Cidade, personagens e ocupações dos espaços | História Oral  | 2019

O tema Cidade, personagens e ocupações dos espaços – dossiê proposto para este número – estimula nossa imaginação e, ao mesmo tempo, provoca inquietude por querermos lembrar experiências e personagens na luta contra o esquecimento. Sejam de tempos mais afastados de nosso presente cotidiano, sejam de momentos mais próximos de nossas vivências atuais. A temática é complexa, multifacetada e sempre atual.

As autoras e os autores em seus textos escritos assinalam os traços do passado que ainda estão a significar os espaços das cidades no presente: “… reminiscências que não descansam antes que a pena ou a língua as publique” (Dom Casmurro, Machado de Assis). Acontecimentos traumáticos também marcam e constroem outras memórias superpostas a uma imensa variedade de histórias em tempos diferentes. Certamente, a matéria das lembranças multiplica o campo de imagens e transforma-se em narrativas tecidas com as experiências individuais e coletivas. Leia Mais

Historiografia: práticas de pesquisa / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2014

A proposta temática do dossiê deste número da revista Clio se inscreve no universo crítico das práticas de pesquisa e de escrita da história. O seu objetivo é apresentar as produções do conhecimento, em temporalidades e espacialidades diversas, abertas às análises que articulam a teoria – um diálogo profícuo com diversos textos no campo das humanidades – e a metodologia em seus aspectos peculiares.

Os artigos que compõem este dossiê problematizam uma temática, relacionando-a às questões e propostas metodológicas que se apresentam como resultado de pesquisas. Nesse sentido, as experiências com o “fazer história” possibilitam também explorar modos narrativos diversos. Nessa trilha, dialogam com vários estudos no campo da historiografia, sinalizando o seu lugar social e institucional, trazendo a contribuição fundamental de uma vasta e especializada bibliografia, bem como a pesquisa das fontes documentais. Trata-se de textos que privelegiam a reflexão acerca dos procedimentos metodológicos com os quais operam, delineando aproximações e afastamentos para com as análises historiográficas, atentos àquilo que o historiador mexicano Luís Gerardo Morales Moreno tão bem observa:

La historiografía contemporánea se sitúa en esa trama compleja de relaciones entre las formas del relato histórico y su legitimación mediante instituciones y comunidades que actúan dentro de una sociedad determinada. 1

Nessa perspectiva, os textos aqui relacionados partilham de reflexões que expressam as indagações dos historiadores quanto à produção do discurso ligado à sua prática, situada num campo complexo de relações e legitimações. É assim que convergem ao observarem a construção do tema, a prática da pesquisa e os procedimentos metodológicos que operam ao analisar os documentos e compor a escrita com as citações e as referências bibliográficas.

Há ainda outro aspecto fundamental a assinalar. Os artigos ao focalizarem os assuntos específicos, que cobrem problemas e questões, indagam o presente do historiador e o seu ofício, orientados pelas regras do campo historiográfico. Diante disso, os trabalhos apresentados no dossiê são reveladores de um grande esforço intelectual para a realização de leituras e de procedimentos metodológicos que constituem a matéria da escrita, tecendo pouco a pouco o relato historiográfico na difícil arte de significar o passado no presente.

Compartilhando uma longa experiência de pesquisa e reflexão com o trato de documentação oral, o Prof. Gerardo Necoechea Gracia (Instituto Nacional de Antropología e Historia / México) abre o dossiê com um artigo em que se propõe a apresentar Una propuesta para el análisis y la contextualización de la entrevista de historia oral. Recorrendo a múltiplos exemplos extraídos de suas pesquisas, e tomando como ponto de partida o princípio de que “la historia que recurre a la memoria rinde sus mejores frutos cuando sitúa el recuerdo en el tiempo y el espacio”, o autor esmiúça um bom número de procedimentos e cuidados metodológicos que evitem reduzir o rememorar a um fim em si mesmo. Fundamentalmente, o aporte metodológico que o autor sustenta se lastreia na idéia de que “es necesario primero llegar a una comprensión cabal de la entrevista, antes de despedazarla acorde a temas relevantes para la investigación”. Devendo-se cuidar, para tanto, de “comprender las relaciones lógicas y de sentido que dan integridad al documento, de manera que no violentemos el espíritu con que fue creada la fuente oral”. Tudo isto, diz-no o autor, é precisamente o que possibilita “colocar el recuerdo en su contexto y así realizar la relevancia histórica de la experiencia que narra el entrevistado”, bem como, compreender mais precisa e adequadamente “la intención e interpretación que el entrevistado imprime a su recuerdo”. O texto, assim, oferece-se ao leitor quase que como um pequeno manual no lidar com depoimentos orais.

