portraits, “que permite a compreensão das trajetórias dos indivíduos a partir dos dados coletados em questionários e entrevistas biográficas”; para, por fim, se debruçar “acerca da utilização de fontes legislativas federais e estaduais para compreensão do processo de colonização”. Como resultado, temos um texto que se abre em leque para diferentes formas de tratamento e enfrentamento de questões recorrentes quando se debruça sobre áreas de fronteira agrícola.

Na seção de artigos livres, temos o artigo assinado pelo Prof. Flávio Weinstein Teixeira (Universidade Federal de Pernambuco), Recife: notas em torno da gênese de um campo cultural, que apresenta um painel dos debates intelectuais e culturais no Recife dos anos 1920-50. Recorrendo à noção de campo em Bourdieu, o autor procura evidenciar as linhas de força, as sociabilidades letradas, bem como os espaços de reconhecimento e consagração do fazer artístico / intelectual que, em diálogo do que ocorria em âmbito nacional, resultaram em uma dinâmica própria e específica ao campo cultural do Recife. Para tanto, dá especial atenção à atuação de um grupo teatral local (TEP – Teatro dos Estudantes de Pernambuco) e à sua contribuição para a renovação das práticas artísticas e intelectuais.

Em seguida, temos o artigo do Prof. João Carlos Barrozo (Universidade Federal de Mato Grosso), A colonização em Mato Grosso como “portão de escape” para a crise agrária no Rio Grande do Sul, que que apresenta um expressivo painel dos inúmeros conflitos e movimentos rurais que desde os anos 1950 até a década de 1970 colocaram a disputa pela terra no centro da agenda nacional, além de, simultaneamente, aprofundar esse debate a partir de uma reflexão que, como o próprio título enuncia, procura compreender a colonização no Mato Grosso à luz da aguda crise que engolfava essa outra região de antiga e intensa ocupação rural – o Rio Grande do Sul. Conforme esclarece, as políticas adotadas pelos governos militares para a grave crise agrária e agrícola no Rio Grande do Sul, baseadas em dois pilares (“remembramento dos minifúndios no Rio Grande do Sul, e colonização por empresas ou cooperativas de colonização”), tiveram sucesso muito relativo. Mais importante, porém, que evidenciar os meandros de tais políticas, parece ser a abordagem dada pelo autor à questão, que relaciona as muitas e diversas experiências rurais do país em análise mais englobante e apropriada para compreender as forças e disputas em jogo.

Fechando este número da Clio, o Prof. Antonio Paulo Rezende (Universidade Federal de Pernambuco), em seu artigo Itinerários de um historiador: as portas entreabertas, nos apresenta sua trajetória de formação e de afirmação de um fazer historiográfico. Os itinerários apresentados pelo autor tanto dizem de sua trajetória pessoal, sua formação profissional, quanto, no que expõem as temáticas trabalhadas, os autores com quem dialogou, os enfoques, os privilegiamentos teórico-metodológicos, possibilitam, igualmente, visualizar algumas das veredas percorridas pela historiografia brasileira nos últimos 30 anos. Uma obra que se desdobra em muitas outras. Um fazer que é um permanente refazer, um constante exercício de repensar a prática historiadora. Uma escrita que tensiona e se aventura, que explora algumas das fronteiras do dizer e do pensar histórico. Um artigo, em suma, que à sua maneira percorre uns quantos pontos nodais que tanto tem mobilizado a atenção dos historiadores nas últimas décadas.

Em face do exposto, tendo em vista a proposta desta edição da revista Clio, os textos apresentados desenham um amplo mosaico de temas e problemas que se desdobram em referências teóricas fundamentais para lidarmos com as práticas de pesquisa. Contudo, tecer as histórias depende de uma ampla mobilização metodológica a fim de montar o quebracabeça que a discussão crítica de cada tema envolve, observando os limites do conhecimento histórico. Pois se entende que as teorias e as citações documentais não trazem implícitas as histórias e, portanto, não eximem o historiador de analisar ponto a ponto os diversos sinais e indícios que oferecem. O relato que se apresenta, em cada artigo, no movimento de ocupar o lugar do passado no presente é resultado de múltiplas operações como os capítulos dessa coletânea demonstraram. Sendo assim, agradecemos aos autores a sua generosidade para debater conosco diferentes experiências historiográficas.

Nota

1. “Introducción”. In: Luís Gerardo Morales Moreno (compilador) Historia de La historiografia contemporânea (de 1968 a nuestros dias). Cidade do México: Instituto Mora, 2005, p.12.

Regina Beatriz Guimarães Neto – Universidade Federal de Pernambuco


NETO, Regina Beatriz Guimarães. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.32, n.2, jul / dez, 2014. Acessar publicação original [DR]

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