Modernismos | Revista Brasileira de História | 2022

O Theatro Sao Pedro no inicio do seculo XX Imagem Fabiana Crepaldi
O Theatro São Pedro no início do século XX | Imagem: Fabiana Crepaldi

Em memória de Nicolau Sevcenko, historiador do modernismo e dos “seus frementes anos 1920”.

Em um texto de intenções um tanto polêmicas, o crítico estadunidense Harris Feinsod, estudioso de literatura e cultura modernistas, evoca o poeta russo-revolucionário Maiakovski: “Parem de uma vez por todas essas reverências contidas em efemérides de centenários, a veneração por meio e publicações póstumas. Tenhamos artigos para os vivos! Pão para os vivos! Papel para os vivos!” (Feinsod, 2016, tradução nossa). Nessa mesma linha, Feinsod declara: “Há muitas razões para se apavorar com a chegada do ano de 2022”.

De fato, por inevitável que seja, toda comemoração, e todas as efemérides de centenários em especial, correm o risco de promover mais esquecimentos do que memória, mais ocultamento e exclusão do que aprofundamento e análise. Em todo caso, espera-se que, em alguma medida, o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, com suas celebrações laudatórias, mas também com suas contestações e seus deslocamentos críticos, ofereçam menos uma falsa aparência de coerência, como sugere Feinsod, do que uma oportunidade de expansão de um arquivo vívido e palpitante, sempre em transformação e em movimento. Eis, pois, a “beleza do vivo”, para pôr o mote de Michel de Certeau às avessas, aqui em questão. Leia Mais

Brasil: do ensaio ao golpe (1954-1964) | Revista Brasileira de História | 2004

Disse o poeta que o historiador “veio para ressuscitar o tempo e escalpelar os mortos”. Fiel ao vaticínio, este número da Revista Brasileira de História escarafuncha a memória de um lugar e de um tempo crítico para a nacionalidade: o Brasil, do ensaio ao golpe: 1954-1964. Nem lamentação, nem regozijo encontraremos nas páginas seguintes. Nos depararemos com história, ou melhor, historiografia. Mas não há nesse encontro descabida pretensão de prioridade ou de originalidade. Pelo contrário.

Há dez anos, isto é, três décadas após o golpe de Estado de 1964, a própria RBH publicava um dossiê com as mesmas características do presente número. Naquele momento, o título da revista er a Brasil 1954-1964, e trazia matérias representativas de uma radiografia de então sobre o conhecimento historiográfico do período. Estavam ali presentes temas como a atuação das esquerdas, a análise da historiografia sobre o golpe, a ação política dos camponeses e de trabalhadores urbanos, o comunismo, o nacionalismo nas relações externas, a vinculação entre política e cultura etc. Os recursos metodológicos adotados eram os mais variados, denotando a influência expressiva de novos métodos e abordagens da história cultural já então consolidados. A preocupação com o conceitual relativo à história do tempo presente era evidente. Na composição dos artigos, os historiadores valiam-se de instrumental tradicional como a pesquisa em periódicos, em papéis partidários ou em documentos de Estado, mas recorriam também à produção artística, às evidências fotográficas, às memórias e às histórias de vida. Leia Mais

Negacionismos e usos da história | Revista Brasileira de História | 2021

Bolsonaro Negacionismos
Negacionismos | Fotomontagem: Jornal da USP

Como certos passados, sistematicamente escrutinados pelos historiadores, amplamente debatidos e largamente documentados, podem ser simplesmente negados ou apresentados como invenções motivadas por interesses escusos? O que leva grupos e indivíduos a duvidarem da existência do Holocausto, da ditadura militar brasileira, dos incontáveis genocídios ao redor do mundo ou da escravidão que, ao longo de mais de três séculos, moldou as formas sociais do capitalismo moderno? Quais são as operações intelectuais, afetivas, políticas e ideológicas que envolvem e inscrevem os desafios e interrogações lançados pelos negacionismos à história, como conhecimento organizado do passado, aos seus usos políticos, apropriações e condições de produção da verdade?

Estas questões estiveram nas origens deste dossiê e agora são aprofundadas pelos artigos que o compõem. Eles apresentam um arco diversificado de reflexões acerca das variadas formas de visibilidade do negacionismo e do revisionismo ideológico no espaço público, bem como se propõem a pensar o papel da escrita da história e dos historiadores em seu enfrentamento. Evidentemente, explorar todas as respostas possíveis para as perguntas anteriores nos levaria a perscrutar um domínio inalcançável de análises produzidas por áreas que, ao longo das últimas décadas, procuraram decifrar a complexidade do fenômeno negacionista. Nossos objetivos são outros. Leia Mais

A História Antiga entre o local e o global: integração, conflito / Revista Brasileira de História / 2020

História Antiga: Diferentes Perspectivas

O presente dossiê surgiu em atendimento a uma chamada dos editores da Revista Brasileira de História e foi operacionalizado mediante uma rede de trabalho muito mais ampla do que aquela visível pelos nomes de seus organizadores. Desse modo, inicialmente, gostaríamos de agradecer aos colegas da coordenação do Grupo de Trabalho em História Antiga da Associação Nacional de História (GTHA-Anpuh), professores Alex Degan e Fábio Morales, ambos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que contribuíram para o sucesso dessa iniciativa ao lado do professor Dominique Santos, da Universidade de Blumenau (Furb), também integrante da Coordenação Nacional do GTHA-Anpuh e um dos editores do dossiê. O agradecimento é extensivo à comunidade de Antiquistas brasileiros, que atuou de forma intensa na divulgação deste dossiê tanto no Brasil quanto no exterior. A existência de diversos núcleos, laboratórios e grupos de pesquisa espalhados pelo Brasil [1] e com sólidas redes de colaboração internacional é a base sólida que permite que os estudos sobre a Antiguidade e suas recepções tenham se consolidado cada vez mais, a ponto de podermos construir um dossiê como este na Revista Brasileira de História. Essa ampla rede de cooperação representada pelas diversas ações regulares do GTHA-Anpuh [2] permitiu que o dossiê, apesar de ter sido lançado no final do ano e com prazo relativamente curto, encontrasse excelente acolhida. Desde o início, a contribuição da equipe da Revista Brasileira de História, muito particularmente do editor, professor Valdei Lopes de Araujo (Ufop), e do secretário, Marcus Vinicius Correia Biaggi (Anpuh), foi diligente, próxima e indispensável. As antiquistas que compõem o Conselho Editorial da Revista Brasileira de História, professoras Helena Papa (Unimontes) e Katia Pozzer (UFRGS), foram muito presentes, apoiando nosso trabalho em diversos momentos. Expressamos nossa gratidão!

Foram recebidas 15 excelentes contribuições de autores brasileiros e estrangeiros para a nossa chamada. Nesse ponto do processo, ganhou destaque e merece nosso mais efusivo agradecimento o trabalho dos pareceristas que se dedicaram não apenas a avaliar, mas também a qualificar com o máximo rigor e critério cada uma das propostas. A tarefa não era simples: havia 15 propostas muito qualificadas e só poderíamos publicar nove delas, por conta das normas do periódico. No total, trabalhamos com 36 pareceristas sediados no Brasil e no exterior para construirmos um quadro que permitiu a escolha cuidadosa dos artigos aqui apresentados. Essa seleção é ilustrativa, ainda que não seja exaustiva, da diversidade das pesquisas feitas pela nossa comunidade. Em que pese essa diversidade, há ainda alguma unidade que reflete o eixo proposto para o edital desde sua chamada inicial, que se expressava nestes termos:

Os desdobramentos dos vários processos de globalização e seus conflitos ao longo da história colocam em debate qual o papel das dinâmicas locais e de suas articulações ou interconexões em esfera global. Tal pauta assume relevância especial no tempo presente, em que a globalização apresenta paradoxalmente claros contornos de violenta exclusão. As pesquisas nesse campo para a Antiguidade são tão importantes que têm levado a uma redefinição do campo, como se vê em obras como Corrupting Sea, de Peregrine Horden e Nicholas Purcell (Horden; Purcell, 2000), e História Antiga, de Norberto Luiz Guarinello (Guarinello, 2013). As diversas abordagens teóricas, pensadas através dos processos de helenização, romanização, cristianização ou mediterranização, e também das críticas a seus limites, expressos sobretudo nas abordagens pós-coloniais e decoloniais, expressam a diversidade de estudos que temos produzido e debatido. Esse dossiê pretende servir como momento para um balanço e avaliação de possibilidades futuras de investigação.

Esses estudos sobre a Antiguidade que temos produzido e debatido no âmbito do GTHA-Anpuh, contudo, não se limitam à pesquisa sobre as sociedades antigas. Parte fundamental de nossas reflexões se volta para as tradições e representações que se produziram tendo como base fundamental a Antiguidade (tanto tradições intelectuais acadêmicas quanto culturais, expressas em linguagens tão diversas quanto as óperas e as séries em streaming, chegando aos jogos tradicionais ou de computador e narrativas populares e jornalísticas). Os estudos sobre os usos dos passados perpassam os vários momentos da existência de sociedades diversas ao longo do tempo. Isso ocorre com a nossa sociedade e com muitas e muitas outras que tomaram e tomam as várias Antiguidades como referência para se pensar a si mesmas (e é decisivo refletir criticamente sobre essas identidades construídas arbitrariamente por diferentes sociedades para si mesmas). O estudo da Antiguidade, sabemos, não pode ser pensado sem uma reflexão sistemática e aprofundada sobre os usos do passado, que são centrais para o estudo e releitura crítica desses passados (tanto os “antigos” quanto os que tomaram a esses “antigos” como elementos fundamentais para a construção de sua contemporaneidade, como apontam os estudos de François Hartog, na França, Francisco Murari e Pedro Paulo Funari, no Brasil, e José Antônio Dabdab Trabulsi com sua produção franco-brasileira).

Nesse campo dos usos do passado, ainda, assume relevância o ensino da História Antiga nos diversos níveis. O GTHA-Anpuh teve essa pauta no centro de seus debates desde sua criação (Silva, 2001), mas conheceu forte impulso a partir do debate sobre o lugar do Ensino da História com a reforma do Ensino Médio e a criação da BNCC no Brasil, além das mudanças que têm ocorrido na forma de se pensar o Ensino no mundo todo. Isso tem alimentado a discussão sobre esferas específicas no campo dos estudos sobre os usos do passado no que se refere especialmente à Antiguidade com a intensificação dos debates e o aprofundamento de práticas voltadas também para as atividades de Extensão. Esse movimento é percebido tanto pelo crescimento dos trabalhos apresentados nos encontros do GTHA-Anpuh quanto pelo aumento das publicações em nossos periódicos especializados.[3]

Em síntese, como expressa o título, este dossiê se volta à reflexão dos debates atuais na e sobre a História Antiga que têm sido produzidos no Brasil e no mundo, face aos dilemas e conflitos produzidos pela globalização e seus efeitos, sejam os positivos como os adversos. Trata-se, acima de tudo, de avivar e registrar um debate entre o mundo atual (em sua diversidade) e mundos antigos (idem), cuja conjunção permite fertilizar e tornar mais plural o próprio campo da História.

As contribuições publicadas neste dossiê refletem diferentes olhares para esse eixo geral proposto pelos editores. Problematizando as obras de Benjamin Isaac (2004) e Susan Lape (2010), Félix Jácome Neto faz importantes reflexões sobre racismo, etnocentrismo e preconceitos culturais. Localizando as deficiências conceituais e argumentativas dos discursos dos dois autores, Jácome Neto questiona a tese de uma suposta continuidade entre o racismo antigo e o moderno, pois as relações étnicas na Grécia Antiga seriam mais bem compreendidas se pensadas como formas não hereditárias de preconceito cultural ao invés de racismo, que tem uma história específica ligada à colonização europeia e ao tráfico negreiro da época moderna. Trata-se, então, de uma investigação sobre a relação entre etnicidade antiga e racismo moderno, com suas continuidades e permanências.

O estudo das recepções da Antiguidade e Usos do Passado se estabeleceu como um dos campos da área de História Antiga. Glaydson José da Silva, Pedro Paulo Funari e Renata Senna Garraffoni lembram, no entanto, que a reutilização do passado em contextos posteriores já era uma prática na própria Antiguidade. A frase de Horácio (epis., Il, 1, 156-7) “Graecia capta ferum victorem cepit et artes / Intulit agresti Latio” (“a Grécia conquistada conquistou a seu feroz conquistador e introduziu as artes no agreste Lácio”) é apenas um dentre tantos exemplos. Tais práticas tiveram continuidade com o Cristianismo, o Renascimento etc. Assim, há muito a ser explorado sob essa perspectiva. Objetivando compreender melhor esse fenômeno, os autores apresentam uma análise dessa dinâmica nos estudos de História Antiga e das definições, aproximações e distanciamentos entre recepção e usos do passado, contemplando, ainda, uma análise específica do caso de Curitiba, mostrando como a presença da Antiguidade greco-romana se manifesta na realidade brasileira.

Essas camadas temporais são exploradas e aprofundadas tanto nos artigos de Camila Ferreira Paulino da Silva e Leni Ribeiro Leite quanto no de Anderson Zalewski Vargas. No primeiro caso, investigam-se alguns usos do passado no próprio passado, quando as autoras discutem como o poeta Horácio se apropriou da tradição retórico-poética romana e grega de forma a estabelecer sua posição frente à sociedade romana, no contexto de alargamento de fronteiras e de fabricação de um novo regime político durante o Principado de Augusto. Ou seja, como estratégias retóricas foram utilizadas para fabricar, reinventar, atualizar, redefinir e reescrever o passado posicionando-o em relação aos jogos de poder em Roma. O tema da retórica também é predominante no segundo caso. No artigo de Vargas, porém, são avaliadas as dinâmicas entre Antiguidade e Contemporaneidade. O autor analisa como os recursos retóricos clássicos foram utilizados para persuadir os leitores do jornal Correio da Liberdade, publicado em Porto Alegre em 1831. A temática da recepção da Antiguidade no periódico gaúcho é percebida sobretudo a partir da peculiar apropriação da tirania ateniense de Pisístrato em matéria sobre o regime político brasileiro da época.

Em “Palavra de mulher”, Marta Mega de Andrade investiga a ação política das mulheres na história grega antiga, sobretudo na pólis. Compreendendo a questão como contemporânea, a autora analisa tragédias, comédias e epigramas funerários dedicados às mulheres no final do século V e início do século IV a.C, em Atenas, para pensar a persistência de requisições femininas aquém do direito políade, validadas pela comunidade e pela dimensão da “vida comum”, mesmo que as “vozes” não sejam passíveis de identificação a uma autoria feminina. A dimensão do cotidiano também é um espaço / tempo da política, e lá poderemos perceber esse logos gunaikos, uma “palavra de mulher”.

O estudo da chamada cultura material é fundamental para a compreensão das temáticas da área de História Antiga. Considerando isso, Gilberto da Silva Francisco, Haiganuch Sarian e Fábio Vergara Cerqueira partem do estudo de caso de uma ânfora de tipo panatenaico em figuras vermelhas atribuída ao artesão caracterizado como Pintor de Nicóxeno, conhecida na historiografia da área como “ânfora de Mississípi 1977.3.115”, para retomarem a Arqueologia da Imagem e posicioná-la entre a iconografia clássica e a cultura material. Para tal, discutem-se os conceitos de suporte e de contexto, elementos básicos para o tratamento arqueológico das imagens, realizando um debate teórico sobre esse tipo de metodologia. Pensando um mediterrâneo globalizado, os autores chegam à conclusão de que a integração não uniformizava a relação entre os povos específicos e o universo material ao seu redor. Assim, não se pode atribuir naturalmente um significado ático para imagens produzidas na Ática. Ao contrário, a imagem precisa ser pensada em um complexo quadro envolvendo materiais, circulação e recepção.

Essas complexas relações entre o local e o global também são temas das análises do austríaco Raimund Karl, da Bangor University. Autores clássicos, como Políbio, César, Estrabão e outros, escreveram sobre os “Celtas”, mas a Arqueologia permite realizar leituras diversas e aprofundar o conhecimento sobre esses atores históricos da Antiguidade. As fontes históricas clássicas e a Arqueologia não estabelecem uma relação simples de complementaridade, mas permitem colocar questões diversas e relativamente autônomas. A partir de algumas questões que percebeu quando coordenava um projeto sobre o sítio arqueológico de Meillionydd, na Península de Llŷn, localizada no País de Gales, Karl problematiza as diferenças, integrações e conflitos entre as várias sociedades “célticas” da Europa e seus vizinhos, bem como o próprio uso da temática “céltica”, tanto em passados mais recuados quanto em mais recentes.

Horacio Miguel Hernán Zapata questiona o pretexto de que não seria interessante para nós, latino-americanos, estudar a História Antiga oriental porque a temática não responderia aos interesses “nacionais” e não seria necessária para nosso contexto. Respondendo a esse tipo de provocação, o autor aponta três razões e algumas reflexões, defendendo que a História Antiga daquela parte do mundo é fundamental para nós e pode funcionar como uma espécie de “laboratório” que colabora para que possamos pensar todo um conjunto de diferenças socioculturais acerca dos modos de experiência social sob uma perspectiva histórica. Reconhecer essa diversidade de formas em que pode materializar-se a experiência humana ao longo da História é fundamental para nossa contemporaneidade.

Um exemplo da temática proposta por Zapata é apresentado no artigo de Jorge Elices Ocón, que aborda os monumentos antigos em contextos islâmicos. Analisando o discurso elaborado pelo DAESH, o autor aponta que, por trás de um caráter radical e destrutivo, a narrativa daquele grupo esconde complexos argumentos relacionados com a narrativa histórica que se objetiva construir a partir da Arqueologia, dos monumentos e dos museus. O grupo islâmico se apropria das ideias do discurso ocidental e colonialista e reinventa o passado, não somente ocultando a realidade de um tráfico de objetos antigos, mas também destruindo outras percepções dos monumentos elaboradas pelas comunidades locais a partir de suas memórias e tradições.

Como é possível perceber, desde que Eurípedes Simões de Paula – membro fundador da Anpuh e um de seus primeiros presidentes – deu as primeiras aulas de História Antiga em uma Universidade Brasileira, a área não parou de se ampliar, se ressignificar e se reinventar. Parte inseparável da historiografia brasileira, os debates produzidos pela área de História Antiga em nosso país têm colaborado para pensarmos questões sociais, econômicas e culturais próprias do nosso tempo, afinal, como dizia Benedetto Croce, “Ogni storia vera, è storia contemporanea” (Croce, 1912), e, de igual modo, Lucien Febvre, “L’histoire est fille de son temps” (Febvre, 1942, p. 2). Em um mundo cada vez mais glocal, é importante debatermos essas realidades interconectadas, evitando o que a escritora nigeriana Chimamanda Adichie chamou de “the dangers of a single story” (Adichie, 2009). Este dossiê aponta alguns direcionamentos. Boa leitura!

Notas

  1. Para uma informação detalhada sobre os grupos de pesquisa a que nos referimos, cf. o (novo!) sitedo GTHA: https: / / www.gtantiga.com / laboratorios-e-grupos-de-pesquisa. Acesso em: 11 maio 2020.
  2. O GTHA realiza, entre outras ações, um Encontro Nacional bianual e participa regular do Simpósio Nacional de História com a promoção de Simpósios Temáticos. Além disso, o GTHA mantém uma fanpageno Facebook e contas em outras redes sociais. Para deta- lhes, cf. https: / / www.gtantiga.com / . Acesso em: 11 maio 2020.
  3. Silva; Oliveira, 2017. Cf. dossiê completo: www.revistas.usp.br / marenostrum / issue / view / 10208. Acesso em: 11 maio 2020.

Referências

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. The Danger of a Single Story. TEDTalks, TEDGLOBAL, 2009. Disponível em: Disponível em: https: / / goo.gl / 3BdPCc . Acesso em: 11 maio 2020. [ Links ]

CROCE, Benedetto. Storia, cronaca, e false storie. Memoria letta all’Accademia pontaniana nella tornata del 3 novembre 1912 dal socio Benedetto Croce. Atti dell’Accademia Pontiana, v. XLII. Napoli: F. Giannini e figli, 1912. [ Links ]

FEBVRE, Lucien. L’incroyance au XVIe siècle: la religion de Rabelais. Paris: Albin Michel, 1942. [ Links ]

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SILVA, Gilvan V. da. Editorial do GT de História Antiga. Hélade, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, p. 6-7, 2001. Disponível em: Disponível em: http: / / www.helade.uff.br / Helade_2001_volume2_ numero2_NE.pdf . Acesso em: 11 maio 2020. [ Links ]

SILVA, Uiran G. da; OLIVEIRA, Gustavo J. D. Editorial. Mare Nostrum – Estudos sobre o Mediterrâneo Antigo, v. 8, p. iv-vii, 2017. [ Links ]

Fábio Faversani – Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), Mariana, MG, Brasil. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0002-3464-1020

Dominique Vieira Coelho dos Santos – Universidade de Blumenau (Furb), Blumenau, SC, Brasil. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0002-0265-2921

Cristina Rosillo-López – Universidad Pablo de Olavide, Sevilla, España. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0001-5451-841X


FAVERSANI, Fábio; SANTOS, Dominique Vieira Coelho dos; ROSILLO-LÓPEZ, Cristina. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.40, n.84, mai / ago., 2020. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Fronteiras Amazônicas / Revista Brasileira de História / 2019

A Amazônia e as fronteiras da História

Em audiência ocorrida no Senado brasileiro, no mês de junho de 1976, o paisagista e expoente do naturalismo Burle Marx denunciava que a Amazônia havia sido vítima do maior incêndio da história do planeta. Os satélites da Nasa tinham então registrado uma queimada florestal de 25 mil km2 no sudeste da região. A área atingida situava-se na intersecção de várias fazendas de gado. O fato foi amplamente comentado na imprensa internacional. Aquecia-se o debate em torno das estratégias desenvolvimentistas para se superar o chamado atraso regional (Acker, 2014, p. 22-23). No último quartel do século XX, a Amazônia tornou-se um capítulo importante da contestação da noção de progresso. Nela, o rápido avanço de novas frentes de exploração capitalista (protagonizado por grandes projetos agrominerais e por agências governamentais) era representado pelas classes dirigentes brasileiras como a aceleração do tempo histórico tendo em vista a antecipação do desenvolvimento. O otimismo em relação à alavancagem dos índices de bem-estar da população regional por meio de grandes projetos entrou em crise sobretudo nos anos 1980. Ao lado da denúncia dos negativos impactos sociais causados pela expansão das frentes de exploração, ganhava força a tese de que era necessária e urgente a criação de formas de produção econômica que não destruíssem a natureza e os modos de vida tradicionais.

Enfocar as fronteiras amazônicas nos permite colocar em discussão balizas de grandes narrativas históricas. De um lado, noções como progresso e atraso têm aí se desdobrado em formação de latifúndios, degradação ambiental e trabalho escravo ou degradante, num flagrante contraste entre promessa e realização. Por outro lado, a história nacional pretensamente monocultural encontra na sua diversidade sócio-histórica uma via de deslegitimação. Como já apontara Certeau (2008, p. 89), os fenômenos de fronteira nos possibilitam colocar em xeque modelos totalizantes, pois o contato com o diferente abala a pretensão de universalidade daquilo que, na verdade, é apenas uma parte. Dentro mesmo do espaço amazônico tem ocorrido, nas últimas décadas, a institucionalização de territórios (terras indígenas e quilombolas, reservas extrativistas, unidades de conservação ambiental…) visando à preservação da natureza e dos chamados povos tradicionais. Trata-se do desdobramento de uma longa história de lutas que foram conformando fronteiras intrarregionais ainda hoje contestadas, ameaçadas e corajosamente defendidas (Wanderley, 2018). Amazônias indígena, quilombola, ribeirinha e urbana, entre outras, compõem um mosaico que nega noções generalizantes como inferno verde, espaço vazio, região-problema… Noções que mais ocultam do que elucidam.

Ao possibilitar a problematização de abordagens totalizantes a história das fronteiras faz avançar as fronteiras da História. Trata-se de um campo temático fronteiriço, de caráter interdisciplinar, pois se constrói num permanente diálogo com a Antropologia, a Sociologia e a Geografia. Desde o final do século XIX avolumou-se a massa de publicações de militares, diplomatas e geógrafos que viam no estudo dos limites um importante instrumento de fixação da imagem do Brasil-República como nação. Raja Gabaglia, Everardo Backheuser e Jorge Latour, para ficar em poucos exemplos de destaque, mediante a apropriação de postulados de teóricos como Friedrich Ratzel e Camille Vallaux, criaram influente tradição intelectual centrada no imperativo da vivificação das zonas limítrofes do território nacional. A partir de um diálogo com a obra de Frederick Turner, Leo Waibel e Pierre Monbeig inauguraram, na década de 1940, duradoura e prolífica corrente interpretativa, cuja compreensão de fronteira conduzia à noção de frente pioneira (Sprandel, 2005, p. 153-203).

Os estudos publicados no Dossiê “Fronteiras amazônicas” da Revista Brasileira de História se inscrevem num movimento de renovação das formas de se entender e abordar as experiências fronteiriças. Nos últimos anos, pesquisadores das Ciências Humanas e Sociais passaram a elucidar múltiplas práticas de fronteirização, visíveis ou não, em distintas escalas e com uma infinidade de propósitos (Grimson, 2003Boccara, 2007Oliveira, 2016Benedetti, 2018). Os novos estudos nos lembram que os espaços não são desde sempre recortados, delimitados, enfim, diferenciados. O processo de constituição de fronteiras deve ser compreendido à luz de contextos e sujeitos históricos específicos. Conquistas, conflitos, negociações, alianças e outros meios têm ensejado, na Amazônia, assim como em outras partes do Brasil e do mundo, sobreposições territoriais, ou fronteiras dentro da fronteira. Além disso, os sujeitos que aí vivem estabelecem relações e constituem redes que por vezes nos obrigam a relativizar a definição de fronteira como margem e a compreender constructos geográficos policêntricos, assim como polissêmicos.

Ganham destaque nas páginas deste Dossiê os discursos sobre a fronteira. Científicos, literários, diplomáticos, cartográficos e outros, ao longo do tempo, tais discursos depositaram camadas de significados que foram se sedimentando e gerando formas de imaginação espacial. Esses regimes de representação orientaram intervenções estatais no mundo da vida e ainda hoje são usados como justificativa de ações autoritárias, colonialistas e, portanto, não abertas ao diálogo com os sujeitos que vivem na e da fronteira, sobretudo com os dominados ou subalternizados. A relação entre saber e poder é destacada nos quatro primeiros artigos. Rômulo de Paula Andrade nos apresenta uma Amazônia rasgada pela política de rodovialização da década de 1960. A floresta abre então seus arcanos, revelando novo ecossistema viral e, deste modo, ensejando o avanço da fronteira do saber acerca das doenças tropicais. Francisco Bento da Silva e Gerson Rodrigues de Albuquerque abordam a retórica colonialista estruturante do relato de Paul Walle, publicado em 1910. Os autores apontam que esse viajante francês, atento à competição comercial entre os países colonizadores europeus pelos mercados da periferia global, produziu uma narrativa que, ao mesmo tempo, hierarquiza povos e exalta o potencial econômico do bioma amazônico. O artigo de Márcia Regina Capelari Naxara aborda escritos literários do início do século XX cujas páginas desvelam lugares sombrios: florestas tropicais que escondem seus segredos e riquezas do olhar cobiçoso e curioso do ádvena. No contexto de franco avanço imperialista das potências econômicas sobre o Sul global, as narrativas de Joseph Conrad e Alberto Rangel representam como trágico o fim das incursões “civilizatórias” nos vales do Congo e do Amazonas. O texto de Carlo Maurizio Romani analisa o litígio anglo-brasileiro pela posse da área fronteiriça do Pirara (situada entre o que hoje são o estado de Roraima e a Guiana). O autor argumenta que a superioridade dos investimentos científicos ingleses foi algo decisivo no arbitramento internacional, que culminou em decisão desfavorável ao Brasil.

Os três artigos seguintes analisam as convergências, incongruências e divergências entre agentes estatais (portugueses, espanhóis e franceses), povos indígenas, negros que fugiam da escravidão e missionários que atuaram na Amazônia, durante os dois primeiros séculos de sua colonização. Abordando o processo de demarcação de limites realizado a partir do Tratado de Santo Ildefonso (1777), Adilson Junior Ishihara Brito aponta para a importância econômica e geopolítica dos rios nas disputas das Coroas de Portugal e Espanha por territórios americanos. Numa atmosfera de desconfianças, as autoridades portuguesas usaram de estratégias variadas para não perder o controle de vias fluviais, tais como: mapeamento científico, descimentos de indígenas e improvisação de povoamentos. O artigo de Rafael Ale Rocha destaca que a constituição da fronteira não se dá apenas por meio de tratados (como o de Utrecht), pois ela decorre, amiúde, da desobediência, da rebeldia e da mobilização de sujeitos, como indígenas, negros e desertores. O autor também elucida como, no Cabo Norte da primeira metade do século XVIII, os aruãs usaram a situação de fronteira em proveito próprio. As fugas, o estabelecimento de alianças e o trato do comércio são sendas por onde podemos entrever o protagonismo de povos indígenas que então viviam na região da foz do rio Amazonas. Por fim, Roberta Lobão Carvalho enfoca o desencaixe e as divergências entre as expectativas da Coroa portuguesa e os interesses de grande parte da elite do Grão-Pará nas primeiras décadas do século XVIII. A pesquisadora igualmente põe em relevo os atritos entre membros do governo local e jesuítas, ocorridos por causa da espinhosa questão do controle do trabalho indígena.

O amplo e variado espectro de questões abordadas neste Dossiê evidencia a complexidade da história das fronteiras amazônicas e o trabalho competente de historiadores, de diferentes gerações, no sentido de compreendê-la. Resta desejar a todos uma mui proveitosa leitura.

Referências

ACKER, Antoine. “O maior incêndio do planeta”: como a Volkswagen e o regime militar brasileiro acidentalmente ajudaram a formar a Amazônia em uma arena política global. Revista Brasileira de História, São Paulo: Anpuh, v. 34, n. 68, p. 1333, 2014. [ Links ]

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Sidney Lobato – Universidade Federal do Amapá (Unifap), Departamento de Filosofia e Ciências Humanas (DFCH), Macapá, AP, Brasil. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0002-2357-3667


LOBATO, Sidney. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.39, n.82, set / dez, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Rios e Sociedades / Revista Brasileira de História / 2019

Movimentos dos rios / movimentos da História

Aos que entram nos mesmos rios afluem outras e outras águas.

Heráclito, fragmento 12, 2012, p. 47.

A relação estreita entre o desenrolar da história humana e os movimentos das águas na superfície terrestre, especialmente os movimentos dos rios que cruzam os continentes para além dos espaços litorâneos, pode ser pensada, de início, por meio de algumas poderosas metáforas. Heráclito de Éfeso, no século VI a.C., usou o rio como imagem da história em seu sentido mais amplo: o próprio fluxo da existência. A renovação permanente das águas do rio, que ao mesmo tempo persiste como uma unidade definida pelas suas margens, indica o jogo complexo entre mudança e continuidade que pode ser observado no acontecer do mundo. Milênios mais tarde, em seu livro clássico, publicado em 1946, O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na Época de Filipe II, Fernand Braudel também usou o movimento das águas como metáfora para os diferentes níveis de profundidade em que se pode analisar a História, apresentando os “acontecimentos” como “cristas de espuma levantadas pelo poderoso movimento das marés” (Braudel, [1946]1995, p. 25).

Essas metáforas, assim como várias outras que poderiam ser mencionadas, adquirem um sentido humano concreto nas inumeráveis situações em que sociedades interagiram de maneira intensa com sistemas fluviais, de modo que estes últimos se tornaram agentes importantes para definir a localização geográfica e o próprio devir da vida cultural, social e econômica. Pensando apenas no mundo contemporâneo, pode-se observar como a proximidade e a relação intensa com rios de tamanho significativo ou, em sentido mais amplo, com bacias hidrográficas, estabeleceram padrões recorrentes no desenvolvimento de grandes cidades, de complexos agrícolas (em grande parte dependentes de obras de irrigação) e de estruturas industriais (que se valem dos rios para construir intrincados fluxos e metabolismos socioambientais que passam pela entrada constante de matéria e energia e pela saída de produtos mercantilizáveis e dejetos poluentes). Além dos exemplos acima, poderiam ser mencionados inúmeros outros casos históricos em que assentamentos humanos, dinâmicas de transporte, movimentos de lazer e turismo, expressões culturais e artísticas e crises de saúde pública, entre outros, passaram por uma interação aturada com sistemas fluviais.

No caso do território brasileiro, foco do presente Dossiê, é importante ressaltar que não se pode entender a formação da sociedade nacional, em sua grande diversidade, sem levar em conta o espaço continental onde o país foi construído, marcado por enormes e complexas redes fluviais. A vida social aqui existente, em sua variedade geográfica, econômica e cultural, interagiu de maneira acentuada com esse movimento incessante das águas, seja em termos de mobilidade, de processos de territorialização, de práticas culturais ou de dinâmicas de exploração econômica. Os rios também estiveram muito presentes nos conflitos armados e nas disputas por domínio político regional, assim como na própria construção objetiva do Estado nacional e de suas instituições. Amazonas, São Francisco, Paraná e Tietê, entre tantos outros rios, tornaram-se ícones no imaginário do Brasil. A interação com os rios, que já era essencial para as sociedades indígenas, transformou-se em aspecto inescapável da vida concreta das sociedades na América portuguesa e no Brasil enquanto país, inclusive nos seus espaços litorâneos.

Apesar da existência de farta documentação sobre o mundo dos rios em diferentes países, além da sua presença marcante em inúmeras descrições da vida social em diferentes latitudes, a atenção específica e explícita ao tema fluvial por parte da historiografia foi relativamente modesta até as últimas décadas. Em meados do século XX, no entanto, foi possível observar um esforço de inovação no recorte dos objetos de análise histórica, para além daqueles baseados em países e regiões definidos segundo um critério essencialmente político. Dentro dessa abertura, onde se situa o recorte da Zona da Mata nordestina como objeto de análise por Gilberto Freyre em 1937, ou do Mar Mediterrâneo por Fernand Braudel (no livro já citado de 1946), um importante precedente foi estabelecido por Lucien Febvre e Albert Demangeon com a publicação em 1935 de seu livro O Reno: Problemas de História e de Economia. Ironicamente, no entanto, uma iniciativa semelhante foi realizada quase ao mesmo tempo pelo escritor e jornalista Emil Ludwig, que em 1937 publicou um livro sobre a história de vida do rio Nilo (Ludwig, 1937). É natural, porém, que a obra de Febvre, por apresentar uma densidade de pesquisa bem mais sólida, tenha marcado com muito mais relevância a cena historiográfica. É certo que o trabalho foi escrito com uma clara perspectiva antropocêntrica, procurando descartar qualquer vestígio de determinismo geográfico. A ideia central é a do rio forjado pela história humana, mais do que pela natureza. O foco são as questões político-econômicas, servindo o rio como uma espécie de espelho geográfico para pensar, por exemplo, a transformação das fronteiras nacionais na Europa.

No período mais recente, já sob influência da nova história ambiental que emergiu a partir da década de 1970, a literatura histórica específica sobre os rios cresceu muito, tanto em termos quantitativos quanto no aspecto da diversidade temática. Não seria o caso de resumir essa literatura no curto espaço desta Apresentação.[1] De toda forma, uma tendência que se pode ressaltar na literatura recente, mesmo que de maneira muito geral, é a de considerar os rios em si mesmos, na sua materialidade biofísica e sociotécnica. Ou seja, ir além da visão do espelho exógeno que serve mais que tudo para observar diferentes aspectos da vida social. Os rios, nessa perspectiva, são introduzidos no corpo da história, nos seus movimentos endógenos. A materialidade dos rios, incluindo suas transformações ao longo da história, expressa em si mesma a rede de interações sociais, tanto culturais quanto tecnoeconômicas, que com ela vem interagindo. Essa mesma materialidade, porém, inclusive nos seus aspectos biofísicos e ecológicos, participa e influencia no destino dessa rede complexa (que vem sendo conceituada mediante expressões como sócio-natureza ou devir biocultural). Um trabalho de grande influência, que abriu importantes horizontes dentro dessa nova perspectiva, foi o livro de Richard White The Organic Machine: The Remaking of the Columbia River (White, 1995). Nesse livro, o rio Columbia é visto como uma paisagem híbrida construída pela natureza e pelas diversas intervenções sociotécnicas e culturais ao longo do tempo. A materialidade do rio, além disso, expressa as diferenças de concepção e de interesse dos vários atores sociais que com ele interagiram, tornando-se ao mesmo tempo um fenômeno material e um espaço em disputa.

Em que momento os historiadores se debruçaram sobre a história das intricadas relações entre rios e populações no Brasil? Talvez, uma historiografia muito centrada no litoral e na sua oposição ao sertão, como matriz fundante de uma ideia de nação (notadamente, a partir de finais do século XIX), tenha subestimado essa temática. De toda forma, uma historiografia mais explícita e substantiva com relação ao tema dos rios começou a emergir no país em período recente, na virada para o século XXI – o que não significa dizer que não existia nada de relevante no passado. Ao contrário, existe uma interessante herança intelectual a ser redescoberta nesse campo. É possível encontrar, em alguns historiadores do século XX, importantes análises indiretas que, sem tomar os rios como eixo do recorte analítico, perceberam muito bem a sua presença marcante em diferentes momentos da história do país. Cabe destacar, por exemplo, as fortes descrições de Gilberto Freyre na década de 1930, no livro já mencionado (Freyre, [1937]2004), sobre as dinâmicas de envenenamento dos rios do Nordeste pelos resíduos das usinas de açúcar. Ou então, de maneira ainda mais notável, os trabalhos de Sérgio Buarque de Holanda, nas décadas de 1940 e 1950, sobre a centralidade da navegação fluvial nos movimentos de exploração dos sertões do Centro-Oeste partindo de São Paulo. O livro Monções, de 1945, em especial, apresentou elegantes e inovadoras análises sobre as relações entre rios e sociedades naquele contexto, particularmente pelo conceito de “estradas móveis”, que foram pensadas, de maneira próxima das tendências mais recentes, em sua própria materialidade, considerando detalhadamente as corredeiras e cachoeiras, os períodos de cheias etc. Ainda em 1948, inspirado pelo tema da expansão paulista e pelo trabalho de Emil Ludwig, o poeta Humberto de Mello Nóbrega publicou um livro que recortava de forma inovadora, ao menos no contexto nacional, um rio específico como objeto de análise histórica. Apesar de não ser uma análise profunda, o livro História do Rio Tietê (Mello Nóbrega, [1948]1981) é bastante abrangente e informativo, discutindo diferentes aspectos da relação entre a sociedade paulista e aquele rio – desde os esforços para promover sua navegação até, por exemplo, seu papel como inspirador de arte e literatura. Na formulação do próprio autor, porém, o rio é visto “ora como cenário, ora como comparsa”, já que o protagonismo é sempre do homem.

Nas décadas seguintes, alguns ensaios foram publicados sobre rios emblemáticos, como no caso do São Francisco e do Amazonas,[2] mas trabalhos situados no quadro de uma historiografia acadêmica, com maior elaboração teórica e metodológica, só irão aparecer nas portas do século XXI. É o caso do belo trabalho de Victor Leonardi sobre o complexo do rio Negro e suas cidades abandonadas: Os historiadores e os rios: natureza e ruína na Amazônia brasileira (Leonardi, 1999); do amplo estudo de Haruf Espindola sobre a ocupação histórica de um importante vale fluvial entre Espírito Santo e Minas Gerais: Sertão do Rio Doce (Espindola, 2005); do estudo de Janes Jorge sobre o rio Tietê na cidade de São Paulo, mostrando a relevância de aproximar história urbana e história fluvial: Tietê – o rio que a cidade perdeu (Jorge, 2006); por fim, da rica e diversificada coletânea organizada por Gilmar Arruda com o título de A natureza dos rios (Arruda, 2008). Esses trabalhos, já participando de um diálogo aberto com a historiografia internacional e com a perspectiva da história ambiental, abriram caminho para o tipo de historiografia profissional e mais rigorosa, apesar da sua variedade de enfoques, que poderemos encontrar nos autores que responderam ao chamado para o presente Dossiê. Uma historiografia que se aproxima da temática dos rios a partir de diferentes dimensões e recortes, explorando as ricas conexões ecológicas, geográficas, socioeconômicas e culturais que podem ser observadas com relação ao mundo dos rios em diferentes momentos e lugares da história do Brasil.

O artigo de André Vasques Vital recupera a história do Território do Acre de princípios do século XX, no contexto de desenvolvimento da economia da borracha na Amazônia brasileira. Com base em uma discussão com bibliografia recente, o autor discute os limites da agência histórica pensada apenas a partir da ação humana. Seu texto aprofunda uma importante reflexão sobre o papel do rio Iaco, suas dinâmicas de cheias e vazantes e as consequências e imprevisibilidades desse regime na ação humana. Assim, os tumultuosos acontecimentos políticos e econômicos ocorridos no Território do Acre, depois de sua anexação ao Brasil, ganham novos sentidos também pela atuação (imprevisível muitas vezes) do rio e pelas implicações das dinâmicas fluviais (como o incremento de doenças decorrentes das águas empoçadas). O rio Iaco é aqui uma “coisa-poder”, nas palavras do autor, fundamental para compreender as articulações políticas locais da região.

Ana Lucia Britto, Suyá Quintslr e Margareth da Silva Pereira abordam a transformação da região da Baixada Fluminense entre finais do século XIX e a primeira metade do século XX. Apoiadas em uma sólida reflexão sobre os rios na historiografia, tanto no campo da história ambiental como no campo da história dos sistemas sociotécnicos, as autoras desvendam como os rios da região foram alvo de diversas formas de intervenção ao longo do tempo. Mais ainda, examinam os impactos dessas intervenções desde finais do século XIX. Trata-se de entender como se articularam as dinâmicas fluviais com as dinâmicas sociais, entendendo os rios como “sistemas tecnológicos e ambientais”. É a partir de meados do século XIX, com a introdução da ferrovia, que a região e seus rios sofrem transformações significativas. De região rica passa a ser considerada área insalubre e improdutiva, o que ensejará, nas primeiras décadas do século XX, diversas intervenções, no sentido de sanear a região e torná-la produtiva. Esse processo, levado a cabo pelo Estado, dá ensejo ao surgimento de uma “hidrocracia” responsável pelas políticas de intervenção nos rios da Baixada Fluminense.

