Mulheres intelectuais: práticas culturais de mediação | Estudos Ibero-Americanos | 2021

Em tempos de pandemia, organizar um dossiê sobre as práticas culturais de mediação, especificamente sobre o lugar e o papel das mulheres intelectuais, obrigou-nos a refletir sobre nossas próprias práticas mediadoras, como professoras e pesquisadoras. Lendo os artigos enviados, pensando em pareceristas e lendo os pareceres, quer dizer, atuando como editoras (uma prática de mediação cultural), íamos nos dando conta das temáticas, períodos e possibilidades de ação das mulheres, quando se dedicavam à mediação cultural. Nessa atividade editorial, fomos também nos apercebendo do nosso papel como intelectuais mediadoras. Por isso, iremos começar essa apresentação, usando o nosso próprio exemplo de mulheres professoras universitárias para pensar a categoria de intelectual mediador(a). Isso porque, se tal categoria é bastante operacional, não deve ser banalizada, correndo o risco de perder seu valor cognitivo.

Desde que o isolamento social se fez necessário, fomos desafiadas a, não só transformar nossas práticas de ensino, que de uma sala de aula “real” foi para uma sala “virtual” de mídia eletrônica; como também, nossas práticas de divulgação do conhecimento, que passaram a se voltar para públicos mais amplos e diferenciados, além do público de pares e estudantes costumeiro. Foi necessário reinventar formas de continuar ministrando aulas, de realizar e publicizar pesquisas, mas nos acostumando – não sem dificuldades – com tipos de comunicação a distância e com novos públicos. Assim, muitos de nós experimentamos, pela primeira vez, os procedimentos da produção de vídeos, podcasts, aulas abertas e entrevistas, disponibilizadas em plataformas digitais, que além de alcançar nossos alunos e pares, ultrapassam em muito o mundo acadêmico. Leia Mais

Imprensa e mediadores culturais: ciência, história e literatura / Varia História / 2018

Este dossiê é resultado do trabalho de um grupo de pesquisadores que tem se abrigado sob um título amplo o suficiente, mas também claro o suficiente, para o recorte de seu objeto: “Imprensa e mediadores culturais: ciência, história e literatura”. Composto basicamente por historiadores que trabalham com história da imprensa, história da historiografia, história dos intelectuais, história do livro e da leitura e história das ciências, o grupo é também integrado por estudiosos da literatura e das ciências sociais.

Há alguns anos, membros do grupo vêm se debruçando sobre uma questão chave da área de investigações denominada história dos intelectuais, em cuja abordagem os intelectuais estão sempre imersos em redes de sociabilidade que os situam, inspiram, demarcam e deslocam através do tempo / espaço. Uma das contribuições importantes dessa abordagem é a maneira como se define (ainda que de forma fluida) a figura do intelectual. Entendido como um sujeito histórico que se envolve na produção cultural de bens simbólicos, sendo reconhecido por sua comunidade de pares, o intelectual, em uma acepção mais ampla, também é aquele que se volta para práticas culturais de difusão e transmissão, ou seja, que faz “circular” os produtos culturais em grupos sociais mais amplos e não especializados, razão pela qual pode ser identificado, entre outras possibilidades, como vulgarizador ou divulgador. As dificuldades, mas também as potencialidades de se investir em pesquisas para explorar a categoria de intelectuais e de intelectuais mediadores fizeram com que a maioria dos autores desse dossiê tenha participado do projeto de um livro, intitulado, Intelectuais mediadores: práticas culturais e projetos políticos, organizado por Angela de Castro Gomes e Patrícia Hansen.[1]

A possibilidade do grupo – naturalmente reconfigurado, mas sempre aberto – continuar e avançar na investigação sobre a questão das práticas culturais de mediação e dos perfis dos intelectuais mediadores se renovou e ganhou força com o convite para participar de um projeto maior, “Imprensa e circulação de ideias: o papel dos periódicos nos séculos XIX e XX”, coordenado por Isabel Lustosa (FCRB) e Tânia de Luca (UNESP / Assis). Ora, o objetivo principal deste projeto era justamente aproximar pesquisadores que se dedicassem ao estudo da imprensa brasileira – jornais, revistas e almanaques – neste período de tempo, seja em âmbito local ou nacional, sem desconhecer sua necessária inserção no contexto internacional.