Em História, memória e sujeito: a narrativa histórica e as reapropriações do sujeito, o Prof. Marcelo de Sousa Neto (Universidade Estadual do Piauí) se propõe a perscrutar as novas abordagens que a historiografia brasileira tem dedicado aos estudos biográficos. A partir da análise do caso de figura de destaque no mundo político e intelectual do Piauí no séc. XIX, Pe. Marcos de Araújo Costa, o autor dirige suas reflexões menos à figura histórica do Pe. Marcos do que às escolhas que possibilitaram a criação de uma determinada memória sobre ele, em detrimento de outras tantas possíveis. Ao chamar a atenção para essa operação, o autor não faz outra coisa que evidenciar algo de suma importância para qualquer empreendimento historiográfico: que toda construção narrativa se faz por meio do recurso ao apagamento e silenciamento de inúmeras outras. Nos termos de Certeau, autor reiteradamente invocado ao longo do texto, trata-se de evidenciar a “topografia de interesses” que organiza as narrativas e fixação de memórias as mais diversas.

O artigo escrito pela Profa. Patricia Pensado Leglise (Instituto de Investigaciones Dr. José Ma. Luis Mora / México), El acontecer histórico en el relato de vida, mais uma vez nos oferece a oportunidade de adentrarmos num universo de reflexões pautado por pesquisas cujo recurso documental privilegiado é o das narrativas orais. Preocupada em situar o campo da história oral como modalidade de história social, a autora desenvolve seu argumento a partir de três problemáticas que, a seu ver, são as mais prementes e recorrentes entre pesquisadores que trabalham com testemunhos orais: o debate em torno das questões de memória e identidade; do tempo; e do papel do sujeito no fazer histórico. Tendo sempre o cuidado de invocar alguns dos autores mais relevantes para esse debate, a Profa. Patricia Pensado, entretanto, enriquece sobremaneira sua exposição mediante o recurso a extratos de relatos orais produzidos em suas pesquisas. Resulta deste esforço um texto marcado pelo propósito de aprofundar uma reflexão de caráter mais geral a partir de experiências efetivas de pesquisa. Em outras palavras, como conclui a autora, “el hecho de recordar, la oportunidad de que se suscite la memoria de su pasado mediante la historia oral le ofrece una nueva ocasión no sólo para la reflexión de lo vivido sino también para su interpretación contando con una visión más amplia y profunda de los tiempos aciagos que a todo los seres humanos experimentamos al vivir”.

Na sequência, o leitor encontrará o artigo da Profa. Virgínia Maria Almoêdo de Assis, Velhos papéis, novas histórias: a justiça para os órfãos na Capitania de Pernambuco, que focaliza as estratégias adotadas pela Câmara de Olinda quanto à utilização do legado pecuniário pertencente aos órfãos da capitania de Pernambuco, que se encontrava sob a sua guarda. A autora, historiadora especialista em paleografia, muito contribui neste texto para analisar as relações entre o conhecimento histórico e as práticas de leitura paleográficas, atendo-se a um conjunto de questões teóricas e métodos, que visa a escrita da história.