Gabriela Segarra Martins Paes analisa o mito dos negros d’água do rio Ribeira de Iguape, na região do Vale do Ribeira. Trata-se de recuperar e compreender as matrizes culturais e os significados atribuídos pela população da região à existência desses seres encantados aquáticos geralmente identificados com um rapaz negro de baixa estatura, muitas vezes com pés e mãos de pato. O mito relaciona-se com a presença de africanos escravizados na região, desde o século XVII, e com as modernas comunidades remanescentes de quilombo. A autora aprofunda a sua reflexão, mostrando a relação histórica entre os escravizados da região do Vale do Ribeira e a África Centro-Ocidental, onde estavam enraizadas crenças acerca de espíritos das águas. Revela assim os diversos pontos em comum entre as crenças dos dois lados do Atlântico, como o local de habitação dos seres encantados e os temas do sequestro de mulheres, do sentido ventura-desventura e da relação e interferência entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Na realidade, o mito dos negros d’água remete ao tráfico negreiro e à escravidão. De fato, envolve a travessia de águas e o renascimento num novo mundo (muitos negros d’água teriam sido capturados e gerado descendência na região), mas também a violência (seus pés e mãos eram cortados), o aprendizado de uma nova língua, a relação entre seres diferentes e o uso do sal associado ao batismo. Enfim, para Gabriela Paes, o enraizamento do mito na região decorre da sua capacidade de “servir de metáfora” da experiência da viagem atlântica e da própria escravidão.

O texto de Henri Acselrad retoma as experiências dos atingidos pela construção da barragem da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, no estado do Pará, nos anos 1970 e 1980. O barramento do rio Tocantins implicou não somente a inundação de uma imensa área para conformação do lago da usina. Teve, de fato, inúmeras implicações do ponto de vista ambiental (como a decomposição da matéria orgânica que ficou debaixo da água), por ensejar o aparecimento de pragas de mosquitos, por exemplo, mas igualmente do ponto de vista social. Inúmeros grupos populacionais que havia séculos viviam no e do Tocantins tiveram sua vida alterada, sendo deslocados para outros espaços ou para novos espaços criados pelo barramento. Essas populações heterogêneas, que viviam ao longo do curso do rio, mobilizaram-se contra autoridades públicas e empresariais, ligadas ao empreendimento, para denunciar os desmazelos, a negligência e a violência que significou esse processo. O texto, entretanto, não examina exatamente esses movimentos, mas sim, de maneira muito original, o processo de produção escrita dessas populações atingidas, por meio de manifestos, cartas, boletins e cordéis. A produção e circulação de impressos por parte de uma população vinculada majoritariamente à tradição oral permitiu transformar “um caso em uma causa”. Isso significou o aparecimento de um “novo autor” da história do rio – os atingidos pela barragem. O escrito produzido e publicado pelos diversos grupos afetados permitiu, assim, não somente a produção de um registro sobre a memória do rio Tocantins, mas também a produção de um registro para a ação. A força do “artefato impresso” reside na duração que lhe permite ser “recebido e reconhecido”. Nesse sentido, os impressos produzidos pelos atingidos pela barragem do rio Tocantins fizeram parte de suas lutas e serviram como forma de rememoração dessas próprias lutas.

Iane Maria da Silva Batista e Leila Mourão Miranda retomam a questão dos rios da Amazônia, mas a partir de uma perspectiva distinta do texto de Acselrad, embora se referindo ao mesmo contexto. As autoras partem de uma reflexão sobre os usos e representações das águas e de como essas formas se transformam ao longo do tempo. Assim, notadamente a partir da segunda metade do século XX, os rios se reconfiguram em recursos naturais por parte do Estado e de interesses privados. Disso deriva, desde os anos 1950, o seu reconhecimento para os planos de desenvolvimento da região, principalmente, relacionados aos projetos de exploração das riquezas minerais da Amazônia. Esse processo de comoditização da água, por meio da construção de usinas hidrelétricas na região amazônica, fez os rios se tornarem lugares de “hidronegócios”. Ora, argumenta-se no texto, esse tipo de representação e uso da água dos rios da região vai de encontro a outras relações, construídas secularmente pelas populações da região. Mais ainda, a transformação da água dos rios em mercadoria tem causado enormes impactos socioambientais. As implicações da reconfiguração da água dos rios em mercadoria nos obrigam, desse modo, a repensar a relação que construímos com a água nas últimas décadas.

Haruf Salmen Espindola, Eunice Sueli Nodari e Mauro Augusto dos Santos exploram um acontecimento recente, um desastre, ocorrido há quase 4 anos. Trata-se do rompimento da barragem de Fundão, que pertencia a dois grandes grupos de exploração mineral: as empresas Vale S.A. e BHP Billinton. Para os autores, é preciso compreender o termo desastre numa perspectiva ampla, uma vez que a fatalidade significou não somente o rompimento da barragem, mas uma série de acontecimentos que envolveram e ainda envolvem áreas rurais, áreas urbanas, rios, reservas e a zona costeira, impactando a vida de seres humanos, da flora e da fauna. O artigo revela a complexidade das consequências do desastre, uma vez que os efeitos (e as ações mitigadoras) foram diversos ao longo de toda a área afetada. O texto introduz, também, a noção de “incerteza” para se pensar a constatação de que a mineração industrial representa um “grande risco” (não há aqui como não pensar no recente caso do desastre de Brumadinho). A reflexão do texto finalmente aborda o problema da diversidade de narrativas sobre o acontecimento, envolvendo diferentes grupos e instituições, muitas vezes contraditórias entre si, ensejando o próprio aumento das incertezas.

Por fim, o texto de Cristina Brito examina, por meio dos rios, a relação das sociedades com os manatis, na América colonial. A partir de uma reflexão sobre o lugar dos rios, a autora busca compreender a relação histórica com esses animais, inclusive na sua dimensão simbólica. Para ela, os manatis (como os rios) se tornaram metáforas dos “ritmos naturais e sociais”. Assim, a autora examina diversas representações textuais e imagéticas desses animais, produzidas no período colonial, mostrando como a chegada dos europeus à América impactou as populações dos manatis e como se reconfiguraram as representações sobre eles (embora estas não tenham sido muito abundantes). Discutem-se no texto até mesmo os múltiplos usos e representações indígenas sobre os manatis, com base na documentação produzida por europeus. A reflexão de Cristina Brito insere-se numa discussão sobre a relação entre o mundo humano e o não humano. Trata-se aqui de frisar o próprio protagonismo desses animais aquáticos no seu percurso de interações com as sociedades indígenas e com a sociedade colonial. Segundo a autora, os rios (onde habitavam os manatis) podem ser pensados como lugares de confluência de interações entre seres humanos e entre eles e os animais, enfim, entre “pessoas e a natureza”.

Rio poder; rio saneado; rio metáfora; rio protesto; rio negócio; rio desastre; rio animais. Embora referindo-se ao mesmo objeto – a história dos rios e sua relação com as sociedades -, os enfoques apresentados pelos textos deste Dossiê não somente são muito diversos, mas igualmente dialogam com campos de conhecimento distintos. Mais ainda, tratam de espaços / tempos múltiplos: a América colonial, os vários rios da Amazônia, do século XIX ao século XX, o rio Ribeira de Iguape e a África, a Baixada Fluminense da virada do século, o rio Doce de “ontem”. O que articula as discussões presentes neste Dossiê é certamente a necessidade de incorporar os rios – na sua agência, nas suas representações, na sua simbologia, nos impactos da ação antrópica sobre eles, enfim, na sua complexidade – à reflexão dos historiadores. É que, para um país composto por uma intrincada rede de milhares de rios, oficialmente agrupados em 12 bacias hidrográficas, não há como esquecer que, embora em grande parte ignorada, a “fluvialidade” é parte fundamental da formação histórica do Brasil.

Notas

  1. Uma amostra bastante significativa, reunindo historiadores de vários países, pode ser encontrada em MAUCH; ZELLER, 2008.
  2. Vale mencionar, por sua qualidade, trabalhos como O Médio São Francisco(LINS, 1952), O rio comanda a vida: uma interpretação da Amazônia (TOCANTINS, 1952) e Jângala: Complexo Araguaia (BERNARDES, 1994). Em período mais recente, é importante citar a informativa e interessante trilogia, com bastante material histórico, publicada pelo jornalista Marco Antônio Coelho: Rio das Velhas: memória e desafios (COELHO, 2002); Os descaminhos do São Francisco(COELHO, 2005) e Rio Doce: a espantosa evolução de um vale (COELHO, 2011).

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José Augusto Pádua – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Instituto de História, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0002-4524-5410

Rafael Chambouleyron – Universidade Federal do Pará (UFPA), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Faculdade de História, Belém, PA, Brasil. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0003-1150-5912


PÁDUA, José Augusto; CHAMBOULEYRON, Rafael. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.39, n.81, mai / ago., 2019. Acessar publicação original [DR]

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Por Escravos e Libertos / Revista Brasileira de História / 2018

Dossiês em Perspectiva

Antes de adentrar o tema escolhido para este Editorial (a organização de dossiês), não podemos deixar de chamar a atenção para o fato de a Revista Brasileira de História vir a público num momento muito tenso da história do Brasil. Após a decisão do eleitorado no segundo turno em 28 de outubro de 2018, o presidente eleito Jair Messias Bolsonaro começa a definir seu Ministério e suas principais políticas para a gestão que começará em 1º de janeiro de 2019. Entre as políticas anunciadas que causam justificadamente mais controvérsia estão: 1) a vinculação do Ensino Superior ao Ministério da Ciência e Tecnologia, saindo do Ministério da Educação (MEC); 2) o apoio à aprovação do Projeto de Lei 7180 / 2014, que institui a chamada “Escola sem Partido”, ameaça à liberdade de ensino e uma forma de discriminar e, eventualmente, punir docentes por pretensos “delitos de opinião”; 3) a promessa de intervenção na autonomia universitária. Tudo isso significará, para a disciplina História, muitos desafios, e exigirá muita atenção e resistência. A Associação Nacional de História (Anpuh-Brasil) une-se a outras associações científicas no intuito de garantir a liberdade de pensamento e o crescimento da qualidade da pesquisa e do ensino de História.

A publicação de dossiês, ou seja, de conjuntos de artigos sobre uma mesma temática mais ou menos estrita, faz parte integrante dos periódicos acadêmicos e evoluiu em suas formas ao longo do tempo. Esse tipo de instrumento, mesmo se usado por títulos especializados, é de grande importância para publicações como a Revista Brasileira de História que, sumamente generalista, publica artigos sobre os mais variados temas. Os dossiês têm originalmente como função dar um estado da arte sobre o tema abordado. Mais ainda do que os próprios periódicos acadêmicos, que “fixam-se no presente”, perdendo muitas vezes sua atualidade com o tempo,1 os dossiês estão claramente vinculados ao momento em que são publicados, pretendendo dar a ver novas abordagens de temas antigos, e também temas novos, em todo caso em sua abordagem histórica. Isso, é claro, apesar de tudo o que escrevemos estar fatalmente vinculado ao seu tempo.

Pode, no entanto, acontecer de dossiês se tornarem clássicos da historiografia, como é o caso daquele organizado neste periódico por Silvia Hunold Lara sob o tema da escravidão há exatos 30 anos. Tratava-se de aproveitar o centésimo aniversário da Lei Áurea não para comemorá-lo, mas para dar a ver temas até então pouco ou nada abordados pelos historiadores, como o da criança e da família escravas, ou o da diversidade regional mas também social da escravidão no Brasil (Lara, 1988). Os historiadores então convidados a colaborar com a revista, já eram ou rapidamente se tornariam referências nos estudos sobre a condição escrava no Brasil, assim como os textos que aqui publicaram. Pareceu natural que chegando os 130 anos da abolição, a mesma especialista do tema coordenasse mais um número da RBH, não só por conta da efeméride, mas igualmente pelo fato de o tema da escravidão contemporânea e as discussões de como defini-la e combatê-la preocuparem cada vez mais historiadores e cientistas sociais.2 No entanto, diferentemente do que foi feito 30 anos atrás, não se buscou mostrar a diversidade de temas passíveis de serem abordados em torno do tema da escravidão, mas, com o foco na importância das experiências individuais para a compreensão da realidade histórica, a chamada feita por Lara para o dossiê deste ano buscou incitar a produção de textos sobre como os próprios cativos e os libertos entendiam e viam suas condições. Tendo em vista o modo como são atualmente produzidos os dossiês, os resultados foram diferentes do esperado, mas nem por isso (muito pelo contrário) insatisfatórios, como a Apresentação que se segue a este Editorial claramente mostra.

As mudanças no modo como o dossiê devia ser elaborado de 30 anos para cá levam a pensar nas justificativas dessa organização. Com efeito, em 1988 Silvia Lara convidou individualmente os possíveis autores e com eles dialogou – antes e depois da recepção dos textos – sobre o conteúdo do que seria publicado. Outro modelo de dossiê (ou de coletânea, como eram chamados) era a publicação de trabalhos apresentados em conjunto em eventos acadêmicos, como no nº 5 (1983), com publicações resultantes do encontro da diretoria da Anpuh durante a 34ª reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), sobre o tema “Documentação e pesquisa histórica”; ou ainda o nº 11 (1985 / 1986), com coletânea sobre “Sociedade e trabalho na História”, resultante do XIII Simpósio da Anpuh. Naquela época não se mobilizavam pareceristas, cabendo ao eventual organizador do dossiê, ao Editor e ao Conselho Editorial da revista decidirem sobre a relevância dos textos submetidos e, assim, sobre sua eventual aceitação ou recusa. O que se buscava, em 1988, era não só a qualidade dos textos, mas também certo diálogo entre eles e sua coesão, naquele caso relacionada à maior amplitude possível de abordagens.

Atualmente, os organizadores convidados elaboram a chamada do dossiê, que é aberta. Mesmo se um ou outro autor pode (e é) convidado a enviar um texto, sua submissão passa, como todos os demais textos da RBH, pelo processo de avaliação às cegas por pares. Uma primeira triagem feita pelo corpo editorial e pelos organizadores deixa de lado propostas que não se adequam à proposta do dossiê. Uma vez os textos retidos avaliados e aceitos pelos avaliadores, mesmo que condicionalmente, os organizadores também fazem correções e sugestões. Esse sistema de chamada universal e de avaliação às cegas, imposto pelas instâncias avaliadoras dos periódicos, tem como objetivo obter garantias da maior diversidade institucional dos autores e da maior isenção na avaliação possíveis. Ele tira uma parte do protagonismo dos organizadores, como de modo geral do próprio Editor, mas creio que apesar disso temos conseguido intervir positivamente nos dossiês. Se o sistema em uso poderia resultar em dossiês pouco coesos ou de relevância limitada, não é esse habitualmente o caso na RBH. Que o leitor o julgue.

O próprio formato dos dossiês mudou nas últimas décadas. Era habitual, nos anos 1980, haver dossiês sem apresentação específica; os artigos eram apenas publicados em conjunto sob um título único para o volume. Em outros casos a Apresentação, a cargo do Conselho Editorial, era bastante sumária e raramente fazia mais do que descrever os artigos publicados. Ultimamente a RBH vem pedindo aos organizadores apresentações mais densas, com algum tipo de discussão historiográfica que não só situe e justifique a temática abordada pelo dossiê, mas também se sustente enquanto contribuição acadêmica. Esperamos, com isso, que os dossiês aqui publicados tenham ganhado em relevância.

Desde que a RBH assumiu o formato quadrimestral, a praxe tem sido a publicação de dois números com dossiês por ano, deixando um número exclusivamente para artigos avulsos, o que não exclui estes últimos de também serem publicados nos outros números. Desse modo, o leitor encontrará aqui dois artigos de temática diferente da do dossiê. Os textos retidos abordam ambos a realidade política dos anos 1960 no contexto de maior tensão da Guerra Fria. O primeiro, de autoria de Rodrigo Patto Sá Motta, revê, nos 50 anos de sua promulgação, e a partir de fontes inéditas, as origens do Ato Institucional 5, chamando a atenção para o seu uso como instrumento de controle de segmentos integrantes do próprio campo do regime. Jaime Yaffé, por sua vez, analisa a atuação do Partido Comunista Uruguaio levando em conta suas posições heterodoxas entre a retórica incendiária cubana e o caminho pacífico, por via democrática, ao socialismo.

Este número também traz três resenhas, duas delas com análises de obras que dialogam com a temática do dossiê: “Por escravos e libertos”.

Ao lhes desejarmos uma boa leitura, não podemos deixar de agradecer ao Conselho Editorial, à Editoria Associada Internacional, aos Assistentes Editoriais Pablo Serrano e Marcus Vinicius Correia Biaggi, assim como à equipe de edição da RBH – Armando Olivetti, Flavio Peralta e Roberta Accurso.

RBH não teria a qualidade que tem sem o apoio do Programa de PósGraduação em História, Cultura e Práticas Sociais da Universidade do Estado da Bahia (PPGHCPS-Uneb) e do CNPq.

Notas

  1. Enquanto os livros, por exemplo, teriam uma temporalidade mais longa (CALDEIRA, 2018).
  2. Veja o evento organizado também por Silvia Hunold Lara no dia 24 de setembro deste ano sobre as “Condições de trabalho no Brasil contemporâneo: políticas públicas e memória institucional” na Unicamp (programa disponível em: https: / / www.foruns.unicamp.br / eventos / condicoes-de-trabalho-no-brasil-contemporaneo-1; acesso em: 29 out. 2018) e o livro recentemente publicado por Ângela de Castro Gomes e Regina Guimarães Neto (GOMES; GUIMARÃES NETO, 2018) sobre o trabalho forçado na Região Amazônica.

Referências

CALDEIRA, Ana Paula S. Editorial: o tempo das revistas. Varia Historia, Belo Horizonte: UFMG, n.65, 2018. http: / / dx.doi.org / 10.1590 / 0104-87752018000200001. [ Links ]

GOMES, Ângela M. de C.; GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. Trabalho escravo contemporâneo: tempo presente e usos do passado. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2018. [ Links ]

LARA, Silvia Hunold. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo: Anpuh, v.8, n.16, p.7-8, 1988. [ Links ]

Bruno Feitler – Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de História. Guarulhos, SP, Brasil. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0003-1468-5680


FEITLER, Bruno. Editorial. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.38, n.79, set / dez, 2018. Acessar publicação original [DR]

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História e Arquivo / Revista Brasileira de História / 2018

Arquivos sob ameaça: os perigos de uma política antiarquivística

Vivemos a era da extinção do papel. Não cabe aos historiadores assumirem uma posição conservadora, defendendo suportes documentais tradicionais. Porém, não cabe também a eles abraçarem ingenuamente a tecnologia. Duas iniciativas em curso devem ser acompanhadas com preocupação. Uma delas é a adoção, pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, do Sistema Eletrônico de Informações (SEI). Essa ferramenta consiste em um sistema informatizado de Gestão Eletrônica de Documentos (GED) e está sendo implantada na administração federal, sendo também crescentemente adotada por administrações estaduais e municipais. O SEI prevê a extinção, na administração pública, de documentos produzidos em papel. Frente a tal proposta, o Arquivo Nacional emitiu nota técnica afirmando que esse sistema não cumpre requisito algum de preservação digital, complementando: “O órgão ou entidade que adotar o SEI, ou qualquer outro sistema informatizado para a produção de documentos digitais, precisa prever uma política de preservação digital para garantir o acesso de longo prazo a estes documentos” (Arquivo Nacional, 2015, grifo no original).

Conforme é possível observar, no SEI, a preservação digital não é um requisito obrigatório, abrindo caminho para que muitos órgãos públicos não a implementem de fato. Além da insegurança jurídica que isso pode causar, também há o gravíssimo risco de perdas substanciais do patrimônio arquivístico brasileiro. Mais grave ainda é o Projeto de Lei (PL) 7.920 / 2017, que atualmente – ou seja, em junho de 2018 – tramita na Câmara de Deputados. Essa proposta, na forma de Projeto de Lei do Senado – PLS 146 (Senado Federal, 2007), foi aprovada nessa última casa legislativa. Na Câmara dos Deputados, a Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática votou favoravelmente ao PL 7.920, acrescentando “prazo mínimo de dois anos para guarda dos documentos após efetuar-se o processo de digitalização”. Esse acréscimo revela um desconhecimento monumental a respeito dos instrumentos legais (Tabelas de Temporalidade e Destinação de Documentos de Arquivo), que definem os prazos de guarda dos documentos públicos. Além disso, essa Comissão fez algumas alterações, no projeto original, no que diz respeito à certificação digital ou à menção ao Conselho Nacional de Arquivos (Conarq). Contudo, a essência do PLS 146 não foi alterada, pois continuou a admitir que: “O documento digitalizado produzido a partir do processo de digitalização disciplinado em regulamento terá o mesmo valor legal, para todos os fins de direito, do documento não digital que lhe deu origem” (Câmara dos Deputados, 2017).

Tais projetos também autorizam esses procedimentos em relação aos documentos privados, sejam de empresas ou pessoais. O PLS 146 indica, em seu artigo 1, que os “órgãos públicos federais, estaduais e municipais, e de entidades integrantes da administração pública indireta das três esferas de poder político serão regidos pela presente lei”. O Conselho Nacional de Arquivos (Conarq), órgão da administração pública federal encarregado de formular a política nacional de arquivos, emitiu nota técnica criticando duramente essas iniciativas. Alerta-se que a proposta de digitalização seguida da eliminação dos documentos originais “possui equívocos ao alterar importantes dispositivos legais”, pois extingue “a função genuína de ‘prova’ e / ou ‘testemunho’ de grande parte dos documentos arquivísticos” (Conselho Nacional de Arquivos, 2016). Mais ainda: “a fácil manipulação” das imagens digitais inviabiliza a “análise forense ou diplomática forense, em casos de contestação de veracidade, impugnação e / ou denúncias de adulteração e falsificação de documentos”.

Cabe aqui lembrar que esse debate não diz respeito aos documentos gerados em meio digital (os denominados nato-digitais), mas sim aos que são produzidos em papel e depois digitalizados. Embora a presença de documentos digitais seja comum, a maior parte da administração pública e privada brasileira ainda trabalha com sistemas híbridos, em que são produzidos documentos em formato digital e em suporte de papel. Além disso, o mais preocupante é que há imensos conjuntos documentais da administração pública, posteriores a 1950, ainda não avaliados e, portanto, não recolhidos aos arquivos públicos. Ao que tudo indica, eles seriam digitalizados e os respectivos originais seriam eliminados.

A eliminação em massa de documentos teria efeitos danosos ao patrimônio arquivístico brasileiro. O Conarq sublinha a inconsistência de um dos principais argumentos dos defensores dessas propostas. Esses últimos alegam que a medida implicaria substancial economia de recursos públicos, devido à “redução de áreas destinadas aos arquivos físicos” ou à “redução dos gastos com papel, o que favorece a preservação do meio ambiente”. Frente a esse argumento, a nota técnica do Conarq alerta que a “preservação e acesso de longo prazo” dos documentos digitalizados implica a “previsão de planejamento e investimentos constantes”, assim como “custos elevados com a manu­tenção do ambiente tecnológico ao longo dos anos”.

Os defensores do PLS-146, por sua vez, contra-argumentam que o segundo inciso do artigo 2 da versão do Senado prevê que: “Os documentos de valor histórico, assim declarados pela autoridade competente, embora digitalizados, não deverão ser eliminados, podendo ser arquivados em local diverso da sede do seu detentor”. Alerta semelhante pode ser observado na versão do texto que atualmente tramita na Câmara de Deputados: “A Administração Pública deverá preservar os documentos não digitais avaliados e destinados à guarda permanente, conforme previsto na Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991, ainda que também armazenados em meio eletrônico, óptico ou equivalente”. Destaca-se aqui a menção à Lei de Arquivos (Lei nº 8.159 / 1991), que prevê em seu Art. 9º: “A eliminação de documentos produzidos por instituições públicas e de caráter público será realizada mediante autorização da instituição arquivística pública, na sua específica esfera de competência”.

Cabe ainda sublinhar que em nenhum momento o PLS 146 ou o PL 7.920 definem as noções de “documentos de valor histórico” ou “destinados à guarda permanente”. Igualmente, não se define quem seria a “autoridade competente” ou o gestor da “Administração Pública” que se encarregaria de avaliar os documentos enquanto patrimônios históricos. Na prática, há risco de se preservar apenas os registros esparsos referentes às grandes personalidades, sem consideração por séries documentais de natureza econômica e demográfica, ou as demais que preservam registros da memória das camadas populares.

Em outras palavras, essas proposições normativas abrem as portas para que a escolha dos “documentos de valor histórico”, a serem preservados, fique sujeita a critérios altamente subjetivos do gestor público do momento. No contexto administrativo brasileiro, em que a gestão de documentos arquivísticos ainda está em fase de implantação, é bem provável que esses agentes simplesmente não considerem nenhum documento público como tendo “valor histórico”, eliminando sua totalidade após a reformatação digital. Dessa maneira, há grande chance de se perderem tanto os documentos originais quanto suas representações digitais, principalmente quando se tem em vista os elevados custos de mantê-las a longo prazo. Fere-se, assim, de maneira mortal a formação do patrimônio documental brasileiro. Caminha-se, na prática, para a legalização da destruição em massa dos documentos arquivísticos, seja em sua função de evidência, seja para o acesso a direitos ou para preservar a memória brasileira para as futuras gerações.

A Anpuh vem acompanhando esses debates e tem se posicionado claramente contra esses danosos projetos. O Dossiê publicado neste número, intitulado “História e Arquivo”, ao trazer um panorama da atual produção sobre a história dos arquivos e da arquivologia, tem como objetivo, em nome da Associação, alertar para as problemáticas que suscitam os projetos legislativos e administrativos em curso.

Este número da RBH apresenta, assim, novas perspectivas de análise sobre o patrimônio arquivístico e a arquivologia. Através da história desse campo de conhecimento, assim como das instituições e das políticas de formação de acervos, lança-se luz sobre as potencialidades de pesquisa nos, por assim dizer, “arquivos dos arquivos”, ou seja, na documentação acumulada pelos arquivos públicos no exercício de suas atividades. Procura-se também promover uma reaproximação entre a história e a arquivologia, áreas muito conectadas no passado, mas que conheceram desenvolvimentos específicos no século XX, gerando afastamentos ou mesmo mal-entendidos (Blouin Jr.; Rosenberg, 2011).

O primeiro texto do dossiê, de autoria de Angelica Alves da Cunha Marques, Georgete Medleg Rodrigues e Christine Nougaret, explora a evolução histórica da arquivologia no Brasil e na França, apontando influências e singularidades nas respectivas configurações nacionais dessa área, principalmente em sua relação com a ciência da informação. O segundo texto, de autoria de Ana Canas Delgado Martins, desvela as complexas relações da constituição do fundo Conselho Ultramarino, assim como de sua custódia, tema de grande importância para o Brasil e Portugal. O terceiro artigo, de Marcelo Thadeu Quintanilha Martins, traça a história do fundo arquivístico da Secretaria de Governo da Capitania de São Paulo, revelando as potencialidades dos estudos sobre a evolução desse tipo de custódia, tema ainda muito pouco conhecido no Brasil.

Rita Sampaio da Nóvoa e Maria de Lurdes Rosa investigam, em seguida, as potencialidades dos arquivos de família. Trata-se de um tema fundamental, não apenas para entender a gestão patrimonial privada no Antigo Regime, como também o próprio funcionamento da monarquia. Sabe-se que antes do surgimento dos arquivos nacionais, havia arquivos dinásticos (Delmas; Nougaret, 2004), que recolhiam documentação das casas aristocráticas responsáveis por várias funções do Estado. O estudo desses conjuntos documentais, que eventualmente também permaneceram em posse de famílias, em muito permite entender o funcionamento da antiga administração portuguesa no reino e ultramar. O texto seguinte, de Thiago Lima Nicodemo e Paulo Teixeira Iumatti, desloca o eixo de discussão para um tema caro ao Brasil: a escrita da história a partir dos arquivos pessoais, particularmente a história social e cultural dos intelectuais, como no caso das redes de sociabilidade que esse segmento constituía ou as relações que mantinha com a esfera pública, dimensões que ficaram ali registradas.

Em sua contribuição, Paulo Roberto Elian dos Santos aborda a formação do campo arquivístico do Brasil contemporâneo, focalizando a primeira grande reforma administrativa federal, ocorrida na década de 1930, responsável pela criação do Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp), que atuou como autoridade arquivística, influenciando em muito a constituição desse campo. O texto de Maria Teresa Navarro de Britto Matos desloca essa discussão para o caso da Bahia, onde tentativas de modernização do arquivo público estadual foram frustradas. Esse episódio revela a existência de agentes públicos que, embora sintonizados com a discussão contemporânea da gestão documental, não puderam contar com base política, ou mesmo apoio na burocracia estatal, para que suas iniciativas prosperassem. Complementando esse ambíguo quadro das iniciativas modernizantes, o texto de Clarissa Moreira dos Santos Schmidt, Renato de Mattos e Natalia Bolfarini Tognoli mostra a natureza fortuita da criação do Sistema Estadual de Arquivos em São Paulo da década de 1980. Esse caráter fortuito, ironizado no título do artigo, decorre do fato de essa iniciativa não ter sido precedida de diagnósticos da documentação e da infraestrutura existentes, assim como de estudos sobre o quadro de profissionais disponíveis ou das necessidades dos potenciais usuários desse sistema. Na realidade, tal iniciativa decorreu de um leilão ilegal de documentos. A desconexão entre essa iniciativa e a gestão documental talvez ajude a compreender o atraso em sua implantação. O caso paulista serve de exemplo da fragilidade das políticas arquivísticas e de sua demora de implantação no Brasil. Concluindo o Dossiê, Caio César Boschi apresenta o Projeto Resgate, iniciativa que influenciou uma geração de historiadores e foi responsável pela digitalização de milhões de páginas de acervos relevantes para a história luso-brasileira. Esse texto sintetiza a evolução e dilemas desse projeto e, de forma inédita, fornece um guia de seus principais instrumentos de pesquisa, também anunciando a retomada dos trabalhos após alguns anos de arrefecimento.

Esse conjunto de reflexões em muito contribui para entender a arquivística brasileira contemporânea. Embora a utilização de documentos de arquivo seja frequente em várias áreas de conhecimento, ainda são raras as histórias de sua custódia institucional e das formas de uso dessas fontes. Espera-se que os textos presentes no Dossiê inspirem novas investigações. Ainda há muito a ser estudado a respeito de como se deu a formação dos acervos arquivísticos luso-brasileiros ou as mudanças nas definições de fundos e coleções. Isso para não mencionar como esses registros foram utilizados na escrita da história política, econômica, social e cultural, ou quando, e de que forma, a antropologia, a sociologia, a ciência política e demais áreas do conhecimento começaram a recorrer a eles. Também se conhece muito pouco a respeito da evolução da gestão dos arquivos públicos brasileiros e de seus serviços, bem como sobre a história dos procedimentos técnicos de classificação dos documentos de arquivos, de sua avaliação, conservação, descrição, difusão e acesso.

Embora estudos seminais tenham sido realizados por vários historiadores e arquivistas (Santos, 2010Estevão; Fonseca, 2010Marques, 20132014Bellotto, 2014Bottino, 2014 – somente para citar alguns exemplos), esse continente de pesquisa ainda está à espera de novos e necessários desbravadores.

Para além do Dossiê, este número traz dois artigos avulsos. Numa abordagem original dentro da área da História dos esportes, Victor Andrade Melo e André Leonardo Chevitarese, recorrendo aos jornais da época, analisam aspectos sociais das atividades de um turfe carioca de fins do século XIX, o Prado Guarany. Já Wellington Castellucci Junior revela, pela trajetória de Marcos Pimentel e de seus descendentes, as origens da linhagem dos sacerdotes do candomblé Ilê Axé Opô Afonjá de Itaparica, e ao mesmo tempo traz um detalhado exemplo das estratégias de construção patrimonial de libertos na Bahia da segunda metade do século XIX. Finalmente, dentre as três resenhas publicadas, uma complementa em boa hora o Dossiê “História e Arquivo”. Nela, José Francisco Campos aborda a atualíssima questão da preservação dos arquivos nato-digitais por meio da análise de Existir em bits: arquivos pessoais nato-digitais e seus desafios à teoria arquivística, de Jorge de Abreu.

Ao lhes desejarmos uma ótima leitura, não podemos deixar de agradecer ao Conselho Editorial, à Editoria Associada Internacional, aos Assistentes Editoriais Pablo Serrano e Marcus Vinicius Correia Biaggi, assim como à equipe de edição da RBH – Armando Olivetti, Flavio Peralta e Roberta Accurso.

RBH não teria a qualidade que tem sem o apoio do Programa de Pós-Graduação em História, Cultura e Práticas Sociais da Universidade do Estado da Bahia (PPGHCPS-Uneb) e do CNPq.

Referências

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BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Arquivo: estudos e reflexões. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2014. [ Links ]

BLOUIN JR, Francis X.; ROSENBERG, William G. Processing the Past: Contesting Authority in History and the Archives. New York: Oxford University Press, 2011. [ Links ]

BOTTINO, Mariza. O legado dos congressos brasileiros de arquivologia (1972-2000). Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2014. [ Links ]

BRASIL. Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991. Dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 9 jan. 1991. Seção 1, p.457. Disponível em: http: / / www.planalto.gov.br / ccivil_03 / Leis / L8159.htm; acesso em: 20 jun. 2018. [ Links ]

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei nº 7.920, de 2017. Altera a Lei nº 12.682, de 9 de julho de 2012, a Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991, o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), a Lei nº 12.865, de 9 de outubro de 2013, e a Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), para dispor sobre a digitalização de documentos. Disponível em: Disponível em: http: / / www.camara.gov.br / proposicoesWeb / prop_mostrarintegra;jsessionid=421A6AC547B83C872583B3D3DBCC846C.proposicoesWebExterno2?codteor=1583747&filename=Avulso+-PL+7920 / 2017 ; acesso em: 18 jun. 2018. [ Links ]

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática. Projeto de Lei nº 7.920, de 2017. Altera a Lei nº 12.682, de 9 de julho de 2012, a Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991, o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), a Lei nº 12.865, de 9 de outubro de 2013, e a Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), para dispor sobre a digitalização de documentos. Disponível em: Disponível em: http: / / www.camara.gov.br / proposicoesWeb / prop_mostrarintegra?codteor=1632805&filename=Tramitacao-PL+7920 / 2017 ; acesso em: 20 jun. 2018. [ Links ]

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DELMAS, Bruno; NOUGARET, Christine. Archives et nations dans L’Europe du XIX siècle. Paris: Ecole Nationale des Chartes, 2004. [ Links ]

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Renato Pinto Venancio – Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Escola da Ciência da Informação, Departamento de Organização e Tratamento da Informação. Diretoria de Arquivos Institucionais (DIARQ-UFMG). Belo Horizonte, MG, Brasil. Editor convidado. Pesquisador do CNPq 1D. E-mail: [email protected]
http: / / orcid.org / 0000-0003-0819-3671

Bruno Feitler – Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de História. Guarulhos, SP, Brasil. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0003-1468-5680


VENANCIO, Renato Pinto; FEITLER, Bruno. Editorial. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.38, n.78, mai / ago., 2018. Acessar publicação original [DR]

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Centenário 1917: Grande Guerra, greves e revoluções / Revista Brasileira de História / 2017

Neste ano do centenário das grandes greves e revoluções ocorridas no contexto da Primeira Guerra Mundial e que, com ela, transformaram a face do mundo a tal ponto de inaugurarem o que alguns historiadores consideram um novo período histórico – o breve século XX, na expressão de Hobsbawm -, a Revista Brasileira de História não poderia deixar de apresentar ao público um conjunto de análises profundas e inovadoras sobre esses importantes eventos.

À data do centenário da Primeira Guerra Mundial, jay Winter, responsável por coordenar a importante Cambridge History of the First World War (Winter, 2014a), apresenta-nos quatro gerações de historiadores que se dedicaram e se dedicam ao estudo da Primeira Guerra Mundial (Winter, 2014b). Em 2004, o mesmo autor, em colaboração com Antoine Prost – autor de referência no estudo da guerra em França -, publicou Penser la Grande Guerre. Un essai d’historiographie.[1] Na obra declararam a existência de três gerações: “a primeira configuração explica a história pelas decisões dos atores; a segunda pelo jogo das forças sociais; a última faz da cultura o motor da história e encontra nela as suas explicações. As representações determinam os atos” (Winter; Prost, 2004, p.47-48).[2] Trata-se de um conjunto de movimentos que se seguem, coexistem e se entrecruzam. Um processo sempre em devir a que os contextos de produção de conhecimento não são inalienáveis. Atualmente, as “vanguardas” assumem um cunho transnacional, isto é, o foco é global na forma como atravessa as fronteiras nacionais, analisando experiências que, não obstante serem condicionadas por elas, se tornam globais (Winter, 2014b). Vejamos como Prost e Winter apresentam essas gerações historiográficas. A geração da Grande Guerra, contemporânea ao conflito e às suas consequências mais imediatas, foca sua atenção na ação do Estado. Numa análise de cima para baixo, procura apurar responsabilidades pela eclosão do conflito, entender as condições da sua origem e possíveis lições a serem aprendidas no sentido de evitar que se repita. Entre os anos 1960 e 1970, mudanças mais amplas da prática histórica irão influir na forma de entender a guerra, seja pela integração dos protagonistas na narrativa, seja pela adoção de novas perspectivas. A afirmação do paradigma marxista permite uma valorização política dos movimentos sociais e do seu lugar no fenômeno da guerra. Muda, definitivamente, a compreensão da natureza e a dimensão do conflito, entendido como consequência do imperialismo. Emerge, então, um segundo eixo de compreensão dedicado a uma história do social (Winter, 2009, p.2-4). Nesse ambiente instala-se, entre os anos 1970 e 1980, aquilo que Winter e Prost denominaram de Vietnam generation (geração Vietnã). Uma terceira geração que, profundamente afetada pelas consequências da Guerra do Vietnã, e de forma mais ampla pela Guerra Fria, não mais considera a just war como algo plausível, apresentando a Primeira Guerra Mundial como desastrosa para vencedores e vencidos (Winter, 2014a).

Os trabalhos que neste Dossiê se debruçam sobre a Primeira Guerra Mundial, mais especificamente sobre seus impactos na retaguarda e para além do conflito, integram fórmulas de compreensão da guerra propostas nos anos 1980 no âmbito de uma história cultural da guerra. Trata-se de olhar para “um conjunto de práticas, de representações, de atitudes, de criações dos anos de 1914-1918. E também dos anos seguintes, tanto é verdade que este tipo de história [cultural] dá um largo espaço à recordação e à comemoração do pós-guerra”.[3] Assim, uma série de temas em torno das representações da experiência no e além do tempo e espaço da guerra passam a corporizar essa guinada cultural.

A Grande Guerra impactou fortemente as vidas de todas as classes e grupos sociais do mundo de então. O segundo tema do Dossiê buscou contemplar essas relações. As greves e revoltas ocorridas nos anos finais da Primeira Guerra Mundial e nos anos iniciais do pós-guerra, especialmente no ano de 1917, configuraram um ciclo de agitação social global, como o define a historiadora portuguesa joana dias Pereira (2014). Esses são, portanto, eventos e processos históricos particularmente importantes para serem analisados na perspectiva do que o historiador holandês Marcel Van der Linden chamou de História Global do Trabalho, inserindo as lutas de cada país em contextos geográficos mais amplos, construindo uma história transnacional dos movimentos sociais trabalhistas, com comparações entre os países e análises das conexões entre eles (Van der Linden, 2013).

As condições de trabalho, a insuficiência dos salários e a repressão foram fatores que estimularam os conflitos e protestos daqueles anos, criando um clima de tensão permanente, às vezes explosivo, como os que ocorreram em São Paulo, Nova York, Turim, São Petersburgo, Sydney e tantas outras cidades. As experiências e as elaborações feitas a partir das greves daquele período foram tão marcantes que configuram para a historiografia o início de um novo ciclo de lutas trabalhistas e até mesmo de formação de uma nova classe operária (Procacci, 2013). A economia de guerra contribuiu para intensificar a solidariedade entre os trabalhadores ao evidenciar as contradições do capitalismo e da economia de mercado.

O centro do debate historiográfico sobre as greves de 1917 no Brasil, assim como em outros países, acabou sendo o grau de espontaneidade dos movimentos, polêmica que implicava a explicação das relações existentes entre a multidão de grevistas e os militantes anarquistas, socialistas e sindicalistas que participaram como lideranças dos movimentos. Hoje podemos falar de certo consenso em relação à ideia de que esses movimentos foram caracterizados por impulsos diversos, tanto espontâneos quanto organizados, que coexistiam e que constituíram o pano de fundo dessas agitações, cuja característica mais marcante foi a passagem da greve à revolta (Biondi, 2011). A tendência atual da historiografia sobre esses movimentos é a de analisar as diferentes redes formais e informais na mobilização dos trabalhadores e as mediações entre diferentes repertórios de ação coletiva, destacando, por exemplo, a relevância do papel das mulheres.

O terceiro tema central do Dossiê está centrado na história das revoluções russas de 1917, contada e recontada inúmeras vezes e sob as mais diversas perspectivas, mas sempre aberta a novas investigações. Em termos gerais, o processo revolucionário na Rússia de 1917 foi invariavelmente conectado à Primeira Guerra Mundial (1914-1918), da mesma forma que o “Ensaio Geral” ocorrido 12 anos antes no Império dos Czares foi associado à Guerra Russo-Japonesa (1904-1905). As revoluções, assim como a Guerra Civil e a formação da União Soviética, despertaram paixões políticas profundas e alimentaram debates teóricos acalorados, tanto no movimento operário dos mais diversos matizes, como nas instituições universitárias. Não foi sem razão que tantos intelectuais se engajaram na produção de suas versões sobre os acontecimentos de 1917 na Rússia. Ao longo de seu centenário, esses eventos serviram de exemplo e inspiração para incontáveis partidos e movimentos políticos ao redor do mundo. Não cabe fazer aqui uma longa e minuciosa exposição sobre tudo quanto já se escreveu sobre o assunto ao longo desses cem anos. Também não faremos referências às “histórias oficiais soviéticas” ou aos escritos dos “emigrados”. Mas é interessante lembrar algumas obras e momentos marcantes a respeito do tema e sua recepção no Brasil. Os primeiros relatos foram produzidos por intelectuais diretamente envolvidos nos acontecimentos, o que não chega a ser uma surpresa.

Nesse sentido, o primeiro título a ser mencionado é Ten days that shook the world, do jornalista estadunidense john Reed, escrito em perspectiva engajada no calor dos acontecimentos e publicado nos Estados Unidos em 1919, 2 anos depois da queda do czarismo e da ascensão dos bolcheviques. Trata-se, como dito pelo próprio autor, de uma crônica do que ele observou e viveu. Reed retornou ao país dos sovietes ainda em 1919, vinculado à Internacional Comunista, e faleceu em 1920, vítima de tifo. No Brasil, Dez dias que abalaram o mundo foi publicado com uma defasagem de mais de quatro décadas pelas editoras Fulgor (Rio de Janeiro, 1963), Record (Rio de Janeiro, 1967) e Global (São Paulo, 1978), entre outras (Reed, 2010).