Como uma das orientações de nosso grupo era trabalhar teoricamente com uma gama de sujeitos históricos que atuava fortemente na imprensa escrita – embora não exclusivamente – realizando nela suas ações de mediação cultural no campo científico, artístico e político, integrar uma grande rede voltada para o estudo da imprensa adequava-se perfeitamente aos nossos objetivos. Isso significava aproximar esses intelectuais mediadores das atividades jornalísticas (inclusive, porque muitas vezes eles eram jornalistas), mas também demarcar o tipo de atuação que tinham na imprensa, pois, o que desejamos destacar é a atenção que davam a práticas culturais explicitamente voltadas à divulgação de ideias e conhecimentos para públicos variados. Até porque, para se trabalhar com o papel dos periódicos faz-se necessário um conjunto de atores entendido como muito diferenciado, já que se envolve diretamente tanto na feitura material dos impressos como na produção das ideias que eles propagam, o que exige uma grande preocupação com estratégias de promoção de seus títulos e de atração de públicos, segmentados ou não. Daí a importância da ação de editores, livreiros, escritores, jornalistas, tradutores, ilustradores, críticos literários e teatrais etc, muitos deles, embora não todos eles, podendo ser considerados intelectuais dedicados e até mesmo especializados em práticas de mediação cultural.

Se o interesse de fundo do projeto “Imprensa e circulação de ideias: o papel dos periódicos nos séculos XIX e XX” é detectar e acompanhar a circulação dos títulos, formatos, propostas gráficas, organização do material textual e imagético, e também dos conteúdos publicados; o objetivo específico do subprojeto “Imprensa e mediadores culturais: ciência, história e literatura” é trabalhar com a relação entre imprensa e intelectuais que estejam se dedicando à mediação cultural, situando, nessa dinâmica, o teor extremamente diversificado de seus temas, bem como as múltiplas formas assumidas por suas práticas (direta ou indiretamente ligadas aos periódicos), sempre entendidas em dupla dimensão: política e cultural.

Nesse sentido, a opção teórica realizada pelos artigos que compõem este dossiê é tratar esses intelectuais que estão atuando como mediadores culturais na imprensa, como sujeitos orientados por projetos individuais e coletivos que possuem dimensões políticas e socioculturais, e que sempre estão imersos em redes de sociabilidade diversas, fundamentais para a conformação de seu perfil de intelectual. Sendo assim, a figura dos mediadores culturais e suas formas de ação na imprensa se tornam o foco principal das reflexões dos pesquisadores que colaboram para o dossiê, aliando-se ainda ao enfrentamento de outra questão.

Nas pesquisas históricas recentes que contemplam a relação entre imprensa e mediadores culturais, destacam-se aquelas que apontam a centralidade dessa combinatória para se entender melhor os processos de fabricação e circulação de ideias, valores e conhecimentos no espaço e no tempo, na medida em que, por meio dela, é possível privilegiar seus múltiplos agentes e suas variadas formas de ação, que se beneficiam, crescentemente, do lugar estratégico do impresso no século XIX e XX. Dito de outra forma, o impresso funcionou, durante a maior parte desses séculos, como um vetor incontornável para qualquer projeto político-cultural de produção e divulgação de ideias e conhecimentos.