A seção dossiê se encerra com o artigo Três possibilidades metodológicas de estudo aplicadas à analise de casos em áreas de fronteira no interior do Brasil, de autoria dos Profs. Leonice Aparecida de Fátima Alves, Vitale Joanoni Neto e João Carlos Barrozo (todos da Universidade Federal de Mato Grosso), no qual são explorados variados recursos teóricometodológicos voltados para pesquisas dirigidas ao mundo rural, aos processos de migrações e ocupação do interior do território brasileiro, às políticas de colonização postas em prática pelo Estado brasileiro. Em consonância com os diferentes aportes teórico-metodológicos, são apresentadas as estratégias de pesquisa e acervos documentais correlatos. Assim, temos desde uma “reflexão sobre o papel dos periódicos nas áreas de colonização no Mato Grosso”, que possibilita compreender o uso destas publicações por moradores de áreas de fronteira, e as maneiras “como registram seu cotidiano, como se representam, como dizem de si, de seus desafetos, como se relacionam com o meio, seus estranhamentos e das estratégias para superar as dificuldades encontradas”; passando pelo uso de determinada estratégia metodológica, a construção de portraits, “que permite a compreensão das trajetórias dos indivíduos a partir dos dados coletados em questionários e entrevistas biográficas”; para, por fim, se debruçar “acerca da utilização de fontes legislativas federais e estaduais para compreensão do processo de colonização”. Como resultado, temos um texto que se abre em leque para diferentes formas de tratamento e enfrentamento de questões recorrentes quando se debruça sobre áreas de fronteira agrícola.

Na seção de artigos livres, temos o artigo assinado pelo Prof. Flávio Weinstein Teixeira (Universidade Federal de Pernambuco), Recife: notas em torno da gênese de um campo cultural, que apresenta um painel dos debates intelectuais e culturais no Recife dos anos 1920-50. Recorrendo à noção de campo em Bourdieu, o autor procura evidenciar as linhas de força, as sociabilidades letradas, bem como os espaços de reconhecimento e consagração do fazer artístico / intelectual que, em diálogo do que ocorria em âmbito nacional, resultaram em uma dinâmica própria e específica ao campo cultural do Recife. Para tanto, dá especial atenção à atuação de um grupo teatral local (TEP – Teatro dos Estudantes de Pernambuco) e à sua contribuição para a renovação das práticas artísticas e intelectuais.

Em seguida, temos o artigo do Prof. João Carlos Barrozo (Universidade Federal de Mato Grosso), A colonização em Mato Grosso como “portão de escape” para a crise agrária no Rio Grande do Sul, que que apresenta um expressivo painel dos inúmeros conflitos e movimentos rurais que desde os anos 1950 até a década de 1970 colocaram a disputa pela terra no centro da agenda nacional, além de, simultaneamente, aprofundar esse debate a partir de uma reflexão que, como o próprio título enuncia, procura compreender a colonização no Mato Grosso à luz da aguda crise que engolfava essa outra região de antiga e intensa ocupação rural – o Rio Grande do Sul. Conforme esclarece, as políticas adotadas pelos governos militares para a grave crise agrária e agrícola no Rio Grande do Sul, baseadas em dois pilares (“remembramento dos minifúndios no Rio Grande do Sul, e colonização por empresas ou cooperativas de colonização”), tiveram sucesso muito relativo. Mais importante, porém, que evidenciar os meandros de tais políticas, parece ser a abordagem dada pelo autor à questão, que relaciona as muitas e diversas experiências rurais do país em análise mais englobante e apropriada para compreender as forças e disputas em jogo.

Fechando este número da Clio, o Prof. Antonio Paulo Rezende (Universidade Federal de Pernambuco), em seu artigo Itinerários de um historiador: as portas entreabertas, nos apresenta sua trajetória de formação e de afirmação de um fazer historiográfico. Os itinerários apresentados pelo autor tanto dizem de sua trajetória pessoal, sua formação profissional, quanto, no que expõem as temáticas trabalhadas, os autores com quem dialogou, os enfoques, os privilegiamentos teórico-metodológicos, possibilitam, igualmente, visualizar algumas das veredas percorridas pela historiografia brasileira nos últimos 30 anos. Uma obra que se desdobra em muitas outras. Um fazer que é um permanente refazer, um constante exercício de repensar a prática historiadora. Uma escrita que tensiona e se aventura, que explora algumas das fronteiras do dizer e do pensar histórico. Um artigo, em suma, que à sua maneira percorre uns quantos pontos nodais que tanto tem mobilizado a atenção dos historiadores nas últimas décadas.