Victor Serge foi outro “estrangeiro” que produziu uma memória sobre os acontecimentos que vivenciou no país dos sovietes. Serge era um jornalista anarquista de origem francesa, filho de exilados russos. Chegou à Rússia em fevereiro de 1919, passando a trabalhar para a Internacional Comunista, da mesma forma que john Reed. Seu L’an 1 de la révolution russe foi escrito na Rússia entre 1925 e 1928, quando já sofria as perseguições do stalinismo, e foi publicado na França em 1930. Serge integrou, por um tempo, as fileiras da Oposição de Esquerda, liderada por Trotsky, mas também rompeu com ela, morrendo isolado no México em 1947. A publicação de O ano I da Revolução Russa ocorreu no Brasil apenas em 1993, pela Editora Ensaio, e em 2007, pela Boitempo (Serge, 2007).

O terceiro testemunho feito por um partícipe dos acontecimentos de 1917 foi dado por Leon Trotsky, The History of the Russian Revolution, escrito em 1930, traduzido para o inglês por Max Eastman e publicado em 1932 pela The University of Michigan Press em três volumes. Como se sabe, o autor teve papel protagonista não apenas na chamada Revolução de Outubro, como também no comando do Exército Vermelho, durante a Guerra Civil, e na construção do Estado Soviético. Portanto, a escolha dos “fatos” e a forma de narrá-los também foram fortemente condicionadas pelo papel que o autor-ator desempenhou em 1917 e depois, apesar das declarações de que sua obra primava pela “objetividade histórica”, sendo baseada em “documentos rigorosamente controlados” e não em “recordações pessoais”. A primeira edição brasileira foi feita pela Saga (Rio de Janeiro, 1967), ao passo que a Paz e Terra fez a segunda e a terceira (Rio de Janeiro, 1977 e 1978-1980).[4]

O bloco dos escritos legados pelos intelectuais vinculados ao movimento revolucionário pode ser fechado com uma referência à obra de Volin ou Voline, codinome de Vsevolod Mikhailovich Eichenbaum. de acordo com o pequeno esboço biográfico escrito por Rudolf Rocker em 1953, Volin era filho de médicos russos, fluente em francês e alemão tanto quanto em russo. Enviado a São Petersburgo para estudar direito, engajou-se no movimento operário desde a virada do século XIX para o XX, vinculando-se ao Partido Socialista Revolucionário. Foi preso por envolvimento na Revolução de 1905 e sentenciado ao exílio em 1907, escapando para a França, onde rompeu com os SRs em 1911 e se ligou ao anarquismo. Suas atividades antibeligerantes o indispuseram com o governo francês, forçando-o a uma fuga para os Estados Unidos, onde participou das atividades da União dos Trabalhadores Russos nos EUA e Canadá, uma organização inspirada na CGT francesa. Em 1917, quando a Revolução teve início na Rússia, ele voltou a sua terra natal, tomando parte ativa nas atividades dos libertários daquele país. Em 1919, quando começaram os conflitos entre libertários e bolcheviques, Volin foi preso e deportado em 1921, estabelecendo-se na Alemanha por 2 anos e, em seguida, indo para a França, onde morreu de tuberculose em 1945. Sua obra foi publicada postumamente em francês sob o título La Révolution inconnue, em 1947 e 1969, em três volumes. Edições em inglês foram publicadas em 1954 e 1955 sob o título de The unknown revolution 1917-1921. No Brasil, até onde se sabe, publicou-se apenas o primeiro volume de A Revolução Desconhecida, em 1980 (Volin, 1980).

O ano de 1950 foi um divisor de águas na historiografia sobre o tema, já que foi então que se produziu a primeira grande obra escrita por um historiador de ofício. Trata-se de The Bolshevik Revolution, 1917-1923, de autoria do britânico Edward Hallett Carr. Ela foi publicada na Inglaterra em três grandes volumes pela editora Macmillan em 1950, 1951 e 1952, respectivamente. E. H. Carr destacou-se pela capacidade analítica e pela vasta pesquisa que realizou para escrever sua obra. A edição inglesa foi traduzida para o português e publicada pela Editora Afrontamento, do Porto, com o título A Revolução Bolchevique. Os três volumes foram dados ao público em 1977, 1979 e 1984. A História da Rússia Soviética de Carr se completava com outros volumes dedicados ao “Interregno 1923-1924”, de 1954, “Socialismo num só país, 19241926”, publicado em três volumes em 1958, 1959 e 1964, e a última parte, “As origens duma economia planificada, 1926-1929”, cujo primeiro volume foi publicado em 1969 em coautoria com R. W. Davies.[5]

Ainda nas décadas de 1960 e 1970, outros historiadores publicaram obras específicas sobre as revoluções de 1917, a exemplo da síntese feita por Marc Ferro em 1967 (Ferro, 1967) ou da pesquisa de William G. Rosenberg, de 1974, sobre os liberais aglutinados no Partido Constitucional democrático durante o processo revolucionário (Rosenberg, 1974).

Contudo, foi na década de 1980 que surgiram os trabalhos mais inovadores no sentido de deslocarem o foco dos grandes atos e atores (individuais e institucionais) e centrarem atenção no envolvimento direto dos trabalhadores nas revoluções russas de 1917. Essas obras superaram as narrativas tradicionais, mais preocupadas em destacar o papel das grandes lideranças dos partidos bolchevique, menchevique e socialista revolucionário, e investiram na análise detida do protagonismo operário na derrubada da autocracia e na ascensão dos revolucionários em fevereiro e outubro de 1917. A partir do uso intensivo de uma quantidade e variedade maiores de fontes e sob a influência da história social, essas obras deram grande contribuição à história da classe operária, suas condições de trabalho e de vida, organizações, greves e interfaces com a tomada do poder em 1917. Nesse sentido, podemos citar as contribuições de diane P. Koenker, Moskow Workers and the 1917 Revolution, de 1981 (Koenker, 1981); Diane P. Koenker e William G. Rosenberg, Strikes and Revolution in Russia, 1917, de 1989 (Koenker; Rosenberg, 1989), e de S. A. Smith, Red Petrograd: revolution in the factories, 1917-1918, de 1983 (Smith, 1983).

A partir da década de 1990 houve uma ampliação dos temas estudados para além das revoluções de 1917 stricto sensu. de acordo com Smith, isso foi possível graças à abertura dos arquivos da antiga União Soviética, o que possibilitou o estudo de aspectos e períodos pouco conhecidos até então, como a era stalinista. Em artigo recente, o autor passou em revista as pesquisas preocupadas em aprofundar o conhecimento sobre as conexões entre a Primeira Guerra Mundial e as Revoluções Russas de 1917, o papel dos boatos na erosão da autoridade sagrada da família real, o conteúdo emocional e moral da linguagem popular, o recrutamento e as experiências de soldados e oficiais russos como prisioneiros na Alemanha e durante a Guerra Civil, as relações entre nacionalidades e império, variações do processo revolucionário nas províncias e nas pequenas cidades e o comportamento dos camponeses e da nobreza em face da revolução, entre outros.[6] O próprio Smith investiu em um estudo comparativo entre as revoluções russas e chinesa, com particular atenção para os camponeses de ambos os países que migraram do campo para Petrogrado e Xangai (Smith, 2008). já Silvio Pons, autor de um dos artigos do presente Dossiê, publicou, em 2014, um amplo painel sobre as relações entre a União Soviética e os partidos comunistas ao redor do mundo ao longo do século XX, até o colapso de 1991 (Pons, 2014).

Em diálogo com essa historiografia, os textos aqui reunidos tratam de modo complementar de diferentes aspectos do contexto da Grande Guerra e dos movimentos sociais do período. Os textos “Música e guerra: impactos da Primeira Guerra Mundial no cenário musical carioca”, de Luciana Fagundes, e “Uma facada pelas costas: paranoia e Teoria da Conspiração entre conservadores no refluxo das Greves de 1917 na Alemanha”, de Vinicius Liebel, vão ao encontro da compreensão da experiência do conflito como Guerra Total[7] na forma como imaginários, sua transmissão e apreensão, são mobilizados além da frente de batalha e do tempo da guerra. Luciana Fagundes procura mostrar como a guerra se lutou para além das trincheiras pela mobilização político-diplomática de ideias numa propaganda que mediaria fórmulas e embates culturais do cenário musical do Rio de Janeiro. Vinicius Liebel ensaia mostrar de que forma a guerra e seus efeitos imediatos foram capitalizados nas lutas ideológicas do entre guerras instalando uma paranoia a que não se pode alienar a Segunda Guerra Mundial.

O artigo de Glaucia Fraccaro, “Mulheres, sindicato e organização política nas greves de 1917 em São Paulo”, analisa uma dimensão ainda pouco explorada no estudo das greves no Brasil, isto é, a participação das mulheres nas ligas operárias de bairro e nos sindicatos. Ela procura localizar as trabalhadoras examinando os pontos de pauta que interessavam diretamente as mulheres por ocasião das greves deflagradas em São Paulo no ano de 1917. Sua pesquisa dá relevo às dificuldades enfrentadas pelas operárias para encontrar colocação no mercado de trabalho e assegurar igualdade salarial em relação aos trabalhadores do sexo masculino que exerciam as mesmas atividades.

O artigo de Silvio Pons, “Antonio Gramsci e a Revolução russa: uma reconsideração (1917-1935)”, apresenta-nos uma análise política aprofundada e inovadora do pensamento do intelectual italiano. Na análise de seus escritos sobre a Revolução russa e a construção de uma nova estatalidade, Pons nos mostra o processo de formação das principais categorias do pensamento político de Gramsci e sua originalidade no panorama do comunismo de sua época. Pons nos mostra também como, longe das visões deterministas, Gramsci inscreve as próprias considerações no campo das possibilidades históricas.

Notas

  1. Esta análise tem por orientação fundamental o trabalho de WINTER & PROST, 2004.
  2. Citado por CORREIA, 2014.
  3. Citado por LEMOINE, 2006, p.136.
  4.  TROTSKY, 1978-1980. Observe-se que em 1909 Trotsky já havia escrito sobre outra revolução russa, a de 1905. A obra foi originalmente publicada na Alemanha, em 1909, depois na Rússia, em 1922. Para a edição brasileira, cf. TROTSKY, 1975 e 1987.
  5. CARR, 1977-1984. Não deve ser simples coincidência que essa edição tenha sido publicada apenas 3 anos depois da queda da ditadura do Estado Novo em Portugal (1933-1974).
  6. Para um balanço abrangente sobre a historiografia a respeito do tema a partir dos anos 1990, cf. SMITH, 2015.
  7. Aproveitamos o termo de CHICKERING & FORSTER, 2008. Para compreensão da ampla controvérsia que envolve seu uso, ver SEGESSER, 2014.

Referências

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Os organizadores do Dossiê desejam a todos uma boa leitura!

Aldrin Castellucci – Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Alagoinhas, BA, Brasil. E-mail: [email protected] 

Edilene Toledo – Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Guarulhos, SP, Brasil. E-mail: [email protected] 

Silvia Adriana Barbosa Correia – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected]


CASTELLUCCI, Aldrin; TOLEDO, Edilene; CORREIA, Silvia Adriana Barbosa. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.37, n.76, set / dez, 2017. Acessar publicação original [DR]

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O protagonismo indígena na história / Revista Brasileira de História / 2017

Durante os séculos XVI e XVII, professores das universidades do “quadrilátero da luz”, conhecidas como Escola Ibérica da Paz, produziram uma tratadística, expressão de uma consciência crítica, ao colocarem em causa a legitimidade do processo de conquista e colonização das Américas, desafiando os poderes imperial e papal, bem como propugnando o direito de resistência ativa contra a tirania. Em travessia atlântica, na Universitas do aquém-mar, cumprindo seu papel de Alma Mater como promotora seminal de conhecimento, professores e investigadores respondem aos desafios atuais propondo a reescrita dessa história com o foco nas formas de resistência dos povos indígenas.

Revista Brasileira de História atendeu, precisamente, ao imperativo de repensar esse “protagonismo indígena” ao colocar o agenciamento dos sujeitos individuais ou coletivos em múltiplos cenários e diferentes dinâmicas ao longo da história. Essas releituras historiográficas evocam a atuação dos povos indígenas como epicentro de análise para a compreensão, explicação e construção de outras narrativas que manifestam formas criativas de resistência, composição de novas identidades, campos de saberes nativos, ressignificação de práticas e discursos, constituição e organização de movimentos, entre outros tópicos que vicejam na América Latina. Abarcando um largo espectro temporal e geográfico, o corpus do Dossiê atendeu a um amplo cenário, desde tempos imemoriais plasmados nos vestígios de cultura material à luta contemporânea pelo direito à terra.

No artigo “A atuação dos indígenas na História do Brasil: revisões historiográficas”, Maria Regina Celestino de Almeida contextualiza o importante debate acadêmico dos anos 1990 que provocou uma renovação teórico-metodológica na tessitura entre as histórias dos índios, as histórias regionais e a história do Brasil. Recorrendo a um amplo conjunto documental, apresenta um percurso sobre temas de investigação, com o estabelecimento de acordos e negociações entre o domínio português e indígenas, assegurado no sentido da vassalagem ao rei, dentro da lógica da economia do dom do Antigo Regime, que foi apropriado pelos indígenas no Rio de Janeiro para alcançarem seus próprios objetivos.

“As cachoeiras como bolsões de histórias dos grupos indígenas das terras baixas sul-americanas”, escrito em coautoria por Fernando Ozorio de Almeida e Thiago Kater, traz um viés arqueológico, numa articulação criativa, densa e interdisciplinar com a história, sobre o entorno de cachoeiras das terras baixas sul-americanas, tomadas como lugares para realização de rituais, que se constituíram como locus privilegiado de memórias partilhadas e percebido como espaço ancestral, sendo, portanto, um marco cultural da paisagem. Nesse sentido, o protagonismo das sociedades indígenas também se perscruta no horizonte geográfico.

“‘De farinha, bendito seja Deus, estamos por agora muito bem’: uma história da mandioca em perspectiva atlântica”, de Jaime Rodrigues, trata de uma instigante e inédita abordagem sobre a produção nativa da mandioca e sua apropriação pelos europeus. O autor destaca que a domesticação, a produção e a disseminação desse conhecimento marcam a originalidade dos povos indígenas no estabelecimento desses saberes. Contraditoriamente, foi justamente o cultivo da mandioca que possibilitou o comércio atlântico e, por decorrência, a permanência no ultramar.

“A escrita política eo pensamento dos Guarani em tempos de autogoverno (c.1753)”, de Eduardo Santos Neumann e Capucine Boidin, propõe uma análise fecunda da dimensão política do protagonismo indígena no marco das discussões sobre a transmigração territorial das reduções jesuíticas que acabou por resultar na guerra guaranítica. Recorrendo a uma exegese minuciosa e crítica das fontes vertidas do original guarani, percebidas mediante o recurso à antropologia política e à análise semântica, os autores descortinam a frontalidade de algumas lideranças por meio da apropriação e instrumentalização da cultura escrita para defender os interesses de parte dos naturais, que se opunham às determinações de transmigração definidas pelo Tratado de Madri. Expressaram o grau de autonomia frente à ingerência jesuítica no sentido de resguardar o autogoverno guarani.

Hal Langfur, com “Canibalismo e a legitimidade da guerra justa na época da Independência”, contribui com uma arguta percepção sobre a dinâmica dos Botocudo frente à implementação da política indigenista encetada por d. João, em 1808, que foi conduzida pelos indígenas entre confrontos, recuos e, sobretudo, comprometimento estratégico com os invasores combatentes, levando à dispersão do conflito e favorecendo visões defensoras de políticas brandas de pacificação e de incorporação dos povos indígenas à sociedade dominante.

“Os índios do Ceará na Confederação do Equador”, de João Paulo Peixoto Costa, apresenta uma versão instigante da decisiva participação dos indígenas do Ceará nesse evento de 1824, tendo em conta seus próprios interesses, marcadamente a garantia da liberdade e do domínio sobre suas terras. Para o autor, a atuação das lideranças, subsumida nos relatos da historiografia tradicional, demonstra a importância estratégica de sua inserção no movimento rebelde, atentando, no entanto, para o fato de que assumiram posições ambivalentes e particulares.

“Passo Ruim 1868: as estratégias dos Xokleng nas fronteiras de seus territórios do alto rio Itajaí”, de autoria de Lúcio Tadeu Mota, analisa criteriosamente, a partir de um ataque dos indígenas, no Paraná, o complexo contexto de relações socioculturais na dinâmica de desterritorialização dos indígenas e suas estratégias para lidar com os invasores e expedições de contato.

“Presente de branco: a perspectiva indígena dos brindes da civilização (Amazônia, século XIX)”, de Márcio Couto Henrique, aborda os múltiplos sentidos dos “presentes”, uma das tópicas mais recorrentes no processo de “mediação” de contato com os naturais. Articulando a discussão na interface entre história e antropologia, o autor desconstrói, de forma engenhosa e muito perspicaz, a ideia da mera sujeição às estratégias da política indigenista. Ele desloca o argumento em direção aos recursos performáticos, apresentando um estudo de caso dos Munduruku, na Amazônia do século XIX, em que os “brindes” foram interpretados de forma distinta ao atribuírem outros sentidos e usos aos objetos.

Henyo Trindade Barretto Filho encerra o dossiê com “‘Protagonismo’ como Vulnerabilização em Demarcação de Terras Indígenas: o caso do acordo judicial para demarcar a terra Tapeba”, um polêmico e complexo debate sobre os recentes procedimentos referentes à demarcação dessa terra no município de Caucaia, zona metropolitana de Fortaleza (CE). O desfecho do acordo sugere o protagonismo dos Tapeba, quando, de fato, tratou-se de expediente escuso das agências do poder público para forçá-los a aceitarem os termos propostos (mesmo que em condições desfavoráveis) como possível solução para contornar a morosidade e os entraves para a demarcação definitiva da TI. O alegado “protagonismo” encobria, efetivamente, um longo processo de “vulnerabilização” dos indígenas a partir da “manipulação dirigida” dos agentes.

Com este Dossiê, os autores constroem “outras” narrativas, que provocam (e exigem) a reescrita da nossa própria história, na qual a atuação dos povos indígenas é tomada na urdidura desse processo. Ao refletirem sobre o longo processo de conquista (ainda em pleno “curso”), atualizam a indagação incisiva e nada retórica de Domingo de Soto: “Com que direito retemos o império ultramarino?”. Hoje, bem sabemos! São tempos reeditados de violações dos direitos dos povos indígenas assegurados pela Constituição de 1988; da destruição da paisagem e do ecossistema, com a devastação de florestas e a ruína de rios pelas mineradoras e pelo agronegócio; criminalização de professores, historidores, antropólogos, missionários, lideranças indígenas, funcionários da Funai e do Incra, integrantes de ONGs; da expulsão covarde dos territórios, despejo compulsório e massacres bárbaros alimentados pela impunidade dos brutais agressores, entre outras expressões da “banilização do mal” assistida pelo Estado brasileiro – que espera-se seja responsabilizado em nome da devida e proporcional reparação (se é que possível) pelos sacrifícios inomináveis dos povos originários. Até esse porvir, lamentavelmente, o apelo atemporal de Francisco de Vitória ainda ecoará retumbante nestes tristes trópicos: “Não é lobo o homem para o homem, senão homem!”.

Maria Leônia Chaves de Resende – Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), Investigadora no CHAM / Universidade Nova de Lisboa (Marie Curie Actions – International Fellowships), Pesquisadora do CNPq e da Fapemig. São João del-Rei, MG, Brasil. E-mail: [email protected]


RESENDE, Maria Leônia Chaves de. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.37, n.75, mai. / ago., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Sérgio Buarque de Holanda: 80 anos de Raízes do Brasil / Revista Brasileira de História / 2016

Sérgio Buarque de Holanda e seu mais famoso livro, Raízes do Brasil, vêm despertando a atenção de pesquisadores de vários campos do conhecimento – história, ciências sociais, literatura etc. – há décadas. Ou melhor, desde as últimas décadas do século XX, já que o interesse pelos grandes autores do pensamento social brasileiro, entre os quais Sérgio Buarque, pode ser datado, grosso modo, dos anos 1980. A própria categoria, “pensamento social brasileiro”, também nome de Grupo de Trabalho da Associação Nacional de Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), difundiu-se a partir de então. Do mesmo modo, mais especificamente nos domínios dos historiadores, o estudo dos chamados intérpretes do Brasil foi se impondo como uma exigência, na medida em que a história da historiografia se tornou área de trabalho e especialização, delimitada, estabelecida e florescente, além de contar com muitos participantes. Os debates ocorridos em mesas-redondas e seminários temáticos da Anpuh, em todo esse período, sejam regionais ou nacionais, são indicadores do fato.

Os anos 1990 e seguintes registraram, assim, o aparecimento de diversas pesquisas que se dedicaram à trajetória de autores e livros; a seus contextos de ação e produção editorial; aos diálogos que mantiveram com o “pequeno mundo intelectual” de sua época; à recepção que tiveram quando do lançamento de seus livros; à fortuna crítica posterior de suas obras etc. Com vários instrumentais teórico-metodológicos, o que só fez enriquecer o conjunto, a bibliografia sobre o tema cresceu em número e sofisticação. Um movimento que se articulou à afirmação da história cultural no Brasil e no mundo, com atenção especial sendo dirigida à história do livro e da leitura, à história dos intelectuais, à história dos conceitos, à história das ciências e à história da historiografia, como mencionado. A quantidade e variedade de fontes para o desenvolvimento desse trabalho também se multiplicou, bem como a preocupação em traçar os vínculos entre o que se pensava e fazia no Brasil e fora do Brasil.

Pode-se dizer, contudo, que alguns autores ocuparam lugar de relevo nessa reconfiguração do campo da história e das ciências sociais, e esse é caso de Sérgio Buarque de Holanda e de seu livro de estreia. Raízes do Brasil foi publicado em 1936 pela editora José Olympio, a mais prestigiosa do país na época, inaugurando a coleção Documentos Brasileiros. Ela era então dirigida por Gilberto Freyre, também prefaciador do volume, um nome já consagrado por livro igualmente clássico: Casa-grande e senzala (1933).

Na historiografia, Sérgio Buarque de Holanda se afirmaria – como certamente desejou desde os anos 1950 – entre as maiores referências da disciplina, talvez ao lado, apenas, de Varnhagen e Capistrano de Abreu. Nem tanto, me parece, de Caio Prado Júnior, cuja contribuição não tem, até hoje, o status que a de Sérgio Buarque ganhou. Quanto a Oliveira Vianna, para retomar as referências de Antonio Candido em seu famoso prefácio à 5a edição de Raízes do Brasil, de 1969, o caminho seguiu outro curso. Nas ciências sociais, ambos são reconhecidos entre os maiores pensadores da sociedade brasileira, formando com Alberto Torres, Sílvio Romero, Azevedo Amaral e outros, um conjunto de intérpretes decisivos para o contexto histórico anterior à redemocratização de 1945. Porém, de antípoda de Sérgio Buarque, Oliveira Vianna foi se tornando seu interlocutor, o que deu mais dinamismo às análises sobre esses autores e permitiu melhor conhecimento do campo intelectual das décadas de 1930 e 1940.

Uma transformação que tem claros vínculos com o crescimento dos estudos interdisciplinares sobre a construção de memórias individuais e coletivas, em que se reconhecem os esforços dos próprios indivíduos e dos guardiões de sua memória em produzir uma imagem de intelectual para seus contemporâneos e para a posteridade. Algo que igualmente interferiu na própria forma como todos os autores que contribuíram para o conhecimento (histórico ou qualquer outro) são pensados e tratados nas pesquisas mais recentes: sem mitificações e em redes de sociabilidade. Uma postura que busca uma mais proveitosa compreensão e, por conseguinte, uma melhor avaliação de suas contribuições, o que gera maior reconhecimento e não o contrário.

Justamente por tudo isso, a comemoração dos 80 anos da primeira edição de Raízes do Brasil não poderia passar em branco em uma revista como a RBH. Mas, também por tudo isso, considerei, como organizadora do Dossiê, que essa era uma excelente oportunidade para tratar de Sérgio Buarque de Holanda como um autor que teve uma rica e instigante trajetória, com atuação multifacetada como intelectual, tanto antes como depois de seu mais famoso livro. Este, portanto, é um Dossiê que parte de Raízes do Brasil, não se atendo, propositadamente, a esse livro, embora ele seja central para muitos dos artigos que o compõem, como o leitor verá.

O Dossiê é composto por sete artigos. Como abertura, temos o texto de Ronaldo Vainfas, sugestivamente intitulado “O imbróglio de Raízes: notas sobre a fortuna crítica da obra de Sérgio Buarque de Holanda”. Nele, Ronaldo começa por observar como a recepção desse livro, de um lado, acabou por obscurecer a produção historiográfica posterior de Sérgio Buarque, que só começou a ter reedições praticamente nos anos 1970; e de outro, paradoxalmente, como Raízes demorou a ser reconhecido quando de sua publicação, pois sua segunda edição data de 1948, 12 anos depois da primeira. Demarcando a parca repercussão inicial do livro, ele chega ao citado prefácio de Antonio Candido, que produz um duradouro e quase canônico enquadramento do livro e do autor, este como o de um “democrata radical”. A partir daí, o texto se abre para o debate de diversas questões que têm marcado as apreciações sobre a obra de Sérgio Buarque, algumas delas que serão discutidas com mais ênfase em outros artigos do Dossiê. Estão em pauta o planejamento inicial de Raízes, que envolveria o projeto de uma “Teoria da América”, e as ideias que ele abraçava ou rejeitava ao escrevê-lo. Outra vez, volta-se à apreciação de Candido que, vale lembrar, data de momento em que o Brasil mergulhava nos anos sombrios e violentos da ditadura civil-militar, instalada em 1964. Nessa viagem sobre o imbróglio de Raízes, muitos dos mais atentos analistas de Sérgio Buarque são visitados, o que tece para o leitor uma espécie de mapa de por onde andar para melhor conhecer o autor de tantos e tão diferenciados comentadores. Por fim, o próprio Sérgio é também mobilizado como figura decisiva que é na construção da fortuna crítica de sua obra, em especial porque o leitor é advertido de que nem todas as questões têm respostas completas.

Os dois artigos que se seguem versam sobre as raízes de Raízes do Brasil, escolhendo abordagens originais e provocadoras. Lilia Moritz Schwarcz e Pedro Meira Monteiro produzem um inusitado encontro, com doses de desencontro, entre os literatos Sérgio Buarque de Holanda e Lima Barreto, no Rio de Janeiro das décadas iniciais da Primeira República. Fazem-no como uma estratégia para recuperar os desdobramentos do ambiente político e estético da capital federal sobre os intelectuais que aí trafegavam, dando destaque aos anos 1920, quando Sérgio Buarque estabelece constante interlocução com Mário de Andrade, sendo, ao lado de Prudente de Morais Neto, um dos editores da revista modernista Estética. No artigo, os autores se beneficiaram muito do fato de terem organizado juntos a edição crítica comemorativa dos 80 anos de Raízes do Brasil, bem como de estarem trabalhando nas biografias de Lima Barreto (Lilia) e de Sérgio Buarque (Pedro). Dois autores que praticamente nunca são cotejados, porque frequentemente vistos como opostos: Sérgio, um modernista, e Lima, um antimodernista, nas letras e na vida. Porém, na vida e na história intelectual muitas vezes as coisas não são bem assim. É o que pretendem demonstrar, sobretudo no que diz respeito às desconfianças sobre o liberal regime republicano; algo que poderia ter ressoado em Raízes, anos depois. Da mesma forma que Ronaldo, Lilia e Pedro concluem seu texto com “discreta inquietação”.

Sérgio da Mata em “Tentativas de desmitologia: a revolução conservadora em Raízes do Brasil” mergulha fundo em um dos pontos que mais têm agitado os debates sobre autor e livro, desde que eles começaram a se fazer. Trata-se de esquadrinhar as leituras e apropriações do jovem Sérgio Buarque, no que se refere à “constelação de autores ligados à chamada ‘revolução conservadora’ alemã da época da República de Weimar”. Ou seja, a questão do germanismo desse intelectual, que teria voltado ao Brasil com um plano do livro (não executado), o que faz Sérgio da Mata recolocar em pauta e dialogar com diversos e recentes estudos sobre essa questão, levando-nos a Berlim e aos bastidores de Raízes. Recorrendo à documentação inédita e investindo numa escrita de tom biográfico – “quase sempre, a biografia de um livro está umbilicalmente ligada à de seu autor” -, ele constrói sua interpretação valendo-se, para prazer do leitor, de correspondência e anotações feitas por Sérgio Buarque em seus livros, agora acessíveis pela disponibilização da biblioteca na Unicamp.

Já os dois artigos que dão continuidade ao Dossiê podem ser lidos em duas chaves fundamentais, uma de forma e outra de conteúdo, que poderiam ser enunciadas como “a escrita de Sérgio Buarque de Holanda: o ensaio e as fronteiras”. Assim, Fernando Nicolazzi, para situar Raízes do Brasil na tradição do ensaio de interpretação histórica, gênero muito praticado no Brasil durante a primeira metade do século XX, dedica-se a fazer uma longa análise das formas de escrita do que eram os estudos históricos desde 1830 até 1930 / 40. O artigo é minucioso ao acompanhar intelectuais, como o romântico Gonçalves de Magalhães, passando por autores de textos famosos, produzidos no IHGB – como o discurso do cônego Januário da Cunha Barbosa, a proposta de Von Martius e a dissertação de Cunha Matos -, para chegar a Varnhagen, Sílvio Romero, Pedro Lessa e também Capistrano de Abreu e Oliveira Vianna. É dessa forma que ele examina “as condições de emergência da tradição do ensaio”, para defender que nelas estão presentes “as relações entre a erudição crítica, definidora do método histórico, e a intenção sintética, característica da filosofia da história moderna”. Dessa forma, acredito, o artigo vai se prestar aos interessados nos debates travados no período, a respeito da escrita não só da história como também das ciências sociais, todas ainda muito próximas, quando não inseparáveis, da literatura.

Robert Wegner é o autor do artigo que vai apontar o contexto de elaboração do projeto que marcaria a trajetória de Sérgio Buarque após Raízes do Brasil. Segundo ele, tal projeto é concebido como uma alternativa à tradição ibérica que reinava no livro de estreia, constituindo-se no estudo da história da sociedade paulista. Assim, ele vai se centrar na expansão territorial e nos caminhos que levaram “os paulistas” ao traçado de novas fronteiras para o Brasil. Daí o tema das bandeiras e monções, que tinham, aliás, forte tradição no estado, bastando lembrar os nomes de Afonso Taunay, Alcântara Machado, Alfredo Ellis Jr., Cassiano Ricardo e outros, na poesia, no romance e na pintura histórica, por exemplo. Por isso, seu belo título: “A montanha e os caminhos: Sérgio Buarque de Holanda entre Rio de Janeiro e São Paulo”.

Dois artigos encerram o dossiê, voltando-se, mais uma vez, para os projetos de Sérgio Buarque e a fortuna crítica de sua obra. Giselle Martins Venancio e André Furtado irão focar no trabalho desenvolvido pelo autor ao organizar a coleção História Geral da Civilização Brasileira (HGCB), publicada pela editora Difusão Europeia do Livro (Difel) nas décadas de 1960 e 1970. Assumindo o formato de coletânea, considerado inovador ante o modelo experimentado com sucesso desde os anos 1920 / 30, como ilustram as coleções Brasiliana (da Companhia Editora Nacional) e Documentos Brasileiros (da José Olympio), a HGCB inauguraria outro tempo em termos editoriais. A essa coleção Sérgio Buarque se dedica com afinco, sendo o organizador dos volumes sobre Colônia e Império. Neste último caso, entretanto, ele acabaria sendo o principal autor, o que conduz o artigo a uma análise sobre o tipo de tratamento que foi dado à monarquia brasileira. Retomando a questão do projeto de “teoria da América”, presente em artigos anteriores, Giselle e André defendem que Sérgio Buarque o teria em mente ao situar o Império sob a ótica da historiografia latino-americana, inovando ao estabelecer novos marcos cronológicos para o período.

No último artigo, de Thiago Lima Nicodemo, Sérgio Buarque e Antonio Candido se encontram mais uma vez, desta feita no traçado de uma biografia cruzada, que remete ao tema da construção de memória daquele autor, mas em outra perspectiva. A interlocução montada entre os dois parceiros ressalta questões-chave no trato com intelectuais, quais sejam, os processos de apropriação de ideias, os dilemas e formas de engajamento político e os esforços para a delimitação de uma “obra” que guarde coerência com a figura de um “autor”. Dessa maneira, acredito que o Dossiê se soma à produção já vasta e cuidada sobre Sérgio Buarque de Holanda, inovando em pontos muito frequentados e polêmicos, o que é marca de boa contribuição intelectual.

Ângela de Castro Gomes – Professora titular da Universidade Federal Fluminense (UFF); professora visitante nacional sênior da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio). E-mail: [email protected]


GOMES, Ângela de Castro. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.36, n.73, set. / dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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Perspectivas recentes da História Medieval no Brasil / Revista Brasileira de História / 2016

Muito embora os estudos medievais no Brasil não possuam longa tradição, uma observação mais atenta mostra que seu desenvolvimento acompanhou de perto a institucionalização dos estudos históricos no país. Exemplo significativo disso é que a reunião que deu origem à Anpuh – a Associação Nacional dos Professores Universitários de História (atual Associação Nacional de História) -, acontecida em 1961 na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Marília, foi um momento decisivo também para os estudos medievais. Eurípedes Simões de Paula, professor da Universidade de São Paulo e autor da primeira Tese de Doutorado em História defendida no Brasil, um trabalho na área de História Medieval, coordenou a discussão, cujo resultado foi a veemente e unânime defesa da especialização como condição necessária à interação efetiva entre ensino e pesquisa. Entendia-se que formar medievalistas, inclusive incentivando estágios em centros de excelência no exterior, significava sustentar a importância do próprio conhecimento histórico no país.

As moções aprovadas em Marília por representantes das principais instituições de ensino e pesquisa histórica brasileiras dependiam, para se efetivar, de repercussão na política nacional de ciência e tecnologia. Essa repercussão foi conquistada, mas levou tempo até sua efetivação. A separação entre a História Antiga e a História Medieval permaneceu algo raro nas universidades públicas ou privadas até o final dos anos 1970 – como também era raro encontrar especialistas dessas áreas ministrando as respectivas disciplinas. Foi somente a partir dos anos 1990 que o Brasil passou a contar com um número considerável de centros de formação de Mestres e de Doutores; foi também a partir desse período que as instituições de fomento puderam acompanhar de forma mais efetiva as demandas decorrentes do crescimento da Pós-Graduação.

Desde então, assistimos à ampliação considerável dos grupos de pesquisa, à diversificação das temáticas abordadas e a um aumento sem precedentes do número de pesquisadores na área de História Medieval. Os setenta programas de Pós-Graduação atualmente existentes na área de História – cerca de metade deles estabelecida nos últimos 10 anos – permitiram que se criasse um ambiente cada vez mais favorável à pesquisa em História Medieval e à formação de medievalistas. Essa expansão dos estudos medievais explica o aparecimento recente de uma série de balanços sobre a área. Artigos, e mesmo um livro, procuraram refletir sobre os estudos medievais no Brasil, contrapondo passado e futuro das pesquisas e do ensino e estabelecendo perspectivas para sua inserção social.[1]

Nossa intenção com este dossiê é bastante distinta. Não se trata de olhar para o que já foi feito, mas de oferecer ao leitor um panorama da pesquisa recente na área de História Medieval no Brasil. É claro que não se trata de um panorama completo, o que exigiria – felizmente, diga-se de passagem – um espaço bem maior do que o de um dossiê. Trata-se aqui de apresentar, efetivamente, alguns resultados desse futuro presumido pelos balanços realizados. Os textos aqui reunidos mostram a pujança temática da área, a atualidade de seu diálogo com as ciências sociais e a persistência de sua autocrítica.

“A Cronaca di Partenope e o Reino de Nápoles: contribuições de e para a historiografia brasileira no século XXI”, artigo de Igor Teixeira, propõe um estudo do Ms. Italien 301 Cronaca di Partenope, levando em conta o acesso digital aos manuscritos e as habilidades necessárias para a análise, procurando responder à questão: “Em que este estudo pode contribuir para os estudos medievais no Brasil?”.

Em seu artigo, intitulado “Algumas experiências, perspectivas e desafios da Medievalística no Brasil frente às demandas atuais”, Aline Dias da Silveira discute alguns dilemas das pesquisas brasileiras na área de História Medieval, bem como a originalidade de seu olhar sobre a historiografia europeia.

Em “Uma calamidade insaciável: espaço urbano e hegemonia política em uma história dos incêndios (880-1080)”, Leandro Rust dedica sua atenção aos incêndios que devastaram os espaços urbanos do Regnum Italicum nesse período de 200 anos. O autor questiona as interpretações tradicionais que ou naturalizam essas ocorrências como fatalidades ou acidentes, ou buscam explicá-las como epifenômenos de uma suposta desordem feudal. Para Leandro Rust, o aparecimento documental dos incêndios teria raízes políticas.

Maria Filomena Coelho, em seu artigo “Cartas políticas da Dinastia de Avis: a arte de ditar o bem comum (século XV)”, pretende analisar algumas cartas escritas no século XV por personagens-chave da dinastia de Avis, a partir da noção de “cultura política”. Essa noção permite que a análise vá além da retórica, tal como era tradicionalmente entendida a epistolografia, permitindo ao historiador compreender uma trama discursiva complexa, que, embora pareça seguir fórmulas, não deixa de atender às circunstâncias e aos casuísmos da política, mas, sobretudo, que propõe e evoca valores políticos, como o do bem comum.

Esperamos, com este dossiê, apresentar algumas pesquisas que são, em última instância, o resultado da especialização e da institucionalização dos estudos medievais no Brasil. E, assim, divulgá-las não apenas a colegas e a estudantes que desejam aproximação com a área, mas também àqueles que, confiantes em que a pujança dos estudos humanos e sociais repousa no diálogo e no entendimento mútuo, estão interessados em estabelecer novas interlocuções.

Nota

1. ALMEIDA, 20082012BASTOS; RUST, 2009COELHO, 2006FRAZÃO, 2013MACEDO, 2003RIBEIRO, 2001.

Referências

ALMEIDA, Néri de B. La formation des médiévistes dans le Brésil contemporain: bilans et perspectives (1985-2007). Études et Travaux. Bulletin du Centre d’Études Médiévales d’Auxerre (BUCEMA), v.12, p.145-159, 2008. Disponível em: http: / / cem.revues.org / 6652. [ Links ]

______. L’histoire médiévale au Brésil: du parcours solitaire à l’inclusion dans le champ des sciences humaines, In: ALMEIDA, Néri; CÂNDIDO DA SILVA, Marcelo; MEHU, Didier. Pourquoi étudier le Moyen Âge? Les médiévistes face aux usages sociaux du passé. Paris: Publications de la Sorbonne, 2012. p.125-143. [ Links ]

BASTOS, Mario J.; RUST, Leandro. “Translatio Studii”. A História Medieval no Brasil. Signum, n.10, p.163-188, 2009. [ Links ]

COELHO, Maria Filomena. Breves reflexões acerca da História Medieval no Brasil. In: SILVA, Leila Rodrigues (Dir.) Atas da VI Semana de Estudos Medievais do Programa de Estudos Medievais da UFRJ. Rio de Janeiro: PEM, 2006. p.29-33. [ Links ]

FRAZÃO, Andreia. Os estudos medievais no Brasil e o diálogo interdisciplinar. Medievalis, v.1, n.2, p.1-15, 2013. [ Links ]

MACEDO, José Rivair. Os estudos medievais no Brasil: catálogo de teses e dissertações. Porto Alegre: UFRGS, 2003. [ Links ]

RIBEIRO, Maria Eurydice B. Os estudos medievais no Distrito Federal. In: MALEVAL, Maria do Amparo T. (Dir.) Atas do III Encontro Internacional de Estudos Medievais. Rio de Janeiro: ágora, 2001. p.155-158. [ Links ]

Marcelo Cândido da Silva – Universidade de São Paulo (USP), Laboratório de Estudos Medievais (LEME). São Paulo, SP, Brasil. Professor de História Medieval da USP, Coordenador do Laboratório de Estudos Medievais (LEME) e Pesquisador do CNPq E-mail: [email protected]

Néri de Barros Almeida – Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Núcleo Unicamp do Laboratório de Estudos Medievais (LEME). Campinas, SP, Brasil. Professora de História Medieval da Unicamp, Coordenadora do Núcleo Unicamp do Laboratório de Estudos Medievais (LEME). E-mail: [email protected]


SILVA, Marcelo Cândido da; ALMEIDA, Néri de Barros. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.36, n.72, mai. / ago., 2016. Acessar publicação original [DR]

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História Agrária / Revista Brasileira de História / 2015

O conjunto de textos que compõem o dossiê temático “História Agrária” da presente edição da Revista Brasileira de História expressa as várias interfaces que essa área temática adquiriu nas últimas décadas no Brasil. Aqui não se fazem presentes os temas clássicos das estruturas agrárias, da construção das paisagens e das relações de trabalho no campo, que tantas contribuições trouxeram para a compreensão da sociedade brasileira do passado. As colaborações reunidas apontam para novos e renovados campos da produção histórica como a História Indígena, a História do Direito e uma História Social atenta às concepções e interpretações que os diferentes grupos sociais faziam de sua relação com a terra e seus direitos de acesso a ela.

Do período colonial à contemporaneidade, o leitor encontrará artigos em que se analisa o protagonismo indígena, as distintas concepções acerca do direito de propriedade da terra que manejam diversos grupos sociais e indivíduos, e a instituição, execução e resultados de políticas agrárias e fundiárias em variados contextos.

Vânia Maria Losada Moreira, em “Territorialidade, casamentos mistos e política entre índios e portugueses” aborda a ação indígena no contexto de aplicação do Diretório Pombalino, em vilas de índios do Espírito Santo. Contra as arremetidas dos brancos que arrendavam suas terras, a autora demonstra como os indígenas inverteram a lógica do projeto político assimilacionista, segundo costumes e interesses próprios, “mobilizando os casamentos entre mulheres indígenas e consortes portugueses ‘pardos’ e ‘brancos’ com vistas a manter o controle sobre suas terras e o modus vivendi local”.

Carmen Margarida Oliveira Alveal, em seu artigo “De senhorio colonial a território de mando: os acossamentos de Antônio Vieira de Melo no Sertão do Ararobá (Pernambuco, século XVIII)”, baseia-se nas noções de “senhorio colonial” e “território de mando” para analisar a atuação do sesmeiro de uma grande área e o domínio que exercia sobre a população local com a ajuda de uma milícia indígena, provocando denúncias e reações da Coroa.

