Sérgio Buarque de Holanda: 80 anos de Raízes do Brasil / Revista Brasileira de História / 2016

Sérgio Buarque de Holanda e seu mais famoso livro, Raízes do Brasil, vêm despertando a atenção de pesquisadores de vários campos do conhecimento – história, ciências sociais, literatura etc. – há décadas. Ou melhor, desde as últimas décadas do século XX, já que o interesse pelos grandes autores do pensamento social brasileiro, entre os quais Sérgio Buarque, pode ser datado, grosso modo, dos anos 1980. A própria categoria, “pensamento social brasileiro”, também nome de Grupo de Trabalho da Associação Nacional de Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), difundiu-se a partir de então. Do mesmo modo, mais especificamente nos domínios dos historiadores, o estudo dos chamados intérpretes do Brasil foi se impondo como uma exigência, na medida em que a história da historiografia se tornou área de trabalho e especialização, delimitada, estabelecida e florescente, além de contar com muitos participantes. Os debates ocorridos em mesas-redondas e seminários temáticos da Anpuh, em todo esse período, sejam regionais ou nacionais, são indicadores do fato.

Os anos 1990 e seguintes registraram, assim, o aparecimento de diversas pesquisas que se dedicaram à trajetória de autores e livros; a seus contextos de ação e produção editorial; aos diálogos que mantiveram com o “pequeno mundo intelectual” de sua época; à recepção que tiveram quando do lançamento de seus livros; à fortuna crítica posterior de suas obras etc. Com vários instrumentais teórico-metodológicos, o que só fez enriquecer o conjunto, a bibliografia sobre o tema cresceu em número e sofisticação. Um movimento que se articulou à afirmação da história cultural no Brasil e no mundo, com atenção especial sendo dirigida à história do livro e da leitura, à história dos intelectuais, à história dos conceitos, à história das ciências e à história da historiografia, como mencionado. A quantidade e variedade de fontes para o desenvolvimento desse trabalho também se multiplicou, bem como a preocupação em traçar os vínculos entre o que se pensava e fazia no Brasil e fora do Brasil.

Pode-se dizer, contudo, que alguns autores ocuparam lugar de relevo nessa reconfiguração do campo da história e das ciências sociais, e esse é caso de Sérgio Buarque de Holanda e de seu livro de estreia. Raízes do Brasil foi publicado em 1936 pela editora José Olympio, a mais prestigiosa do país na época, inaugurando a coleção Documentos Brasileiros. Ela era então dirigida por Gilberto Freyre, também prefaciador do volume, um nome já consagrado por livro igualmente clássico: Casa-grande e senzala (1933).

Na historiografia, Sérgio Buarque de Holanda se afirmaria – como certamente desejou desde os anos 1950 – entre as maiores referências da disciplina, talvez ao lado, apenas, de Varnhagen e Capistrano de Abreu. Nem tanto, me parece, de Caio Prado Júnior, cuja contribuição não tem, até hoje, o status que a de Sérgio Buarque ganhou. Quanto a Oliveira Vianna, para retomar as referências de Antonio Candido em seu famoso prefácio à 5a edição de Raízes do Brasil, de 1969, o caminho seguiu outro curso. Nas ciências sociais, ambos são reconhecidos entre os maiores pensadores da sociedade brasileira, formando com Alberto Torres, Sílvio Romero, Azevedo Amaral e outros, um conjunto de intérpretes decisivos para o contexto histórico anterior à redemocratização de 1945. Porém, de antípoda de Sérgio Buarque, Oliveira Vianna foi se tornando seu interlocutor, o que deu mais dinamismo às análises sobre esses autores e permitiu melhor conhecimento do campo intelectual das décadas de 1930 e 1940.

Uma transformação que tem claros vínculos com o crescimento dos estudos interdisciplinares sobre a construção de memórias individuais e coletivas, em que se reconhecem os esforços dos próprios indivíduos e dos guardiões de sua memória em produzir uma imagem de intelectual para seus contemporâneos e para a posteridade. Algo que igualmente interferiu na própria forma como todos os autores que contribuíram para o conhecimento (histórico ou qualquer outro) são pensados e tratados nas pesquisas mais recentes: sem mitificações e em redes de sociabilidade. Uma postura que busca uma mais proveitosa compreensão e, por conseguinte, uma melhor avaliação de suas contribuições, o que gera maior reconhecimento e não o contrário.