Em face do exposto, tendo em vista a proposta desta edição da revista Clio, os textos apresentados desenham um amplo mosaico de temas e problemas que se desdobram em referências teóricas fundamentais para lidarmos com as práticas de pesquisa. Contudo, tecer as histórias depende de uma ampla mobilização metodológica a fim de montar o quebracabeça que a discussão crítica de cada tema envolve, observando os limites do conhecimento histórico. Pois se entende que as teorias e as citações documentais não trazem implícitas as histórias e, portanto, não eximem o historiador de analisar ponto a ponto os diversos sinais e indícios que oferecem. O relato que se apresenta, em cada artigo, no movimento de ocupar o lugar do passado no presente é resultado de múltiplas operações como os capítulos dessa coletânea demonstraram. Sendo assim, agradecemos aos autores a sua generosidade para debater conosco diferentes experiências historiográficas.

Nota

1. “Introducción”. In: Luís Gerardo Morales Moreno (compilador) Historia de La historiografia contemporânea (de 1968 a nuestros dias). Cidade do México: Instituto Mora, 2005, p.12.

Regina Beatriz Guimarães Neto – Universidade Federal de Pernambuco


GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.32, n.2, jul / dez, 2014. Acessar publicação original [DR]

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1964: releituras historiográficas / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2013

A revista Clio – N. 31.2 (2013) elegeu como temática para seu dossiê 1964: releituras historiográficas. Após quase três décadas do fim do regime instalado com o golpe de 31 de março de 1964, liderado pelos militares, a produção historiográfica brasileira sobre esse período tem se ampliado de forma considerável. A divulgação de muitos documentos, produção de reportagens, publicação de obras historiográficas, de livros autobiográficos e de entrevistas, além de dissertações e teses possibilitou estabelecer uma ampla ressignificação desse passado recente da história do Brasil.[1]

Talvez o diferencial que se observa nessa última década seja que com a criação da Comissão da Anistia do Ministério da Justiça em 2002, após décadas de pressão da sociedade civil, esse debate passou a também circular pelas diversas instâncias do poder do Estado.[2] Dessa maneira, observa-se de forma crescente todo um movimento para se repensar e reavaliar a responsabilidade do Estado em relação às torturas, aos assassinatos, aos desaparecidos, inicialmente com novos julgamentos e indenizações, mas sem perder de vista o debate que se reabre sobre esses crimes. A criação da Comissão Nacional da Verdade em 2012 e também a criação de semelhante comissão em diversos estados do Brasil, como é o caso de Pernambuco, São Paulo, Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, entre outros, apontam que, em razão de pressões internas e externas (pressão da OEA), o Brasil está, de maneira oficial, voltando-se sobre esse passado e trazendo a público novos documentos e, por extensão, recolocando o debate acerca dos crimes e torturas praticados por agentes do Estado naquele período de 1964 a 1985. [3]

As Comissões da Verdade, criadas nos níveis federal e estadual, têm uma missão importante que é trazer à luz uma documentação que, sem dúvida, ajudará a ampliar o conhecimento acerca desse período. No entanto, diferente do senso comum, hoje, nenhuma área do conhecimento que tem nos documentos sua referência epistemológica opera como se os mesmos falassem por si.[4] Se eles são fundamentais, prestando-se como ponto de partida para análises, estudos e pesquisas, sabemos como é complexa a operação historiográfica que irá articular em outra ordem de significado, bem como em outra temporalidade, novas questões e novos problemas relacionados ao período do regime militar e civil que se estabeleceu de 1964 a 1985. Dessa forma, no sentido de contribuir para este debate nacional é que a revista Clio dedica esse dossiê de releituras historiográficas.

O artigo do Prof. Dr. Airton dos Reis Pereira, Colonização e conflitos na Transamazônica em tempos da ditadura civil-militar brasileira, analisa o processo de implantação do Programa Integrado de Colonização de Marabá que incluía os municípios de Itupiranga e São João do Araguaia às margens da rodovia Transamazônica. Vale destacar como esse programa adquire um significado especial no município de São João do Araguaia, na medida em que se torna uma base dos militares para reprimir os guerrilheiros do PC do B. No entanto, a partir de 1974 muitas famílias de colonos de diversas regiões do Brasil, que haviam sido atraídas para a região pela propaganda do governo, não encontrando o que havia sido negociado com o INCRA, passam a ocupar diversas propriedades improdutivas. Surge então um novo polo de conflito na região.