Em “O Engenho da Rainha: feixes de direitos e conflitos nas terras de Carlota (1819-1824)”, Márcia Maria Menendes Motta perscruta diferentes concepções do direito de propriedade vigentes a partir de um litígio de terras entre membros da elite local do Rio de Janeiro e Carlota Joaquina, na conjuntura política específica da independência do Brasil e da promulgação de novos diplomas jurídicos como a Constituição portuguesa de 1822 e a brasileira de 1824.

Em “Lei de Terras de 1850: lições sobre os efeitos e os resultados de não se condenar ‘uma quinta parte da atual população agrícola'”, Marcio Antônio Both da Silva discute as interpretações de que a lei teria sido “letra morta” e defende que, em uma mirada mais ampla temporalmente, ela surtiu efeitos duradouros quanto à instituição da concepção de propriedade absoluta no Brasil.

Já Almir Antonio de Souza em seu artigo “A Lei de Terras no Brasil Império e os índios do Planalto Meridional: a luta política e diplomática do Kaingang Vitorino Condá (1845-1870)” desvela a eficiente atuação política de uma importante liderança Kaingang do sul do Brasil na defesa de terras indígenas, ao mesmo tempo em que aborda as ações do governo imperial no avanço da ocupação do território oeste das províncias do Paraná e Santa Catarina, e sua política com relação aos índios da região.

No outro extremo do país, Edson Holanda Lima Barboza com seu texto “Retirantes cearenses na província do Amazonas: colonização, trabalho e conflitos (1877-1879)” estuda a destinação dada aos migrantes cearenses, produto da grande seca desses anos: colônias agrícolas, construção da ferrovia Madeira-Mamoré e os seringais. De iniciativa do governo provincial, as diversas colônias chegaram a congregar quase cinco mil trabalhadores, mas rapidamente fracassaram em seu objetivo de abastecimento da capital amazonense.

Por fim, “A ‘reforma agrária assistida pelo mercado’ do Banco Mundial na Colômbia e no Brasil (1994-2002)”, de autoria de João Márcio Mendes Pereira e Darío Fajardo, coloca em confronto duas experiências de reforma agrária de países com elevados índices de concentração fundiária. A colombiana foi a primeira a ser implementada a partir das formulações do Banco Mundial nos anos 1990, logo seguida por várias na Ásia, África e Américas. Os autores apontam os limites e “contradições insolúveis” da aplicação da proposta, fundada no “neoinstitucionalismo neoclássico”.

Helen Osório – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS – Brasil. E-mail: [email protected]


OSÓRIO, Helen. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.35, n.70, jul. / dez., 2015. Acessar publicação original [DR]

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Pós-abolição no Mundo Atlântico / Revista Brasileira de História / 2015

O reconhecimento de escravos e libertos como sujeitos históricos acabou por influenciar os estudos sobre o destino dos escravizados e seus descendentes em antigas sociedades escravistas após a abolição legal da escravidão. No Brasil, se a década de 1980 representou um marco para a historiografia da escravidão, podemos pensar que os anos 2000 foram decisivos para a historiografia sobre as formas, condições e concepções de liberdade no pós-abolição. A produção de livros e documentários, a realização de eventos nacionais e internacionais e a formação de grupos de pesquisa adjetivados pelos termos “pós-emancipação” e “pós-abolição”, de norte a sul do país, atestam a emergência de um destacado campo de investigação, comprometido em reconstituir trajetórias, processos e experiências de liberdade da população negra no Brasil e nas Américas após a proibição legal da escravidão.

Em vistas da amplitude do campo, surgem muitas questões. O que significa pensar o pós-abolição como problema histórico? Quais os significados e limites da revogação legal da escravidão nas antigas sociedades escravistas do Atlântico? É possível construir definições precisas sobre o que seria esse pós-abolição? Quais os significados da abolição formal da escravidão? ­Pós-abolição e pós-emancipação são sinônimos ou representam formas distintas de enxergar e pesquisar as experiências de liberdade e os significados legais da abolição da escravidão? Quando começa e quando termina o pós-abolição? Qual o lugar das experiências de tornar-se livre e do abolicionismo do século XIX? Como a politização da memória da escravidão e o estudo do tempo presente contribuem para delimitação dos seus limites cronológicos? De que formas o trabalho com diversas concepções, fontes e metodologias do campo questiona a tese clássica de que os negros teriam ficados “abandonados à própria sorte”, trazendo para o centro da discussão debates relacionados aos direitos de cidadania, mundos do trabalho livre, racialização, racismo, mobilidade social, migrações, relações de gênero, gerações, acesso à terra, educação e movimentos sociais negros e indígenas em abordagens locais, transnacionais ou comparativas?

Essas são algumas das indagações sobre as quais se debruçaram autoras e autores dos trabalhos publicados no dossiê temático “Pós-abolição no Mundo Atlântico”, que integra a presente edição da Revista Brasileira de História.

O dossiê se abre com “No ritmo do Vagalume: culturas negras, associativismo dançante e nacionalidade da produção de Francisco Guimarães (1904-1933)”, de Leonardo Affonso de Miranda Pereira. A trajetória e a obra do personagem analisado são utilizadas como fio condutor para uma imersão no universo da cultura popular do período. O autor destaca a valorização da agência negra nas crônicas de Guimarães, o Vagalume, sobre a vida musical e recreativa do Rio de Janeiro. Pereira situa a produção do popular cronista e dramaturgo carioca como parte de um processo de disputa sobre a identidade brasileira que tem entre os seus resultados o estabelecimento do samba como “ritmo capaz de representar a nacionalidade”.

Dois dos artigos revisitam o tema clássico do campesinato negro no pós-abolição nas regiões Sudeste e Sul do Brasil. Em “Revisitando ‘Família e transição’: família, terra e mobilidade social no pós-abolição. Rio de Janeiro (1888-1940)”, Carlos Eduardo Coutinho da Costa analisa mais de seis décadas de registros civis do município de Nova Iguaçu, identificando os impactos econômicos e demográficos da citricultura sobre as famílias negras rurais da província fluminense e suas estratégias de mobilidade social. Em “Sr. Sidão Manoel Inácio e a conquista da cidadania: o campesinato negro do Morro Alto e a República que foi”, Rodrigo de Azevedo Weimer aborda a agência política do campesinato negro do litoral norte do Rio Grande do Sul na luta por direitos cidadãos durante a Primeira República.

Deslocando o foco para a Bahia, Wlamyra Albuquerque também aborda as conexões entre pós-abolição e cidadania em “Teodoro Sampaio e Rui Barbosa no tabuleiro da política: estratégias e alianças de homens de cor (1880-1919)”. Colocando o foco na experiência escrava da família de Teodoro Sampaio, a autora demonstra as conexões, aproximações e distanciamentos das trajetórias contemporâneas de dois destacados atores políticos baianos atuantes no final do Império e no início da República. Oferece ao leitor, desse modo, um olhar inovador sobre o contexto de atuação política de negros e brancos nas décadas que se seguiram à Abolição.

Dois outros artigos retomam o debate historiográfico sobre continuidades e rupturas entre a experiência escrava e o movimento operário. André Cicalo, em “Campos do pós-abolição: identidades laborais e experiência ‘negra’ entre os trabalhadores do café no Rio de Janeiro (1931-1964)” revisita o tema no setor portuário carioca, trazendo uma contribuição inovadora no que diz respeito ao estudo da racialização da estrutura ocupacional no cais. O tema da racialização reaparece em “As heranças do Rosário: associativismo operário e o silêncio da identidade étnico-racial no pós-abolição, Laguna (SC)”, de Thiago Juliano Sayão, que analisa o ocultamento da raça ou cor na Sociedade Recreativa União Operária (1903), fundada por afrodescendentes vinculados à Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos na cidade de Laguna, em Santa Catarina.

A perspectiva comparativa entre as experiências das duas maiores nações que passaram pelo processo emancipacionista no século XIX está presente em dois trabalhos do nosso dossiê: “Os perigos dos Negros Brancos: cultura mulata, classe e beleza eugênica no pós-emancipação (EUA, 1900-1920)”, de Giovana Xavier da Conceição Nascimento, e “O legado das canções escravas nos Estados Unidos e no Brasil: diálogos musicais no pós-abolição”, de Martha Abreu. Nascimento analisa, por meio de textos e imagens publicados em revistas norte-americanas, a emergência, nas primeiras décadas do século XX, de uma “pigmentocracia” decorrente do sistema de segregação intrarracial com base na tonalidade da pele. Já Abreu parte dos trabalhos de Du Bois e Coelho Netto para refletir sobre as similaridades dos legados da canção escrava – ou “som do cativeiro” – nos Estados Unidos e no Brasil.

Uma entrevista inédita realizada por Hebe Mattos e Martha Abreu com Eric Foner, historiador pioneiro no estudo do pós-emancipação nos Estados Unidos complementa o dossiê temático desta edição.

O presente volume traz seis trabalhos avulsos. Dois deles apresentam resultados inéditos de pesquisas sobre o movimento operário brasileiro entre as décadas de 1960 e 1980: “Relações Igreja-Estado em uma cidade operária durante a ditadura militar”, de Alejandra Luisa Magalhães Estevez, e “Uma greve que pôs em risco a Segurança Nacional: o caso do açúcar e a luta dos trabalhadores por melhores condições de vida”, de Felipe Augusto dos Santos Ribeiro. A atuação social e política de intelectuais, religiosos e organizações católicas constitui o campo temático comum de “Os ativos intelectuais católicos no Brasil dos anos 1930”, de Helena Isabel Mueller, e “A Revista A Ordem e o ‘flagelo comunista’: na fronteira entre as esferas política, intelectual e religiosa”, de Marco Antônio Machado Lima Pereira. Em “‘Vivemos identificados com a civilização, dentro da civilização’: autoimagens urbanas nos sertões da Bahia”, Valter Gomes Santos de Oliveira analisa textos memorialísticos, matérias jornalísticas e fotografias produzidos pela pequena intelectualidade sertaneja na Bahia do início do século XX. Já Vitor Marcos Gregório, em “A emancipação negociada: os debates sobre a criação da província do Paraná e o sistema representativo imperial, 1843”, analisa a relação entre a criação de novas unidades administrativas e as alterações no funcionamento do sistema político do país.

O volume se conclui com três resenhas. Em “Trabalho, história ambiental e cana-de-açúcar em Cuba e no Brasil”, originalmente publicada em inglês na revista Social History, a professora Aviva Chomsky analisa quatro livros recentes sobre temáticas similares, dois deles tratando do Brasil (The Deepest Wounds: A Labor and Environmental History of Sugar in Northeast Brazil, de Thomas Rogers, e This Land Is Ours: Social Mobilization and the Meanings of Land in Brazil, de Wendy Wolford), os outros dois sobre Cuba (Blazing Cane: Sugar Communities, Class, and State Formation in Cuba, 1868-1959, de Gillian McGillivray, e From Rainforest to Cane Field in Cuba: An Environmental History since 1492, de Reinaldo Funes Monzote). Por fim, Walkiria Oliveira Silva apresenta ao leitor What is History for? Johann Gustav Droysen and the functions of historiography, de Arthur Alfaix Assis, e Jean Rodrigues Sales comenta a muito aguardada biografia Luís Carlos Prestes: um revolucionário entre dois mundos, de Daniel Aarão Reis Filho.

Alexandre Fortes – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Instituto Multidisciplinar. Nova Iguaçu, RJ, Brasil. E-mail: [email protected]

Hebe Mattos – Universidade Federal Fluminense (UFF), Centro de Estudos Gerais, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. Niterói, RJ, Brasil. E-mail: [email protected]


FORTES, Alexandre; MATTOS, Hebe. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.35, n.69, jan. / jun., 2015. Acessar publicação original [DR]

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O Brasil na História Global / Revista Brasileira de História / 2014

O polêmico e polissêmico conceito de globalização se impôs como a caracterização mais difundida das transformações mundiais ocorridas desde a última década do século XX. Tem cabido aos historiadores, frequentemente, o papel de relativizar o ineditismo da conjuntura atual, identificando-a como um novo momento em um processo de longo prazo de expansão e aceleração dos múltiplos fluxos que integram os mais distantes pontos do planeta. Ainda assim, o corrente foco na perspectiva global tem gerado questionamentos e debates relevantes para o nosso ofício.

Sabe-se que a institucionalização da disciplina histórica transcorreu intimamente articulada ao desenvolvimento dos modernos Estados nacionais e desempenhou papel fundamental na construção de suas bases simbólicas de legitimação. Até que ponto o enquadramento no espaço nacional limita a definição dos objetos e perspectivas de análise na pesquisa histórica? Em que as diversas correntes e metodologias associadas à ideia de História Global podem contribuir para redefinir as abordagens sobre temas tradicionalmente recortados nos limites de fronteiras nacionais? A chamada História Global representa um paradigma radicalmente inovador, um campo de diálogo entre diversas perspectivas, ou apenas um modismo intelectual influenciado pelo “espírito da época”? Até que ponto a História Global pode alterar nosso entendimento sobre o Brasil e seu lugar no mundo em diferentes momentos históricos? Ou seria justamente a ênfase nas particularidades dos fenômenos históricos no interior de um Estado nacional pós-colonial como o Brasil uma forma de romper com o eurocentrismo de narrativas “mundiais” ou “globais”?

Essas foram algumas das indagações propostas aos autores que apresentaram artigos para integrar o dossiê temático “O Brasil na História Global”, contido neste número da Revista Brasileira de História. Os trabalhos selecionados oferecem um panorama significativo da diversidade de abordagens abarcadas sob o conceito de História Global.

Em “‘O maior incêndio do planeta’: como a Volkswagen e o regime militar brasileiro acidentalmente ajudaram a transformar a Amazônia em uma arena política global”, Antoine Acker relata a surpreendente história da ascensão e queda do projeto que visava transformar o Brasil em exportador de carne bovina empregando as modernas técnicas de gestão da multinacional alemã. José Juan Pérez Meléndez, por sua vez, valendo-se de pesquisa inovadora, oferece novas perspectivas sobre um tema clássico da história brasileira do século XIX em “Reconsiderando a política de colonização no Brasil Imperial: os anos da Regência e o mundo externo”. Gênero, literatura e crítica à sociedade escravista são os temas que se conectam nos relatos analisados por Ludmila de Souza Maia em “Viajantes de saias: escritoras e ideias antiescravistas numa perspectiva transnacional (Brasil – século XIX)”.

Maria Verónica Secreto explora as possibilidades inovadoras abertas pelas correntes historiográficas que buscam transcender o recorte do espaço nacional para entender as relações entre nosso país e seu maior vizinho em “Histórias conectadas: histórias integradas. Brasil e Argentina em busca de um terceiro no século XIX”. Em “‘Como abelhas polinizando flores’: gerência e racionalização do trabalho no complexo coureiro-calçadista de Franca-SP no século XX”, Vinícius de Rezende situa a experiência de um importante setor industrial brasileiro no quadro global do desenvolvimento das técnicas de gestão empresarial. Helenice Aparecida Bastos Rocha e Flávia Eloisa Caimi, por sua vez, levam a temática do nosso dossiê à sala de aula, com “A(s) história(s) contada(s) no livro didático hoje: entre o nacional e o mundial”.

Completando esse quadro, publicamos entrevista inédita com Patrick Manning, da Universidade de Pittsburgh, pesquisador consagrado e pioneiro no estudo da diáspora africana e dos fluxos migratórios globais na perspectiva da História Mundial. O professor Manning tem se destacado ao longo das últimas décadas na articulação de redes continentais de pesquisadores interessados em explorar os potenciais da História Global.

A seção de avulsos também traz um conjunto de trabalhos marcados por grande diversidade, tanto do ponto de vista da temática quanto no escopo cronológico.

Ela se abre com “Descontruindo mapas, revelando espacializações: reflexões sobre o uso da cartografia em estudos sobre o Brasil colonial”, de Tiago Kramer de Oliveira. Victor Melo apresenta uma abordagem original sobre a história africana do século XX em “O esporte na política colonial portuguesa: as iniciativas de Sarmento Rodrigues na Guiné (1945-1949)”. A história ­po­lítica britânica do século XVI é o campo de análise de Eoin O’Neill em “A inglória ilha de Gloriana: Elizabeth I, responsabilidade e honra na Guerra dos Nove Anos na Irlanda”.

Temas clássicos nos estudos sobre economia e da política no Brasil colonial são reexaminados por Thiago Alves Dias em “O Código Filipino, as Normas Camarárias e o comércio: mecanismo de vigilância e regulamentação comercial na capitania do Rio Grande do Norte”. As linhas de continuidade e ruptura na história do trabalho no Brasil entre os séculos XIX e XX são abordadas em “Greve como luta por direitos: as paralisações dos cocheiros e carroceiros no Rio de Janeiro (1870-1906)” de Paulo Cruz Terra.

Já Bruno Bontempi Jr. e Carlota Boto oferecem uma contribuição original para a reflexão sobre a relação entre políticas educacionais, identidade nacional e construção do Estado brasileiro em “O ensino público como projeto de nação: A ‘Memória’ de Martim Francisco (1816-1823)”. Finalmente, trazemos um trabalho sobre história política nacional no período recente: “Informação, política e fé: o jornal Mensageiro da Paz no contexto de redemocratização do Brasil (1980-1990)”, de André Dioney Fonseca.

O volume se conclui com quatro resenhas. Flávio Limoncic comenta A Justiça do Trabalho e sua história, organizado por Ângela de Castro Gomes e Fernando Teixeira da Silva. Denise Soares de Moura analisa Governabilidade nas fronteiras da América portuguesa, de Nauk Maria de Jesus. Poetry and the Police: Communication Networks in Eighteenth-Century Paris, de Robert Darnton, é a obra examinada por Luís Felipe Sobral. Por fim, Magda Rita Ribeiro de Almeida Duarte apresenta A Reforma Papal (1050-1150): trajetórias e críticas de uma história, de Leandro Duarte Rust.

Alexandre Fortes


FORTES, Alexandre. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.34, n.68, jul. / dez., 2014. Acessar publicação original [DR]

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Golpes e Ditaduras / Revista Brasileira de História / 2014

O ano de 2014 transcorre sob o signo dos debates acadêmicos e políticos relacionados ao cinquentenário do Golpe de 1964. O dossiê “Golpes e Ditaduras“, contido neste número 67, traz a contribuição da Revista Brasileira de História a esse processo de reflexão. Os seis artigos contidos no dossiê, cinco deles enfocando o Brasil e um Portugal, exploram diferentes dimensões da experiência de supressão da democracia por meio da força, assim como as formas pelas quais as sociedades contemporâneas enfrentam os desafios colocados por essas circunstâncias históricas.

Em “Os ‘inimigos da pátria’: repressão e luta dos trabalhadores do Sindicato dos Químicos de São Paulo (1964-1979)”, Larissa Rosa Corrêa detalha os impactos da violência exercida sobre os trabalhadores urbanos organizados em associações de classe, tomando como caso de estudo uma das maiores organizações operárias do país, em um trabalho que enfatiza a dimensão classista do autoritarismo instalado a partir de 1964. Já o provocativo artigo de Bryan Pitts intitulado “‘O sangue da mocidade está correndo’: a classe política e seus filhos enfrentam os militares em 1968” examina as reações dos congressistas brasileiros à repressão desencadeada contra o movimento estudantil em 1968. Chamando a atenção para os vínculos de sangue e de classe entre líderes universitários e políticos profissionais, Pitts oferece novas perspectivas para a compreensão da mudança da natureza do regime a partir da promulgação do AI-5 e para o debate sobre a relação entre seus componentes civis e militares. Carla Simone Rodeghero, no artigo “Pela ‘pacificação da família brasileira’: uma breve comparação entre as anistias de 1945 e de 1979”, proporciona ao leitor uma reflexão sobre as semelhanças e as diferenças entre os dois períodos de “transição democrática” vividos pelo Brasil. Examinando como a concepção do significado da anistia desloca-se da mera “conciliação” para a de “ferramenta para a conquista de direitos”, Rodeghero agrega importantes elementos para um debate de renovada atualidade.

As dimensões culturais da busca de construção de legitimidade dos regimes ditatoriais, bem como da resistência a eles, estão no foco dos três artigos que fecham o dossiê. Em “Os usos do civismo em tempos autoritários: as comemorações e ações do Conselho Federal de Cultura (1966-1975)”, Tatyana de Amaral Maia examina um dos principais mecanismos institucionais por meio do qual o regime exercia sua política cultural, voltada a “valorizar os elementos cívicos” como parte de um processo de “regeneração” da vida social e política do país. Já Francisco Régis Lopes Ramos, em “O Calendário e o golpe de 1964: temporalidade, escrita da história e hagiografia”, analisa a atualização da tradição católica de associação entre o registro da passagem do tempo e a memória do sacrifício dos mártires como parte da resistência às ditaduras latino-americanas, a partir do exemplo de como obras de caráter hagiográfico vinculadas à Teologia da Libertação trataram a vida e a morte de frei Tito de Alencar Lima. Por fim, Edwar de Alencar Castelo Branco reflete sobre a relação entre experimentalismo estético e resistência política em “PO-EX: A poética como acontecimento sob a noite que o fascismo salazarista impôs a Portugal”.

A seção de artigos avulsos contém sete trabalhos. Dois deles analisam personagens relevantes da história da ciência nos séculos XIX e XX e seus vínculos com o Brasil. Trata-se de “Evolucionismo darwinista? Contribuições de Alfred Russel Wallace à Teoria da Evolução”, de Nelson Papavero e Christian Fausto Moraes dos Santos, e de “Diplomacia e ciência no contexto da Segunda Guerra Mundial: a viagem de Arthur Compton ao Brasil em 1941”, de Olival Freire Junior e Indianara Silva. A dimensão cultural das relações entre o Brasil e o restante do mundo continua em foco no trabalho de Anaïs Fléchet e Juliette Dumont, intitulado “‘Pelo que é nosso!’ A diplomacia cultural brasileira no século XX”.

Os quatro trabalhos seguintes analisam temas e objetos diversos no campo da história social. Márcia C. O. Cury oferece uma importante contribuição para o estudo dos movimentos sociais no Cone Sul em “Ocupando espaços, construindo identidades: a importância do movimento de pobladores para a história política e social do Chile (1950-1970)”. “Cidadania por um fio: o associativismo negro no Rio de Janeiro (1888-1930)”, de Petrônio Domingues, traz novos elementos para o debate de um dos aspectos cruciais do período pós-emancipação no Brasil. Paulo Cesar Gonçalves oferece uma nova abordagem para um tema clássico da história do trabalho no Brasil em “Procuram-se braços para a lavoura: imigrantes e retirantes na economia cafeeira paulista no final do Oitocentos”. A seção de avulsos se encerra com um trabalho focado na temática de gênero: “Imprensa e educação feminina em zona pioneira: o caso do Noroeste Paulista (1920-1940)”, de Raquel Discini de Campos.

Este número traz de volta a seção Memória, publicando a conferência “Conhecimento histórico e diálogo social”, proferida pelo ex-presidente nacional da Anpuh, Benito Bisso Schmidt, na abertura do XXVII Simpósio Nacional de História (julho de 2013, Natal, RN).

O volume encerra-se com quatro resenhas. A primeira delas relaciona-se diretamente ao dossiê temático desta edição: Claudia Wasserman analisa a coletânea O Passado que não passa: a sombra das ditaduras na Europa do Sul e na América Latina, organizada por Francisco C. Palomanes Martinho e António C. Pinto. Fernando Teixeira da Silva apresenta aos leitores brasileiros Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global do trabalho, tradução do livro do historiador holandês Marcel van der Linden. Por fim, trazemos duas resenhas dedicadas a obras sobre aspectos da história brasileira recentemente publicadas em inglês. Maria Helena P. T. Machado comenta From Africa to Brazil: Culture, Identity, and an Atlantic Slave Trade, 1600-1830, de Walter Hawthorne; e Regina Horta Duarte analisa In Search of the Amazon: Brazil, the United States, and the Nature of a Region, de Seth Garfield.

Alexandre Fortes


FORTES, Alexandre. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.34, n.67, jan. / jun., 2014. Acessar publicação original [DR]

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Inclusões e Exclusões / Revista Brasileira de História / 2013

Este número 66 da Revista Brasileira de História traz aos nossos leitores um dossiê que representa uma amostra do modo como a produção historiográfica nacional e internacional tem analisado a temática “Inclusões e Exclusões”. Tratando de contextos espaciais e temporais diversos, os artigos exploram os modos como sociedades, Estados, movimentos sociais e correntes políticas definem os limites de pertencimento a determinadas comunidades simbólicas: ‘povo’, ‘nação’, ‘raça’ e ‘classe’, entre outras. Nesses processos, as linhas divisórias entre os ‘de dentro’ e os ‘de fora’ afetam decisivamente as bases de titularidade a direitos numa determinada ordem e o reconhecimento de determinados grupos sociais como sujeitos históricos coletivos. ‘Inclusão’ e ‘Exclusão’, portanto, são frequentemente polos opostos de um mesmo processo, no qual as definições sobre a legitimidade das estruturas de poder e de desigualdade existentes ou da luta pela sua superação são tensionadas por conflitos. Construção de identidades, participação política, tolerância e respeito à diversidade, são algumas das questões que derivam dessa problemática geral e ganham lugar de destaque nos diversos trabalhos aqui reunidos.

O primeiro texto do dossiê é “Os pangermanistas na África: inclusão e exclusão dos nativos nos planos expansionistas do império, 1896-1914”, de Marion Brepohl. Analisando o impacto do pensamento racista nas políticas de expropriação territorial praticadas por alemães contra nativos na antiga África Alemã do Sudoeste (atual Namíbia), Brepohl argumenta que esse processo foi legitimado pela estigmatização dos negros em geral e, de forma mais específica, pela manipulação do mito dos bushmen, uma tribo nômade local descrita por pioneiros da antropologia do século XIX como uma espécie de sub-raça, “um corpo entre o macaco e o homem”.

Em “O conceito político de povo no período da Independência: história e tempo no debate político (1820-1823)”, Luisa Rauter Pereira demonstra como os principais grupos políticos atuantes no Brasil no período digladiaram-se em torno das definições de quem constituía o ‘povo’, articulando argumentos científicos, jurídicos e sociológicos para sustentar visões mais inclusivas ou mais restritivas de cidadania.

Renata Figueiredo Moraes, em “Uma pena de ouro para a Abolição – A lei do 13 de maio e a participação popular”, analisa o movimento coletivo objetivando incorporar simbolicamente um amplo número de cidadãos comuns como participantes ativos de um ato visto como inaugurador de um novo momento histórico no Brasil. Mapeando um conjunto mais amplo de manifestações, a autora se concentra na campanha de arrecadação de doações financeiras levada a cabo por um periódico com vistas à aquisição de uma pena de ouro a ser utilizada pela princesa regente no momento da assinatura da lei.

Em “Trabalhadores e associativismo urbano no governo Jânio Quadros em São Paulo (1953-1954)”, Paulo Fontes apresenta os resultados preliminares de pesquisa sobre petições apresentadas por organizações populares com base territorial ao gabinete da prefeitura paulistana. O artigo reconstitui o complexo jogo que conecta a organização e a luta dos habitantes da periferia por suas reivindicações no pós-guerra à trajetória meteórica de Jânio Quadros, cujos dotes de tribuno popular ecoavam a presença política dos trabalhadores no espaço da política institucional. Os contornos do ‘sistema político populista’ que emergem do trabalho de Fontes são muito distintos das imagens de massas amorfas manipuladas por líderes carismáticos que povoaram o imaginário acadêmico e político do país por várias décadas.

Lourival Andrade Júnior, em “Os ciganos e os processos de exclusão”, examina as perseguições sofridas por um povo marcado por sua condição nômade e pela ausência de um Estado nacional próprio. Lançando mão de um conjunto diversificado de fontes, Andrade examina como a caracterização negativa dos ciganos realimenta o preconceito no qual se baseia o cerceamento dos seus direitos.

Em “O Partido Comunista Brasileiro e o governo João Goulart”, Jorge Ferreira examina a evolução do posicionamento da principal força política da esquerda brasileira durante um conturbado período caracterizado, de um lado, por mobilizações de massas em defesas de reformas e, de outro, pela desestabilização da ordem democrática. Distanciando-se dos rótulos simplificadores que pretendem desqualificar a atuação dos comunistas com bases no pré-julgamento sobre suas opções estratégicas e táticas, o autor busca reconstituir o contexto de atuação dos atores diante dos desafios e possibilidades colocados. Como mostra Ferreira, o anti-imperialismo, a defesa da democracia e das reformas de base, que sintetizavam a linha política dos comunistas no período, não se traduziam automaticamente em posicionamentos predefinidos diante dos desafios da conjuntura. Ao contrário, demandavam o exercício permanente da decifração de um cenário dinâmico e repleto de incertezas.

O dossiê se conclui com “Adeus à classe trabalhadora?”, de Geoff Eley e Keith Nield. A versão original deste artigo, publicada na International Labor and Working-Class History em 2000, desencadeou um grande debate, em função do provocativo balanço apresentado pelos autores. Eley e Nield reconhecem a contribuição das novas abordagens teóricas que, desde os anos 1960, abalaram muitas das convicções presentes nas origens da história social marxista. Destacam, igualmente, como a emergência dos novos movimentos sociais e do feminismo vieram a exigir uma renovação da agenda historiográfica. Longe de defenderem o abandono do conceito de classe, porém, oferecem uma sofisticada justificativa da sua atualidade, indissociável do imperativo de atualização teórico-metodológica no reexame das temáticas tradicionais da história social.

A seção de avulsos contém sete artigos. Abrangendo a história brasileira de meados do século XVII ao início do XVIII temos “Carreira e trajetória social na monarquia e no império ultramarino português, governadores gerais do Estado do Brasil (1640-1702)”, de Francisco Carlos Cosentino, e “Um espelho possível de santidade na Bahia colonial: madre Vitória da Encarnação (1661-1715)”, de William de Souza Martins. Em “As Câmaras e o Ensino Régio na América Portuguesa”, Thais Nivia de Lima e Fonseca examina um período imediatamente posterior, que se estende de meados do século XVIII às primeiras décadas do XIX. Libertad Borges Bittencourt, por sua vez, trata de um personagem chave do processo de independência da Colômbia em “Escrever, contar, guardar: o diário de Santander no exílio europeu (1829-1832)”. Três artigos tratam de vertentes políticas do Brasil do século XX: “O pensamento corporativo em Miguel Reale: leituras do fascismo italiano no integralismo brasileiro”, de João Fábio Bertonha; “Cruzada pela democracia: militantes católicos no Brasil republicano”, de Ana Maria Koch; e “Os petistas e a crise do socialismo real: os desafios da renovação e as heranças das esquerdas tradicionais”, de Izabel Cristina Gomes da Costa.

O número encerra-se com quatro resenhas. A primeira delas, escrita por Samuel Silva R. de Oliveira, analisa uma obra cujo foco relaciona-se diretamente à temática do nosso dossiê: A poverty of rights: Citizenship and inequality in Twentieth-Century Rio de Janeiro, de Brodwyn Fischer. Antonio de Pádua Bosi examina Cash for your trashScrap recycling in America, de Carl A. Zimring. O pequeno x: biografia e historiografia no século XIX, de Sabina Loriga, foi resenhado por Douglas Pavoni Arienti. Por fim, Lidiane S. Rodrigues comenta A História como ofício: a constituição de um campo disciplinar, de Marieta de Moraes Ferreira.

Alexandre Fortes


FORTES, Alexandre. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.33, n.66, jul. / dez., 2013. Acessar publicação original [DR]

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História e Demandas Sociais / Revista Brasileira de História / 2013

Neste número 65 da Revista Brasileira de História estamos completando 4 anos à frente de sua editoria e totalizando a coordenação da edição de oito números, com a publicação de 140 artigos. Durante esse período a RBH, criada em 1981 com o objetivo de se constituir em um canal de divulgação da produção dos professores e historiadores brasileiros, vivenciou significativas transformações, passando a ser exclusivamente digital e a oferecer uma versão em inglês. Essas inovações têm ampliado o escopo de sua circulação, permitindo o acesso à nossa produção por um público não conhecedor da língua portuguesa e agilizando a consulta dos volumes novos e antigos.

Neste número o Conselho Editorial elegeu o tema “História e Demandas Sociais” para o dossiê que, seguindo a trilha do anterior, também está sofrendo uma ampliação no que diz respeito ao número de artigos publicados. Como já dissemos, o interesse em publicar na RBH tem sido crescente na comunidade de historiadores e cientistas sociais, e a cada número aumenta o volume de contribuições para avaliação. Pode-se destacar, por exemplo, o aumento de 226% no volume de textos recebidos do ano de 2009 para 2010, quando a revista se tornou exclusivamente digital. Paralelamente, observa-se um crescimento de 227% no volume de acessos à RBH no –SciELO, comparando-se o período em que a publicação era impressa e digital e o atual, desde dezembro de 2009, em que ela é exclusivamente eletrônica. Essa nova busca da produção historiográfica brasileira por canais para internacionalização dos seus estudos é muito bem-vinda, mas coloca muitos desafios para a RBH e indica a necessidade não só de ampliarmos a extensão dos números, mas também de adotarmos uma maior periodicidade. Este número conta com 14 artigos.

O Dossiê “História e Demandas Sociais”, sintonizado com a temática do Simpósio Nacional, tem o objetivo de contribuir para os debates acerca dos usos da história e do papel do historiador. A noção de demanda social da história permanece ainda vaga, é usada em contextos de análise muito diferentes e abrange fenômenos muito diversos; as demandas memoriais e as demandas midiáticas e editoriais são alguns exemplos. O boom de memórias e o interesse crescente dos diferentes grupos sociais pelo passado têm ampliado o espaço dos historiadores nos meios de comunicação e nas publicações para o grande público, mas ao mesmo tempo colocam para eles o desafio de transpor e adequar seus conhecimentos em busca de comunicação com um público não especializado. Muitas vezes, isso leva o historiador à tentação de recorrer a fórmulas simplistas e a respostas ambíguas às demandas vindas da sociedade e do Estado. Além disso, podemos mencionar os riscos de interferências externas que podem colocar em questão a autonomia da história como disciplina científica e contaminar o julgamento científico pelo juízo midiático. Nesse quadro é preciso estar atento à instrumentalização da história pela demanda social e repensar o vínculo entre função do conhecimento e função social da história, sobretudo quando se trata da análise de passados sensíveis, tais como o holocausto e as ditaduras na América Latina.

Se os pontos levantados são ameaças para os historiadores, a omissão ou o isolamento também podem acarretar consequências graves. Inúmeras vezes essas demandas sociais veiculadas não sensibilizam os historiadores que não conseguem transpor as novas contribuições acadêmicas para o leitor não especializado. Por sua vez, essa postura acarreta que os livros de vulgarização e os manuais produzidos por jornalistas ou autores não especializados preencham esse vazio e acabem sendo privilegiados pelo mercado editorial.

Diante do conjunto de textos recebidos e selecionados podemos dizer que essa área apresenta-se agora como um grande desafio para os historiadores. Para o Dossiê foram selecionados sete artigos, cinco dos quais focados na realidade brasileira, e dois tomando como referência o México e a Europa. No que diz respeito aos recortes temporais, foram privilegiados textos que abordavam temas relacionados com a História do Tempo Presente. Quanto às formas de abordagem, são apresentados trabalhos que adotaram como estratégia a discussão teórica e metodológica de pesquisas sobre os chamados temas traumáticos, como o estudo da repressão e do trabalho análogo a de escravo no Brasil e os usos políticos do passado, em especial quando se trata dos livros didáticos.

Iniciamos com o artigo de Antoon De Baets “Uma teoria do abuso da História”, que pretende esboçar uma teoria voltada a controlar o uso irresponsável da história. O abuso da história é definido como a utilização de maneira não científica do conhecimento histórico com o intuito de ludibriar e enganar a sociedade acerca de eventos traumáticos e polêmicos. Joana Maria Pedro e Anamaria Marcon Venson, no texto “Tráfico de pessoas: uma história do conceito”, tratam da discussão sobre o tráfico de pessoas focalizando a questão específica da prostituição. Alberto del Castillo Troncoso em “Memória e representações: a fotografia e o movimento estudantil de 1968 no México” focaliza a história desse movimento e as complexas relações entre a imprensa e o poder político da época, privilegiando a análise dos usos político e cultural das fotografias por parte das diferentes facções. Américo Oscar Guichard Freire em “Intelectuais, democratização e combate à pobreza no Brasil Contemporâneo” aborda o tema da participação de intelectuais em projetos e programas de inclusão social no país tomando como objeto de análise a trajetória político-intelectual de Herbert de Souza, o Betinho, e Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto. Ernesta Zamboni e Cristiani Bereta da Silva no texto “Cultura política e políticas para o ensino de história em Santa Catarina no início do século XX” apresentam análises das relações estabelecidas entre a produção historiográfica e a produção de uma história de Santa Catarina para o uso escolar, com vistas a enfrentar o desafio de desenvolver uma educação cívico-patriótica voltada para projeções simbólicas sobre o futuro do Brasil. Maria Aparecida Leopoldino Tursi Toledo em “Os lugares da produção do saber histórico escolar no Brasil: compêndios de história e narrativas conciliadoras no Paraná (1876-1905)” discute o papel dos livros didáticos na construção do Estado nacional e no sentido de nação, destacando, no caso do Paraná, como a História nacional teve dificuldades em se firmar como disciplina autônoma até os anos iniciais da República brasileira. Por fim, Alexandre Veiga trabalha com “Acervos da Justiça do Trabalho como fonte de pesquisa”. O artigo descreve a trajetória do Memorial da Justiça do Trabalho no Rio Grande do Sul, relatando suas experiências de atuação na área da preservação e divulgação do patrimônio documental e museológico da Justiça do Trabalho no Estado.

A seção de avulsos apresenta sete artigos. Andréa Lisly Gonçalves reconstitui no artigo “A luta de brasileiros contra o miguelismo em Portugal (1828-1834): o caso do homem preto Luciano Augusto” alguns aspectos da resistência ao regime implantado pelo rei d. Miguel (1828-1834) no intuito de esclarecer o trânsito de pessoas e de ideias no império português, permitindo até mesmo o estabelecimento de contrastes entre o contexto americano e o europeu. Jaime Rodrigues em “Um mundo novo no Atlântico: marinheiros e ritos de passagem na linha do equador, séculos XV-XX” analisa as origens, a disseminação e a transformação desses rituais na cultura marítima. Giselle Martins Venâncio em “Comemorar Camões e repensar a nação: o discurso de Joaquim Nabuco na festa do tricentenário de morte de Camões no Rio de Janeiro (1880)” analisa os eventos realizados durante essa comemoração com objetivo de destacar um ideal de identidade nacional brasileira definida como fundamentalmente lusitana. Jeffrey D. Needell no texto “O chamado às armas: o abolicionismo radical de Joaquim Nabuco (1885-1886)” trata do papel de Nabuco no movimento abolicionista e das transformações das suas próprias visões políticas no contexto da trajetória histórica do movimento. Juliana Miranda Filgueiras no texto “A produção de materiais didáticos pelo MEC: da Campanha Nacional de Material de Ensino à Fundação Nacional de Material Escolar” analisa a constituição e as principais realizações da CNME e da Fename e como essa produção evidenciou a atuação do Ministério da Educação em uma área dominada pelo mercado privado, sobretudo pela indústria editorial de didáticos. Cristiane Hengler Corrêa Bernardo e Inara Barbosa Leão no artigo “Formação do jornalista contemporâneo: a história de um trabalhador sem diploma” objetivam analisar o contexto em que a profissão de jornalista se desenvolveu no Brasil, as influências que sofreu, bem como as mudanças técnicas que alteraram a sua base material de produção. Por fim, João Márcio Mendes Pereira no artigo “O Banco Mundial e a construção política dos programas de ajustamento estrutural nos anos 1980” discute a gestação e operacionalização dos programas de ajustamento estrutural do Banco Mundial ao longo da década de 1980.

Neste número temos dois textos que destacam momentos e personagens importantes da história da Anpuh. A conferência proferida pelo então presidente da Anpuh, Durval Muniz de Albuquerque Júnior, “Ritual de Aurora e de Crepúsculo: a comemoração como a experiência de um tempo fronteiriço e multiplicado ou as antinomias da memória”, por ocasião do aniversário de 50 anos na nossa entidade, em julho de 2011, e uma homenagem ao professor John Monteiro, figura de grande relevância acadêmica, falecido recentemente, escrita pela professora Regina Celestino.

Temos ainda duas entrevistas com os historiadores Jean-François Sirinelli, da França, e Eugenia Meyer, do México, e publicamos quatro resenhas: Jaime Valim Mansan analisa En el combate por la historia: la República, la guerra civil, el franquismo, organizado por Ángel Viñas; Wanderson da Silva Chaves apresenta Racecraft: the soul of inequality in American Life, de Karen E. Fields e Barbara J. Fields; Kleiton de Sousa Moraes resenha O que é um autor? Revisão de uma genealogia, de Roger Chartier, e Fernando de Araujo Penna analisa Qual o valor da história hoje?, organizado por Marcia de Almeida Gonçalves, Helenice Aparecida de Bastos Rocha, Luís Monteiro Resnik e Ana Maria Ferreira da Costa Monteiro.

Mais uma vez convidamos nossos leitores a consultar os sites da Anpuh e do SciELO e baixar nos computadores ou nos leitores digitais os artigos de seu interesse.

Marieta de Moraes Ferreira


FERREIRA, Marieta de Moraes. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.33, n.65, 2013. Acessar publicação original [DR]

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Trabalho e Trabalhadores / Revista Brasileira de História / 2012

Revista Brasileira de História, criada em 1981 com o objetivo de se constituir em um canal de divulgação da produção dos professores e historiadores brasileiros, está lançando seu 64º número. Com periodicidade semestral, a partir do número 59 a RBH iniciou uma nova etapa, passando a ser somente digital e a oferecer uma versão em inglês. Essas inovações visam agilizar a consulta dos volumes novos e antigos, bem como ampliar o escopo de circulação do periódico, permitindo que um público não conhecedor da língua portuguesa possa acessar nossa produção.

Neste número o Conselho Editorial elegeu o tema “Trabalho e Trabalhadores” para o Dossiê que, seguindo a trilha do anterior, também está sofrendo uma ampliação no que diz respeito ao número de artigos publicados. Como já dissemos, o interesse em publicar na RBH tem sido crescente na comunidade de historiadores e cientistas sociais, e a cada número aumenta o volume de contribuições para avaliação. Neste número, recebemos cerca de cem artigos apenas para o Dossiê, dos quais um montante expressivo foi aprovado pelos nossos pareceristas, sem que tenhamos condições de publicar todos. Essa nova demanda da produção historiográfica brasileira em busca de canais para internacionalização dos seus estudos é muito bem-vinda, mas coloca muitos desafios para a RBH e indica a necessidade não só de ampliarmos a extensão dos números, mas também de repensarmos sua periodicidade. Este número conta com 15 artigos.