Justamente por tudo isso, a comemoração dos 80 anos da primeira edição de Raízes do Brasil não poderia passar em branco em uma revista como a RBH. Mas, também por tudo isso, considerei, como organizadora do Dossiê, que essa era uma excelente oportunidade para tratar de Sérgio Buarque de Holanda como um autor que teve uma rica e instigante trajetória, com atuação multifacetada como intelectual, tanto antes como depois de seu mais famoso livro. Este, portanto, é um Dossiê que parte de Raízes do Brasil, não se atendo, propositadamente, a esse livro, embora ele seja central para muitos dos artigos que o compõem, como o leitor verá.

O Dossiê é composto por sete artigos. Como abertura, temos o texto de Ronaldo Vainfas, sugestivamente intitulado “O imbróglio de Raízes: notas sobre a fortuna crítica da obra de Sérgio Buarque de Holanda”. Nele, Ronaldo começa por observar como a recepção desse livro, de um lado, acabou por obscurecer a produção historiográfica posterior de Sérgio Buarque, que só começou a ter reedições praticamente nos anos 1970; e de outro, paradoxalmente, como Raízes demorou a ser reconhecido quando de sua publicação, pois sua segunda edição data de 1948, 12 anos depois da primeira. Demarcando a parca repercussão inicial do livro, ele chega ao citado prefácio de Antonio Candido, que produz um duradouro e quase canônico enquadramento do livro e do autor, este como o de um “democrata radical”. A partir daí, o texto se abre para o debate de diversas questões que têm marcado as apreciações sobre a obra de Sérgio Buarque, algumas delas que serão discutidas com mais ênfase em outros artigos do Dossiê. Estão em pauta o planejamento inicial de Raízes, que envolveria o projeto de uma “Teoria da América”, e as ideias que ele abraçava ou rejeitava ao escrevê-lo. Outra vez, volta-se à apreciação de Candido que, vale lembrar, data de momento em que o Brasil mergulhava nos anos sombrios e violentos da ditadura civil-militar, instalada em 1964. Nessa viagem sobre o imbróglio de Raízes, muitos dos mais atentos analistas de Sérgio Buarque são visitados, o que tece para o leitor uma espécie de mapa de por onde andar para melhor conhecer o autor de tantos e tão diferenciados comentadores. Por fim, o próprio Sérgio é também mobilizado como figura decisiva que é na construção da fortuna crítica de sua obra, em especial porque o leitor é advertido de que nem todas as questões têm respostas completas.

Os dois artigos que se seguem versam sobre as raízes de Raízes do Brasil, escolhendo abordagens originais e provocadoras. Lilia Moritz Schwarcz e Pedro Meira Monteiro produzem um inusitado encontro, com doses de desencontro, entre os literatos Sérgio Buarque de Holanda e Lima Barreto, no Rio de Janeiro das décadas iniciais da Primeira República. Fazem-no como uma estratégia para recuperar os desdobramentos do ambiente político e estético da capital federal sobre os intelectuais que aí trafegavam, dando destaque aos anos 1920, quando Sérgio Buarque estabelece constante interlocução com Mário de Andrade, sendo, ao lado de Prudente de Morais Neto, um dos editores da revista modernista Estética. No artigo, os autores se beneficiaram muito do fato de terem organizado juntos a edição crítica comemorativa dos 80 anos de Raízes do Brasil, bem como de estarem trabalhando nas biografias de Lima Barreto (Lilia) e de Sérgio Buarque (Pedro). Dois autores que praticamente nunca são cotejados, porque frequentemente vistos como opostos: Sérgio, um modernista, e Lima, um antimodernista, nas letras e na vida. Porém, na vida e na história intelectual muitas vezes as coisas não são bem assim. É o que pretendem demonstrar, sobretudo no que diz respeito às desconfianças sobre o liberal regime republicano; algo que poderia ter ressoado em Raízes, anos depois. Da mesma forma que Ronaldo, Lilia e Pedro concluem seu texto com “discreta inquietação”.

Sérgio da Mata em “Tentativas de desmitologia: a revolução conservadora em Raízes do Brasil” mergulha fundo em um dos pontos que mais têm agitado os debates sobre autor e livro, desde que eles começaram a se fazer. Trata-se de esquadrinhar as leituras e apropriações do jovem Sérgio Buarque, no que se refere à “constelação de autores ligados à chamada ‘revolução conservadora’ alemã da época da República de Weimar”. Ou seja, a questão do germanismo desse intelectual, que teria voltado ao Brasil com um plano do livro (não executado), o que faz Sérgio da Mata recolocar em pauta e dialogar com diversos e recentes estudos sobre essa questão, levando-nos a Berlim e aos bastidores de Raízes. Recorrendo à documentação inédita e investindo numa escrita de tom biográfico – “quase sempre, a biografia de um livro está umbilicalmente ligada à de seu autor” -, ele constrói sua interpretação valendo-se, para prazer do leitor, de correspondência e anotações feitas por Sérgio Buarque em seus livros, agora acessíveis pela disponibilização da biblioteca na Unicamp.