O professor Ruben Isidoro Kotler, apresenta o instigante artigo, La alianza obrero estudiantil como respuesta a la dictadura de 1966 em la periferia argentina. El caso Tucumán. Analisa como após o golpe militar em 1966 na Argentina operários e estudantes constroem estratégias de resistência ao programa econômico conservador que se instala. Por meio de relatos de memórias desses segmentos constrói uma importante análise do movimento de rebeldia contra ditadura do general Juan Carlos Ongania, sobretudo em 1969 e em 1970 e 1972, já na ditadura do general Alejandro Agustín Lanuesse.

O artigo de Adriana Cristina Lopes Setemy, O Itamaraty e a institucionalização das políticas de repressão ao comunismo: revisão e novos apontamentos historiográficos, vem romper com uma memória histórica de que o Itamaraty se constituía numa instância do poder do Estado no Brasil distante das disputas políticas partidárias, sobretudo aquelas relacionadas ao comunismo e aos comunistas. Pesquisando sobre as atividades do Itamaraty relacionadas às suas embaixadas na Argentina e no Uruguai entre 1935 e 1966, a autora oferece uma importante análise da vigilância exercida por esses órgãos sobre brasileiros exilados. E também como enviavam informações sobre estrangeiros considerados suspeitos que viajavam ao Brasil.

O artigo de Gisele Oliveira de Lima, Política e evangelização em quadrinhos, poderse-ia considerar como estudo de caso. Ela se debruça sobre a prática evangélica do padre italiano Paulo Tonucci, que foi reconhecidamente um religioso que abraçou as causas populares, tendo importante papel na formação de diversos líderes políticos. Nesse artigo, propriamente, a autora estuda a prática pedagógica do Padre Tonucci, ao produzir desenhos em quadrinhos para debater, refletir e mobilizar as pessoas de diversos bairros populares da Bahia. Também é destacada a análise da relação entre a prática sacerdotal e militante que é possível ler nesses quadrinhos.

O artigo de Julia Glaciela da Silva Oliveira, Dos encontros à união: a formação da União de Mulheres de São Paulo, contempla o estudo e a análise histórica das lutas em defesa dos direitos humanos em que ativistas participantes dessa associação relatam suas experiências. Percorrendo as trilhas desses relatos, a autora remete sua análise para as questões da militância política feminina nas décadas de 1960 e 1970 e como a partir dessas práticas foi sendo gestada a criação de uma associação feminista autônoma.

Na seção de Artigos Livres, destaca-se o texto do Prof. Artur Freitas, A invenção do Solar do Barão: a gravura brasileira em Curitiba, em que realiza uma genealogia articulando dimensões políticas e estéticas que entre 1970 e 1980 concorrem para criação do Centro Cultural do Barão, em Curitiba, Paraná. Este Centro, pelas múltiplas atividades desenvolvidas, se consolidou como um dos principais polos nacionais de institucionalização da gravura no Brasil.

A Professora e historiadora Tanya Maria Pires Brandão, que há décadas estuda a formação da sociedade no Nordeste, sobretudo no século XVIII, desenvolve nesse seu artigo, Rapto de mulheres: estratégia na formação de núcleos familiares na capitania do Piauí, século XVIII, a análise de uma prática que durante longos períodos a sociedade tentou esquecer, apagar. Tendo como fonte documental os autos processuais de queixa-crimes, a historiadora revela como essa se constituía numa prática recorrente numa sociedade amplamente masculina.

O artigo de Karla Leandro Rascke, Vivências celebrativas na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos em Desterro / SC, século XIX, contempla uma pesquisa acerca da estrutura e funcionamento da Irmandade do Rosário e São Benedito, bem como as atribuições da Mesa Administrativa, no que tange às decisões no plano temporal e espiritual. Há também uma preocupação em analisar as performances, celebrações e sons produzidos nesse território de vivências africanas.

Para finalizar esta apresentação, parabenizo os autores pelos artigos enviados para publicação neste número da revista Clio, que poder-se-ia considerar como um reduzido mas representativo retrato da historiografia de excelente nível que se tem produzido nas mais diversas regiões e Universidades do Brasil.

Boa leitura!