Para o Dossiê “Trabalho e Trabalhadores” foram selecionados nove artigos focados essencialmente na realidade brasileira, com apenas dois dedicados aos Estados Unidos e a Portugal. No que diz respeito aos recortes temporais, pudemos selecionar textos que abordavam diferentes conjunturas, contemplando desde as relações de trabalho no final do século XIX até a problemática do trabalho análogo ao escravo, já no século XXI. Quanto às formas de abordagem, são apresentados trabalhos que adotaram como estratégia de pesquisa o estudo de trajetórias de lideranças, assim como análises de movimentos sociais como greves e lutas contra a repressão. Do conjunto de textos recebidos e selecionados podemos dizer que essa área de trabalho, que por um expressivo período se mostrou em declínio, apresenta-se agora com grande dinamismo e de maneira renovada. Assim, do ponto de vista historiográfico é possível detectar que esse campo de investigação sobre o trabalho dá indicações de voltar a ser alvo de grande interesse dos pesquisadores, conquistando um novo espaço entre os objetos nobres de pesquisa. Iniciamos com um artigo de Leon Fink que apresenta análise historiográfica com foco especial nos Estados Unidos sobre a renovação dos estudos na área de trabalhadores. Joana Vidal de Azevedo Dias Pereira estuda espaços industriais e comunidades operárias na periferia de Lisboa, na virada para o século XX. Joseli Maria Nunes Mendonça no artigo “Sobre cadeias e coerção: experiências de trabalho no Centro-Sul do Brasil do século XIX” trabalha com a história de uma imigrante portuguesa estabelecida no Centro-Sul cafeeiro de meados do século XIX, com o objetivo de recuperar aspectos das experiências vivenciadas por trabalhadores juridicamente livres; Endrica Geraldo com “Os prisioneiros do Benevente” discute a repercussão pública da deportação, no ano de 1919, de 23 imigrantes, incluindo o militante Everardo Dias, episódio que revela aspectos importantes da repressão contra o movimento operário no Brasil. Aldrin Armstrong Silva Castellucci com o texto “Agripino Nazareth e o movimento operário da Primeira República” analisa a atuação dessa liderança socialista no movimento operário brasileiro. Antonio Luigi Negro em “Não trabalhou porque não quis” examina como a Justiça do Trabalho tratou uma greve no ramo têxtil baiano em 1948, procurando aplacar temores e tensões do sistema político e sindical brasileiro. Clarice Gontarski Speranza em “Os mineiros de carvão, seus patrões e as leis sobre trabalho: conflitos e estratégias durante a Segunda Guerra Mundial” estuda uma série de conflitos ocorridos nas minas de carvão no Rio Grande do Sul em 1943, com foco nas lutas pelo cumprimento de leis trabalhistas. Cristiana Costa da Rocha com “Os Retornados: reflexões sobre condições sociais e sobrevivência de trabalhadores rurais migrantes escravizados no tempo presente” dedica-se ao estudo de trabalhadores rurais de Barras, Piauí, que migram repetidas vezes para os estados do Pará, Mato Grosso e Goiás e vivenciam formas de trabalho análogo à escravidão. Fechando o dossiê, Ângela de Castro Gomes no texto “Repressão e mudanças no trabalho análogo a de escravo no Brasil: tempo presente e usos do passado” analisa a ação dos Grupos de Fiscalização Móvel, do Ministério do Trabalho e Emprego, e da Igreja católica, pela Comissão Pastoral da Terra, na apuração e punição das denúncias da utilização do denominado trabalho escravo.

A seção de avulsos apresenta seis artigos. Carmen Teresa Gabriel Anhorn em “Teoria da História, Didática da História e narrativa: diálogos com Paul Ricoeur” tem por objetivo discutir a potencialidade analítica da categoria ‘narrativa’ na reflexão sobre produção, distribuição e consumo do conhecimento histórico. Muryatan Santana Barbosa com “A construção da perspectiva africana: uma história do projeto História Geral da África (Unesco)” analisa a construção dessa grande obra focando o período entre 1965 e 1979; Patricia Santos Hansen com o texto “Território em disputa: a escola na luta entre o republicanismo e a Igreja em Portugal (séculos XIX e XX)” discute conceitos centrais aos processos de secularização e laicização do ensino em Portugal desde a Monarquia Constitucional até o início da Primeira República. Luís Miguel Carolino em “Manoel Ferreira de Araújo Guimarães, a Academia Real Militar do Rio de Janeiro e a definição de um gênero científico no Brasil em inícios do século XIX” analisa a atuação de um professor de astronomia na Academia Real Militar do Rio de Janeiro que produziu um dos primeiros manuais de astronomia esférica, um gênero maior da literatura científica do século XIX. Luiz Alberto Grijó com “Soldados de Deus: religião e política na Faculdade de Direito de Porto Alegre na primeira metade do século XX” aborda as ideias e concepções filosóficas que predominaram nessa Faculdade, focalizando as disputas entre os católicos e os chamados positivistas. Mara Rúbia Sant’Anna em “De perfumes aos pós: a publicidade como objeto histórico” trata dos anúncios de cosméticos publicados na revista Fon-Fon! de 1911 a 1934, com o objetivo de destacar as rupturas e continuidades.

Este número apresenta ainda entrevistas com os historiadores franceses Christian Delacroix e François Dosse e publica quatro resenhas: Adriana Duarte Leon analisa Boletim Vida Escolar: uma fonte e múltiplas leituras sobre a educação no início do século XX, organizado por Ana Maria de Oliveira Galvão e Eliane Marta Teixeira Lopes; Iara Lis Franco Schiavinatto apresenta Viagem ao Cinema Silencioso do Brasil, organizado por Samuel Paiva e Scheila Schvarzman; Maria Filomena Pinto da Costa Coelho analisa Colunas de São Pedro: a política papal na Idade Média central, de Leandro Duarte Rust, e, por último, Wolney Vianna Malafaia resenha História e documentário, organizado por Eduardo Morettin, Mônica Kornis e Marcos Napolitano.

Mais uma vez convidamos nossos leitores a consultar o site da Anpuh e do SciELO e baixar nos computadores ou nos leitores digitais os artigos de seu interesse.

Marieta de Moraes Ferreira


FERREIRA, Marieta de Moraes. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.32, n.64, dez, 2012. Acessar publicação original [DR]

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Igreja e Estado / Revista Brasileira de História / 2012

Revista Brasileira de História, criada em 1981 com o objetivo de se constituir em um canal de divulgação da produção dos professores e historiadores brasileiros, está lançando seu 63º número. Com periodicidade semestral, a partir do número 59 a RBH iniciou uma nova etapa, passando a ser somente digital e a oferecer uma versão em inglês. Essas inovações visam ampliar o escopo de circulação do periódico, permitindo o acesso à nossa produção de um público não conhecedor da língua portuguesa, bem como agilizar a consulta dos volumes novos e antigos. Um balanço dos acessos aos dez últimos números da RBH na internet nos mostra a dimensão e a repercussão que nossa produção pode alcançar através da web. A quantidade de acessos por mês a esses dez números foi superior a 20 mil (mais de 240 mil / ano), uma abrangência impensável para os impressos, confirmando a grande importância da internet na disseminação dos conteúdos da Revista e fazendo da web um instrumento precioso para a divulgação da historiografia produzida no Brasil e sobre o Brasil.

Neste número o Conselho Editorial elegeu o tema “Igreja e Estado” para o dossiê, que está sendo ampliado de forma significativa. Usualmente, a RBH tem formado um dossiê com cerca de cinco ou seis artigos e selecionado para a seção de avulsos um número semelhante. No entanto, o interesse em publicar na Revista tem sido crescente pela comunidade de historiadores e cientistas sociais, e a cada número aumenta o volume de contribuições para avaliação. Nestes dois últimos números, recebemos mais de duzentos artigos, tendo sido aprovados por pareceristas um montante expressivo, o que nos levou a ampliar não só o dossiê, mas também a quantidade de avulsos. Essa nova demanda da produção historiográfica brasileira em busca de canais para internacionalização dos seus estudos é muito bem-vinda, mas coloca muitos desafios para a RBH e indica a necessidade não só de ampliarmos a extensão dos números, mas também de adotarmos uma maior periodicidade. Por esses motivos este número conta com 18 artigos.

Para este Dossiê foram selecionados dez artigos, sendo objeto principal de atenção as temáticas voltadas para as questões religiosas na América portuguesa. Foram apresentados também três artigos localizados no Brasil Independente (Império e República) e artigos centrados em discussões conceituais e historiográficas. Iniciamos com o texto de Vinicius Miranda Cardoso, “Cidade de São Sebastião: o Rio de Janeiro e a comemoração de seu santo patrono nos escritos e ritos jesuíticos”, que analisa os usos e discursos jesuíticos relacionados com o cerimonial de recebimento de uma relíquia de São Sebastião no Rio de Janeiro no contexto de uma visitação inaciana ocorrida entre 1584 e 1585. Com base em diferentes fontes também focalizou-se a rememoração coletiva e sacramental da proteção de São Sebastião aos fundadores do Rio de Janeiro e a consagração do santo flechado como padroeiro da cidade. Pollyanna Gouveia Mendonça Muniz em “Cruz e Coroa: Igreja, Estado e conflito de jurisdições no Maranhão colonial” trata dos conflitos entre as jurisdições da Igreja e do Estado, com foco no século XVIII, quando ascendeu ao poder o marquês de Pombal com sua política regalista que tentava cada dia mais secularizar o Estado português. A autora objetiva acompanhar os conflitos e os motivos dessa disputa de jurisdição e analisar o desrespeito às imunidades eclesiásticas no Maranhão. Fernando Lobo Lemes em “Na arena do sagrado: poder político e vida religiosa nas minas de Goiás” tem como objeto a análise os conflitos e embates entre o poder secular e as autoridades eclesiásticas naquela região. Eliane Cristina Deckmann Fleck e Mauro Dillmann no texto “‘A Vossa graça nos nossos sentimentos’: a devoção à Virgem como garantia da salvação das almas em um manual de devoção do século XVIII” analisam o manual Mestre da Vida que ensina a viver e morrer santamente, publicado na primeira metade do século XVIII. O eixo central é o estudo das representações da Virgem, das orientações que os fiéis deveriam seguir no culto e nas práticas devocionais. Tal análise insere-se nas recentes discussões historiográficas acerca das práticas de leitura, considerando as formas plurais de apropriação e de recepção de textos, inseridas em seus contextos de produção e circulação. Ana Rosa Cloclet da Silva em “Padres políticos e suas redes de solidariedade: uma análise da atuação sacerdotal no sertão de Minas Gerais (1822 e 1831)” estuda o perfil de clérigos brasileiros que aliaram de modo peculiar a formação pastoral e intelectual à atuação política, em favor de seus interesses privados, buscando usufruir de suas redes de sociabilidade para resistir às normatizações encaminhadas pelo Estado nacional, pós-Independência. O artigo seguinte, de Maurício de Aquino, “Modernidade republicana e diocesanização do catolicismo no Brasil: as relações entre Estado e Igreja na Primeira República”, trata dos reflexos da proclamação da Republica e do fim do regime do padroado, que levaram à implementação de um processo de reforma e reorganização eclesiástica cujo fulcro consistiu na criação de dioceses e jurisdições similares – ao qual se pode denominar diocesanização. Christiane Jalles de Paula no artigo “Gustavo Corção: apóstolo da ‘linha-dura'” tem como objetivo analisar a participação de setores do laicato católico na legitimação do golpe militar de 1964. Partindo da atuação de Gustavo Corção, a autora procura demonstrar como os argumentos desse personagem buscaram legitimar as bases antidemocráticas da chamada ‘democracia’ do regime militar defendida por esses setores.

O segundo bloco de artigos que integram o Dossiê “Igreja e Estado” apresenta reflexões sobre conceitos de santidade e de realeza cristã na Idade Média e um balanço das relações entre essas duas esferas. Igor Salomão Teixeira em “O tempo da santidade: reflexões sobre um conceito” apresenta e analisa o processo de canonização de Tomás de Aquino (1323-1274). A proposta do autor é destacar que o conceito de santidade, tal como apresentado, torna-se um fenômeno social construído coletivamente. André Luis Pereira Miatello no artigo “O rei e o reino sob o olhar do pregador: Vicente de Beauvais e o conceito de realeza no século XIII” discute, com base no De morali principis institutione, do religioso francês, os critérios, a instituição e a função social da realeza cristã no século XIII. O propósito é perscrutar a imagem antiga do pastorado régio por oposição à ideia de razão de Estado. Escrevendo para o rei capetíngio, Luís IX, Vicente de Beauvais contrapõe a situação ordinária em que o governo político se apresenta, no plano histórico, ao modelo social visível em uma realidade sobrenatural, chamada ecclesia. Finalmente, Olivier Abel em “Igrejas e Estado” fornece ao leitor um balanço bibliográfico que percorre diferentes conjunturas e diferentes autores acerca das relações entre esses dois poderes.

A seção de avulsos apresenta oito artigos. Clara Maria Laranjeira Sarmento e Santos em “A Correspondência Luso-Brasileira: narrativa de um trânsito intercultural” explora a experiência entre Portugal e o Brasil, no início do século XIX, de duas famílias oriundas da pequena nobreza rural do Norte de Portugal, com especial atenção ao percurso intercultural feminino. O trabalho articula os contextos concretos e situados do seu objeto de estudo, com o propósito de construir o conhecimento de diferentes momentos históricos, racionalidades e mundividências. Eduardo Munhoz Svartman em “Formação profissional e formação política na Escola Militar do Realengo” aborda a primeira etapa do processo de formação profissional de oficiais do Exército Brasileiro que iniciaram suas carreiras no decorrer da década de 1920. Com foco numa instituição que pretendia formar oficiais ‘apolíticos’, o autor chama atenção para a criação de um espaço de politização desenvolvido nessa escola. Fernando Vale Castro em “Um projeto de diplomacia cultural para a República: a Revista Americana e a construção de uma nova visão continental” tem como objetivo analisar esse periódico como um instrumento da estratégia do Itamaraty para pensar uma aproximação entre o Brasil e o restante da América do Sul, destacando o papel a ser exercido pela diplomacia na República recém-proclamada. Cleber Santos Vieira em “Civismo, República e manuais escolares” analisa aspectos do civismo no alvorecer da República brasileira, com ênfase na pesquisa sobre dois livros escolares: História do Brasil ensinada pela biografia de seus heróis, de Silvio Romero (1890), e A História de São Paulo pela biografia de seus nomes mais notáveis (1895), publicado por Tancredo Amaral. Por um lado, trata-se de apresentar nuanças da Historia Magistra Vitae presentes nesses objetos da cultura material; por outro, de destacar em que medida suas histórias foram pontuadas por divergências em torno da questão educação ou instrução cívica pela afirmação de um civismo de coloração regional, bem como palco de conflitos entre protagonistas do republicanismo paulista. Lucília Siqueira em “Os hotéis na cidade de São Paulo na primeira década do século XX: diversidade no tamanho, na localização e nos serviços” analisa três estabelecimentos de hospedagem de dimensões distintas, ressaltando sua heterogeneidade. Seguindo os inventários post mortem de proprietários de hotéis, o artigo possibilita apreender a variedade dos equipamentos e serviços existentes, bem como a diversidade dos grupos aos quais pertenciam os donos desses estabelecimentos. Maria Bernardete Ramos Flores no texto “Quando o dragão assume o lugar do cavalo: um caráter pós-colonialista na obra criolla de Xul Solar” analisa como esse artista, representante da vanguarda argentina, desenvolve a proposta de que a América, com seus sistemas de mitos e crenças, revelava um espaço espiritual no qual se desenvolveria a nova humanidade, e toma o dragão para subverter os fluxos da colonização do Mundo Novo. Antonio Maurício Dias da Costa em “Festa e espaço urbano: meios de sonorização e bailes dançantes na Belém dos anos 1950” discute o uso de referências simbólicas de origem memorialística e jornalística atribuídas ao contexto socioespacial dos bailes dançantes de orquestras e ‘sonoros’ em Belém, nos assim chamados ‘clubes sociais’ e ‘clubes suburbanos’. Raquel Varela em “‘Um, dois, três MFA’: o Movimento das Forças Armadas na Revolução dos Cravos – do prestígio à crise” analisa o golpe militar de 25 de abril de 1974 que põe fim aos 48 anos de ditadura do Estado Novo em Portugal. Busca explicar a ascensão e queda desse movimento de oficiais, a forma como ganhou apoio popular e as razões do seu desmoronamento.

Este número apresenta ainda quatro resenhas. Rodrigo Patto Sá Motta analisa João Goulart: uma biografia, de Jorge Ferreira; Livia Lopes Neves fala de Leituras, projetos e (re)vista(s) do Brasil (1916-1944), de Tania Regina de Luca; Cristina Ferreira resenha Cláudio Manuel da Costa: o letrado dividido, de Laura de Mello e Souza, e Luciana Fernandes Boeira analisa Présent, nation, mémoire, de Pierre Nora.

Mais uma vez convidamos nossos leitores a consultarem o site da Anpuh e do SciELO e baixar nos computadores ou nos leitores digitais os artigos do seu interesse.

Marieta de Moraes Ferreira


FERREIRA, Marieta de Moraes. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.32, n.63, 2012. Acessar publicação original [DR]

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Festas / Revista Brasileira de História / 2011

Neste ano de 2011 a Revista Brasileira de História completou 30 anos. Criada em 1981 com o objetivo de se constituir em um canal de divulgação da produção dos professores e historiadores brasileiros, teve o intuito inicial de suprir o vazio deixado pelo fim da publicação dos Anais dos Simpósios da Anpuh, em 1978, e veio ao encontro das conquistas no campo científico e da necessidade de sua divulgação. De acordo com a apresentação da professora Alice Canabrava, sua primeira editora, uma parte do periódico deveria dar publicidade a artigos originais sobre pesquisas de História ou de seu interesse. A atualização permanente com respeito à bibliografia histórica seria objeto de outra seção. Foi considerada, de início, especialmente a produção dos periódicos consagrados à História, nacionais e estrangeiros, no sentido de proporcionar aos professores e pesquisadores uma contribuição que viesse suprir a carência das bibliotecas universitárias. Essa informação bibliográfica deveria ser ampliada para divulgar também comentários de obras históricas. Finalmente, o “Noticiário” deveria tornar mais conhecida a atividade dos Núcleos Regionais, “dar maior publicidade aos conclaves de História realizados no país e no exterior e a outros assuntos de interesse para os que militam no campo da História” (RBH, v.1, n.1, 1981, p.9).

Com periodicidade semestral, a RBH já alcançou a publicação de 62 números. A partir do número 59, a Revista iniciou uma nova etapa, passando a ser somente digital e a oferecer uma versão em inglês. Essas inovações visam ampliar o escopo de circulação do periódico, permitindo o acesso à nossa produção de um público não conhecedor da língua portuguesa, bem como agilizar a consulta dos volumes novos e antigos. Um balanço dos acessos aos números mais recentes da RBH na internet nos mostra a dimensão e a repercussão que nossa produção pode alcançar através da web. Nos últimos dez números, a quantidade de acessos por mês foi superior a 20 mil (mais de 240 mil / ano), uma abrangência impensável para os impressos, confirmando a grande importância da internet na disseminação dos conteúdos da Revista e fazendo da web um instrumento precioso para a divulgação da historiografia produzida no Brasil e sobre o Brasil.

No segundo semestre de 2011 atingimos um novo marco importante. Com o objetivo de ampliar a internacionalização da produção acadêmica brasileira, a Capes decidiu apoiar dois periódicos por área, ao longo de cinco anos, com a intenção de convertê-los em referências. Em nossa área optou-se por edital interno em que poderiam concorrer todas as revistas classificadas entre Qualis A1 e B2. Responderam ao convite 12 revistas, então avaliadas por um comitê escolhido especificamente para esse fim. Entre as duas selecionadas, a Revista Brasileira de História foi escolhida por unanimidade. Essa aprovação não só representa o reconhecimento da importância do papel da RBH e da Anpuh, mas também nos permitirá alcançar um novo patamar, podendo ampliar o número de artigos publicados, produzir a edição trilíngue – em espanhol e inglês – e alcançar uma maior interação com a comunidade internacional de historiadores.

Neste número elegemos para o dossiê o tema “Festas”, que surgiu sem anúncio prévio e como resultado do grande interesse despertado para o número anterior, “Comemorações”. Em verdade, a grande oferta de mais de 110 textos focalizando celebrações, festejos e eventos vinculados à construção de memórias e identidades, já aprovados por pareceristas, nos levou a optar por abrir um novo dossiê. Como historiadores, sabemos que comemorar não é um ato sem maiores implicações, pois envolve escolhas e projetos e funciona para estabelecer laços identitários entre diferentes grupos sociais. E é exatamente porque permitem legitimar e atualizar identidades que as celebrações públicas ocupam um lugar central no universo contemporâneo.

Para este dossiê foram selecionados cinco artigos. Iniciamos com o texto de Petrônio José Domingues, “‘A redempção de nossa raça’: as comemorações da abolição da escravatura no Brasil”, que focaliza em São Paulo, nas primeiras décadas do século XX, como estratos da população negra saíam às ruas todo ano para comemorar o 13 de Maio – data da abolição –, por meio de romarias, missas, conferências cívicas, discursos solenes, festivais artístico-culturais, bailes, música, dança e teatro, quase sempre embalados por um clima de emoção e alegria. O segundo artigo, de Jocelito Zalla a Carla Menegat, trata da “História e Memória da Revolução Farroupilha” com o objetivo de apresentar um panorama das manifestações em torno dessa revolução, desde o próprio episódio até sua consolidação como mito fundador da identidade regional no Rio Grande do Sul. Isabel Bilhão, em “‘Trabalhadores do Brasil’: as comemorações do Primeiro de Maio em tempos de Estado Novo varguista”, analisa as mudanças e permanências em seus rituais comemorativos, bem como as estratégias de preparação, apresentação e legitimação de suas comemorações por parte do governo. Crislane Barbosa Azevedo no trabalho “Celebração do civismo e promoção da educação: o cotidiano ritualizado dos Grupos Escolares de Sergipe no início do século XX” busca compreender o funcionamento cotidiano de tais instituições por meio da identificação e análise dos diferentes eventos de caráter escolar e cívico. Lucileide Costa Cardoso em “Os discursos de celebração da ‘Revolução de 1964′” aborda aspectos desses discursos construídos pelos militares entre os anos de 1964 e 1999, através dos quais buscaram explicitar as motivações da articulação do Golpe de Estado, a estruturação do regime e o seu desfecho em 1985. O objetivo, portanto, é analisar as concepções de história, o sentido e o caráter das comemorações, estabelecendo regularidades que possam elucidar a estruturação do pensamento anticomunista e autoritário em disputa no campo da memória por uma determinada apropriação do passado.

A seção se avulsos apresenta sete artigos: Andre de Lemos Freixo, em “Um ‘arquiteto’ da historiografia brasileira: história e historiadores em José Honório Rodrigues”, analisa a história da historiografia brasileira segundo a perspectiva de José Honório Rodrigues (1913-1987), como parte dos esforços que na década de 1930 começaram a investir nos aspectos profissionais da História como disciplina no Brasil – enfatizando, por exemplo, a função central da metodologia histórica como diferencial frente às escritas amadoras. Juliana Pirola da Conceição e Maria de Fátima Sabino Dias no artigo “Ensino de História e consciência histórica latino-americana” apresentam a pesquisa desenvolvida sobre a contribuição dos conteúdos latino-americanos na grade curricular de ensino para a formação histórica dos jovens na escola. Letícia Borges Nedel em seu texto “Entre a beleza do morto e os excessos dos vivos: folclore e tradicionalismo no Brasil meridional” examina a participação gaúcha no autodenominado Movimento Folclórico Brasileiro, entre as décadas de 1940 e 1960. Cássia Rita Louro Palha em “Televisão e política: o mito Tancredo Neves entre a morte, o legado e a redenção” aborda a produção cultural da televisão brasileira, em especial da Rede Globo de Televisão e de seu telejornalístico Globo Repórter no desaguar da chamada ‘abertura política’, tendo como mote a veiculação da imagem política de Tancredo de Almeida Neves e os processos de construção simbólica que envolveram a sua mitificação. Carolina Amaral de Aguiar no artigo “Cinema e História: documentário de arquivo como lugar de memória” analisa o filme A espiral (1975), um documentário que focaliza a Unidade Popular no Chile com base em materiais pesquisados em arquivos. José Iran Ribeiro em “O fortalecimento do Estado Imperial através do recrutamento militar no contexto da Guerra dos Farrapos” analisa o significativo crescimento e atuação do Exército Imperial brasileiro e a capacidade das autoridades em recrutar efetivos necessários para o fortalecimento da autoridade imperial. Jorge Pimentel Cintra e Júnia Ferreira Furtado no texto “A Carte de l’Amérique Méridionale de Bourguignon d’Anville: eixo perspectivo de uma cartografia amazônica comparada” analisam do ponto de vista da cartografia alguns mapas da região amazônica de meados do século XVIII que visavam à produção de um documento que servisse de base para as negociações do Tratado de Madri.

Neste número publicamos também uma entrevista com Bartolomé Clavero, catedrático da Universidad de Sevilla com vasta obra na área de história do direito e das instituições. A entrevista foi coordenada por Ivan de Andrade Vellasco e realizada em abril de 2011.

Este número apresenta ainda duas resenhas. Tereza Maria Spyer Dulci escreve sobre o livro O dia em que adiaram o Carnaval: política externa e a construção do Brasil (Ed. Unesp, 2010), de Luís Cláudio Villafañe Santos, e Carlos Roberto Figueiredo Nogueira analisa Inventar a heresia? Discursos polêmicos e poderes antes da Inquisição (Ed. Unicamp, 2009), organizado por Monique Zerner.

Completam esta apresentação textos em homenagem a Maria Yedda Leite Linhares (titular da UFRJ) e Eni de Mesquita Samara (titular da USP), ambas destacadas professoras e historiadoras brasileiras, falecidas neste ano.

Mais uma vez convidamos nossos leitores a consultar o site da Anpuh e do SciELO e baixar nos computadores ou nos leitores digitais os artigos de seu interesse.

Marieta de Moraes Ferreira
dezembro de 2011


FERREIRA, Marieta de Moraes. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.31, n.62, dez., 2011. Acessar publicação original [DR]

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Comemorações / Revista Brasileira de História / 2011

Neste ano de 2011 a Anpuh está completando meio século, e a Revista Brasileira de História, 30 anos. Criada em 1961, por ocasião da realização do I Encontro de Professores Universitários de História, em Marília, com o objetivo de promover um intercâmbio entre os professores e as universidades, desde as sua origens a Anpuh se constituiu em um padrão para os seus congêneres nas demais faculdades de filosofia que estavam sendo criadas no país. Igualmente importantes para serem lembradas foram as lutas travadas no âmbito da Anpuh pela melhoria da qualidade do ensino e da pesquisa histórica, bem como pela defesa dos princípios democráticos e contra o arbítrio e a repressão ao longo das décadas de 1960 e 1970. A recuperação de sua trajetória é uma contribuição importante para a compreensão da formação do campo da História como disciplina universitária e para a própria história das instituições de ensino e pesquisa no Brasil.

Em 1981 foi lançado o primeiro número da Revista Brasileira de História, com o objetivo de se constituir em um canal de divulgação da produção dos professores e historiadores brasileiros. Criada com o intuito inicial de suprir o vazio deixado pelo fim da publicação dos Anais dos Simpósios da Anpuh, que até 1978 divulgaram os trabalhos ali apresentados, a Revista Brasileira de História veio ao encontro das conquistas no campo científico e da necessidade de sua divulgação. De acordo com a apresentação da professora Alice Canabrava, sua primeira editora, uma parte do periódico deveria dar publicidade a artigos originais sobre pesquisas de História ou de seu interesse. A atualização permanente com respeito à bibliografia histórica seria objeto de outra seção. Foi considerada, de início, especialmente a produção dos periódicos consagrados à História, nacionais e estrangeiros, no sentido de proporcionar aos professores e pesquisadores uma contribuição que viesse suprir a carência das bibliotecas universitárias. Essa informação bibliográfica deveria ser ampliada para divulgar também comentários de obras históricas. Finalmente, o “Noticiário” deveria tornar mais conhecida a atividade dos Núcleos Regionais, “dar maior publicidade aos conclaves de História realizados no país e no exterior e a outros assuntos de interesse para os que militavam no campo da História” (RBH, v.1, n.1, 1981, p.9).

Com periodicidade semestral, a RBH já publicou 61 números e um total de 764 textos, sendo 598 artigos e 166 demais contribuições (resenhas, entrevistas, apresentações etc.), atingindo mais de 4 milhões e 700 mil acessos no site SciELO (contabilizados de 1998 até a atualidade). Aproveitando a comemoração dos 30 anos da RBH, acompanha esta edição um índice completo dos textos publicados entre 1981 e 2010.

A partir do número 59, a RBH iniciou uma nova etapa, tornou-se somente digital e passou a oferecer uma versão completa em inglês. Essas inovações visam ampliar o escopo de circulação do periódico, permitindo o acesso à nossa produção de um público não conhecedor da língua portuguesa, bem como agilizar a consulta dos volumes novos e antigos. Um balanço dos acessos aos textos da RBH na internet nos mostra a dimensão e a repercussão que nossa produção pode alcançar através da web.

Nos últimos dez números, a quantidade de acessos por mês foi superior a 20 mil (mais de 240 mil / ano), uma abrangência impensável para os impressos, confirmando a grande importância da internet na disseminação dos conteúdos da RBH e fazendo da web um instrumento precioso para a divulgação da historiografia produzida no Brasil e sobre o Brasil. O sucesso desse empreendimento, resultado do esforço coletivo da comunidade dos profissionais de História, merece ser festejado, e por isso elegemos como tema deste dossiê as “Comemorações”.

Esse duplo aniversário, da Anpuh e da RBH, constitui um momento importante de comemoração. Como historiadores, sabemos que comemorar não é um ato sem maiores implicações, pois envolve escolhas e projetos. Comemoração é a cerimônia destinada a trazer de volta a lembrança de pessoas ou eventos, algo que indica a ideia de ligação entre os homens, fundada sobre a memória. Essa ligação também pode ser chamada de identidade. E é exatamente porque permitem legitimar e atualizar identidades que as comemorações públicas ocupam um lugar central no universo contemporâneo.

As sociedades contemporâneas, preocupadas com a aceleração do tempo e com o aumento da capacidade de esquecer, têm demonstrado grande interesse em retomar o estudo da memória e de sua própria história. Assim, emerge a necessidade permanente de constituir novas formas de preservação, de memorização, de arquivamento. As modalidades de comemorações assumem formas diversificadas de acordo com os objetivos a alcançar: o sentido de muitas delas é o de reforçar concepções e valores, promover o consenso, a harmonia entre os grupos ou atores sociais, mas podem também desencadear conflitos ou tensões. Nesta virada do milênio, grandes desafios se colocam para a sociedade brasileira, especialmente para nós, professores de História e historiadores. Olhar para trás parece ser útil para melhor descortinar o caminho à frente. Assim, ao recuperarmos aspectos da nossa história comemorando os aniversários da Anpuh e da RBH por meio deste número, temos como intenção transmitir para a comunidade de professores e historiadores um pouco do que fomos, o que somos e o que queremos ser.

Neste número, o dossiê “Comemorações” traz nove artigos: Hendrik Kraay em seu texto, “Alferes Gamboa e a Sociedade Comemorativa da Independência do Império, 1869-1889”, apresenta o estudo das festas da Independência brasileira promovidas por essa Sociedade no Rio de Janeiro e revela um significativo engajamento popular com o Estado imperial; Jaime de Almeida, em “Um lugar de memória e de esquecimento: Santa Librada, padroeira da Independência da Colômbia”, analisa como uma imagem religiosa de obscuras origens medievais tornou-se casualmente objeto de um culto cívico religioso voltado para a construção da memória da independência daquele país; Silvia Capanema Almeida, autora do texto “Do marinheiro João Cândido ao Almirante Negro: conflitos memoriais na construção do herói de uma revolta centenária”, discute a consolidação da Revolta da Chibata (Rio de Janeiro, 1910) como um tema da memória nacional brasileira, mediante a análise de diferentes momentos e tentativas de recuperação, apropriação e comemoração do levante; Sílvio Correa no artigo “História, memória e comemorações: em torno do genocídio e do passado colonial no sudoeste africano” trata de algumas formas de compartilhar a experiência, do dever da memória e do reescrever da História no que tange ao genocídio durante a guerra colonial (1904-1907) no sudoeste africano; Marcelo Abreu no trabalho “Luto e culto cívico dos mortos: as tensões da memória pública da Revolução Constitucionalista de 1932 (São Paulo, 1932-1937)” analisa as tensões da memória pública desse movimento, baseando-se no estudo da invenção do culto cívico dos mortos em combate; Douglas Marcelino em “Os funerais como liturgias cívicas: notas sobre um campo de pesquisas” apresenta o processo de constituição de funerais em liturgias cívicas, destacando sua relação com outros fenômenos históricos, como a conformação dos imaginários nacionais, o processo de individualização moderno e as mudanças nas formas de lidar com a morte; Rodrigo Christofoletti no texto “Rapsódia verde: as comemorações do jubileu de prata integralista e a manutenção de seu passado / presente (1957-1958)” apresenta a série de eventos promovida em comemoração à trajetória do movimento fundado em 1932; Angélica Müller em “‘Você me prende vivo, eu escapo morto’: a comemoração da morte de estudantes na resistência contra o regime militar” analisa os ‘usos políticos do passado’ feitos pelos militantes do movimento estudantil na década de 1970, no intuito de reforçar a identidade associativa e legitimar a resistência contra a ditadura militar; finalizando o Dossiê, Marta Mega de Andrade no texto “O espaço funerário: comemorações privadas e exposição pública das mulheres em Atenas (séculos VI-IV a.C.)” estuda a comemoração funerária das mulheres em Atenas a partir dos epigramas. Trata-se de explorar a hipótese de que os contextos funerários, como espaços de ‘publicização’ e de exposição, mostram uma relação positiva da comunidade políade com as mulheres, através da valorização de temas como o das relações de philia e da recorrência de elogios derivados da tradição épica, em épocas anteriores destinados apenas aos elogios fúnebres masculinos.

A seção de avulsos apresenta seis artigos: Alexander Von Plato em seu texto “Mídia e Memória: apresentação e ‘uso’ de testemunhos em som e imagem” trata do registro de testemunhos, bem como dos efeitos desse registro e das mídias, em geral, sobre as pessoas entrevistadas; Eduardo Morettin no artigo “As exposições universais e o cinema: história e cultura” tem por objetivo examinar a presença do cinema nessas exposições entre 1893 e 1939; integrante de uma cultura visual construída por esses espaços dedicados a celebrar o capitalismo, o cinema tem sua trajetória identificada à das diferentes feiras mundiais pela sua capacidade de entreter e, ao mesmo tempo, educar; Diego Santos Vieira de Jesus e Verônica Fernandes, em “Do ‘terror suicida’ ao ‘bárbaro’: mídia e exclusão na política externa brasileira – o 11 de setembro segundo O Globo e a Folha de S. Paulo“, examinam a cobertura dos atentados de 11 de setembro de 2001 pelos jornais impressos de maior circulação no Brasil, no dia seguinte aos ataques, mostrando que a atuação de tais meios de comunicação foi fundamental na definição de práticas de exclusão no nível internacional; Tania de Luca no texto “A produção do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) em acervos norte-americanos: estudo de caso” analisa a ação do DIP como editor e financiador de obras favoráveis ao regime, e a sua presença no exterior indicando os esforços do regime para atingir uma audiência internacional; Eugênio Rezende de Carvalho no texto “A dupla dimensão do movimento latino-americano de história das ideias” tem como propósito oferecer uma análise sobre a dupla dimensão do movimento intelectual de história das ideias, organizado na América Latina por volta da década de 1940, sob a liderança destacada do filósofo mexicano Leopoldo Zea (1912-2004); completando o conjunto, Alírio Carvalho Cardoso em “A conquista do Maranhão e as disputas atlânticas na geopolítica da União Ibérica (1596-1626)” discute os projetos existentes para a ocupação ou exploração econômica do antigo Maranhão, antes de 1625. Tais projetos – francês, inglês e holandês – concorrem com o plano luso-espanhol de ocupação da fronteira entre o Norte do Brasil e as Índias de Castela entre os séculos XVI e XVII.

Este número apresenta ainda quatro resenhas: Weder Ferreira da Silva analisa a obra Memórias e narrativas (auto)biográficas (organizada por Gomes & Schmidt); Diogo da Silva Roiz escreve sobre O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico negro (1822-1853) (Reis; Gomes & Carvalho); Maria de Fátima Fontes Piazza focaliza O Café de Portinari na Exposição do Mundo Português: modernidade e tradição na imagem do Estado Novo brasileiro (de Luciene Lehmkuhl), e Helenice Rodrigues da Silva escreve sobre Pierre Nora – homo historicus (de François Dosse).

Acreditamos que os escritos aqui divulgados podem ser um estímulo para novas pesquisas e debates com vistas a fortalecer o campo de trabalho do profissional de história. Assim, convidamos nossos leitores a consultar o site da Anpuh e do SciELO e baixar nos seus computadores ou nos leitores digitais os artigos de seu interesse. Ainda que a publicação em papel possa fazer falta para alguns (e eu me incluo entre eles), o mundo digital cada vez mais abre novas portas e possibilidades.

Marieta de Moraes Ferreira
julho de 2011


FERREIRA, Marieta de Moraes. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.31 n.61, 2011. Acessar publicação original [DR]

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História, educação e interdisciplinaridade / Revista Brasileira de História / 2010

O número 60 da RBH apresenta o dossiê “História, educação e interdisciplinaridade”, o qual traduz a expressiva dimensão que os debates sobre o ensino de História vêm assumindo nos meios acadêmicos brasileiros. Se por muito tempo os professores universitários de História foram resistentes a esse tipo de reflexão, o volume e a diversidade de artigos recebidos mostra uma positiva mudança em direção ao aprofundamento das questões relativas ao ensino da disciplina.

Os textos que compõem o dossiê procuram refletir sobre o saber escolar, entendido aqui como uma construção histórica, ou seja, como um produto de seu tempo, guardando muito do contexto em que foi elaborado. A perspectiva de que o ensino deve ser pensado em sua historicidade é um passo importante para entendermos a constituição da História como uma disciplina acadêmica e escolar, bem como as relações entre a carreira acadêmica e a formação docente no contexto brasileiro. A ideia básica do dossiê é contribuir para o debate sobre a formação dos docentes e apresentar subsídios para pensarmos sobre as funções e o alcance do ensino de História, tanto no passado como nos dias de hoje.

O dossiê é composto de sete artigos: Marcos Antônio da Silva e Selva Guimarães Fonseca analisam tradições de debate sobre ensino de História no Brasil desde a ditadura de 1964-1984. O artigo discute as mudanças, permanências, conquistas e perdas na história da disciplina. Destaca a importância da cultura escolar, a necessária continuidade da escola como instituição e o diálogo com formas não escolares de ensino. Aryana Lima Costa nos apresenta um artigo sobre a extensão na formação dos profissionais, pensando o papel que cabe (ou caberia) aos cursos de História na contemporaneidade através de atividades concebidas para extrapolar os muros das universidades. O texto de Maria Aparecida Bergamaschi e Juliana Schneider Medeiros analisa como a educação escolar indígena no Brasil foi imposta aos povos originários desde os primórdios da colonização, com o intuito de catequizá-los e civilizá-los, e de que maneira, coerentes com suas cosmologias, esses povos mantiveram um modo próprio de educação. O artigo de Maria Rita de Almeida Toledo e Daniel Revah apresenta um estudo sobre a revista Escola e a política educacional do regime militar a partir da difusão da reforma de ensino instituída pela Lei 5.692, de 1971. Outro texto que versa sobre a problemática do ensino durante a ditadura militar é de autoria de Elaine Lourenço e enfoca memórias da atuação docente no período. O artigo de Helenice Aparecida Bastos Rocha trata de um problema existente na escola brasileira que afeta diretamente o trabalho de ensino e aprendizagem de história: as condições de seus alunos no que se refere ao domínio da leitura e da escrita. Considerando o quadro apresentado, a autora sinaliza algumas alternativas para o ensino de história no Ensino Básico. Finalizando o dossiê, Ricardo de Aguiar Pacheco analisa as ações educativas em museu e suas relações com o ensino de história.

Os demais artigos deste número focalizam temáticas variadas. O texto de Raquel Discini de Campos analisa a atuação do médico carioca Floriano de Lemos na região Noroeste Paulista, na década de 1920 e procura situá-lo como personagem possuidor de uma trajetória emblemática a uma geração de intelectuais que intencionou mapear, analisar e organizar discursivamente o interior do país nas primeiras décadas do século XX. Francisca L. Nogueira de Azevedo e Roberta Teixeira Gonçalves estudam um documento do século XIX intitulado Novella pollítica e sentimental, e o ponto central do artigo é a análise da narrativa novelesca, no sentido de perceber os elementos discursivos utilizados como persuasão em defesa da Espanha. Ana Carolina Eiras Coelho Soares busca entender as relações entre os espaços urbanos do Rio de Janeiro oitocentista e as relações de gênero expressas na narrativa de José de Alencar em seus romances urbanos femininos: DivaLucíola e Senhora. O artigo de Andrea Dupuy focaliza como os primeiros núcleos populacionais da América Hispânica eram abastecidos de carne e o impacto do estanco, sistema de monopólio voltado para assegurar um eficiente fornecimento de alimentos às cidades. Para finalizar, Maria Helena Versiani apresenta alguns valores correlacionados à ideia de República presentes em um repertório de práticas políticas que tiveram lugar na sociedade brasileira, na segunda metade da década de 1980.

Conselho Editorial


Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.30, n.60, 2010. Acessar publicação original [DR]

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História e historiadores / Revista Brasileira de História / 2010

Neste número 59 inaugura-se uma nova fase da Revista Brasileira de História, com a edição exclusivamente digital e também com sua versão em inglês. Esse novo formato, no entanto, mantém o compromisso de dar continuidade à linha editorial dos números anteriores, e de ao mesmo tempo enfrentar os desafios que ora se apresentam.