Por isso, a questão teórica da mediação cultural exige investigações que contemplem a imprensa escrita, lócus de debates e, sobretudo, da ação de divulgação para um público diversificado e não especializado. No caso deste dossiê, interessa atentar para processos e estratégias de divulgação que abarquem as artes (com ênfase para a literatura) e as ciências – quer as ciências da natureza quer as ciências sociais – com particular destaque para a história e, no caso do Brasil, para os chamados estudos brasileiros. Tal tratamento enfatiza a dimensão político-pedagógica dessas ações, ao menos para parte desses mediadores culturais que “militavam” na imprensa, acreditando na possibilidade e viabilidade de permitir a um público mais amplo acesso ao conhecimento científico e artístico, quando estampado de maneira acessível nas páginas dos periódicos. Uma proposta que guardava relações com uma “concepção democrática de ciência” então vigente. Isto é, da defesa do conhecimento “para todos” e / ou para públicos geralmente menos contemplados, como os trabalhadores, as crianças e, no limite, o “povo” de uma nação que desejasse ser moderna.

Os textos reunidos no dossiê foram apresentados, entre outros, no workshop de mesmo nome do subprojeto, “Imprensa e mediadores culturais: ciência, história e literatura”. Ele foi realizado na Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz, em 30 de outubro de 2017. Assim como na proposta do evento, o dossiê busca explorar algumas possibilidades de análise de práticas de mediação cultural na imprensa, a partir de dois caminhos que, embora possam ser tratados separadamente, acabam se interpelando por muitas vias: o de uma história da divulgação científica; e o de uma história dos intelectuais aliada à história da historiografia. Em um primeiro plano, dá-se destaque aos mediadores das ciências da natureza e da ciência histórica em suas diferentes estratégias de divulgação, cuja legitimação ou “popularização” pela imprensa, impôs determinadas hierarquizações frente aos saberes – academicamente constituídos. Nesse sentido, Kaori Kodama apresenta um estudo de caso sobre o intelectual Louis Figuier – um dos vulgarizadores das ciências mais reconhecidos da segunda metade do século XIX – cujo nome circulou na imprensa brasileira até ao menos a primeira metade do século seguinte. Por meio da trajetória de Figuier, que fez de sua atividade um meio de vida e de carreira, o texto conduz a reflexões sobre uma das questões centrais sinalizadas na historiografia sobre divulgação científica: a dupla posição / identidade dos vulgarizadores desse período, que são vulgarizadores e também autoridades que falam em nome da ciência. Paralelamente, o artigo pretende mostrar como o público de Figuier se modificou ao longo das décadas de 1850 e 1870, conforme se dava a maior circulação de seus textos. Assim, busca-se apresentar alguns aspectos das relações entre as variações do público leitor e o estabelecimento de novas culturas científicas.

Por um ângulo um pouco diferente, mas também tratando da divulgação do conhecimento científico nas publicações brasileiras, ao longo do século XIX, o texto de Maria Rachel Fróes da Fonseca procura mapear jornais e revistas, apontando-os como significativos loci para a afirmação da ideia de uma “ciência para todos”. Nessa perspectiva, apresenta um conjunto de periódicos dedicado à “vulgarização das ciências” e à promoção da instrução, dirigido e redigido por intelectuais mediadores. Entre eles estão A semana: Jornal litterario, scientifico e noticioso; a Academia popular – Semanário de Instrucção e Recreio para o Povo; e a Sciencia para o povo. A ideia do valor central da ciência e da educação para o Brasil era difundida nas páginas de muitos destes periódicos. O artigo igualmente ressalta a importância do pensamento de Rui Barbosa em relação ao ensino da ciência e ao método, na época, considerado mais adequado para seu ensino: o das lições de coisas.

Uma atenção particular é dada ao próprio suporte ou veículo através do qual alguns mediadores criaram seus bens culturais e se consagraram diante de seus públicos. Os vulgarizadores das ciências (como eram chamados) atuaram na imprensa das últimas décadas do século XIX e certamente se inseriram e se beneficiaram de uma conjuntura de crescimento da leitura. Alguns jornais e revistas chegaram a ter uma seção de ciências em suas páginas, e outros passaram a se dedicar exclusivamente a esses assuntos, adotando uma linguagem mais compreensível para a população em geral, o que também ocorria com a publicação de livros. Pode-se dizer, portanto, que no momento em que se ampliava o acesso aos impressos e se discutia, nos países ocidentais, a “educação popular”, os mediadores tornavam-se, eles mesmos, produtores de novas modalidades de bens culturais dentro da mídia impressa e, também, autores de um novo tipo, produzidos por esse mesmo suporte. Assim, transfiguravam-se em intelectuais altamente reconhecidos por seu público, bem como por aqueles que realizavam a crítica de seus textos na imprensa, valorizando-os ainda mais.