Notas

1. O historiador Carlos Fico, em seu livro Além do Golpe: Versões e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar (Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2004), apresenta um detalhado levantamento de livros, dissertações e teses produzidas até 2004 relacionados ao tema do regime militar e civil que se instalou em 1964. Também realiza uma compilação de importantes documentos produzidos entre 1961 e 1970. Em 2004, no campus da Universidade Federal de São Carlos, foi organizado o Simpósio Internacional “Quarenta anos do golpe de 1964: novos diálogos, novas perspectivas”. Posteriormente, 14 palestrantes desse simpósio, tiveram seus textos publicados no livro O Golpe de 1964 e o Regime Militar: novas perspectivas, organizado por João Roberto Martins Filho (São Carlos: EdUFSCar, 2006). Também destaco o livro O golpe a ditadura militar 40 anos depois (1964-2004), organizado por Daniel Aarão Reis, Marcelo Ridenti e Rodrigo Patto Sá Motta (Bauru, SP: EdUSC, 2004).

2. Por meio de medida provisória, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça passou a integrar em definitivo a estrutura do Estado brasileiro, no ano de 2002, com a aprovação de Lei n. 10.559, que regulamentou o artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

3. No período em que redigia esse texto, o coronel da reserva Carlos Alberto Brilhante Ustra, apontado por organizações de direitos humanos como o mais notório torturador dos tempos do regime militar, teve negado seu pedido à justiça para reformulação da sentença em que foi reconhecido como torturador. Essa é a primeira vez que uma decisão envolvendo a tortura no regime militar é referendada por um colegiado de segunda instância. “Foi uma conquista inédita na Justiça brasileira”, comemorou o advogado Fábio Konder Comparato, representante da família Teles, autora da ação, ao deixar o Tribunal, na Praça da Sé, centro de São Paulo. http: / / www.estadao.com.br / noticias / nacional,justica-de-sao-paulo-reconhece-ustra-comotorturador,916432,0.htm.

4. Michel Certeau, em seu texto A operação historiográfica, que marca sua resposta à polêmica obra de Paul Veyne, Como se escreve a história, no tópico em que analisa o lugar social da produção histórica, afirma: “Há quarenta anos, uma primeira crítica do “cientificismo” desvendou na história “objetiva” a sua relação com um lugar, o do sujeito. Analisando uma ‘dissolução do objeto’ (R. Aron) tirou da história o privilégio do qual se vangloriava, quando pretendia reconstituir a ‘verdade’ daquilo que havia acontecido. A história ‘objetiva’, aliás, perpetuava com essa ideia de uma ‘verdade’ um modelo tirado da filosofia de ontem ou da teologia de anteontem; contentava-se com traduzi-la em termos de ‘fatos’ históricos… Os bons tempos desse positivismo estão definitivamente acabados.” In: CERTEAU, Michel. A escrita da história. Trad. Maria de Lourdes Menezes. Rev. Tec. Arno Vogel. São Paulo: Forense Universitária, 2000, p. 67.

Antonio Torres Montenegro

Regina Beatriz Guimarães Neto


MONTENEGRO, Antonio Torres; GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.31, n.2, jul / dez, 2013. Acessar publicação original [DR]

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Memória, Narrativa, Política / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2010

Cada vez que o reino do humano me parece condenado ao peso, digo para mim mesmo que à maneira de Perseu eu devia voar para outro espaço. Não se trata absolutamente de fuga para o sonho ou o irracional. Quero dizer que preciso mudar de ponto de observação, que preciso considerar o mundo sob uma outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle. (Ítalo Calvino. Seis propostas para o próximo milênio)

A revista CLIO apresenta o dossiê “Memória, Narrativa, Política. ” que reúne artigos de historiadores e historiadoras do Brasil e demais países da América Latina, numa contribuição à análise da historiografia e suas relações com a memória, problematizando a narrativa e a cultura. Os percursos realizados contemplam diferentes espacialidades e temporalidades, com abordagens teóricas e metodológicas múltiplas, o que torna esse número da revista Clio – Série Histórica – um caleidoscópio de narrativas e análises históricas. Os textos, ao dialogarem com um amplo leque de fontes documentais, projetam significativas contribuições ao debate metodológico acerca das práticas historiográficas. Práticas estas que enfrentam o desafio de transformar palavras, inscrições e os mais diversos registros em relatos escritos.