Essa mudança representa uma nova etapa na história da RBH. Nossa tradição historiográfica de valorização dos textos e arquivos em papel nos faz temerosos desses novos suportes da escrita. No entanto, as aceleradas transformações sofridas pelo mercado editorial na atualidade implicam uma tendência crescente à digitalização dos periódicos. A publicação eletrônica permite viabilizar a utilização da tecnologia com vistas ao enriquecimento da produção historiográfica, ou seja, abre-se a possibilidade de uma escrita da história que vai além das palavras e passa a compor narrativas com imagens, hipertextos, ambientes em 3D e tudo mais que o suporte digital puder oferecer aos pesquisadores. Tal mudança tem ainda por objetivo a internacionalização da produção historiográfica brasileira, além da diminuição dos custos e das dificuldades logísticas relacionadas ao armazenamento e à distribuição.

Neste número, o dossiê “História e Historiadores” reuniu cinco artigos que apresentam uma discussão acerca do papel e das concepções de história e de historiadores que marcaram a historiografia brasileira. O texto de Rebeca Gontijo tece relações entre a trajetória de Capistrano de Abreu em busca de um lugar para si mesmo, num espaço social determinado, e sua trajetória em busca de uma interpretação sobre o Brasil.

O texto de Maria da Glória de Oliveira analisa no Brasil oitocentista a constituição de um regime historiográfico com pretensões científicas. O objetivo central do artigo é analisar as figurações que definiram qualidades e competências específicas para o estudo e a escrita da história, notadamente nas biografias de alguns “homens de letras”, publicadas na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro ao longo do século XIX.

O artigo de Vânia Moreira visa evidenciar a importância da historiografia como ferramenta organizadora dos direitos indígenas durante a estruturação do regime imperial no Brasil. Merecem destaque as divergências historiográficas entre defensores e detratores da presença indígena na história nacional e a conexão dessa discussão intelectual com a política indigenista imperial.

Roquinaldo Ferreira analisa o advento, a consolidação e a transformação dos Estudos Africanos nos Estados Unidos entre a década de 1960 e os dias atuais. Seu artigo tem como propósito discutir o contexto acadêmico, político e geopolítico que lastreou a criação desse campo de estudos. Para tanto, enfatiza as transformações na sociedade americana nos anos 1960, sobretudo o movimento pelos direitos civis dos afro-americanos, assim como o contexto internacional, particularmente a Guerra Fria.

Arthur Assis oferece uma interpretação do livro Do Império à República, de Sérgio Buarque de Holanda, que reconta a história política brasileira da segunda metade do século XIX. Baseando-se em conceitos desenvolvidos pelo teórico da história Jörn Rüsen, o autor detém-se particularmente em três aspectos do referido livro: os artefatos teóricos que presidem a interpretação da crise da Monarquia brasileira, os padrões narrativos que dão suporte à constituição de sentido sobre essa experiência do passado, bem como o contexto atual de orientação que serviu de parâmetro de significado / sentido à interpretação e à representação.

Encerrando o dossiê, Mônica Jinzenji e Ana Maria Galvão analisam os diversos olhares sobre a história do Brasil produzidos e apropriados em três obras historiográficas da primeira metade do século XIX: History of Brazil, de R. Southey, Histoire du Brésil, de A. Beauchamp, e o conteúdo de história do Brasil publicado no semanário O Mentor das Brasileiras. A análise dessas obras permite verificar os trabalhos de tradução e adaptação dos textos e de transformação nas materialidades dos suportes realizados por seus autores.

Os demais artigos do número focalizam temáticas variadas. O texto de Jacqueline Hermann procura mapear, com base na vida e na trajetória política de d. Antônio, Prior do Crato, algumas questões para o estudo da história política e cultural ibérica na virada do século XVI para o XVII.

José Luís Cardoso escreve sobre as motivações que estiveram na origem da criação do primeiro Banco do Brasil, instituído em 1808, e as razões do fracasso no cumprimento da sua missão.

Marcelo Henrique Dias trata os processos de extração, beneficiamento e comércio de madeiras de lei no território da capitania de Ilhéus, sobretudo a partir do momento em que a Coroa portuguesa passou a explorar diretamente esse negócio. A análise recai sobre a dimensão, os mecanismos administrativos, os destinos do comércio e sua importância no conjunto da economia regional.

Denise Moura apresenta em seu texto os primeiros resultados de uma pesquisa sobre o comércio costeiro e suas relações com o funcionamento do sistema colonial e com o contexto da Independência.

Por último, Rodrigo Patto Sá Motta em “Modernizando a repressão: a Usaid e a polícia brasileira” analisa a atuação da United States Agency for International Development (Usaid) no Brasil: a assessoria para treinamento e modernização técnica das corporações policiais. O texto procura sintetizar os aspectos mais importantes do funcionamento desse programa – que no Brasil esteve em vigor entre 1960 e 1972 -, buscando compreender os objetivos de ambos os lados envolvidos, com o propósito de evitar apreensões simplificadas.

Finalizamos este número da RBH com três resenhas que apresentam ao leitor textos relevantes para a renovação do debate historiográfico. André de Melo Araújo resenhou a obra The case for books: past, present and future, de Robert Darnton. Pedro Spinola apresenta o livro de Valdei Lopes de Araújo, A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira,e Elisa Garcia assina a resenha sobre a obra de Maria Regina Celestino sobre Os índios na história do Brasil.

Conselho Editorial


Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.30, n.59, jun, 2010. Acessar publicação original [DR]

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Repúblicas / Revista Brasileira de História / 2009

Neste número 58 iniciam-se os trabalhos do novo Conselho Editorial da Revista Brasileira de História, com o compromisso de dar continuidade ao trabalho dos colegas que nos antecederam, e ao mesmo tempo enfrentar os desafios que ora se apresentam.

De acordo com a resolução da Assembleia Geral da Anpuh, realizada em Fortaleza em julho de 2009, este é o último número impresso da RBH. A partir do número 59, daremos início a uma nova fase, na qual a publicação será exclusivamente digital e com versão em inglês.

Adotar esse formato representa uma nova etapa na história da RBH. Nossa tradição historiográfica de valorização dos textos e arquivos em papel nos faz temerosos desses novos suportes da escrita. No entanto, as aceleradas transformações sofridas pelo mercado editorial na atualidade implicam uma tendência crescente à digitalização dos periódicos. A publicação eletrônica pode viabilizar a utilização da tecnologia com vistas ao enriquecimento da produção historiográfica, ou seja, abre-se a possibilidade de uma escrita da história que vai além das palavras e passa a compor narrativas com imagens, hipertextos, ambientes em 3D e tudo mais que o suporte digital puder oferecer ao pesquisador. Tal mudança tem ainda por objetivo a internacionalização da produção historiográfica brasileira, além da diminuição dos custos e das dificuldades logísticas para o armazenamento e distribuição.

Neste número, o dossiê “Repúblicas” reuniu quatro artigos que privilegiam o período de 1889-1930. O texto de Flavio Heinz analisa a atuação dos professores da Escola de Engenharia de Porto Alegre e sua participação na Administração Pública. Cláudia Viscardi nos apresenta um artigo que trata do mutualismo no Rio de Janeiro, visto como estratégia dos trabalhadores para enfrentar a pobreza e o desamparo social. O texto de Regina Horta, através da análise da trajetória do cientista Cândido de Mello Leitão, discute o desenvolvimento do campo da Biologia no Brasil, e como este foi marcado por uma forte instrumentalização política, comprometida com a defesa de concepções favoráveis à construção de um Estado forte e centralizado. Encerrando o dossiê, temos a contribuição de Natália de Lacerda, que analisa os dados produzidos pela Diretoria Geral de Estatísticas entre os anos de 1871 e 1931, buscando fazer uma reflexão acerca da relevância das estatísticas educacionais como fonte para a pesquisa em História da Educação.

Os demais artigos do número focalizam temáticas variadas. O texto de Helenice Ciampi, Alexandre Pianelly, Antonio Simplício e Ilíada Pires, “O currículo bandeirante”, discute os desdobramentos que a Proposta Curricular do Estado de São Paulo trouxe tanto para os profissionais de educação quanto para os discentes. Douglas Cole e Zephyr Frank apresentam uma pesquisa que aborda a temática da etnicidade e da classificação social no Brasil, do século XVIII ao XIX. Estudando a revista Niterói, Débora Andrade busca reconstruir a proposta de afirmação da nacionalidade contida nessa publicação, que defendia a centralidade das artes e da literatura. Fechando a série de artigos, temos a contribuição de Marco Stancik, que analisa fotografias datadas da época da Primeira Guerra Mundial abordando-as como documentos das diferentes percepções do conflito.

Ainda neste volume, apresentamos uma entrevista concedida pelo professor Fernando Catroga, da Universidade de Coimbra. O historiador nos falou sobre sua trajetória intelectual, eventos históricos por ele vividos e a evolução do lugar da História na sociedade contemporânea.

Terminamos este número da RBH com uma série de resenhas que buscam apresentar aos leitores contribuições relevantes para a produção historiográfica do Brasil e do exterior. Lúcia Lippi assina a resenha do livro Antropologia Brasiliana: ciência e educação na obra de Edgard Roquette-Pinto, organizado por Nísia Lima e Dominichi de Sá; Sílvio Marcus Correa nos apresenta o livro de Karen Dubinsky et al., New World Coming: the sixties and the shaping of global consciousness; Waldir Rampinelli traz um texto sobre a Apologia dos bárbaros: ensaios contra o império, de Mike Davis; e por último temos Eliane Abrahão, que resenha o livro de João Luiz Máximo da Silva, Cozinha modelo: o impacto do gás e da eletricidade na casa paulistana (1870-1930).

Conselho Editorial


Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.29, n.58, dez, 2009. Acessar publicação original [DR]

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O Brasil Visto de Fora / Revista Brasileira de História / 2009

A imagem de Clio, musa helênica da história, fruto das noites ardentes de Mnemósine e Zeus, é sempre um símbolo recorrente entre os historiadores. Mas há outra figura imaginária feminina – perpetuada por outras tradições culturais – também capaz de desencadear uma série de elucubrações sobre a prática histórica.

Referimo-nos aqui a Cheherazade, a bela jovem que deteve a ira assassina do sultão Chahriar. O poderoso homem jurara não dormir mais de uma vez com a mesma mulher. A cada noite deitava-se com uma virgem, executada ao amanhecer. O terror invadiu todos os lares. A condenação de tantas jovens resultaria, ao longo dos anos, num mundo crescentemente masculino e estéril. Um dia, Cheherazade, uma das duas filhas do grão-vizir, o qual até então as ocultara, comunicou ao pai sua decisão de deter a barbaridade do sultão, e implorou casar-se com Chahriar. A partir de suas núpcias, a jovem seduziu seu algoz com histórias emocionantes e diversas, mas nunca concluídas ao amanhecer, o que fez sua vida ser poupada ao longo de mil e uma noites. Ao final, Cheherazade, graças às suas narrativas, venceu não apenas a ameaça de sua própria morte – pois o sultão se apaixonou por ela – mas também o fantasma da extinção da sociedade em que vivia.

Entre Cheherazade e o historiador, o desafio da morte surge não só como uma intenção comum, mas também como uma tarefa a ser continuamente retomada. A escrita da história debruça-se sobre sociedades desaparecidas, contata mulheres e homens ausentes, vislumbra possibilidades consideradas em outros momentos e agora esquecidas. Como afirma Michel de Certeau, os discursos sobre o passado trazem a marca dos mortos, e sua evocação se realiza numa troca entre os vivos. Duelo contra a morte, a prática histórica não conhece descanso. Experimentando a incompletude não como falta, mas como afirmação da complexidade da vida, o historiador está sempre disposto a recomeçar sua escrita, já que o saber produzido não é nem contínuo, nem necessariamente acumulativo.

Ao final dos trabalhos deste Conselho Editorial da Revista Brasileira de História, gestão 2007-2009, esperamos ter contribuído para reafirmar a importância da escrita da história na sociedade contemporânea, vítima de tantos pesadelos e ameaças de extinção por todos os lados. Buscamos dar continuidade ao trabalho de tantos dias e noites (na verdade, quase mil) de todos os editores, membros dos conselhos editoriais e consultivos, assim como inúmeros pareceristas ad hoc em atividade desde a publicação do primeiro número, em setembro de 1981. Projeto coletivo de uma instituição que congrega historiadores diversos, a Anpuh, nossa revista lança-se aos dias futuros na expectativa de continuar servindo como local de divulgação de reflexões, pesquisas e debates, numa tarefa a ser incansavelmente reiniciada.

Neste número, o dossiê “O Brasil visto de fora” traz artigos de autores estrangeiros escrevendo acerca de visões estrangeiras sobre este país, assim como ações a ele direcionadas desde o exterior. Seth Garfield descortina o debate diplomático, ambiental e cultural sobre a Amazônia brasileira, durante a Segunda Guerra Mundial. Em argumentação consolidada por ampla pesquisa, investiga as forças materiais e ideológicas que moldaram as compreensões norte-americanas sobre a floresta tropical. James Green e Abigail Jones enfocam as versões construídas pelo embaixador Gordon acerca das ações dos Estados Unidos em relação ao golpe de 1964, no Brasil. O artigo abrange temas diversos como relações internacionais, memória política e práticas de pesquisa histórica. Neil Safier investiga as estratégias narrativas de La Condamine ao apresentar o rio Amazonas aos europeus do século XVIII numa obra escrita na primeira pessoa, sem divisão em capítulos, fluida como um barco pelo rio, mesclando observações naturais com relatos míticos de palácios e mulheres guerreiras.

Maria Helena Capelato abre a seção de artigos avulsos com estudo sobre a doutrinação franquista direcionada às crianças através de livros didáticos. Sua análise privilegia aspectos políticos, culturais e pedagógicos, com ênfase nas mensagens e imagens alimentadoras do imaginário coletivo espanhol e na “venda” de ilusões purificadoras e estimuladoras da intolerância. Aldair Carlos Rodrigues contribui para o estudo da Inquisição em Minas colonial, focalizando os agentes inquisitoriais portugueses ali presentes, discutindo sua formação e atuação, perfil, recrutamento e papéis. Henrique Estrada Rodrigues analisa os escritos de Fernand Braudel sobre Lévi-Strauss, debatendo questões relativas ao tempo histórico, mas também à ação política como fonte da diferenciação social, momento inaugural de todo movimento e de toda história, matriz de multiplicidade. Felipe Pereira Loureiro avalia os impasses políticos do Governo Jânio Quadros, discutindo seus ataques à legitimidade política do Congresso, assim como a reação parlamentar para reconstruir sua imagem.

Seguem-se seis resenhas, assinadas por Durval Muniz Albuquerque Junior, Douglas Cole Libby, Dulce O. Amarante dos Santos, Lise Sedrez, María Elida Blasco e Luis Fernando Cerri, cumprindo a importante tarefa de levar aos leitores análises críticas de obras recentemente lançadas e de relevância destacada, abrangendo temas e abordagens diversos.

Em sua tarefa “à la Cheherazade”, esta revista convida seus leitores a virar as próximas páginas. Apostamos nos escritos aqui divulgados como estímulos à vida e ao pensamento. Afinal, é sempre uma alegria lembrar que a história – passada, presente e futura – está sempre por ser escrita, e que retomá-la a cada dia é a garantia de nossa sobrevivência.

Conselho Editorial


Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.29, n.57, jun, 2009. Acessar publicação original [DR]

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Darwinismo / Revista Brasileira de História / 2008

Na noite de 3 de julho de 1980, na rua Macapá 29, na cidade de São Paulo, um grupo de historiadores pertencentes à diretoria da Associação Nacional dos Professores Universitários de História (Anpuh) reuniu-se na residência da professora Alice Canabrava com o corajoso intuito de fundar um periódico científico. Durante meses, vários contatos com agências de fomento haviam sido realizados em busca de fundos. A boa notícia era a de que a Capes concedera, como apoio e impulso inicial, o financiamento dos dois primeiros números, a serem seguidos de outros, futuramente bancados pelos recursos da Associação.[1]

A Anpuh surgira durante um encontro de docentes, o I Simpósio de Professores de História do Ensino Superior, em outubro de 1961, e visava romper o isolamento em que trabalhavam os professores universitários de história, estimulando o diálogo e o compartilhamento de experiências. Completava, então, vinte anos de existência. Tratava-se de comemorar, e o projeto de fundação da revista inseria-se nesse propósito. Afinal, aqueles eram também tempos de intensificação de esperanças, com a extinção do AI-5, a re-ascensão dos movimentos sociais, a luta pela democratização política, a campanha pela Anistia, intensas greves operárias e de trabalhadores diversos e, sobretudo, a expectativa da superação de tempos tão tristes.

Em agosto de 1980, a casa da rua Macapá abrigou nova reunião, na qual se discutiram vários problemas práticos envolvidos na criação de um periódico da Associação, como nome, tamanho, periodicidade, conteúdos e sua viabilidade financeira. Após debate, decidiram-se o título da Revista Brasileira de História, órgão da Anpuh, a periodicidade semestral, e os conteúdos (com artigos, bibliografia e noticiário), entre outros detalhes. Ficou ainda acertado que o primeiro número seria lançado no XI Simpósio, programado para julho de 1981, na cidade de João Pessoa.

Desde então, a Revista Brasileira de História venceu inúmeros desafios. Sua heróica regularidade deveu-se ao esforço dos seus muitos editores e conselheiros, em quinze gestões — compostas por historiadores de diversas instituições, com grande abrangência geográfica — eleitas através dos processos de participação na Anpuh. Publicou artigos de grande impacto, assinados por autores brasileiros e estrangeiros. Organizou dossiês valiosos e pioneiros para a renovação historiográfica, veiculando temas e abordagens, estimulando a produção de um conhecimento de intenções transformadoras.

No ato de publicar, tornar acessível, possibilitar a circulação do conhecimento, a sociedade contemporânea abriu caminhos que têm se mostrado poderosos instrumentos para a pesquisa, para a produção de conhecimento, assim como para a educação. Nos primeiros números da Revista Brasileira de História, os índices de algumas revistas eram reproduzidos, mas sua disponibilidade permanecia difícil na maioria das universidades. Atualmente, a internet, os portais e os indexadores trazem canais decisivos de superação das distâncias. A aproximação não se efetiva apenas entre historiadores das mais variadas partes do país, pois abre-se a chance de uma circulação além das fronteiras, inaugurando uma dimensão renovada e estimulante do conhecimento histórico. O historiador constrói um olhar transnacional e transdisciplinar.

Trata-se, agora, de abrir a Revista Brasileira de História a uma rede de pesquisadores diversos, situados em vários países, dedicados às diferentes áreas do conhecimento histórico. Para tanto, os portais aos quais pertence, SciELO e Redalyc, dão acesso gratuito e fácil aos abstracts, resumos e artigos integrais. A base Scopus, disponível no Brasil gratuitamente desde o Portal de Periódicos Capes, e nas bibliotecas das mais variadas universidades do mundo, também veicula e disponibiliza conteúdos, que se tornam cada vez mais públicos, circulam, dão-se a conhecer, abrem-se ao debate e à crítica.

Neste número, o dossiê abre reflexões sobre a comemoração dos duzentos anos do nascimento de Darwin. Thomas Glick enfoca a presença do geneticista e evolucionista Dobzhansky no Brasil e a renovação das práticas de pesquisa nos meios científicos, sob a perspectiva da história da ciência. Celso Uemori mostra a peculiaridade de certas leituras de Darwin, com destaque para Manoel Bomfim que, diferentemente de muitos de seus contemporâneos, relacionou a luta pela sobrevivência às práticas de solidariedade e co-operação. Karoline Carula apresenta a presença darwinista nas Conferências da Glória, no Rio de Janeiro, entre 1875 e 1880, e Juanma Sánchez aborda os debates sobre evolucionismo, religião e marxismo.

Na seção de artigos, Elaine Lourenço analisa a coleção História Nova do Brasil, lançada em 1964 e logo abortada pela ditadura militar, como importante esforço de renovação do ensino da História; Kaori Kodama investiga a atuação do jornal O Philantropo (1849-1852) nos debates sobre o tráfico de escravos; Claudio DeNipoti enfoca o comércio e a circulação de livros em Portugal, na virada do século XVIII para o XIX, e os mecanismos de disseminação da literatura filosófica iluminista e liberal; Helder Macedo discute a existência de escravos índios no sertão da Capitania do Rio Grande e sua relação com as atividades econômicas nesse território, com ênfase na pecuária e na agricultura de subsistência; Francisco Ferraz aborda os processos de reintegração social dos ex-combatentes norte-americanos, franceses e ingleses, nas duas guerras mundiais; Daniel Pereira e Eduardo Felippe analisam a noção de formação territorial nas cartas enviadas por Capistrano de Abreu ao Barão do Rio Branco, entre 1886 e 1903; Jean Sales analisa o impacto da crise do socialismo real na trajetória do Partido Comunista do Brasil, e André e Mariângela Joanilho revisitam a fotonovela como fonte para a história da leitura e da cultura de massas.

No Estado da Arte, José Murilo de Carvalho — um dos pioneiros colaboradores da Revista Brasileira de História, com artigo publicado no segundo número, em 1981 — traz um ensaio sobre as comemorações dos duzentos anos da vinda da Corte.

Seguem-se seis resenhas, cumprindo aqui o papel de discutir e apresentar criticamente obras valiosas para os rumos do debate histórico contemporâneo.

Esperamos manter a Revista Brasileira de História como veículo eficiente de publicação de artigos, no contexto das redes sociais e acadêmicas de interatividade. Esse será certamente o caminho para mantê-la jovem, como uma bela e cobiçada balzaquiana conectada a histórias infinitamente ramificadas: desejada pelos leitores — apresentando-se como um veículo de estímulo intelectual — mas também pelos autores — destino almejado de seus textos mais provocativos. Só assim poderemos fazer jus aos esforços pioneiros daquele grupo de historiadores reunidos na rua Macapá, e aos vários outros que, ao longo de quase três décadas, dedicaram seu tempo e seus ideais a esta revista.

Nota

1. GLEZER, Raquel. A fundação da revista. Revista Brasileira de História, ano 1, n.1, p.129-130, mar. 1981. [ Links ]

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Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.28, n.56, 2008. Acessar publicação original [DR]

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Imprensa, impressos / Revista Brasileira de História / 2008

Revista Brasileira de História conquistou o pertencimento ao SciELO Brasil em 1998, tendo sido um dos primeiros periódicos na versão brasileira desse portal. Assumiu, assim, papel pioneiro na área de humanas. Mais recentemente, outras revistas de nossa área passaram também a integrar o portal, e isso facilitou a busca de artigos por pesquisadores diversos e abriu um caminho cada vez mais profícuo para a construção do conhecimento histórico. Tal pertencimento, entretanto, não é um privilégio. Relaciona-se ao mérito alcançado por esses periódicos que, para serem aceitos, preencheram inúmeros quesitos formais de publicação, os quais devem ser mantidos a cada número. Especialmente, esses periódicos adotam formas de oferecer, aos seus leitores, artigos de qualidade e ineditismo, que realmente possam contribuir para o debate entre os pesquisadores.

Muitas vezes a incursão em um portal desse tipo traz alguma sensação de estranhamento ao historiador, já que muitos recursos — comuns aos pesquisadores de outras áreas — apresentam-se um tanto misteriosos para nós. Entretanto, rapidamente se evidenciam a utilidade de várias ferramentas e a dinâmica que elas podem instaurar tanto em nossas pesquisas bibliográficas como na divulgação do conhecimento produzido. Afinal, um autor escreve para ser lido.

No portal, cada revista traz instrumentos de busca por autor, assunto e título, assim como pelas palavras-chave exigidas em cada artigo. Nos relatórios de utilização, podem ser encontrados o ano de ingresso de cada periódico no portal, o índice de visitas dos volumes e o número de artigos requisitados a cada mês, ao longo dos anos. No site específico de cada revista, novamente abrem-se possibilidades de busca dos artigos de várias maneiras, mas também instruções aos autores e dados sobre a revista, assim como o número exato de consultas a cada artigo. A partir daí, o visitante pode ler ou imprimir livremente os textos, ou apenas avaliar o que lhe interessa através dos resumos. Mas pode também visualizar as referências usadas em cada texto e seguir o link de cada uma delas através do Google. Há ainda ferramentas de busca dos artigos de temas semelhantes, o caminho para o currículo Lattes do autor (e a visualização de outras publicações) e o acesso aos outros artigos do mesmo autor no SciELO, bem como a facilidade de enviar o texto por e-mail. Através do Lattes é possível acessar os artigos do mesmo autor no SciELO, ao passo que a inclusão do número DOI (Digital Object Identifier) no preenchimento dos dados de cada produção bibliográfica facilita o acesso direto ao texto. Enfim, através da internet, os periódicos tornam-se um veículo impressionante no processo de debate, expansão e divulgação do conhecimento. Associados à Plataforma Lattes, assumem um papel inestimável no fomento do contato entre pesquisadores de diversas áreas e diversas instituições.

É claro que não há diminuição da importância do registro em papel. A Revista Brasileira de História, assim como várias outras revistas, mantém sua versão impressa e prioriza sua distribuição. Se o diálogo e a interação são fomentados virtualmente, a sua realização permanece ligada à leitura em papel, alimentando o nosso verdadeiro ‘fetiche’ por livros, também tão característico da nossa área e nem sempre bem compreendido entre os outros ramos do conhecimento acadêmico.

Neste momento em que a web estimula cada vez mais os diálogos entre os historiadores, o dossiê Imprensa, impressos discute aspectos dessa forma de veiculação de idéias, informações e análises que revolucionou a vida dos homens de maneira similar — ou talvez até mais profunda, como medir? — ao modo como a internet tem revolucionado a sociedade contemporânea. Os artigos deste número privilegiaram debates sobre a imprensa e a sociedade brasileira. Meize Lucas analisa como a imprensa da década de 1950 alimentou uma cultura cinematográfica, e como as cinematecas nutriram a cultura letrada no Brasil. Noé Sandes focaliza a atuação do jornalista Costa Rego no Correio da Manhã nos anos 30 e como suas práticas valorizavam a experiência política. Marcos Gonçalves debate a cultura política em construção através da imprensa católica no início do século XX. Marisa Midori demonstra a inserção do mercado de consumo de livros em São Paulo dentro de um movimento editorial mundial crescentemente dinâmico em meados do século XIX, e Wlamir Silva discute a atuação da imprensa na ampliação do lugar da mulher no espaço público em Minas Gerais no mesmo período.

Na seção de artigos avulsos, Ângela Domingues faz instigante incursão em textos pouco divulgados sobre o Brasil no século XVIII, como diários de viagens, mapas e vistas de marinheiros e traficantes, assim como textos produzidos por homens ilustrados. Oldimar Cardoso propõe a consideração da Didática da História como uma subárea da História, argumentando como ela se apresenta muito além dos conteúdos escolares. Fabricio Santos propõe uma análise da expulsão dos jesuítas e do confisco e venda de suas propriedades, construindo um diálogo entre a economia e a política, discutindo as transformações no Império português na mesma época. Marisa Leme discute as forças dinâmicas centrífugas e centrípetas na construção do Estado no Brasil na década de 1820, e Diogo Cabral avalia exploração madeireira, império português e indústria naval em abordagem sob a perspectiva da história ambiental.

A seção Estado da Arte traz ensaio de Marcelo Mattos sobre a fecunda produção historiográfica realizada em franco diálogo com o ‘aniversário’ de quarenta anos do Golpe Militar, em 2004, e com os trinta anos da morte de Goulart, completados em 2006. O texto avalia ainda a relação entre escrita da história e centros de pesquisa e documentação. Seguem-se seis resenhas críticas, focalizando obras de interesses diversos.

Esperamos que, entre impressos e hipertextos, o presente volume da Revista Brasileira de História fomente nossos contatos, contribuindo para o trânsito de nossas experiências, idéias, pesquisas e, sobretudo, de nossas esperanças.

Conselho Editorial


Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.28, n.55, jan. / jun., 2008. Acessar publicação original [DR]

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História e Gênero / Revista Brasileira de História / 2007

Nas revisões interpretativas mais recentes da história, o “tempo presente” ganhou destaque e prestígio nas análises em que interagem o “tempo curto” e o “tempo longo”. Portanto são as exigências do presente que cada vez mais instigam o historiador a rever as narrativas existentes do passado, colocando novas indagações, retomando a leitura da documentação que desvenda os silêncios e possibilita a construção de outras histórias e sujeitos.

A exigência da organização de um Dossiê de Gênero na Revista Brasileira de História, após 19 anos (1989-2008) se fez imperativa na medida em que o campo de estudos sobre as mulheres e de categorias como “gênero” adensaram os debates de natureza teórico-metodológica consolidando os conceitos e perspectivas analíticas de modo a garantir uma expressiva produção acadêmica em nosso país.

Desta maneira apresentamos o Dossiê História e Gênero, que reuniu alguns trabalhos considerados representativos do momento presente, em que a RBH, em nova gestão, retoma o seu calendário editorial.

O primeiro artigo, “Feminismo e configurações de gênero na guerrilha: perspectivas comparativas no Cone Sul, 1968-1985”, retoma a época das ditaduras militares na América Latina evidenciando as distintas formas de luta e de resistência femininas e feministas; o texto “Sociabilidades políticas e relações de gênero: ritos domésticos e religiosos no Rio de Janeiro do século XIX” introduz perspectivas desafiadoras de abordagem e questionamento no campo do político; em “Memórias femininas: tempo de viver, tempo de lembrar” evidencia-se o papel da memória e das lembranças na constituição do gênero feminino; em “Amor e gênero em quadrinhas” demonstra-se a construção dos estereótipos femininos; no trabalho “Casamento, maternidade e viuvez: memórias de mulheres hansenianas” produz-se um mergulho numa comunidade “fechada” para demonstrar como funcionam as permanências de práticas e de diferenças de gênero, e em “Mulheres em movimento: a presença feminina nos primórdios do esporte na cidade do Rio de Janeiro (até 1910) discutem-se os obstáculos enfrentados por muitas mulheres para adentrar e permanecer em lugares considerados privilégio do sexo masculino.

Portanto, uma produção criativa sobre “mulheres” e “gênero” que possibilita vislumbrar um “horizonte de espera” significativo para o campo que se legitima e se consolida.

Conselho Editorial


Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.27, n.54, dez., 2007. Acessar publicação original [DR]

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Cidades / Revista Brasileira de História / 2007

De uma cidade, não aproveitamos
as suas sete ou setenta e sete
maravilhas, mas a resposta
que dá às nossas perguntas.

Ítalo Calvino

Decorre da proposta de Calvino o esforço dos historiadores no sentido de colocarem perguntas pertinentes ao mundo urbano. Assim, o presente número da Revista Brasileira de História dedica-se a perscrutar algumas entre as múltiplas acepções do tema em questão.

Os estudos históricos sobre as cidades vêm acompanhando as significativas mudanças do seu objeto, ao mesmo tempo em que procuram desvendar o crescimento das tensões urbanas. Desta forma, a produção historiográfica busca decifrar as cidades e suas representações, recuperando múltiplas experiências urbanas vivenciadas de forma fragmentada, diversificada e contrastante.

As cidades se impõem como desafios aos historiadores que visam entender seus emaranhados de enigmas, de representações, de tempos, de espaços e de memórias. Sob a sua materialidade fisicamente tangível, descortinam-se ‘cidades análogas invisíveis’, com tramas de memórias e de esquecimentos do passado, contendo impressões recolhidas ao longo das experiências urbanas. Nas cidades estabelecem-se conflitos e tensões, solidariedades e acolhimentos, mobilidade e enraizamento, planificação e representações, tudo envolto em confrontos infindáveis que redimensionam incessantemente o pulsar urbano. É dentro desse universo de significados que a Revista Brasileira de História, em seu 53º número, pretende movimentar-se.

Dessa forma, os artigos do presente dossiê percorrem caminhos variados, contando inicialmente um valioso texto introdutório de Sandra Jatahy Pesavento, “Cidades visíveis, cidades sensíveis, cidades imaginárias”, que nos oferece reflexões sobre questões e perspectivas da produção historiográfica.

Os estudos em torno da modernidade, racionalidade e urbanização, que tanto vêm envolvendo a historiografia, fizeram-se presentes em vários artigos: “A Belle Époque caipira: problematizações e oportunidades interpretativas da modernidade e urbanização no Mundo do Café (1852-1930)”, de José Evaldo de Mello Doin e Humberto Perinelli Neto; “Limites da utopia: cidade e modernização no Brasil desenvolvimentista (Florianópolis, década de 1950)”, de Reinaldo Lindolfo Lohn; “Carrosséis urbanos: da racionalidade moderna ao pluralismo temático (ou territorialidades contemporâneas)”, de Maria Bernardete Ramos Flores e Emerson César de Campos, e “O processo de urbanização paulista: a medicina e o crescimento da cidade moderna”, de Márcia Regina Barros da Silva.

As sensibilidades urbanas emergem particularmente focalizadas em “A cidade como sentimento: história e memória de um acontecimento na sociedade contemporânea — o incêndio do Gran Circus Norte-Americano em Niterói, 1961”, de Paulo Knauss, e em “Os dramas da cidade nos jornais de São Paulo na passagem para o século XX”, de Valéria Guimarães, assim como estiveram presentes nos relatos das crônicas da imprensa analisadas em “Cajuína e cristalina: as transformações espaciais vistas pelos cronistas que atuaram nos jornais de Teresina entre 1950 e 1970”, de Francisco Alcides do Nascimento.

Análises sobre imagens e paisagens da cidade aparecem na maioria dos artigos, mas em especial nos de Zita Rosane Possamai, que privilegiou Porto Alegre em “Narrativas fotográficas sobre a cidade”, e de Charles Monteiro, “Imagens sedutoras da modernidade urbana: reflexões sobre a construção de um novo padrão de visualidade urbana nas revistas ilustradas na década de 1950”, como também no enfoque das vilas do ouro por Alexandre Mendes Cunha, em “Espaço, paisagem e população: dinâmicas espaciais e movimentos da população na leitura das vilas do ouro em Minas Gerais ao começo do século XIX”.

Além dessas variadas experiências urbanas, ‘outras histórias’ foram focalizadas nas análises de Edwar de Alencar Castelo Branco e Francisco José Gomes Damasceno, respectivamente em “Táticas caminhantes: cinema marginal e flanâncias juvenis pela cidade” e “As cidades da juventude em Fortaleza”.

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Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.27, n.53, jan. / jun., 2007. Acessar publicação original [DR]

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Escravidão / Revista Brasileira de História / 2006

Já se escreveu que um homem não deve ter a ousadia de regressar a lugar algum. Subjacente a semelhante afirmação pode estar a idéia de que jamais se deve macular a memória, único suporte de um passado que, afinal, já não pode ser vivido. Mas uma compreensão menos poética da frase de Robert Louis Stevenson remete ao que de movediço há em toda mirada mais ‘analítica’ sobre o que já não existe. É quando o mínimo que se espera do historiador é clareza sobre o seu próprio ofício.

Em meu caso, assino embaixo o veredicto de Marshall Sahlins — em História nem tudo são truques que os vivos fazem com os mortos.[1] É lícito, pois, indagar brevemente sobre alguns caminhos da historiografia da escravidão no Brasil, sobretudo quando duas décadas separam o presente número da Revista Brasileira de História daquele que, lançado por ocasião do centenário da abolição, dedicava-se igualmente ao tema do cativeiro.[2]

Algumas mudanças podem ser capturadas quando comparamos o mapa da pós-graduação em 1988 com o de hoje. Em duas décadas, o número de instituições voltadas para a pesquisa institucional de ponta multiplicou-se por cinco — há hoje meia centena de programas de pós-graduação no Brasil, e todas as regiões do país possuem ao menos dois cursos de mestrado.

Óbvio, tal expansão implicou uma enorme catalisação de recursos humanos e materiais para a área de História. Mas o importante é que a natureza necessariamente argumentativa do discurso historiográfico passou a ancorar-se como nunca em material empírico de primeira mão, na esteira de uma verdadeira ‘colonização’ dos arquivos locais, regionais e nacionais pelos historiadores profissionais e em formação. Resultado: o ensaísmo historiográfico perdeu terreno, restringindo-se cada vez mais à sua função primária de divulgação e de polemismo.

Não deixa de ser curioso observar que essa imensa transformação operou de modo paradoxal sobre os estudos da escravidão. Em função da universalidade do cativeiro em nossa história, a reflexão sobre a escravatura multiplicou-se regionalmente, de modo que já podem ser matizadas antigas idéias segundo as quais a presença africana teria sido insignificante nos limites extremos da América portuguesa, por exemplo. O número de teses e dissertações voltadas para o estudo do cativeiro, entretanto, não conheceu expansão semelhante à observada em outros campos da historiografia. É que a multiplicação de programas de pós-graduação ocorreu de modo seletivo, com ênfase em períodos mais recentes da nossa história em detrimento sobretudo da Colônia e do Império — isto é, da época da escravidão.

É possível que a ênfase assumida pela história republicana resulte de uma espécie de urgência em conhecer a verdadeira face de um país cujas transformações demográficas, culturais e sócio-econômicas aceleraram-se dramaticamente depois de 1964, a ponto de torná-lo de certo modo irreconhecível aos olhos de seus próprios filhos. Tudo se passa como se o adensamento do tempo histórico tornasse incontornável o mergulho nos fundamentos mais imediatos do presente, visando preservar e / ou forjar alguma capacidade de auto-representação por parte dos agentes históricos. (Não é esta a derivação necessária de todo trauma histórico; prova-o o caso dos Estados Unidos, para quem o fim da Segunda Guerra Mundial colocou o futuro — e não o passado — no centro das preocupações nacionais, brindando-nos, de quebra, com um livro genial como As crônicas marcianas, de Ray Bradbury.)[3]

Mas se é certo que tamanho não é documento, é possível detectar importantes ganhos de qualidade nos estudos dedicados ao cativeiro ao longo dos últimos vinte anos. De início, chama atenção a diversidade temática mediante a qual fluem os estudos da escravatura. Hoje em dia já não soam tão estranhos estudos sobre a família escrava (tida antes como aspecto ancilar da história colonial), as irmandades negras, os mecanismos e padrões de alforrias, etnicidade, formas de controle social e de resistência, tráfico interno e externo de escravos, para não falar nos trabalhos acerca do negro no imediato pós-abolição. Melhor: são temas encampados por profissionais das mais diversas tendências teórico-metodológicas, embora não se possa dizer o mesmo do ponto de vista estritamente ideológico — já não viceja entre nós, por exemplo, o menor traço de uma historiografia, digamos, liberal, da escravidão.

Este último aspecto não é de menor importância. Afinal, por meio do liberalismo o Ocidente retornou com vigor ao problema da liberdade encarnada no indivíduo, não sem uma grande dose de ironia, já que as instituições que hoje garantem a liberdade individual foram igualmente gestadas pelos mesmos povos que geraram os mais cruéis sistemas de exploração escravista. Eis o motivo pelo qual, aliás, a Europa e, em especial, o mundo anglo-saxão, continuam operando no ultrapassado registro das ‘raças’, sabidamente inexistentes, resultante de cisões seculares derivadas do cativeiro e de sua ideologia. Talvez por isso — por se defrontarem desde cedo com uma pauta política e ideológica bi-racializada, bem entendido — é que boa parte dos historiadores americanos e ingleses já não gastam muita tinta nas introduções de seus livros desculpando-se por não tomarem a escravidão como um anátema a ser esconjurado. Estão, pois, até certo ponto imunes ao pecado mortal do anacronismo quando o cativeiro é o tema.

Em que pesem seus logros, nossa historiografia sobre a escravidão trilha um caminho em tudo diverso da boa tradição liberal. Ela ainda professa um abolicionismo um tanto difuso, lamentável reflexo não apenas de resquícios da escravidão e do racismo à brasileira, mas igualmente de uma sociedade ainda carente de um projeto político moderno e verdadeiramente plural, para a qual o passado sirva de fonte de conhecimento e inspiração. Eis o principal motivo pelo qual, ao invés de insistirmos em ressaltar as origens e derivações de uma de nossas principais fortalezas — refiro-me à miscigenação, entendida como encontros e circularidades —, não poucos insistem em estabelecer a genealogia de ‘identidades’ que o tempo encarregou-se de diluir em nossa imensa pobreza material.

É provável que, tal como ocorreu com aquele publicado em 1988, o presente número especial da Revista Brasileira de História contribua para recolocar coisas como estas em seu devido lugar. De todo modo, a diversidade e a qualidade das contribuições que o compõem por certo são provas inequívocas do quão nobre permanece entre nós o tema da escravidão.

Notas

1. SAHLINS, Marshall. História e cultura (apologias a Tucídides). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p.124.
2. Revista Brasileira de História. São Paulo: Anpuh / Marco Zero, v.8, n.16, mar. / ago. 1988 (Escravidão — número especial organizado por Silvia Hunold Lara).
3. BRADBURY, Ray. As crônicas marcianas. São Paulo: Globo, 2005.

Manolo Florentino – Departamento de História / UFRJ.


FLORENTINO, Manolo. Introdução. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.26, n.52, dez., 2006. Acessar publicação original [DR]

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Natureza e cultura / Revista Brasileira de História / 2006

O problema dos nossos tempos é que o futuro não é mais como era antigamente.
Paul Valéry

Pensar a relação entre natureza e cultura significa considerar necessariamente o elemento tempo. Assim foi com a mudança cultural fundadora da vida contemporânea, a passagem do tempo intrínseco do homem medieval ao tempo mecânico da Renascença e dos mercadores. Quando se passou a exigir orientação temporalmente exata, uma nova relação natureza e cultura se impôs caracterizando um novo tipo de sociedade.

Hoje, o tempo da história se acelera vertiginosamente. É um tempo marcado, por um lado, pela analogia entre velocidade e exatidão, e, por outro, pelas mudanças, dúvidas e destruições, que contrastam com outros tempos, da permanência, da continuação e da memória. Essas tensões da contemporaneidade têm levado os historiadores a se debruçarem sobre estudos que contemplam a temática natureza e cultura, e o resultado disto é que, por sua vez, este interesse tem causado impactos na disciplina, ampliando horizontes e favorecendo pesquisas alternativas. Enfim, as novas pesquisas têm contribuído para a renovação temática e metodológica, redefinindo, ampliando e favorecendo o questionamento das polarizações dicotômicas.

Entretanto, assim como o Angelus novus de Klee, na seminal metáfora de W. Benjamin — alegoria na qual a tempestade da modernidade arrasta o homem ao progresso, não mais concebido como a panacéia dos males humanos —, o historiador procura pensar o fluxo da evolução histórica a partir dos limites e perspectivas de seu tempo. Ele quer “dominar” o passado, mas ao mesmo tempo é ultrapassado pela força das circunstâncias — esta não permite que sua vontade se concretize.

O resultado desse embate — considerados os limites da área de atuação de que dispomos em nosso periódico — é o que se pode ler neste número da Revista Brasileira de História. Os estudos que aqui apresentamos procuram, cada um a seu modo, ampliar os limites da disciplina e abrir áreas de pesquisa, buscando observar no passado mudanças e permanências, descontinuidades e fragmentações, apresentando possibilidades que se compõem e recompõem continuamente.