Porém, as características da consagração de um intelectual mediador quer pelo público, quer pela crítica – o que, em certo sentido, pode ser avaliado por sua capacidade de “popularizar” um determinado saber – podem ser encontradas também na primeira metade do século XX, como no artigo de Angela de Castro Gomes, que trabalha com o texto e a recepção da peça, A Marquesa de Santos, de Viriato Corrêa, estreada em 1938. Nesse caso, o teatro histórico, enquanto texto e encenação, é que ganha destaque, estimulado pelo Estado Novo, então promovendo a nacionalização do ensino e a valorização do conhecimento histórico, que devia ser divulgado a partir de novas e variadas mídias. A Marquesa de Santos foi uma entre diversas produções de teatro histórico desse período a fazer muito sucesso. A numerosa e, em geral, elogiosa crítica publicada na imprensa permite tanto uma aproximação do espetáculo como a realização de reflexões sobre: o tipo de cultura histórica que estava então sendo construída e difundida; o tipo de batalhas de memória que eram travadas, quando um projeto nacionalista de Estado precisava “negociar” com eventos e heróis já conhecidos e consagrados; e o tipo de diálogo que se estabelecia entre uma escrita da história científica e uma escrita da história de teor cívico-patriótico, dirigida a um grande público, diálogo que, nesse caso, beneficiava-se do vetor das artes cênicas. Ambas, na verdade, em processo de construção e afirmação e, portanto, de discussão, dentro e fora das instituições acadêmicas.

Com o artigo de Angela de Castro Gomes, o dossiê começa a enveredar pelo segundo caminho nele contemplado, a saber, o que lida mais de perto com o enfoque dos estudos brasileiros e da história da historiografia. Se um dos interesses deste dossiê é o de situar a própria imprensa como objeto de análise, vislumbrando nela as possibilidades e significados da atuação dos mediadores culturais, é fundamental atentar para tudo que a estrutura e organiza materialmente, tal como os suplementos, as seções, os anúncios, as colunas, as fotografias, as manchetes, os encartes etc. Assim, Robertha Triches, volta-se para a coluna – “Terras de Nossa Terra” – do jornal, A Voz de Portugal, um entre os muitos periódicos da imprensa étnica que circulava pelo Brasil em meados do século XX. Mostra também como essa forma de imprensa se relacionava com o desenvolvimento de outras mídias populares à época, em particular, os programas de rádio. O jornalista e escritor encarregado da coluna era José Correia Varella, um imigrante português que por décadas se dedicou às mais diversas atividades culturais, tendo uma vasta rede de sociabilidade tanto entre a intelectualidade carioca como entre a vasta colônia portuguesa do Rio de Janeiro. Nesta coluna, ele se dedicou especialmente às históricas relações políticas e culturais entre Brasil e Portugal, celebrando a figura de Salazar e se transformando em um agente de propaganda do Estado Novo português no Brasil.

Por fim, Robert Wegner e Giselle Venancio elaboram uma instigante análise sobre o gênero do ensaio, a partir de uma série de artigos publicados no Suplemento Literário doDiário de Notícias, entre 1948 e 1950, com especial atenção para os escritos por dois intelectuais reconhecidos e festejados no momento em que escrevem: Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre. Os debates sobre esse gênero de escrita histórica, travados entre eles, nas páginas do jornal (portanto, lidos por um público não acadêmico), abrem uma janela para um período muito especial: o da implementação das pesquisas históricas em instituições universitárias no país. Um período de mudanças e deslocamentos, com as decorrentes redefinições dos lugares do intelectual acadêmico-universitário e, por conseguinte, do erudito que estava “fora” dessa nova rede de sociabilidade, distinta das associações de pares até então dominantes, a exemplo dos institutos históricos e geográficos.