Com base na leitura dos títulos dos artigos selecionados, é possível ter uma primeira percepção do campo documental e metodológico constitutivo da escrita histórica deste número da revista CLIO: 1. A botija do Rio Formoso e outras histórias. Profa. Maria do Socorro Cipriano. 2. La función de la oralidad a través de los mitos y leyendas. Su papel en la construcción de la pertenencia cultural en pueblos aborígenes Nicaraos y Chorotegas. Profa. Ligia Madrigal Mendieta. 3. Palavras Afiadas: memórias e representações africanistas na escrita de Carolina Maria de Jesus. Prof. Élio Chaves Flores. 4. Imprensa e Imagens: a construção de representações do Piauí e de Teresina através de jornais diários na década de 1970. Prof. Francisco Alcides do Nascimento.5. Quimera amazônica: mecenato e colecionismo em Belém do Pará, 1890-1910. Prof. Aldrin Moura de Figueiredo. 6. Memoria y Cultura obrera. Profa. Mariana Mastrángelo.7. La Idea de “La Determinación” em R. Williams y los Orígenes Del movimiento de derechos humanos de Tucumán. Prof. Rubén Isidoro Kotler. 8. “Era como una droga escucharlo a Perón”. Recordando la militancia treinta años más tarde (1955 a 1976). Prof. Pablo Pozzi. 9. Historiografia & Narrativa: do arquivo ao texto. Profa. Regina B. Guimarães Neto. 10. Travessias e desafios. Prof. Antonio Torres Montenegro. 11. A esposa-espírito Nambiquara. Profa. Anna Ribeiro F. M. Costa. 12. Júlio Bello: um homem velho fala sobre as velhices que viu e viveu. Prof. Alarcon Agra do Ó.

Ao reunir esta série de autores tivemos como critério definir a presença de historiadores e historiadoras que operam criticamente no fazer de suas pesquisas e procedimentos de análise, sem, contudo, instaurarmos princípios ou conceitualizações apriorísticas, que os classificam ou encerram em determinadas posições teóricas. Entendemos que o conjunto de textos, aqui apresentados, longe de projetar dicotomias teóricas e polêmicas que esvaziam o discurso historiográfico e fixam procedimentos desligados das práticas de pesquisa, insere-se em relações mais complexas. Aquelas que se estabelecem entre relato histórico, fontes documentais e proposições metodológicas. Portanto, nossa preocupação e interesse nos direcionam a refletir acerca dos processos de leitura como ato criativo na construção dos relatos e na produção da escrita, em sua historicidade, aos quais se associam os debates sobre o conceito de memória, cultura e narrativa.

Também incluímos neste número quatro artigos que, embora não estejam incluídos no Dossiê, assinalam uma significativa pesquisa documental associada a narrativas em que as problemáticas metodológicas se revelam no próprio percurso escriturístico. São eles: 13. Artífices de cor do Recife: dos privilégios corporativos à tentativa de controle da escolarização dos ofícios – décadas de 1840 E 1850 – Marcelo Mac Cord. 14. Crias do abandono, filhos da ordem. Assistência, poder e resistência no Colégio dos Órfãos de Pernambuco. (1835 a 1875) – Alcileide Cabral Nascimento e Gabriel Navarro Barros. 15. Os conceitos de “modo de produção” e “determinismo” – revisitando as diversas discussões no âmbito do Materialismo Histórico – José D’Assunção Barros. 16. Pajés, demônios e canibais: representações acerca do indígena americano na iconografia européia do século XVI. – Rodrigo Luiz Simas de Aguiar e Aline Maria Müller.

Há muitas inter-relações entre os textos deste número da revista Clio e neles se delineia um amplo espectro de abordagens, com destaque para o foco nas pesquisas realizadas. Sem pautar por uma exposição linear de assuntos ou temas, em espaços e tempos diversos, as contribuições destes autores nos levam a paragens desconhecidas. Desejamos que por meio de aproximações e diferenças o movimento da leitura destes artigos seja um convite para novas e instigantes viagens.

Para finalizar, queremos agradecer aos historiadores e historiadoras que enviaram seus artigos e, dessa forma, nos possibilitaram organizar mais este número da Revista Clio – Série Histórica –.

Professora Doutora Regina Beatriz Guimarães Neto.

Professor Doutor Antonio Torres Montenegro.


GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz; MONTENEGRO, Antonio Torres. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.28, n.1, jan / jun, 2010. Acessar publicação original [DR]

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