Já os dois artigos que dão continuidade ao Dossiê podem ser lidos em duas chaves fundamentais, uma de forma e outra de conteúdo, que poderiam ser enunciadas como “a escrita de Sérgio Buarque de Holanda: o ensaio e as fronteiras”. Assim, Fernando Nicolazzi, para situar Raízes do Brasil na tradição do ensaio de interpretação histórica, gênero muito praticado no Brasil durante a primeira metade do século XX, dedica-se a fazer uma longa análise das formas de escrita do que eram os estudos históricos desde 1830 até 1930 / 40. O artigo é minucioso ao acompanhar intelectuais, como o romântico Gonçalves de Magalhães, passando por autores de textos famosos, produzidos no IHGB – como o discurso do cônego Januário da Cunha Barbosa, a proposta de Von Martius e a dissertação de Cunha Matos -, para chegar a Varnhagen, Sílvio Romero, Pedro Lessa e também Capistrano de Abreu e Oliveira Vianna. É dessa forma que ele examina “as condições de emergência da tradição do ensaio”, para defender que nelas estão presentes “as relações entre a erudição crítica, definidora do método histórico, e a intenção sintética, característica da filosofia da história moderna”. Dessa forma, acredito, o artigo vai se prestar aos interessados nos debates travados no período, a respeito da escrita não só da história como também das ciências sociais, todas ainda muito próximas, quando não inseparáveis, da literatura.

Robert Wegner é o autor do artigo que vai apontar o contexto de elaboração do projeto que marcaria a trajetória de Sérgio Buarque após Raízes do Brasil. Segundo ele, tal projeto é concebido como uma alternativa à tradição ibérica que reinava no livro de estreia, constituindo-se no estudo da história da sociedade paulista. Assim, ele vai se centrar na expansão territorial e nos caminhos que levaram “os paulistas” ao traçado de novas fronteiras para o Brasil. Daí o tema das bandeiras e monções, que tinham, aliás, forte tradição no estado, bastando lembrar os nomes de Afonso Taunay, Alcântara Machado, Alfredo Ellis Jr., Cassiano Ricardo e outros, na poesia, no romance e na pintura histórica, por exemplo. Por isso, seu belo título: “A montanha e os caminhos: Sérgio Buarque de Holanda entre Rio de Janeiro e São Paulo”.

Dois artigos encerram o dossiê, voltando-se, mais uma vez, para os projetos de Sérgio Buarque e a fortuna crítica de sua obra. Giselle Martins Venancio e André Furtado irão focar no trabalho desenvolvido pelo autor ao organizar a coleção História Geral da Civilização Brasileira (HGCB), publicada pela editora Difusão Europeia do Livro (Difel) nas décadas de 1960 e 1970. Assumindo o formato de coletânea, considerado inovador ante o modelo experimentado com sucesso desde os anos 1920 / 30, como ilustram as coleções Brasiliana (da Companhia Editora Nacional) e Documentos Brasileiros (da José Olympio), a HGCB inauguraria outro tempo em termos editoriais. A essa coleção Sérgio Buarque se dedica com afinco, sendo o organizador dos volumes sobre Colônia e Império. Neste último caso, entretanto, ele acabaria sendo o principal autor, o que conduz o artigo a uma análise sobre o tipo de tratamento que foi dado à monarquia brasileira. Retomando a questão do projeto de “teoria da América”, presente em artigos anteriores, Giselle e André defendem que Sérgio Buarque o teria em mente ao situar o Império sob a ótica da historiografia latino-americana, inovando ao estabelecer novos marcos cronológicos para o período.

No último artigo, de Thiago Lima Nicodemo, Sérgio Buarque e Antonio Candido se encontram mais uma vez, desta feita no traçado de uma biografia cruzada, que remete ao tema da construção de memória daquele autor, mas em outra perspectiva. A interlocução montada entre os dois parceiros ressalta questões-chave no trato com intelectuais, quais sejam, os processos de apropriação de ideias, os dilemas e formas de engajamento político e os esforços para a delimitação de uma “obra” que guarde coerência com a figura de um “autor”. Dessa maneira, acredito que o Dossiê se soma à produção já vasta e cuidada sobre Sérgio Buarque de Holanda, inovando em pontos muito frequentados e polêmicos, o que é marca de boa contribuição intelectual.

Ângela de Castro Gomes – Professora titular da Universidade Federal Fluminense (UFF); professora visitante nacional sênior da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio). E-mail: [email protected]


GOMES, Ângela de Castro. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.36, n.73, set. / dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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