As diversas caixas de diálogo abertas neste dossiê esperam por contribuições e esforços, individuais ou coletivos, para que melhor possamos compreender o complexo perfil do intelectual que se delineia, quando consideramos que diversificadas práticas de mediação cultural são igualmente parte constitutiva de sua identidade. Algo que, como fica aqui demonstrado, não é tão novo, mas que se torna urgente e quase incontornável no mundo mediatizado em que vivemos no século XXI. Que a leitura do dossiê seja um convite estimulante e convincente.

Nota

1.. GOMES; HANSEN, 2016. O livro recebeu o Prêmio Sérgio Buarque de Holanda, na categoria Ensaio Social, atribuído pela Biblioteca Nacional em 2017.

Referência

GOMES, Angela de Castro e HANSEN, Patrícia. Intelectuais mediadores: práticas culturais e projetos políticos. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2016. [ Links ]

Angela Maria de Castro Gomes – Programa de Pós-Graduação em História Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected] 

Kaori Kodama – Casa de Oswaldo Cruz Fundação Oswaldo Cruz. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0002-5327-2689

Maria Rachel Fróes da Fonseca – Casa de Oswaldo Cruz Fundação Oswaldo Cruz. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0003-0865-2436


GOMES, Angela Maria de Castro; KODAMA, Kaori; FONSECA, Maria Rachel Fróes da. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.34, n.66, set. / dez., 2018. Acessar publicação original [DR]

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Sérgio Buarque de Holanda: 80 anos de Raízes do Brasil / Revista Brasileira de História / 2016

Sérgio Buarque de Holanda e seu mais famoso livro, Raízes do Brasil, vêm despertando a atenção de pesquisadores de vários campos do conhecimento – história, ciências sociais, literatura etc. – há décadas. Ou melhor, desde as últimas décadas do século XX, já que o interesse pelos grandes autores do pensamento social brasileiro, entre os quais Sérgio Buarque, pode ser datado, grosso modo, dos anos 1980. A própria categoria, “pensamento social brasileiro”, também nome de Grupo de Trabalho da Associação Nacional de Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), difundiu-se a partir de então. Do mesmo modo, mais especificamente nos domínios dos historiadores, o estudo dos chamados intérpretes do Brasil foi se impondo como uma exigência, na medida em que a história da historiografia se tornou área de trabalho e especialização, delimitada, estabelecida e florescente, além de contar com muitos participantes. Os debates ocorridos em mesas-redondas e seminários temáticos da Anpuh, em todo esse período, sejam regionais ou nacionais, são indicadores do fato.

Os anos 1990 e seguintes registraram, assim, o aparecimento de diversas pesquisas que se dedicaram à trajetória de autores e livros; a seus contextos de ação e produção editorial; aos diálogos que mantiveram com o “pequeno mundo intelectual” de sua época; à recepção que tiveram quando do lançamento de seus livros; à fortuna crítica posterior de suas obras etc. Com vários instrumentais teórico-metodológicos, o que só fez enriquecer o conjunto, a bibliografia sobre o tema cresceu em número e sofisticação. Um movimento que se articulou à afirmação da história cultural no Brasil e no mundo, com atenção especial sendo dirigida à história do livro e da leitura, à história dos intelectuais, à história dos conceitos, à história das ciências e à história da historiografia, como mencionado. A quantidade e variedade de fontes para o desenvolvimento desse trabalho também se multiplicou, bem como a preocupação em traçar os vínculos entre o que se pensava e fazia no Brasil e fora do Brasil.