Os artigos presentes neste dossiê percorrem vários aspectos da temática natureza e cultura. A partir de relatos deixados por intelectuais formadores de suas disciplinas, tais como Élisée Reclus, Capistrano de Abreu e Caio Prado, Antonil e Rocha Pita, destacam-se os textos de Regina Horta Duarte (“Natureza e sociedade, evolução e revolução: a geografia libertária de Élisée Reclus”), Dora Shellard Corrêa (“Historiadores e cronistas e a paisagem da colônia Brasil”) e Francisco Eduardo de Andrade (“A Natureza e a gênese das Minas do Sul nos livros de André João Antonil e Sebastião da Rocha Pita”).

Tomando a literatura como campo de análise, Valdeci Rezende Borges (“Culturas, natureza e história na invenção alencariana de uma identidade da nação brasileira”) aborda a obra de José de Alencar, e Daniel Faria (“Makunaima e Macunaíma. Entre a natureza e a história”) procura entender a questão do desejo romântico pela natureza como resposta a conflitos políticos contemporâneos.

Cultura material e patrimônio são os eixos pelos quais Maria Clara Tomaz Machado (“(Re)significações culturais no mundo rural mineiro: o carro de boi — do trabalho ao festar (1950-2000)”), Flávia Arlanch Martins de Oliveira (“Padrões alimentares em mudança: a cozinha italiana no interior paulista”), Sandra Pelegrini (“Cultura e natureza: os desafios das práticas preservacionistas na esfera do patrimônio cultural e ambiental), Silvia Helena Zanirato e Wagner Costa Ribeiro (“Patrimônio cultural: a percepção da natureza como um bem não renovável”), apresentam reflexões nas quais ações sociais implicam interpretações da relação entre natureza e cultura no tempo.

O ambiente em sua forma mais direta — as estradas, as florestas e os fluxos d’água — compõe o cenário para outros três artigos: Marcos Lobato Martins (“As variáveis ambientais, as estradas regionais e o fluxo das tropas em Diamantina, MG: 1870-1930”); Franciane Gama Lacerda (“Entre o sertão e a floresta: natureza, cultura e experiências sociais de migrantes cearenses na Amazônia”); Glaura Teixeira Nogueira Lima (“O natural e o construído: a estação balneária de Araxá nos anos 1920-1940”).

Seguem-se ainda duas resenhas, compostas por José Eduardo Franco (Jesuítas e Inquisidores em Goa), e Reinaldo Nishikawa (Fronteiras: paisagens, personagens, identidades).

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Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.26, n.51, jan. / jun., 2006. Acessar publicação original [DR]

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Poder: Tramas e Tensões / Revista Brasileira de História / 2005

O meu passado não é mais meu companheiro Eu desconfio do meu passado.
Mário de Andrade

Se, em seu tempo, o perspicaz Mário encontrou razões para estranhar o passado, que se dirá de nós, historiadores neste limiar do século XXI? Dir-se-á que, além do passado, também estranhamos o nosso futuro. Dir-se-á que nos tornamos ainda mais instáveis! Entretanto, seguimos pensando, e produzindo, em meio a perplexidades cada vez maiores. Que a mesma luz do poeta / historiador clareie as precárias certezas em que nos pautamos!

Caminhando assim em consonância com os limites do seu tempo, a RBH completa uma trajetória de cinqüenta números. Cabe destacar sua importância sedimentada na área e suas contribuições para a produção historiográfica.

Tendo como marco a edição regularizada dos anos 90 para cá, as questões do poder — justamente as que nos permitem enfrentar o passado como companheiro — ocuparam cerca de 25 por cento dos dossiês anteriores. Com a presente edição voltamos mais uma vez os olhos para esse tema, com o dossiê “Poder: Tramas e Tensões”.

Diante das contemporâneas dúvidas e desconfianças que envolvem a todos no que diz respeito às questões do poder, da política, do fazer política e da ética, enfrentamos os desafios do presente publicando trabalhos que procuram desvendar tramas de poder no passado. Entretanto, os artigos aqui apresentados não são fruto da descrença no presente, pois se localizam num quadro de preocupações recentes, desvendando segredos encobertos por evidências inexploradas, fundamentados em extensa pesquisa, levando à frente o desafio de clarear imagens do passado e suas permanências na contemporaneidade.

Por tudo isso, os artigos do presente dossiê percorrem necessariamente caminhos variados. Partindo de eventos mais recentes e caminhando em direção ao passado mais remoto, publicamos os seguintes trabalhos: o artigo de Angelo Segrillo dedica-se a refletir sobre as contradições e dilemas do movimento comunista na Rússia atual; Adriano Luiz Duarte revisita o quebra-quebra de ônibus e bondes ocorrido na cidade de São Paulo em agosto de 1947, para entender a relação entre demandas populares e o fornecimento regular do serviço de transportes; a política como espetáculo da Ação Integralista Brasileira é o assunto de Rogério Souza Silva; Ricardo de Aguiar Pacheco, refletindo sobre a conjuntura política de Porto Alegre na década de 1920, estuda o processo de modernização das relações sociais; Aldrin A. S. Castellucci relaciona a primeira greve geral na Bahia às tramas de poder construídas entre a organização sindical e a cisão interoligárquica; Ivan de Andrade Vellasco discute aspectos da construção do Estado Imperial e os conflitos cotidianos, focalizando o sistema de justiça particularmente na comarca do Rio das Mortes; Juarez Donizete Ambires procura entender a atuação missionária e administrativa do jesuíta flamengo Jacob Roland na América Portuguesa; e, ainda dentro do dossiê, o artigo de Ricardo de Oliveira adota como foco a cultura política do Antigo Regime, revelando a trama das esferas públicas e privadas.

Outros três artigos versando sobre temáticas diversas são também publicados neste número. Luiz Roncari trata da formação de Machado de Assis como escritor, o seu modo muito próprio de se relacionar com o leitor e os controles do Estado Imperial; Klaas Woortmann examina a noção de selvagem no pensamento medieval e sua relação com o sentido de história; e Fábio Franzini salienta um dos aspectos menos conhecidos da história do futebol no Brasil: a inserção da mulher num universo quase exclusivamente masculino.

Além de artigos, a RBH oferece interessantes resenhas aos seus leitores: Vitor Izecksohn apresenta o livro Fear & memory in the Brazilian army & society; Francisco Silva Noelli indica sua leitura de Relatos do Descobrimento do Brasilas primeiras reportagens, e Cláudia Maria Ribeiro Viscardi analisa a obra O Brasil Republicano.

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Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.25, n.50, jul. / dez., 2005. Acessar publicação original [DR]

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História e manifestações visuais / Revista Brasileira de História / 2005

Civilização da imagem, da ilusão. Civilização da invenção, da razão. Situações antitéticas? É opinião corrente que vivemos uma época em que as imagens caracterizam, limitam, simbolizam, arrogam sentidos, enfim, definem as relações sociais. É também consenso que isso tudo nos amedronta, coloca-nos diante do imprevisível: imagens virtuais, mundos fictícios…

Eis aqui um assunto do qual a RBH quer participar por meio de um dossiê inovador para as suas páginas: história e manifestações visuais. Por isso a Revista abre esta edição com duas matérias em chaves de leituras opostas, mas complementares. Primeiro, uma entrevista de Alain Corbin a Laurent Vidal, na qual fica inteiramente revelado o historiador da paixão pela história, da história das sensibilidades e das imagens banais do cotidiano. Depois, um artigo de Boris Kossoy, uma conferência luminosa, sobre os intrigantes desafios interpretativos que as imagens encerram, e sobre os esforços investigativos e reflexivos em desvendar a fotografia, no que ela revela e silencia.

Seguem-se artigos que tratam de variadas temáticas, tendo sempre a história como seu sistema constitutivo, o que de resto é a matéria básica desta publicação, e as imagens, em movimento ou não, como veículos e suportes de idéias. Ana Maria Mauad — “Genevieve Naylor, fotógrafa: impressões de viagem” — trabalha com fotografia e política; Artur Freitas — “Arte e movimento estudantil: análise de uma obra de Antonio Manuel” — cuida da relação entre artes plásticas e política; Cássio da Silva Fernandes — “As contribuições de Jacob Burckhardt ao Manual de História da Arte de Franz Kugler” — analisa história da arte e mudança social; Eduardo Morettin — “Dimensões históricas do documentário brasileiro no período silencioso” — relaciona cinema e história social; Sheila Schvarzman — “Ir ao cinema em São Paulo” — investiga cinema e comportamento no início do século passado; Luciana Rossato — “Imagens de Santa Catarina: arte e ciência na obra do artista viajante Louis Choris” — estuda conexões entre arte e conhecimento científico; Jean Luiz Neves Abreu — “Difusão, produção e consumo das imagens visuais: o caso dos ex-votos mineiros do século XVIII” — conjectura sobre a produção e o consumo da arte popular. Por fim, publica-se uma resenha de livro de Oswaldo Caldeira que mescla cinema e reminiscências.

O número da RBH que o leitor tem em mãos encerra o ciclo administrativo deste Conselho Editorial. Escolhemos dedicar os quatro números concernentes ao período aos temas história / cidades, história / poder, história / conhecimento e história / imagem. Diante das perplexidades que contemporaneamente se apresentam ao entendimento da história, procuramos seguir as diretivas mais singulares de nossa profissão. Isto é, estudar com afinco os textos oferecidos à publicação e dar publicidade àqueles que mais estimulassem a reflexão.

Se as virtudes cívicas contribuem para a boa vida de todos, as virtudes editoriais devem contribuir para o aprimoramento de toda a comunidade de professores e pesquisadores.

Conselho Editorial


Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.25, n.49, jan. / jun, 2005. Acessar publicação original [DR]

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Saberes históricos e pedagógicos / Revista Brasileira de História / 2004

A presente edição da RBH, mais uma vez, comporta um dossiê a propósito de saberes históricos e pedagógicos. No número 46, de 2003, fizemos um comentário que merece aqui reprodução: “Apenas considerando o início dos anos 90 e os dias atuais, isto é, 32 números editados, a RBH publicou principalmente dossiês de teoria de história ou historiografia, cerca de 25% do total — o que atesta vivamente que o ofício do historiador, seus métodos e dificuldades, apresentam-se como a preocupação mais constante da comunidade”.

É possível que tal preocupação com as questões teóricas decorra da tentativa de administrar a mais recôndita aspiração do historiador: a de lidar positivamente com a imprevisibilidade do conhecimento. O futuro não está compreendido pelo passado, e essa indeterminação angustia aquele a quem, por profissão, cabe confrontar o conhecimento adquirido com o devir. Toda e qualquer comunidade humana toma decisões sobre o seu futuro, e não o faz optativamente. Somos todos obrigados, para o bem e para o mal, a optar. Daí o lugar especial destinado à imaginação nos estudos históricos. É pelo trabalho simultâneo da imaginação e da razão que o historiador encontra motivos para a refutação de sua instabilidade de princípio.

Procedendo dessa forma, isto é, publicando sucessivos dossiês sobre questões teóricas da disciplina, a RBH tem aberto freqüentemente espaço para a aventura do saber, lidando sempre com o entender e o ensinar a história. Neste número, como em outros precedentes, contamos com a parceria de eficientes e inspirados autores para discutir aspectos teórico-metodológicos da historiografia contemporânea, que se constituem, muitas vezes, em impasses da nossa ciência. Os três primeiros artigos do presente número da RBH, a seu modo, avaliam os ditos impasses. Norberto Guarinello abre o volume discutindo conceitos como tempo histórico, estrutura e ação, a partir da perspectiva do tempo cotidiano. Numa leitura que pode se constituir em diálogo e contraponto ao artigo anterior, Carlos Zacarias, em “A dialética em questão”, busca demonstrar que uma determinada tradição marxista nunca deixou de promover sínteses essenciais ao método dialético. Em “Testemunho, juízo político e história”, Fernando Kolleritz analisa as propriedades características do gênero testemunhal, descrevendo as situações ideológicas que presidiram a recepção de depoimentos sobre os campos de concentração nazistas e comunistas.

Ocupando um espaço privilegiado, seguem-se sete artigos nos quais o tema do ensino de história constitui a preocupação primordial. Claudefranklin Santos e Terezinha Alves de Oliva recuperam e analisam um livro de leitura, o Através do Brasil, que, procurando fortalecer a identidade nacional, sintetizou um ideal pedagógico brasileiro do início do século XX. Cuidando de tema semelhante, Sonia Miranda e Tania de Luca, em “O livro didático de história hoje”, constroem uma breve radiografia do livro didático contemporâneo e apontam algumas temáticas centrais que têm ocupado o cenário relativo ao saber histórico escolar. Lucia Guimarães aborda o IV Congresso de História Nacional, promovido pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, no Rio de Janeiro, em 1949, com o intuito de avaliar a sua contribuição à historiografia nacional. Laerthe Abreu Jr. analisa o caderno de recortes sobre educação do Diario Official do Estado de São Paulo, nos anos 30 e 40 do século XX. Sua intenção é mostrar indícios das práticas escolares que aparecem e se destacam em meio aos textos sobre aspectos legais da educação. A tentativa de construção de um Código disciplinar para a História no Brasil é o assunto privilegiado por Maria A. Schmidt, em artigo que põe em foco a obra didática de Jonathas Serrano (1855-1944), professor de História do Colégio Pedro II. Luiz Cerri, em “Saberes históricos diante da avaliação do ensino”, trata da influência que o ENEM exerceu, como prática avaliativa privilegiada durante o anterior governo federal, na organização do currículo do Ensino Médio. E, ainda dentro da seção destinada ao conhecimento pedagógico, Paulo Martinez estuda questões ambientais presentes no conhecimento histórico escolar.

Além desses, mais três artigos, versando sobre temáticas externas ao dossiê, completam a presente edição. São eles: “Almas em busca da salvação: sensibilidade barroca no discurso jesuítico (século XVII)”, de Eliane Fleck; “Mediações entre a fidalguia portuguesa e o Marquês de Pombal: o exemplo da Casa de Lavradio”, de Fabiano V. dos Santos; e “O caráter religioso e profano das festas populares: Corumbá, passagem do século XIX para o XX”, de João Carlos de Souza.

Fiel à sua tradição, portanto, a RBH abre espaço para uma aliança entre a imaginação e a razão histórica. Mas o faz esquivando-se do perigo de tomar por real o que é produto da imaginação. O caminho para o desfazimento da aludida confusão parece estar contido na separação entre duas formas de imaginação, e na escolha daquela que, procedendo por hipóteses as quais ela se esforça para validar, afasta imediatamente as conclusões em diametral oposição à experiência vivida.

Assim, a atividade científica em história — para a qual a RBH pretende se constituir em veículo de divulgação — é o protótipo da imaginação cotidianamente confrontada pela experiência. E, em nosso caso, essa experiência nos vem pelo profícuo relacionamento entre nossos autores e nossos leitores.

Conselho Editorial


Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.24, n.48, 2004. Acessar publicação original [DR]

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Experiências Urbanas / Revista Brasileira de História / 2003

A Revista Brasileira de História, a RBH da Anpuh, chega ao seu 46° número cada vez mais fortalecida pelo prestígio que os historiadores brasileiros lhe atribuem. Ao longo de sua trajetória, já contada em décadas, a RBH publicou centenas de autores nacionais e estrangeiros, contribuindo para a divulgação de temas e teses importantes para a historiografia. A RBH foi, também, dirigida por dezenas de professores universitários que, em suas participações nos Conselhos Editoriais, orientaram a entrega ao público de artigos de excelência científica. O levantamento dos assuntos tratados nesses textos pode apontar, guardadas as limitações relativas, os interesses mais enfocados no período de sua existência. Apenas considerando o início dos anos 90 até os dias atuais, isto é, os 32 últimos números editados, a RBH publicou principalmente dossiês de teoria da história ou historiografia, cerca de 25% do total — o que atesta vivamente que o ofício do historiador, seus métodos e dificuldades, apresentam-se como a preocupação mais constante da comunidade. Espaço pouco inferior ocuparam os dossiês sobre política — nacional, internacional e / ou teórica — indicando a questão do poder como sempre parceira dos caminhos do pensamento. Como temática de época, registrando o encontro com objetos historiográficos menos tradicionais, os assuntos de gênero e família aparecem em terceiro lugar entre os dossiês mais publicados. Mas não se restringem a estes nomeados os temas centrais do período: tratou-se também de ensino da história, de religião, de viagens, de escravidão, de artes, de ciências, de migrações, de história da América etc.

Levando em consideração essa distribuição temática que a história do periódico legou, o Conselho Editorial que ora passa a dirigir a RBH, houve por bem reafirmar a conveniência de dar continuidade ao andamento editorial já consolidado, acrescentando como parâmetros a atenção com problemas sugeridos pela conjuntura e a cobertura de dossiês / temáticas ainda não aquinhoados pelos números anteriores.

É nesse sentido que apresentamos o número que está em suas mãos. Nele concentram-se artigos sobre Experiências Urbanas, justamente numa circunstância social em que tanto nossas vidas nas pequenas ou médias aglomerações humanas, como nas metrópoles globais, merecem reflexão e cuidado especiais. O pensamento histórico que o dossiê atual oferece, percorre caminhos variados que vão de Campina Grande ao Rio de Janeiro, de São Paulo a Piracicaba ou São José do Rio Preto, passando pela cidade de Goiás, tudo dentro de um registro temporal significativo: a passagem do século XIX ao XX, incluindo sua primeira metade. Um espaço de tempo caracterizado pela criação das condições para o Brasil atual. Esses estudos da vida urbana atravessam temas variados: Mônica Schpun esquadrinha a São Paulo de Mário de Andrade, para captar uma sensibilidade talvez perdida; Fábio Sousa estuda a atribulada reforma urbana de Campina Grande, para entender a teatralização do poder que acompanhou “o advento das cidades modernas no Brasil”; André L. Paulillo avalia “as relações que a administração pública estabeleceu com saberes escolares e práticas educativas”, no Rio de Janeiro dos anos 20 do século passado; Graciela Oliver e Tamás Szmrecsányi examinam o “processo de ressurgimento da agroindústria canavieira paulista”, lançando luzes sobre o crescimento daquela atividade num período em que a crise do café ocupava as atenções; Maria da Conceição Silva discute a atuação do “clero no sentido de normalizar o comportamento das pessoas por meio da celebração do casamento na cidade de Goiás”; e Airton Cavenaghi apresenta o cotidiano da São José do Rio Preto de seus primórdios, por meio da análise de fotografias.

Os artigos que se seguem ao dossiê ocupam-se de diplomacia (Eugênio V. Garcia), política (Sandro Coelho), historiografia (José A. Cavenaghi), colonização (André F. Rodrigues) e violência (Myrian S. dos Santos), formando um verdadeiro panorama diversificado dos interesses historiográficos contemporâneos. Entre si, no entanto — e somados aos artigos componentes do dossiê — configuram um número da RBH integralmente dedicado ao estudo da história ou historiografia brasileiras.

O próximo número desta revista, que circulará em meados de 2004, cuidará do Brasil: do ensaio ao golpe (1954-1964), numa tentativa, uma vez mais, de abrir suas páginas para o entendimento da cultura política que cercou a relação entre democracia e autoritarismo, entre vida pública e privada, naquela turbulenta quadra da vida nacional. Os números seguintes tratarão da produção e divulgação de saberes históricos e pedagógicos, e da relação entre história e manifestações visuais, incluindo o estudo das fontes concernentes.

A definição dessas temáticas, a partir da análise dos pregressos dossiês, acompanha a reformulação da identidade visual da RBH, que agora ganha uma personalidade única e reconhecível para o período de vigência do atual Conselho Editorial.

Conselho Editorial


Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.23, n.46, 2003. Acessar publicação original [DR]

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O Ofício do Historiador / Revista Brasileira de História / 2003

O Ofício do Historiador, denominação cara a Marc Bloch, foi o título escolhido para o dossiê do último número da RBH preparado pelo atual Conselho Editorial. Desta vez, a proposta do dossiê não estabelece limites tão rígidos e, de várias maneiras, alcança os demais artigos, conferindo maior homogeneidade a todo o volume.

Este número tem outras peculiaridades. Aproxima gerações, pois ao lado de autores seniors — como Ulpiano Bezerra de Meneses – estão jovens pesquisadores em início de carreira — como Rebeca Gontijo ou Fabio Duarte Joly. Atravessa fronteiras geográficas, colocando ao lado de historiadores brasileiros, quatro outros que trabalham no exterior e que prepararam artigos especialmente para a revista: dois no México — Carlo A. Aguirre Rojas e Regina A. Crespo; um na Argentina — Hernán Sorgentini; e outro na Alemanha — Débora B. Alves. Este é um claro sinal do quanto a RBH se firmou como pólo de qualidade atraindo a atenção para além dos limites nacionais.

Os artigos que compõem o dossiê apresentam abordagens de natureza teórica ou historiográfica. O de Ulpiano Bezerra de Meneses, que abre o número, dialoga com a História da Arte, a Antropologia Visual, a Sociologia Visual, propondo “algumas premissas para a consolidação de uma História Visual”. Em seguida, o de Diana Gonçalves Vidal e Luciano Mendes de Faria Filho analisa a constituição do campo da História da Educação no Brasil e da construção de uma certa identidade, ainda que multifacetada e plural, do historiador da educação. Os textos de Carlos A. Aguirre e de Hernán Sorgentini refletem criticamente sobre a relação entre produção do conhecimento histórico, memória e tradição, detendo-se ambos no trabalho de Carlo Ginzburg. Rebeca Gontijo escolheu estudar Manoel Bomfim com a intenção de captar este “pensador da História” na Primeira República brasileira. As fontes para o historiador são discutidas por Débora B. Alves que indica os problemas particulares suscitados por cartas de imigrantes alemães escritas nas “distantes” fazendas fluminenses e publicadas em jornais alemães na metade do século XIX.

Os artigos que se seguem também nos conduzem ao cruzamento de outras fronteiras. O texto de Regina Crespo estuda as viagens ao Brasil de dois intelectuais mexicanos, José Vasconcelos e Alfonso Reyes que, depois da “descoberta” da “outra” América Latina, estabelecem rotas de aproximação entre os dois países. Beatriz Domingues reflete sobre os escritos de dois jesuítas mexicanos, Venegas e Clavijero, a respeito da “longínqua e árida” Baixa Califórnia, no século XVIII, que nos levam a dimensionar encontros culturais e religiosos muito particulares. Indicando como os temas e questões da História Antiga continuam controversos, Fábio Joly dialoga e discorda da historiografia sobre Columela, mostrando que a perspectiva desse autor em torno da organização do trabalho escravo na propriedade rural na Roma imperial se apóia não apenas em critérios econômicos mas também políticos.

Entrando no espaço brasileiro, Marcus Carvalho retoma a questão da atuação de agentes sociais (no caso provenientes das camadas subalternas) e suas relações com a haute spolitique partidária, num momento histórico conturbado, a Insurreição Praieira de 1848. No período contemporâneo, Joana Pedro, ao estudar a memória das mulheres sobre sua vivência com os contraceptivos, proporciona o encontro da experiência privada de cada uma delas com o espaço eminentemente político das propostas de planejamento populacional em nosso país. Fechando este número, uma importante entrevista de Jacob Gorender a Waldir Rampinelli, sobre o PCB; e as resenhas que, como sempre, contribuem para uma profícua discussão historiográfica.

O Conselho Editorial, com muito pesar, recebeu a notícia do falecimento da grande historiadora brasileira, Alice Piffer Canabrava, ex-presidente da ANPUH e fundadora da Revista Brasileira de História. Assim, decidiu prestar sua homenagem a ela, dedicando-lhe este número da revista.

In Memoriam
Alice Piffer Canabrava (1911-2003)


Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.23, n.45, jul, 2003. Acessar publicação original [DR]

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Viagens e Viajantes / Revista Brasileira de História / 2002

O dossiê Viagens e Viajantes está composto por cinco artigos. Desnecessário afirmar a relevância e o interesse do tema para a área de História. Todos os artigos se apóiam em relatos ou diários de viajantes que visitaram diversas partes do mundo, do Brasil à Austrália. A construção das diferenças e o sentimento de estranhamento compõem diálogos identitários reveladores e instigantes.

O cerne das análises dos autores, no entanto, difere. Regina Horta Duarte e Andréa Doré mostram o olhar estrangeiro que elabora uma visão “de fora” sobre o interior do Brasil no século XIX, no primeiro caso, e sobre a Índia no século XVI, no segundo. Valéria Salgueiro mostra como no século XVIII se inauguram os fluxos de viagens por prazer, que, segundo a autora, se constituem nas matrizes do turismo de lazer e de cultura no presente. Luis Lima Vailati busca a contribuição dos relatos de viajantes para entender os temas da infância e da morte no Brasil do século XIX. Alistair Thomson trabalha com as contribuições da História Oral para os estudos da migração, particularmente entre a Grã-Bretanha e a Austrália, indicando a importância dos relatos pessoais para se entender os problemas sociais das migrações na atualidade.

Os demais artigos deste número, ainda que bastante particulares em suas temáticas, apresentam muitos pontos de contato. O texto de Roney Cytrynowicz polemiza com a historiografia sobre o anti-semitismo no período do Estado Novo. Mostra como a comunidade judaica engendrou estratégias sofisticadas para enfrentar a lei e a ideologia daquele período. Helenice Rodrigues da Silva discute, pensando sobre o Brasil, o valor simbólico das comemorações nacionais e os processos de construção e de transmissão de uma memória social. Ainda na trilha das comemorações nacionais, Thaís de Lima e Fonseca toma a Inconfidência Mineira e a figura de Tiradentes para analisar as apropriações da imprensa, entre as décadas de 1930 e 1960, do mito do herói e de seu “sacrifício” insistentemente associado a supostos herdeiros.

Carla S. Rodeghero faz uma análise comparativa das perspectivas católicas anti-comunistas no Brasil e nos Estados Unidos no período da Guerra Fria, mostrando as diferentes formas que elas assumem nos dois países. Mariana Martins Villaça também escolhe a comparação, enfocando as ligações entre o Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos e o cineasta Glauber Rocha, analisando ainda, a repercussão de sua obra entre os cineastas cubanos nas décadas de 1960 e 1970. O artigo de Ricardo de Oliveira reflete sobre as conflituosas relações entre os conceitos de sertão e de nação na monumental obra de Euclides da Cunha, Os Sertões, no centenário de sua publicação.

As resenhas algumas solicitadas pelo Conselho Editorial e outras enviadas pelos sócios também serão, sem dúvida, do maior interesse dos leitores.

Para finalizar, agradecemos ao apoio da FAPESP que contribuiu para a publicação deste número da RBH.

Conselho Editorial


Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.22, n.44, 2002. Acessar publicação original [DR]

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Tempos do Sagrado / Revista Brasileira de História / 2002

O dossiê Tempos do Sagrado que a Revista Brasileira de História ora publica responde ao crescente interesse demonstrado pelos historiadores por temas relacionados à religião e religiosidade. Prova disto é o fato de duas importantes revistas da área — Tempo e Estudos de História — terem organizado recentemente edições em torno dessas questões. A contribuição de nossa revista se apresenta marcada por uma particularidade: as temáticas abordadas, sempre baseadas em pesquisas originais se estendem por diversos tempos históricos, entre os séculos XIII e XX.

Os três primeiros artigos formam um grupo dedicado a pensar os conflituosos encontros entre, de um lado, europeus católicos e, de outro, indígenas, negros e judeus. Fernando Torres Londoño analisando as cartas escritas pelos missionários a seus superiores, no eixo formado por Portugal, Itália, Índia e Brasil, mostra como foi construído e definido o projeto jesuítico missionário para a evangelização dos indígenas, com base nos escritos de Santo Inácio de Loyola. O texto de Alisson Eugênio discute as vivências culturais de negros que se associavam em irmandades religiosas em Minas Gerais do século XVIII, desvendando as tensas relações entre a Igreja e as irmandades negras, atravessadas por uma complexa gama de práticas, que iam das negociações às ameaças, especialmente no referente aos recursos financeiros para as festas. O artigo de Ângelo Adriano Faria de Assis, tomando a Visitação do Santo Ofício, entre 1591 e 1595, pesquisa as resistências judaicas no Brasil colonial do século XVI. Demonstra como, entre os neoconversos, as mulheres — tornadas guardiãs das tradições religiosas após a proibição do exercício público do culto judaico — foram as principais acusadas pela Inquisição.

Segue-se o estudo de Néri de Almeida Souza que analisa a Legenda aurea (coletânea de 182 legendas baseadas em vidas de santos e em mistérios do ano litúrgico cristão), organizada a partir de diversas fontes pelo dominicano Jacopo de Varazze, no século XIII. A autora enfatiza as diferenças entre a cultura religiosa erudita escrita pelos grandes teólogos e seus leitores muito menos instruídos, situando Jacopo de Varazze no quadro dessas disputas. Fechando o dossiê, Etiane C. B. de Souza e Marion B. de Magalhães apresentam os movimentos pentecostais latino-americanos na atualidade. Indicam como tais movimentos exerceram forte atração sobre as camadas mais pobres da população, de forma a inaugurar uma prática religiosa singular. Também discutem as relações particulares entre os pentecostais e o mundo da política institucionalizada.

Cinco outros artigos sobre temáticas diversas e originais completam esta edição. O estudo de Hendrik Kraay analisa o recrutamento de escravos e de homens de cor livres ou libertos para fazer parte das forças que lutaram contra os portugueses na Bahia, em 1822 e 1823. O artigo também apresenta a participação desses soldados negros no Levante dos Periquitos, em 1824, e a repressão por parte do governo imperial. O texto de Johnni Langer refere-se à construção do mito da cidade perdida da Bahia, a mais conhecida fábula arqueológica do Brasil. Esta se inicia com a entrega ao IHGB de um manuscrito encontrado por Manuel Ferreira Lagos, na Livraria Pública da Corte, em 1839, que discorria sobre a descoberta de minas de prata no interior da Bahia, no século XVI. O artigo de Vânia Maria Losada Moreira estuda o impacto da Lei de Terras de 1850 sobre os direitos territoriais indígenas. Trabalhando com o Espírito Santo, mostra como a Lei propicia a expulsão das populações de índios de suas terras, fechando-lhes praticamente todas as alternativas de acesso à propriedade. O artigo de Micol Seigel e Tiago de Melo Gomes trata do desalojamento, em 1889, de uma quitandeira, a Sabina das Laranjas, da porta da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, lugar em que costumava trabalhar. Apresentando a reação em favor da mulher por parte dos estudantes, os autores discutem as práticas cotidianas raciais e de gênero. O artigo de Luis Fernando Cerri está centrado nas relações entre propaganda, política e ensino de História. Escolhendo peças publicitárias de instituições públicas e privadas durante a ditadura militar brasileira, particularmente durante o chamado “milagre econômico”, o autor analisa esses anúncios e os toma como ponto de partida para ouvir pessoas comuns em torno da questão da identidade nacional. Este número traz, ainda, um conjunto de resenhas que, sem dúvida, serão do interesse do leitor.

Um mea culpa se faz necessário. No último número da RBH, por razões técnicas, foram omitidos, na relação dos nomes que compõem nosso Conselho Consultivo, os dos professores Luís Reis Torgal e Serge Gruzinski que, no entanto, continuam a nos honrar com seu apoio. Erro corrigido nesta edição.

Finalmente agradecemos, mais uma vez, ao CNPq pelo auxílio recebido, sem o qual esta publicação não seria possível.

Conselho Editorial


Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.22, n.43, 2002. Acessar publicação original [DR]

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Ciência e Sociedade / Revista Brasileira de História / 2001

Trazer a público uma discussão acerca das relações entre Ciência e Sociedade constituiu um desafio na medida em que se trata de temática pouco contemplada nas revistas da área de História, apesar da vigorosa e diversificada produção que vem sendo realizada pelos historiadores das ciências.

A resposta rápida, copiosa e diversificada dos autores ao tema proposto indica o acerto da escolha em termos de proporcionar um canal de debate e divulgação desses trabalhos que de hábito são publicados em periódicos das áreas específicas do conhecimento, constituindo assim uma historiografia até certo ponto “invisível” ou de difícil localização. Os artigos aqui reunidos são significativos para a compreensão das relações entre ciência e sociedade em grande abrangência analítica, pois se reportam até o século XVII, não apenas do Brasil, mas do mundo ocidental, com destaque para os estudos voltados para a Inglaterra e a França. A relevância social e científica do tema, revela-se no amplo leque de assuntos abordados em perspectiva de revisão historiográfica, em artigos cujas temáticas interligadas evidenciam o diálogo entre o conhecimento histórico e as demais ciências. Em suma, trata-se de um número especial da revista, de interesse amplo para historiadores e pesquisadores em geral.

Especificamente em relação aos autores da França, ficam registrados os agradecimentos a Laurent Mucchielli, que reuniu os artigos de Claude Blanckaert, Olivier Martin e Pierre-Henri Castel, possibilitando assim um diálogo enriquecedor com a história da sociologia e da temática do transexualismo. A formação de uma tradição durkheimiana na França, a constituição de uma Sociologia acadêmica e os embates institucionais que acompanharam essa trajetória, aqui analisados com o instrumental teórico-metodológico de Bourdieu em perspectiva crítica,possibilitam uma renovação dos estudos das relações entre História e Sociologia e abrem perspectivas inovadoras. O estudo das origens da Sociologia estatística e da Bio-sociologia delineia o percurso institucional e político da constituição da Sociologia e de suas relações com a sociedade francesa, em direção à sua autonomia enquanto disciplina. Completando esta vertente, o tema do transexualismo em perspectiva historiográfica traz importante questionamento acerca desse entrelaçamento, colocando em questão a construção dos conceitos de identidade sexual e de gênero a partir das interpretações psicanalíticas, médicas e sociológicas.

O estudo de Luís Carlos Soares integra a perspectiva analítica voltada para a Europa, com a análise das relações entre Ilustração e academias de ensino no interior da dissidência religiosa inglesa do século XVIII. Abre assim vertente inovadora ao abordar as instituições de ensino mantidas pelos não-conformistas, nas quais o ensino das novas ciências naturais alcançou um espaço privilegiado.

Os estudos sobre o Brasil abrangem os dois últimos séculos e apresentam-se bastante variados e abrangentes em temáticas, perspectivas e problemáticas. Os artigos de Maria Margaret Lopes, Lorelai Kury e Benito Bisso Schmidt colocam em discussão o cientificismo dos séculos XIX e XX, ao realizarem abordagens das missões científicas e da volumosa literatura de viagem por elas produzida, dos museus que foram constituídos para responder a esse interesse e do discurso do movimento operário, igualmente permeado pelas preocupações que estabeleciam algum tipo de nexo entre ciência e progresso, com intuitos civilizadores. Ainda uma vez, a preocupação com o percurso institucional das disciplinas, desta feita na América Latina e especificamente no Brasil, contribui para a compreensão da trajetória da Arqueologia, da Antropologia e da Paleontologia, bem como da difusão das teorias darwinistas, kardecistas e da antropologia criminal, temática também presente na abordagem da Antropotecnia feita por Claude Blanckaert a partir dos estudos de Manouvrier. Teorias raciais e biogeográficas são trazidas à discussão e analisadas em sua dimensão social e política.

Voltados para a Medicina, os artigos de James Roberto Silva e Luiz Antonio Teixeira trazem novas perspectivas. O primeiro deles, ao colocar em questão o olhar médico sobre a doença, e sobretudo sobre o paciente, aborda a constituição de rico documentário fotográfico, ainda pouco explorado pela historiografia, revelando assim um mundo de intencionalidades e subjetividades que se tornaram paradigmáticas de tais registros. O artigo sobre a transmissão da febre amarela recupera os embates sociais que acompanharam o combate à moléstia que tanto afligiu a população no final do século XIX e motivou intensos estudos na Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, na qual o médico Luís Pereira Barreto teve atuação destacada.

Comunicação, ciência e tecnologia constitui o tema de dois artigos. O de Laura Antunes Maciel, que aborda a constituição do serviço telegráfico no Brasil, discute questões relevantes sobre cultura e tecnologia, recuperando experiências de modernização técnica e do papel do Estado no campo das telecomunicações. O trabalho de Ana Maria Ribeiro de Andrade e José Leandro Rocha Cardoso analisa a divulgação de ciência e tecnologia em periódicos como Manchete e O Cruzeiro que nos anos 50 constituíam importante veículo de comunicação de massa mediante fotorreportagens que ao idealizarem os construtores da ciência, contribuíram para a divulgação de uma representação estereotipada dos cientistas e para o distanciamento entre ciência e sociedade.

Com este número temático, o Conselho Editorial da Revista Brasileira de História encerra sua gestão, registrando os agradecimentos a todos os autores que enviaram suas contribuições e aos pareceristas que no decorrer desta jornada constituíram o suporte inestimável deste trabalho.


Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.21, n.41, 2001. Acessar publicação original [DR]

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Espaços da Política / Revista Brasileira de História / 2001

Seis artigos compõem o dossiê Espaços da Política organizado para este número da Revista Brasileira de História. Os espaços da política são aqui tomados como aqueles onde se manifestam as nem sempre explícitas relações de poder e nos quais entram em conflito representações e imaginários sociais.

A revista se abre com o artigo de Vicente Sánchez Biosca que, analisando o documentário Shoah, reflete sobre as relações entre memória e esquecimento, entre o fato e suas representações, entre o poder nazista e o horror dos campos de concentração.

Os dois textos seguintes abordam temáticas latino-americanas. José Luis Bendicho Beired discute a extrema direita nacionalista na Argentina, no período entre as duas guerras mundiais, e seu projeto de dominação continental. Apresenta os fundamentos do discurso desse grupo, mostrando seus objetivos e sua concepção de história. Mary Anne Junqueira estuda a revista Seleções, entre 1942 e 1970 e suas representações sobre o território latino-americano. Toma a idéia de wilderness como central para entender o imaginário norte-americano sobre o Oeste; para a autora, a revista associa o território da América Latina ao Oeste e à wilderness.

Os três artigos que fecham o dossiê são diversificados em seus temas. João Pinto Furtado trabalha com a historiografia sobre a Inconfidência Mineira, procurando desmontar alguns mitos construídos sobre a mesma. Pensa que seus protagonistas não formavam um grupo com forte coesão ideológica que propugnava a construção de um projeto de nação definido. Magnus Roberto de Mello Pereira aborda um tema original pouco trabalhado pela historiografia: o direito de almoçataria nas cidades de Portugal e de sua colônia brasileira. Defende a tese de que o Estado moderno voltado para as políticas públicas nasce pela apropriação das atribuições administrativas da cidade. Finalmente, Ernst Pijning estuda as medidas políticas impostas pela Coroa portuguesa para controlar o contrabando no século XVIII, em particular no Rio de Janeiro. Analisa os diversos interesses conflitantes em jogo, a ambivalência do fenômeno e o fracasso em condenar essas práticas como imorais.

Os artigos que se seguem tem por palco as cidades de Recife e de São Paulo. Virgínia Pontual visita as narrativas de memorialistas que descreveram Recife desde o século XVI até o presente. Constata que as mesmas representações nas narrativas de origem continuam sendo reproduzidas e superpostas às da atualidade. Entretanto, mudam os sinais de positivo no passado para negativo no presente. Maria Inês M. Borges Pinto estuda a produção de parte da intelligentsia paulistana enfatizando suas perspectivas contraditórias sobres nacionalismo e regionalismo. Detêm-se na obra de Mário de Andrade e nas vozes dissonantes de Antônio de Alcântara Machado e Manuel Bandeira.

Luis Humberto Martins Arantes tem a peça de Jorge de Andrade, A Moratória, escrita em 1950, como foco de seu estudo. Tecendo as relações entre teatro e história, mostra como o dramaturgo, ao narrar a decadência das elites cafeeiras na década de 1930, constrói uma representação do “homem brasileiro”. Regina Dalcastagnè estabelece um diálogo entre história e literatura, escolhendo duas obras – O Cortiço e Viva o Povo Brasileiro – de Aluísio de Azevedo e de João Ubaldo Ribeiro respectivamente. Ainda que produzidas em épocas diferentes, separadas por quase um século, a autora mostra como a crítica à violência das relações de dominação social está presente nos dois textos.

O último artigo se debruça sobre as fontes documentais, matéria prima do historiador. Analisa a natureza diversa de fontes para o estudo dos preços de escravos, entre 1871 e 1874, na região do Vale do Paraíba, especialmente, as cidades de Cruzeiro, Lorena, Guaratinguetá e Silveira,.

Este número da Revista Brasileira de História, o primeiro organizado pelo novo Conselho Editorial, concentra uma série de artigos com temáticas bastante originais, elaborados por competentes pesquisadores. É preciso mencionar, ainda, que a edição desta revista contou com os imprescindíveis recursos do CNPq.

Conselho Editorial


Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.21, n.42, 2001. Acessar publicação original [DR]

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Estado e Controle Social / Revista Brasileira de História / 2001

O dossiê Estado e controle social, que a Revista Brasileira de História apresenta aos seus leitores, traz inicialmente um documento de Maurice Halbwachs registrando suas impressões sobre sua eleição para o Collège de France. O autor, que elaborou significativa contribuição teórica para os estudos sobre memória, desvenda neste texto sua própria vida em atividade de memorialista, abrindo perspectivas para a história das ciências humanas e de suas relações com a política. O “grupo de Strasbourg” e suas ramificações no mundo acadêmico francês, suas estratégias de inclusão / exclusão constituem temáticas que remetem à história e à sociologia.

O documento, inédito no Brasil, inicialmente foi publicado na Revue d’ Histoire des Sciences Humaines graças ao trabalho de transcrição e notação de Laurent Mucchielli e Jacqueline Pluet-Despatin. Infelizmente, por motivo de formatação de nossa revista, tais notas foram aqui suprimidas. A apresentação do documento, feita pelos dois autores, contextualiza sua escrita na França ocupada pela Alemanha nazista e revela dados biográficos do autor relacionados à Resistência. O Collège de France é também analisado a partir da perspectiva de campo social dada por Bourdieu, revelando aspectos complexos da inclusão acadêmica dos durkheimianos e de suas ligações com o Estado, até o extremo da eliminação física dos indesejáveis, presenciada por uma instituição incapaz de reagir.

O campo acadêmico e suas relações com o Estado também constituem o tema do artigo de Cláudia Callari, publicado postumamente com a revisão de Lilian Starobinas. Nele, o Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais é analisado do ponto de vista da produção do saber histórico e sua instrumentalização pela política durante o Império e a República, mediante a construção de narrativas modelares.

João Fábio Bertonha analisa o Estado a partir das concepções do Integralismo, discutindo as relações deste movimento com o fascismo italiano e sua difusão entre os descendentes de italianos no Brasil. Retoma as discussões sobre as relações entre o modelo europeu e a proposta dos seguidores de Plínio Salgado, tendo como referência as variáveis étnica e de classe especialmente em São Paulo, sem perder de vista outras regiões de colonização italiana.