Pode-se dizer, contudo, que alguns autores ocuparam lugar de relevo nessa reconfiguração do campo da história e das ciências sociais, e esse é caso de Sérgio Buarque de Holanda e de seu livro de estreia. Raízes do Brasil foi publicado em 1936 pela editora José Olympio, a mais prestigiosa do país na época, inaugurando a coleção Documentos Brasileiros. Ela era então dirigida por Gilberto Freyre, também prefaciador do volume, um nome já consagrado por livro igualmente clássico: Casa-grande e senzala (1933).

Na historiografia, Sérgio Buarque de Holanda se afirmaria – como certamente desejou desde os anos 1950 – entre as maiores referências da disciplina, talvez ao lado, apenas, de Varnhagen e Capistrano de Abreu. Nem tanto, me parece, de Caio Prado Júnior, cuja contribuição não tem, até hoje, o status que a de Sérgio Buarque ganhou. Quanto a Oliveira Vianna, para retomar as referências de Antonio Candido em seu famoso prefácio à 5a edição de Raízes do Brasil, de 1969, o caminho seguiu outro curso. Nas ciências sociais, ambos são reconhecidos entre os maiores pensadores da sociedade brasileira, formando com Alberto Torres, Sílvio Romero, Azevedo Amaral e outros, um conjunto de intérpretes decisivos para o contexto histórico anterior à redemocratização de 1945. Porém, de antípoda de Sérgio Buarque, Oliveira Vianna foi se tornando seu interlocutor, o que deu mais dinamismo às análises sobre esses autores e permitiu melhor conhecimento do campo intelectual das décadas de 1930 e 1940.

Uma transformação que tem claros vínculos com o crescimento dos estudos interdisciplinares sobre a construção de memórias individuais e coletivas, em que se reconhecem os esforços dos próprios indivíduos e dos guardiões de sua memória em produzir uma imagem de intelectual para seus contemporâneos e para a posteridade. Algo que igualmente interferiu na própria forma como todos os autores que contribuíram para o conhecimento (histórico ou qualquer outro) são pensados e tratados nas pesquisas mais recentes: sem mitificações e em redes de sociabilidade. Uma postura que busca uma mais proveitosa compreensão e, por conseguinte, uma melhor avaliação de suas contribuições, o que gera maior reconhecimento e não o contrário.

Justamente por tudo isso, a comemoração dos 80 anos da primeira edição de Raízes do Brasil não poderia passar em branco em uma revista como a RBH. Mas, também por tudo isso, considerei, como organizadora do Dossiê, que essa era uma excelente oportunidade para tratar de Sérgio Buarque de Holanda como um autor que teve uma rica e instigante trajetória, com atuação multifacetada como intelectual, tanto antes como depois de seu mais famoso livro. Este, portanto, é um Dossiê que parte de Raízes do Brasil, não se atendo, propositadamente, a esse livro, embora ele seja central para muitos dos artigos que o compõem, como o leitor verá.

O Dossiê é composto por sete artigos. Como abertura, temos o texto de Ronaldo Vainfas, sugestivamente intitulado “O imbróglio de Raízes: notas sobre a fortuna crítica da obra de Sérgio Buarque de Holanda”. Nele, Ronaldo começa por observar como a recepção desse livro, de um lado, acabou por obscurecer a produção historiográfica posterior de Sérgio Buarque, que só começou a ter reedições praticamente nos anos 1970; e de outro, paradoxalmente, como Raízes demorou a ser reconhecido quando de sua publicação, pois sua segunda edição data de 1948, 12 anos depois da primeira. Demarcando a parca repercussão inicial do livro, ele chega ao citado prefácio de Antonio Candido, que produz um duradouro e quase canônico enquadramento do livro e do autor, este como o de um “democrata radical”. A partir daí, o texto se abre para o debate de diversas questões que têm marcado as apreciações sobre a obra de Sérgio Buarque, algumas delas que serão discutidas com mais ênfase em outros artigos do Dossiê. Estão em pauta o planejamento inicial de Raízes, que envolveria o projeto de uma “Teoria da América”, e as ideias que ele abraçava ou rejeitava ao escrevê-lo. Outra vez, volta-se à apreciação de Candido que, vale lembrar, data de momento em que o Brasil mergulhava nos anos sombrios e violentos da ditadura civil-militar, instalada em 1964. Nessa viagem sobre o imbróglio de Raízes, muitos dos mais atentos analistas de Sérgio Buarque são visitados, o que tece para o leitor uma espécie de mapa de por onde andar para melhor conhecer o autor de tantos e tão diferenciados comentadores. Por fim, o próprio Sérgio é também mobilizado como figura decisiva que é na construção da fortuna crítica de sua obra, em especial porque o leitor é advertido de que nem todas as questões têm respostas completas.