As políticas emergenciais de Getúlio Vargas para minorar os efeitos da seca no Nordeste constituem o tema do artigo de Frederico de Castro Neves. As relações entre o Estado e os retirantes das secas de l932 e 1942 foram focalizadas em sua intenção de controlar a população migrante mediante a implantação de campos de concentração de flagelados, visando evitar saques e depredações.

O período do governo Vargas constitui também o tema do artigo de Elio Chaves Flores, que analisa as representações cômicas da República publicadas entre 1930 e 1954. O traço memorialístico presente nas caricaturas publicadas em jornais e revistas, é aqui confrontado com discursos satíricos e irônicos numa perspectiva de intertextualidade.

A seção de artigos inicia-se com o trabalho de Anita Novinsky sobre os marranos em Minas Gerais no período colonial. A análise de processos de cristãos-novos revela uma identidade específica, antes uma visão de mundo que uma prática religiosa. A Inquisição atuou nas regiões auríferas motivada pela ação confiscatória, revelando nos documentos arquivados em Portugal aspectos da vida dos acusados de práticas judaizantes, tais como as sociedades secretas e as atividades profissionais a que se dedicaram.

O período colonial foi também abordado por Cristina Pompa, que analisou outro aspecto da religiosidade no Brasil, a construção de profetas e santidades. A partir de relatos missionários, a autora analisa o campo semântico da leitura do xamanismo e a interpretação do profetismo tupi-guarani na perspectiva da alteridade, no contexto do encontro entre indígenas e europeus no Brasil.

Néri de Almeida Souza dá continuidade aos estudos sobre religiosidade no artigo sobre a hagiografia medieval portuguesa, no qual aborda os temas de peregrinação, conquista e povoamento a partir da Vida de Santo Amaro. Trata-se de uma narrativa de viagem ao paraíso terrestre cisterciense, que permite a compreensão de relações entre pensamento histórico e pensamento mítico, da Reconquista aos Descobrimentos portugueses.

Descobrimentos constituem o tema do artigo de Paulo de Assunção em análise das descrições feitas por jesuítas sobre as terras brasileiras. A mentalidade do século XVI é ali abordada a partir de relatos que enfatizavam a natureza tropical da região ao sul do Equador.

O artigo de Carlota Boto insere-se também nos estudos sobre Portugal, desta feita abordando o debate pedagógico ali travado no final do século XIX e início do século XX. A partir de periódicos, a autora analisa o tema da hereditariedade como fator determinante da ação educativa e sua influência sobre as concepções de método e conteúdo. Este número contou com a colaboração financeira dos Núcleos Regionais da AMPUH.


Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.21, n.40, 2001. Acessar publicação original [DR]

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Brasil, Brasis / Revista Brasileira de História / 2000

A produção significativa de eventos comemorativos em torno dos chamados 500 anos de Brasil motiva a Revista Brasileira de História a trazer a público o dossiê “Brasil, Brasis”. Distante da efeméride, seu objetivo é estimular reflexão sobre os diversos sentidos que o conceito de Brasil apresentou historicamente. Visando repensar as interpretações do passado, os artigos que o constituem abrem-se para diversidades sociais, econômicas políticas e culturais, abordadas em tempos e espaços múltiplos.

Seu ponto de partida localiza-se no significado dos três séculos de colonização portuguesa que implicaram na configuração de um território, de relações com a metrópole, de uma sociedade colonial e na difusão da língua portuguesa. Na seqüência, busca-se repensar tal herança na atual sociedade brasileira.

O artigo de Seth Garfield abre o dossiê com o estudo das relações entre a população indígena e as políticas nacionalistas do Estado Novo, sobretudo a da Marcha para o Oeste. A partir de uma perspectiva de dupla direção, aborda tanto a política indigenista construída e aplicada por intelectuais e funcionários do governo, quanto a interlocução obtida com seus destinatários. No campo da cultura política situa-se também o artigo de Antônio Penalves Rocha, que analisa a difusão das idéias antiescravistas da Ilustração no Brasil, no início do século XIX, evidenciando a especificidade de sua reconstrução por intelectuais, numa releitura que configura um dos Brasis, o da escravidão e de suas contradições presentes nos movimentos abolicionistas. O artigo de Élio Serpa examina aspectos da cultura política nacionalista durante a Primeira República. Desavindos ou desacordes eram os intelectuais portugueses e brasileiros, na tarefa de produzir representações sobre a antiga colônia. A existência de um “Brasil mental” construído por portugueses teve como referenciais o nacionalismo e o colonialismo; veiculado em periódicos, esse discurso estabeleceu contraponto no diálogo entre a metrópole e as colônias remanescentes na África.

Analisando redes mercantis a partir de contratos e inventários Helen Osório desenvolve pesquisa minuciosa sobre a formação do “grupo mercantil” no Rio Grande de São Pedro, dada pela perspectiva de sua inserção na América Portuguesa. Sua leitura atenta de amplo corpus documental resulta na construção temática de um Brasil pouco estudado, em suas relações, por vezes conflituosas, com a elite comercial hegemônica do Rio de Janeiro e com a metrópole.

Dois artigos ampliam o leque das interpretações sobre o Brasil, ao abordarem o campo artístico. O texto de Eduardo Morettin elabora uma interpretação historiográfica do tema do descobrimento cruzando diversos tipos de fontes e de perspectivas analíticas, a historiografia do século XIX, o cinema, as artes plásticas e, completando o circuito, os livros didáticos. A interpretação da produção e circulação da temática inova ao cotejar elementos que permitiram a construção de um quadro de referências no qual a nação brasileira constitui presença obrigatória. Marcos Napolitano e Maria Clara Wasserman dão continuidade aos estudos historiográficos do campo artístico ao analisar metodologicamente as discussões em torno das origens da música popular brasileira. Neste Brasil feito de experiências e de obras musicais, Brasil e samba são sinônimos? Este e outros mitos são desconstruídos ao longo do estudo que tece um quadro polifônico de sons e idéias. O artigo de Luís Felipe Miguel completa o dossiê ao desvendar o Brasil da mídia, produzido pela moderna indústria de comunicação de massas, a qual teve nas últimas décadas impacto decisivo na história política.

Integrado aos estudos das relações entre história e música, José Geraldo Vinci de Moraes abre a seção de artigos ao sistematizar reflexões acerca da avaliação teórico-metodológica da canção popular em termos historiográficos. Indica a necessidade de superação da tradicional história da música por uma abordagem interdisciplinar especialmente promissora ao permitir análises integradas de manifestações musicais em movimentos sociais, abrindo possibilidades de releituras da música / canção popular numa perspectiva de circularidade fornecida pela história cultural. No mesmo sentido de abertura da história às manifestações artísticas e literárias, o artigo de Antônio Paulo Rezende analisa a obra de Octávio Paz. O Labirinto da solidão desafia a historiografia a compreender a história como dimensão poética que confronta o antigo e o moderno em sua leitura do mundo.

Finalmente, o artigo de Olga Brites analisa representações sobre a infância e a família construídas pela propaganda durante as décadas de 1930-1950, caracterizando seus vínculos com as questões referentes a higiene e saúde. A análise de anúncios veiculados sobretudo em periódicos fundamenta a abordagem do discurso publicitário, dos valores que foram por ele expressos e de suas propostas de sociedade, seu papel decisivo para a formação de hábitos e a configuração de um imaginário social.


Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.20, n.39, 2000. Acessar publicação original [DR]

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Identidades – Alteridades / Revista Brasileira de História / 1999

Configurações identitárias abordadas em diversas perspectivas temáticas e metodológicas estão presentes nos artigos reunidos no dossiê Identidades / Alteridades, o qual, ao abrir este número da Revista Brasileira de História, traz aos leitores o primeiro resultado da atual gestão. Espaços e temporalidades diversos contribuem para tornar mais abrangente a configuração do conjunto de trabalhos que partilham reflexões voltadas para estudos de cultura, família e política.

A complexidade das relações entre cultura e identidade constitui a problemática dos artigos de Jaime Rodrigues, Paulo Koguruma e Maria Inês Machado Borges Pinto. O artigo de Jaime Rodrigues tem como eixo as relações sociais estabelecidas a bordo de navios negreiros destinados ao Brasil, nos séculos XVIII e XIX, evidenciando a constituição de identidades sociais a partir de elementos integrantes da chamada cultura marítima, aos quais agrega com destaque elementos constitutivos de hierarquias, disciplinas e rituais vigentes nas embarcações. Trata-se de uma abordagem de práticas e representações direcionadas para a garantia da sobrevivência no duro cotidiano do mar a que estavam sujeitos tanto a tripulação quanto os escravos submetidos a condições desumanas de vida, apoiada em diários de bordo, relatos de viajantes, processos de apreensão de embarcações negreiras e dicionários portugueses de marinharia.

Processos identitários urbanos constituem o objeto do artigo de Paulo Koguruma, construído a partir de narrativas de memorialistas, cronistas e viajantes sobre São Paulo nos anos finais do século XIX e início do XX. Diferentes ritmos sociais configuram especificidades da urbanização que resultou na construção de identidades plurais. As tensões entre formas complexas de sociabilidade foram abordadas de modo a colocar em evidência o cosmopolitismo no espaço urbano.

Maria Inês Machado Borges Pinto, por sua vez, retoma o tema no artigo que aborda a constituição de papéis femininos produzidos pela cultura de massas. Tendo como referencial o cinema, analisa representações da mulher referidas à modernidade em seus apelos de consumo e aparência, bem como à adoção de novos valores e atitudes.Seu oposto, a identidade feminina constituída a partir de referências ao lar, ao espaço da vida doméstica, adquire significado como objeto de contestação pelas películas veiculadoras de um novo discurso normativo.

O objetivo de pensar identidades no âmbito das relações de família aproxima os artigos de Maria Adenir Peraro e André Ricardo Pereira, possibilitando a compreensão de múltiplas redes de relações, representações, práticas a apropriações. Maria Adenir Peraro elege as relações de família para abordar o estatuto dos filhos ilegítimos em Cuiabá no século XIX; a organização de famílias alternativas ao modelo tradicional inspira reflexões acerca da universalidade da família patriarcal e seus desdobramentos em torno da questão da legitimidade, em suas especificidades referentes a Mato Grosso, numa análise que busca superar abordagens homogeneizadoras do social.

André Ricardo Pereira empreende, em estudo sobre a criança no Estado Novo, uma abordagem de processos identitários, ressaltando o político enquanto fator fundamental, tanto para a delimitação da infância, quanto para práticas e representações a ela relacionadas. Nesse intuito, analisa políticas de amparo à infância empreendidas pelo Departamento Nacional da Criança, ressaltando seu caráter assistencialista e seu fundamento manipulador de metáfora dualista excludente. O discurso médico que legitimou a ação governamental e as razões do pensamento autoritário são cotejados em análise minuciosa do programa de proteção materno-infantil.

A temática da história política presente nos artigos de Cássia Chrispiniano Adduci, Christian Laville e Fernando Kolleritz permite a compreensão de perspectivas múltiplas.Na temporalidade das últimas décadas do século XIX, Cássia Chrispiniano Adduci realizou um estudo historiográfico sobre dimensões do separatismo paulista, notadamente suas ligações com o republicanismo e as concepções escravistas, ressaltando assim dois eixos de fundamental importância na construção de suas peculiaridaes.

Christian Laville apresenta uma análise de questões referentes ao ensino de história. Seu referencial são as práticas escolares em diversas sociedades,em especial Estados Unidos e Canadá, tendo como base as relações entre a narrativa ensinada e projetos políticos centrados na constituição da nação como tarefa do Estado. Experiências diversas partilham o propósito de instrumentalização do ensino da história para a configuração de identidades.

O artigo de Fernando Kolleritz encerra o dossiê e coloca em discussão processos identitários forjados no interior de práticas políticas afeitas ao campo do socialismo, notadamente ao stalinismo. A análise de três autobiografias de intelectuais franceses situa face a face a identidade comunista e sua negativa, num confronto partilhado de atendimento a necessidades próprias do campo da subjetividade. Recoloca em cena, portanto, a cultura e as sociedades comunistas a partir da abordagem de um projeto de construção de um homem novo, em seus aspectos afetivo, moral e cognitivo, tratados em perspectiva da dialética indivíduo-sociedade na qual o cotidiano constitui aspecto decisivo.

A seção de artigos abre-se com o trabalho de Antonio V. P. Morás. Referido aos estudos de cultura, o artigo analisa a permanência de mitos celtas no folclore medieval, bem como a assimilação de seus temas e motivos pela cultura clerical a partir do século XII. As representações de mulheres como fadas e o universo feérico são por ele rastreados na literatura medieval, numa análise que aborda complexos míticos relacionados aos seus significados no mundo céltico, bem como as transformações neles operadas desde seu contato com a cultura clerical. Decodificações de significados são assim evidenciados em termos de permanência e atualização, relacionadas às condições sociais presentes numa dada produção cultural.

Política e educação às vésperas da República constituem o tema do artigo de Carlota Boto em sua análise da instrução pública como instrumento para a constituição da cidadania. A partir do pensamento pedagógico de Rui Barbosa, aborda o ideário liberal no âmbito da transição do Império à República, problematizando a emergência de uma preocupação democrática que não consegue mascarar o temor do voto popular, antes procura domesticá-lo mediante sustentação pedagógica. Ressalta o binômio democracia-educação presente nos debates políticos acerca do povo tutelado e da validade de escrutínios políticos.

A fotografia como documento para a escrita da história é valorizada por André Amaral de Toral, que realiza extensa cobertura de registros fotográficos da Guerra do Paraguai. A linguagem fotográfica e sua utilização específica no contexto da guerra são abordadas neste trabalho no sentido de evidenciar as cartes-de-visite que retratavam militares e cenas da frente de batalha. Além de analisar aspectos da composição fotográfica enquanto linguagem de comunicação, o autor ressalta o olhar dos fotógrafos sobre o conflito, humanizando o inimigo, registrando a crueldade e a carnificina. Valoriza assim o caráter de denúncia desses documentos e a sua eficácia em questionar os nacionalismos em luta.


Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.19, n.38, 1999. Acessar publicação original [DR]

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Infância e Adolescência / Revista Brasileira de História / 1999

Infância e Adolescência é o tema do dossiê deste número da Revista Brasileira de História. A relevância e oportunidade da discussão não requer malabarismos teóricos, ela é evidente num país onde quase oito milhões de crianças perambulam pelas ruas. Miséria, abusos, violência, drogas, prostituição, roubo, crime, medo da morte são os ingredientes que compõem o cotidiano dessas crianças, que possuem pouca ou nenhuma perspectiva de futuro. Cenas de chacinas, perseguição policial, espancamentos ou que evidenciam abandono, descaso, delinqüência infanto-juvenil e exploração sexual transformaram-se em imagens que caracterizam o Brasil e, âmbito internacional.

Nesse sentido o artigo de Bengt Sandin, que analisa o lugar da criança na sociedade sueca, poderia parecer, num primeiro momento, muito distante da realidade local. Contudo, ao evidenciar os novos significados que a noção de infância adquiriu no decorrer do século XX, o autor fornece um balanço amplo e de longo alcance, que extrapola fronteiras nacionais e aponta para a emergência e consolidação de um modelo de infância planejada e racional, que acabou por substituir os ideais românticos herdados do século XIX. O leitor indagará a respeito dos limites e paradoxos desses modelos na sociedade brasileira.

O abandono está no centro das preocupações de Judite Trindade, que insere o problema em ampla perspectiva espaço-temporal. O diálogo com a experiência européia, sobretudo francesa, colabora para precisar os pontos em comum e as especificidades brasileiras ao longo de mais de três séculos. As diferentes condutas em face da infância abandonada permitem discernir mudanças no discurso e nas práticas médicas, legislativas, educacionais e assistenciais em relação às crianças que, no limiar do século XX, passam a ser encaradas como seres que necessitam ser protegidos e salvos de perigos que podem comprometer seu futuro.

A escola, que Judite já indicara como um componente essencial das novas preocupações que cercavam a infância, é o tema do artigo de Alessandra Schueler. Perscrutando projetos, debates, reformas e políticas públicas da segunda metade do século XIX, a autora evidencia que o princípio da obrigatoriedade do ensino primário às crianças e jovens foi constantemente reiterado. Esclarece as motivações e expectativas que envolviam as propostas educacionais então em pauta, articulando-as com as preocupações do tempo: o fim do trabalho escravo e a necessidade de formar cidadãos morigerados, úteis à nação e portadores de um saber técnico; a tentativa de controlar a criminalidade, a delinqüência e a desordem social por meio da retirada das crianças e adolescentes das ruas e becos das cidades; o combate à ignorância e ao analfabetismo, que se fazia acompanhar pela difusão de determinados comportamentos e valores morais.

Nas discussões em torno da infância, a rua e os seus perigos constitui-se um tema recorrente. A imagem de crianças ociosas, vagando sem a supervisão de adultos, é freqüentemente mobilizada para legitimar intervenções e medidas do poder público. Valendo-se da literatura, de relatórios policiais, dos discursos de homens públicos e empresários, da grande imprensa, dos jornais operários e de imigrantes, Esmeralda Blanco descortina os múltiplos significados que a rua assumia na São Paulo do início do século XX: espaço de lazer operário e de sociabilidade para os habitantes das classes pobres; mas também o lugar do ócio, crimes, delinqüência, vícios, prostituição, enfim dos comportamentos desviantes e socialmente inaceitáveis.

As crianças, adultos em formação, como nos ensina a autora, deveriam não apenas ser retirados das ruas mas também educadas, corrigidas e disciplinadas. Porém, o mundo do trabalho, no qual estavam depositadas as esperanças regeneradoras, pouco se coadunava com a construção idílica e sacralizada de infância, como atesta a ferrenha exploração a que estavam submetidos os meninos e meninas que vivenciavam o cotidiano das fábricas.

A preocupação com o futuro da nação sempre permeou o discurso em torno da questão da infância. A comemoração do Centenário da Independência em 1922 colocou na ordem do dia o debate em torno da identidade nacional, da modernização e do lugar do país no cenário internacional. James Wadsworth evidencia como a infância ocupou lugar dos mais importantes nesta discussão. Apoiado em ampla pesquisa, o autor analisa os modelos de assistência à infância idealizados pelo médico Arthur Moncorvo Filho, suas inúmeras atividades e propostas em relação aos cuidados que deveriam ser dispensados às mães e às crianças. Discute, ainda, as motivações sociais, econômicas e ideológicas subjacentes ao discurso das elites brasileiras e às concepções que resultaram, em 1927, no Código de Menores.

Antes deste Código, crianças e adolescentes em situação de conflito com a Lei estiveram sujeitas aos Códigos Criminal do Império, Penal e Civil. Escandindo normas e prescrições legais, Ailton José Morelli discute a questão da imputabilidade penal, evidenciando a distância entre as determinações e as práticas efetivas, o que permite colocar em outros termos a decantada impunidade dos “menores”, fossem eles infratores ou abandonados.

Fecha o dossiê o artigo de Marina Ertzogue, que adentra o cotidiano dos estabelecimentos disciplinares do Serviço Social de Menores do Rio Grande do Sul entre 1945-1964 para flagrar punições e castigos preconizados em regulamentos, manuais, leis e textos pedagógicos. Descortina-se um amplo panorama das estratégias de “recuperação” das crianças e jovens sob custódia do poder público.

Mary Del Priore abre a seção de artigos. O leitor é convidado a percorrer o imaginário em torno do corpo feminino e as formas de sua descrição e apreensão tanto pela filosofia cristã quanto pelo saber médico dos séculos XVII e XVIII. Especulações em torno da fisiologia feminina consubstanciaram-se numa construção que estigmatizava a mulher, considerada um ser social e moralmente inferior.

A exclusão e o estigma também estão presentes no texto de Sandra Pesavento. A personagem, porém, é outra. Por meio de memórias, romances, crônicas e jornais dos anos 1880 a 1920, a autora distingue os contornos de uma outra Porto Alegre: a da cidade condenada e amaldiçoada que se deseja normatizar. O registro lingüístico permite-lhe rastrear a carga simbólica e os significados pejorativos e discriminatórios atribuídos a espaços, estabelecimentos e moradias. Delineia-se, então, uma cartografia de práticas, sociabilidades e comportamentos marginais ou desviantes em relação a um ideal que se desejava implantar.

Interpretações dissonantes a respeito do Brasil são analisadas nos artigos de Eliana Dutra e José Carlos Reis. No primeiro, a autora foca sua atenção em Plínio Salgado com o intuito de esclarecer o quadro referencial e as matrizes subjacentes às suas concepções de nação, povo, identidade e brasilidade. Dutra estabelece, de forma nítida, o débito de Plínio, assim como de Cassiano Ricardo, Ronald de Carvalho, Tristão de Ataíde, Tasso Silvieira e Vicente Licínio Cardoso, para com o romantismo de viés conservador. Reis, a seu turno, elege A Revolução Brasileira (1966), de Caio Prado Júnior, como tema. As polêmicas, oposições e reações que a interpretação suscitou são reconstituídas pelo autor, que insere a obra no contexto do impacto da derrota sofrida pelas esquerdas na década de 1960.

Os efeitos do regime que se instaura em 1964 são apontados por Antonio de Almeida, que se volta para o ABC paulista e pontua as dificuldades e adversidades enfrentadas pela liderança sindical a partir do golpe militar. A emergência, em meados da década de 1970, de movimentos de contestação à ordem deu-se, como evidencia o autor, a partir da ampla participação das bases, o que acabou por redimensionar a prática política anterior, calcada na cúpula dirigente. A experiência do novo sindicalismo desembocou na fundação do PT e da CUT.

O Conselho Editorial manifesta seus agradecimentos à Professora Esmeralda Blanco Bolsonaro de Moura, que colaborou decisivamente para a concretização do dossiê Infância e Adolescência; ao CNPq; à ANPUH Nacional e aos núcleos de Minas Gerais, Paraná e Rio Grande do Sul, que viabilizaram os recursos financeiros para a publicação deste número.

Deixamos aqui registrada a profunda consternação pela perda da Profª Drª Ilana Blaj, reconhecida historiadora, docente do Departamento de História da USP, membro do Conselho Editorial da RBH e nossa estimada colega. A ela este número é dedicado.

Conselho Editorial


Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.19, n.37, set., 1999. Acessar publicação original [DR]

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Do Império de Portugal ao Império do Brasil / Revista Brasileira de História / 1998

Revista Brasileira de História oferece aos seus leitores dois dossiês neste número. O primeiro, proposto pelo Conselho Editorial, centra-se no ensino de história. Justamente no momento em que os profissionais da área defrontam-se com parâmetros e diretrizes que trazem no seu bojo propostas de redefinição dos conteúdos, objetivos e métodos; e com uma realidade que obriga a repensar as noções de tempo, espaço e memória, a reflexão a respeito do saber e do fazer histórico assumem caráter de urgência.

Os três artigos iniciais articulam-se em torno do tema currículo. Maria Stephanou discute a noção de conteúdo curricular e analisa os currículos oficiais da disciplina. Evidencia que, longe de se tratar de uma questão técnica ou formal, o discurso curricular não apenas elege alguns objetos e exclui outros, mas também envolve a produção de sensibilidades, formas de compreender e interpretar, constituindo-se em importante instrumento no processo de formação da consciência social. Maria Martins e Claudia Ricci, voltam-se para uma experiência concreta: a mudança curricular paulista iniciada na década de 1980. As polêmicas que envolveram a proposta de história e os conflitos no interior da CENP são discutidos por Martins, que se vale de depoimentos orais daqueles que estiveram diretamente envolvidos na elaboração da reforma. Já Ricci dirige sua atenção para os professores, perscrutando nas suas falas os sentimentos, desejos, esperanças, necessidades e expectativas que possuíam em relação às mudanças em curso.

Com Ernesta Zamboni, alcançamos o próprio espaço da sala de aula. Os materiais didáticos disponíveis para serem utilizados com os alunos na produção do conhecimento histórico – filme, vídeos educativos, fotografias, gravuras, pinturas, contos infantis, documentos, livros paradidáticos – são analisados pela autora, que alerta para a especificidade da linguagem de cada um deles.

A importância estratégica atribuída ao ensino de história é evidenciada nos textos de Katia Abud, Luis Fernando Cerri, Maria das Graças Almeida e Newton Dângelo, que se atêm sobretudo à Era Vargas. Os programas da disciplina e os manuais escolares do período atestam, de acordo com Abud, uma concepção pragmática que pretendia difundir o sentimento nacional brasileiro, alicerçado na irmandade de raça, língua e religião. Entretanto, a construção de uma história nacional envolve uma complexa dinâmica, como bem lembra Cerri, que discute os embates em torno da incorporação – ou não – das versões regionais, tomando por mote o discurso da paulistanidade, que teve na escola um de seus meios privilegiados de difusão.

O projeto pedagógico pernambucano proposto durante o Estado Novo, seus princípios norteadores e a concepção de educação enquanto ferramenta para a regeneração do Estado e importante aliada contra o que se qualificava de desordem, são abordados por Almeida, que também chama a atenção para as exonerações e aposentadorias forçadas, estratégias utilizadas para silenciar vozes dissonantes. No âmbito das iniciativas que perseguiam a regeneração nacional, estava a radiodifusão educativa, tema de Dângelo. O autor revisita projetos, relatórios, publicações e alguns programas da época, que objetivavam consagrar uma memória histórica oficial.

O segundo dossiê, Do Império do Brasil ao Império de Portugal, foi organizado com base nas contribuições enviadas ao Conselho Editorial. Um conjunto significativo de texto abordava as redes de poder e pertencimento que vinculavam a metrópole portuguesa e sua colônia na América. A semelhança temática permitiu enfeixá-los num todo articulado. O artigo de Russell-Wood discute, a partir de uma ampla perspectiva cronológica, a noção de centro-periferia, enfatizando estas redes de poder e seus significados, as negociações e tensões envolvidas, esmiuçando como a metrópole se enraizava no além-mar, e alertando para as contrapartidas.

Os trabalhos de Maria Fernanda Bicalho, Maria de Fátima Gouvêa e Iara Lis Carvalho e Souza analisam a atuação da Câmara, principalmente seu sentido político. O papel da Câmara do Rio de Janeiro durante os setecentos, época em que a região assume a hegemonia política no centro-sul do Brasil, é tratada por Bicalho, que relaciona a prática desta instituição aos conceitos políticos que sustentavam o Império Português. Gouvêa empreende um breve e necessário balanço historiográfico, atentando para a composição social do Senado da Câmara do Rio de Janeiro em fins do século XVIII e início do seguinte, estudando a formação desta elite. Carvalho e Souza, por sua vez, flagra a desmontagem desta arquitetura de poder. Concentrando-se na atuação das Câmaras no início de 1820, a autora esclarece a forma pela qual estas acabam por estabelecer um pacto social com D. Pedro, que nelas fundava sua real soberania.

Ilana Blaj, ao concentrar sua atenção na São Paulo colonial, lança luz a respeito da formação de uma elite local, suas relações familiares, modos de enriquecimento. Sob este aspecto, seu texto encontra parentesco com as contribuição de Marcus de Carvalho, que aborda a história das lutas em Pernambuco, a conformação das elites locais, as descensões familiares que vão definindo uma dada noção de independência.

O último artigo do dossiê, de Maria de Lourdes Lyra, detêm-se nos escritos de Frei Caneca e aponta para um problema novo e radical no Brasil do início dos oitocentos, isto é: de que maneira se concebe a pátria, como vem enviesada pela idéia de nação, como vai ganhando força e sentido políticos.

Ao longo dos anos, a Revista Brasileira de História ganhou projeção nacional, tendo publicado artigos que enriquecem nossa cultura historiográfica, alargam os horizontes desta produção, contribuem para redefinir seus sentidos. Se, por um lado, este fato expressa tanto a vitalidade da pesquisa histórica brasileira quanto o reconhecimento da RBH na comunidade científica; por outro, a grande quantidade de artigos que a revista tem recebido ocasionou um desmesurado aumento no número de páginas, colocando um novo desafio para o Conselho Editorial, ainda mais agravado pela diminuição das verbas provenientes das agências financiadoras.

O Conselho manifesta seus agradecimentos à artista plástica Regina Silveira, que permitiu a reprodução de sua obra na nossa capa; à ANPUH Nacional, Núcleo Regional de Minas Gerais e FAPESP, que viabilizaram os recursos financeiros para a publicação deste número. A edição também contou com a decisiva colaboração do Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa em História da Educação Instituto Franciscano de Antropologia da Universidade São Francisco.

Conselho Editorial.


Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.18, n.36, 1998. Acessar publicação original [DR]

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Arte e Linguagens / Revista Brasileira de História / 1998

O Dossiê que se apresenta neste número da Revista Brasileira de História, Arte e Linguagens, abarca múltiplas temáticas e temporalidades. No artigo de abertura, Arnaldo Contier discute, tendo por base a produção de Carlos Lyra e Edu Lobo, o projeto nacional-popular gestado na década de 1960; em seguida, Marcos Napolitano e Mariana Vilaça analisam o significado estético, social e histórico do tropicalismo e suas interfaces com a indústria cultural.

Com Tereza Aline, entram em cena as peças de Ariano Suassuna, Auto da Compadecida, e de Enrique Buenaventura, La Diestra de Dios Padre. Atentando para a ambientação, tipos, temas, microcosmo social e construção formal, o artigo discute a apropriação e a recriação da herança medieval ibérica no continente americano.

A especificidade da linguagem cinematográfica, por sua vez, é posta em evidência pela análise de uma seqüência de Os Bandeirantes (1940), filme de Humberto Mauro que produziu, segundo Eduardo Morettin, significados e sentidos nem sempre compatíveis com a expectativa de Taunay e Roquette Pinto, seus idealizadores.

Nos textos de Ricardo Marques e Sérgio Norte, a cidade é o personagem central. Com perspectivas bastante diversas, a resistência aos mecanismos de controle e condicionamento é tematizada: a Paris do século XIX versus os planejadores urbanos; a São Paulo do início deste século na percepção poética libertária.

Cândido Grangeiro conduz o leitor aos manuais de fotografias do século passado, atentando para a teia de relações que se estabeleciam entre o fotógrafo e os desejos, sonhos e fantasias do cliente, realçando os aspectos técnicos, estéticos e estilísticos que envolviam a produção de um retrato.

Do século XIX voltamos para a Florença renascentista e a poesia de Michelangelo. O processo criativo e as opiniões do mestre a respeito da hierarquia entre escultura, pintura e literatura são discutidos por Luciano Migliaccio, que ressalta o papel de Benedetto Varchi no processo de cristalização de uma determinada leitura desta lírica.

Annatereza Fabris fecha o dossiê com um texto que aborda a problemática da visualidade nas sociedades contemporâneas, tomada como uma nova escritura, alertando para o fato dos diferentes sistemas de produção de imagens remeterem a discursos peculiares que não se circunscrevem a aspectos meramente técnicos.

A diversidade presente na Seção Artigos não é menor. Bárbara Weinstein discute a recente produção norte-americana a respeito das questões de gênero, destacando os embates teóricos que a tem caracterizado; José Batista Mazieiro volta sua atenção para as representações construídas em torno da prostituição na cidade de São Paulo entre 1870 e 1920.

As relações entre técnica, trabalho e natureza na sociedade brasileira a partir da segunda metade do XIX, a supremacia das artes liberais sobre as mecânicas, a permanência de uma cultura literária e os (des), caminhos da cultura técnica no país são abordados por Hermetes Araújo. O seu artigo permite estabelecer um contraponto com o texto de Cláudio DeNipote que acompanha, por meio dos hábitos de leitura de dois intelectuais da década de 1910, a formação típica do homem de letras no Brasil

As questões que envolvem a posse da terra estão presentes nos textos de Vania Lousada, que estuda os projetos nacionalistas e de reforma agrária dos anos 50, e nas histórias de vida de ocupantes de terra na cidade de São Paulo, analisadas por João Carlos de Souza.

Os dilemas políticos atuais são o mote para Alexandre Hecker discutir a tradição democrática do socialismo brasileiro, por ele identificada ao Partido Socialista.

O presente número da Revista Brasileira de História fornece ao leitor um instantâneo significativo da produção historiográfica atual, em sua vitalidade e variedade de temas e abordagens.

Os recursos financeiros que viabilizaram a publicação foram disponibilizados pelo CNPq, ANPUH-Nacional e os núcleos de São Paulo e Santa Catarina.

Conselho Editorial


Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.18, n.35, 1998. Acessar publicação original [DR]

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Ensino de História: Novos Problemas / Revista Brasileira de História / 1998

Revista Brasileira de História oferece aos seus leitores dois dossiês neste número. O primeiro, proposto pelo Conselho Editorial, centra-se no ensino de história. Justamente no momento em que os profissionais da área defrontam-se com parâmetros e diretrizes que trazem no seu bojo propostas de redefinição dos conteúdos, objetivos e métodos; e com uma realidade que obriga a repensar as noções de tempo, espaço e memória, a reflexão a respeito do saber e do fazer histórico assumem caráter de urgência.

Os três artigos iniciais articulam-se em torno do tema currículo. Maria Stephanou discute a noção de conteúdo curricular e analisa os currículos oficiais da disciplina. Evidencia que, longe de se tratar de uma questão técnica ou formal, o discurso curricular não apenas elege alguns objetos e exclui outros, mas também envolve a produção de sensibilidades, formas de compreender e interpretar, constituindo-se em importante instrumento no processo de formação da consciência social. Maria Martins e Claudia Ricci, voltam-se para uma experiência concreta: a mudança curricular paulista iniciada na década de 1980. As polêmicas que envolveram a proposta de história e os conflitos no interior da CENP são discutidos por Martins, que se vale de depoimentos orais daqueles que estiveram diretamente envolvidos na elaboração da reforma. Já Ricci dirige sua atenção para os professores, perscrutando nas suas falas os sentimentos, desejos, esperanças, necessidades e expectativas que possuíam em relação às mudanças em curso.

Com Ernesta Zamboni, alcançamos o próprio espaço da sala de aula. Os materiais didáticos disponíveis para serem utilizados com os alunos na produção do conhecimento histórico – filme, vídeos educativos, fotografias, gravuras, pinturas, contos infantis, documentos, livros paradidáticos – são analisados pela autora, que alerta para a especificidade da linguagem de cada um deles.

A importância estratégica atribuída ao ensino de história é evidenciada nos textos de Katia Abud, Luis Fernando Cerri, Maria das Graças Almeida e Newton Dângelo, que se atêm sobretudo à Era Vargas. Os programas da disciplina e os manuais escolares do período atestam, de acordo com Abud, uma concepção pragmática que pretendia difundir o sentimento nacional brasileiro, alicerçado na irmandade de raça, língua e religião. Entretanto, a construção de uma história nacional envolve uma complexa dinâmica, como bem lembra Cerri, que discute os embates em torno da incorporação – ou não – das versões regionais, tomando por mote o discurso da paulistanidade, que teve na escola um de seus meios privilegiados de difusão.

O projeto pedagógico pernambucano proposto durante o Estado Novo, seus princípios norteadores e a concepção de educação enquanto ferramenta para a regeneração do Estado e importante aliada contra o que se qualificava de desordem, são abordados por Almeida, que também chama a atenção para as exonerações e aposentadorias forçadas, estratégias utilizadas para silenciar vozes dissonantes. No âmbito das iniciativas que perseguiam a regeneração nacional, estava a radiodifusão educativa, tema de Dângelo. O autor revisita projetos, relatórios, publicações e alguns programas da época, que objetivavam consagrar uma memória histórica oficial.

O segundo dossiê, Do Império do Brasil ao Império de Portugal, foi organizado com base nas contribuições enviadas ao Conselho Editorial. Um conjunto significativo de texto abordava as redes de poder e pertencimento que vinculavam a metrópole portuguesa e sua colônia na América. A semelhança temática permitiu enfeixá-los num todo articulado. O artigo de Russell-Wood discute, a partir de uma ampla perspectiva cronológica, a noção de centro-periferia, enfatizando estas redes de poder e seus significados, as negociações e tensões envolvidas, esmiuçando como a metrópole se enraizava no além-mar, e alertando para as contrapartidas.

Os trabalhos de Maria Fernanda Bicalho, Maria de Fátima Gouvêa e Iara Lis Carvalho e Souza analisam a atuação da Câmara, principalmente seu sentido político. O papel da Câmara do Rio de Janeiro durante os setecentos, época em que a região assume a hegemonia política no centro-sul do Brasil, é tratada por Bicalho, que relaciona a prática desta instituição aos conceitos políticos que sustentavam o Império Português. Gouvêa empreende um breve e necessário balanço historiográfico, atentando para a composição social do Senado da Câmara do Rio de Janeiro em fins do século XVIII e início do seguinte, estudando a formação desta elite. Carvalho e Souza, por sua vez, flagra a desmontagem desta arquitetura de poder. Concentrando-se na atuação das Câmaras no início de 1820, a autora esclarece a forma pela qual estas acabam por estabelecer um pacto social com D. Pedro, que nelas fundava sua real soberania.

Ilana Blaj, ao concentrar sua atenção na São Paulo colonial, lança luz a respeito da formação de uma elite local, suas relações familiares, modos de enriquecimento. Sob este aspecto, seu texto encontra parentesco com as contribuição de Marcus de Carvalho, que aborda a história das lutas em Pernambuco, a conformação das elites locais, as descensões familiares que vão definindo uma dada noção de independência.

O último artigo do dossiê, de Maria de Lourdes Lyra, detêm-se nos escritos de Frei Caneca e aponta para um problema novo e radical no Brasil do início dos oitocentos, isto é: de que maneira se concebe a pátria, como vem enviesada pela idéia de nação, como vai ganhando força e sentido políticos.

Ao longo dos anos, a Revista Brasileira de História ganhou projeção nacional, tendo publicado artigos que enriquecem nossa cultura historiográfica, alargam os horizontes desta produção, contribuem para redefinir seus sentidos. Se, por um lado, este fato expressa tanto a vitalidade da pesquisa histórica brasileira quanto o reconhecimento da RBH na comunidade científica; por outro, a grande quantidade de artigos que a revista tem recebido ocasionou um desmesurado aumento no número de páginas, colocando um novo desafio para o Conselho Editorial, ainda mais agravado pela diminuição das verbas provenientes das agências financiadoras.

O Conselho manifesta seus agradecimentos à artista plástica Regina Silveira, que permitiu a reprodução de sua obra na nossa capa; à ANPUH Nacional, Núcleo Regional de Minas Gerais e FAPESP, que viabilizaram os recursos financeiros para a publicação deste número. A edição também contou com a decisiva colaboração do Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa em História da Educação Instituto Franciscano de Antropologia da Universidade São Francisco.

Conselho Editorial.


Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.18, n.36, 1998. Acessar publicação original [DR]

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Travessias: Migrações / Revista Brasileira de História / 1997

O presente número da Revista Brasileira se História tem como Dossiê o tema Travessias: Migrações em que os importantes problemas da imigração e migração receberam um tratamento original e inovador por diversos autores.

A questão das motivações para a vinda e a permanência de tradições de luta operária dos imigrantes italianos no Rio Grande do Sul; o papel da família e da ética do trabalho como estratégia de sobrevivência e integração de italianos no Espírito Santo e alemães em Curitiba; a participação na cultura urbana em Buenos Aires, revelam novas tendências nas pesquisas sobre os imigrantes.

A fase anterior do levantamento e descrição das várias modalidades do trabalho imigrante, os núcleos coloniais de pequena propriedade, as diferenças étnicas permitem agora o desenvolvimento de novas vertentes de pesquisa. O que se privilegia hoje é o seu impacto na sociedade brasileira e sua contribuição global ao mesmo tempo que se estuda os efeitos da imigração sobre os padrões culturais de seus agentes.

Por outro lado, temos uma pesquisa que dá notícia dos primeiros migrantes nordestinos (cearenses) para a lavoura cafeeira paulista e que, a partir de 1920, viriam a substituir cada vez mais a corrente européia em declínio. Finalmente, a análise de uma entrevista com migrante sem terra de Brasilia tenta, no campo da história oral, esquadrinhar o universo do imaginário dos eternos andantes do mundo rural brasileiro tão bem retratados por Graciliano Ramos.

A secção Documentos tem a oportunidade de transcrever interessante testemunho de viajante francês anônimo que descreve a baía de Guanabara e o Rio de Janeiro sob o ponto de vista geográfico e de estratégia militar, acrescido de observações sobre os costumes brasileiros.

Os artigos estudam os carijós que os paulistas levaram para Minas Gerais; as festas religiosas e seus choques com o ultramontanismo do clero; o papel do informante na estrutura repressiva policial da ditadura militar e a política da Frente Popular no Chile.

O Conselho Editorial agradece a cortesia do Museu Lasar Segall em ceder o direito de reprodução do quadro Navio de Emigrantes de seu acervo para a capa deste número.

Queremos ainda agradecer a atual administração da Anpuh que, cumprido compromisso assumido no Simpósio de julho de 1997 avocou a responsabilidade financeira e gráfica da publicação deste número 34.


Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.17, n.34, 1997. Acessar publicação original [DR]

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Memória, história, historiografia: ensino de história / Revista Brasileira de História / 1992-1993

[Memória, história, historiografia: ensino de história]. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.13, n.25-26, set 1992 / ago., 1993. Acessar dossiê [DR]

 

História em quadro-negro: escola, ensino e aprendizagem / Revista Brasileira de História / 1989-1990

SILVA, Marcos A. da. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.10, n.19, set. 1989 / fev., 1990. Acesso apenas pelo link original [DR]

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Cultura e cidades / Revista Brasileira de História / 1984-1985

DECCA, Edgar Salvadori de; ARRUDA, José Jobson de Andrade. Editorial. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.5, n.8-9, set. 1984 / abr., 1985. Acesso apenas pelo link original [DR]

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História | ANPUH-BR | 1981

Revista Brasileira de Historia ANPUH

Revista Brasileira de História (São Paulo, 1981-) é o órgão oficial da Associação Nacional de História – ANPUH, publicada quadrimestralmente.

A ANPUH é uma associação científica fundada em 1961, que congrega professores e pesquisadores de História e tem por objetivos o aperfeiçoamento do ensino de História em seus diversos níveis; bem como o estudo, a pesquisa e a divulgação de assuntos de História e a defesa das fontes e manifestações culturais de interesse dos estudos históricos.

A ANPUH promove o intercâmbio de idéias entre seus associados, através da manutenção de publicações periódicas e da realização de simpósios nacionais, de encontros estaduais, de cursos de extensão e de outros eventos de interesse da área.

Podem ser associados da ANPUH: os graduados em História; os pós-graduados em História ou em cursos que tenham área de concentração em História e as pessoas que publicaram trabalhos em quaisquer ramos da História, desde que recomendados por um Núcleo e referendados pela Diretoria Nacional.

Periodicidade semestral.

Acesso livre.

ISSN 0102-0188 (Impressa)

ISSN 1806-9347 (Online)

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