Os dois artigos que se seguem versam sobre as raízes de Raízes do Brasil, escolhendo abordagens originais e provocadoras. Lilia Moritz Schwarcz e Pedro Meira Monteiro produzem um inusitado encontro, com doses de desencontro, entre os literatos Sérgio Buarque de Holanda e Lima Barreto, no Rio de Janeiro das décadas iniciais da Primeira República. Fazem-no como uma estratégia para recuperar os desdobramentos do ambiente político e estético da capital federal sobre os intelectuais que aí trafegavam, dando destaque aos anos 1920, quando Sérgio Buarque estabelece constante interlocução com Mário de Andrade, sendo, ao lado de Prudente de Morais Neto, um dos editores da revista modernista Estética. No artigo, os autores se beneficiaram muito do fato de terem organizado juntos a edição crítica comemorativa dos 80 anos de Raízes do Brasil, bem como de estarem trabalhando nas biografias de Lima Barreto (Lilia) e de Sérgio Buarque (Pedro). Dois autores que praticamente nunca são cotejados, porque frequentemente vistos como opostos: Sérgio, um modernista, e Lima, um antimodernista, nas letras e na vida. Porém, na vida e na história intelectual muitas vezes as coisas não são bem assim. É o que pretendem demonstrar, sobretudo no que diz respeito às desconfianças sobre o liberal regime republicano; algo que poderia ter ressoado em Raízes, anos depois. Da mesma forma que Ronaldo, Lilia e Pedro concluem seu texto com “discreta inquietação”.

Sérgio da Mata em “Tentativas de desmitologia: a revolução conservadora em Raízes do Brasil” mergulha fundo em um dos pontos que mais têm agitado os debates sobre autor e livro, desde que eles começaram a se fazer. Trata-se de esquadrinhar as leituras e apropriações do jovem Sérgio Buarque, no que se refere à “constelação de autores ligados à chamada ‘revolução conservadora’ alemã da época da República de Weimar”. Ou seja, a questão do germanismo desse intelectual, que teria voltado ao Brasil com um plano do livro (não executado), o que faz Sérgio da Mata recolocar em pauta e dialogar com diversos e recentes estudos sobre essa questão, levando-nos a Berlim e aos bastidores de Raízes. Recorrendo à documentação inédita e investindo numa escrita de tom biográfico – “quase sempre, a biografia de um livro está umbilicalmente ligada à de seu autor” -, ele constrói sua interpretação valendo-se, para prazer do leitor, de correspondência e anotações feitas por Sérgio Buarque em seus livros, agora acessíveis pela disponibilização da biblioteca na Unicamp.

Já os dois artigos que dão continuidade ao Dossiê podem ser lidos em duas chaves fundamentais, uma de forma e outra de conteúdo, que poderiam ser enunciadas como “a escrita de Sérgio Buarque de Holanda: o ensaio e as fronteiras”. Assim, Fernando Nicolazzi, para situar Raízes do Brasil na tradição do ensaio de interpretação histórica, gênero muito praticado no Brasil durante a primeira metade do século XX, dedica-se a fazer uma longa análise das formas de escrita do que eram os estudos históricos desde 1830 até 1930 / 40. O artigo é minucioso ao acompanhar intelectuais, como o romântico Gonçalves de Magalhães, passando por autores de textos famosos, produzidos no IHGB – como o discurso do cônego Januário da Cunha Barbosa, a proposta de Von Martius e a dissertação de Cunha Matos -, para chegar a Varnhagen, Sílvio Romero, Pedro Lessa e também Capistrano de Abreu e Oliveira Vianna. É dessa forma que ele examina “as condições de emergência da tradição do ensaio”, para defender que nelas estão presentes “as relações entre a erudição crítica, definidora do método histórico, e a intenção sintética, característica da filosofia da história moderna”. Dessa forma, acredito, o artigo vai se prestar aos interessados nos debates travados no período, a respeito da escrita não só da história como também das ciências sociais, todas ainda muito próximas, quando não inseparáveis, da literatura.

Robert Wegner é o autor do artigo que vai apontar o contexto de elaboração do projeto que marcaria a trajetória de Sérgio Buarque após Raízes do Brasil. Segundo ele, tal projeto é concebido como uma alternativa à tradição ibérica que reinava no livro de estreia, constituindo-se no estudo da história da sociedade paulista. Assim, ele vai se centrar na expansão territorial e nos caminhos que levaram “os paulistas” ao traçado de novas fronteiras para o Brasil. Daí o tema das bandeiras e monções, que tinham, aliás, forte tradição no estado, bastando lembrar os nomes de Afonso Taunay, Alcântara Machado, Alfredo Ellis Jr., Cassiano Ricardo e outros, na poesia, no romance e na pintura histórica, por exemplo. Por isso, seu belo título: “A montanha e os caminhos: Sérgio Buarque de Holanda entre Rio de Janeiro e São Paulo”.

Dois artigos encerram o dossiê, voltando-se, mais uma vez, para os projetos de Sérgio Buarque e a fortuna crítica de sua obra. Giselle Martins Venancio e André Furtado irão focar no trabalho desenvolvido pelo autor ao organizar a coleção História Geral da Civilização Brasileira (HGCB), publicada pela editora Difusão Europeia do Livro (Difel) nas décadas de 1960 e 1970. Assumindo o formato de coletânea, considerado inovador ante o modelo experimentado com sucesso desde os anos 1920 / 30, como ilustram as coleções Brasiliana (da Companhia Editora Nacional) e Documentos Brasileiros (da José Olympio), a HGCB inauguraria outro tempo em termos editoriais. A essa coleção Sérgio Buarque se dedica com afinco, sendo o organizador dos volumes sobre Colônia e Império. Neste último caso, entretanto, ele acabaria sendo o principal autor, o que conduz o artigo a uma análise sobre o tipo de tratamento que foi dado à monarquia brasileira. Retomando a questão do projeto de “teoria da América”, presente em artigos anteriores, Giselle e André defendem que Sérgio Buarque o teria em mente ao situar o Império sob a ótica da historiografia latino-americana, inovando ao estabelecer novos marcos cronológicos para o período.

No último artigo, de Thiago Lima Nicodemo, Sérgio Buarque e Antonio Candido se encontram mais uma vez, desta feita no traçado de uma biografia cruzada, que remete ao tema da construção de memória daquele autor, mas em outra perspectiva. A interlocução montada entre os dois parceiros ressalta questões-chave no trato com intelectuais, quais sejam, os processos de apropriação de ideias, os dilemas e formas de engajamento político e os esforços para a delimitação de uma “obra” que guarde coerência com a figura de um “autor”. Dessa maneira, acredito que o Dossiê se soma à produção já vasta e cuidada sobre Sérgio Buarque de Holanda, inovando em pontos muito frequentados e polêmicos, o que é marca de boa contribuição intelectual.

Ângela de Castro Gomes – Professora titular da Universidade Federal Fluminense (UFF); professora visitante nacional sênior da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio). E-mail: [email protected]


GOMES, Ângela de Castro. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.36, n.73, set. / dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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