UFMG: Projeto Intelectual e Político – DIAS (VH)

DIAS, Fernando Correia. UFMG: Projeto Intelectual e Político. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997. Resenha de: REIS, José Carlos. Varia História, Belo Horizonte, v.13, n.18, p. 495-500, nov., 1997.

Belo Horizonte faz 100 anos e a UFMG, uma de suas instituições mais importantes, faz 70 anos. A festa dos 70 anos da UFMG integra o conjunto das comemorações do centenário de Belo Horizonte. Nesse ambiente de festa e alegria, o departamento de História da UFMG tomou a iniciativa de criar o projeto integrado de pesquisa UFMG: Memória & História, sob a coordenação das Professoras Maria Efigênia Lage de Resende e Lucília de Almeida Neves Delgado e envolvendo uma ampla equipe de pesquisadores das diversas unidades da UFMG. As pesquisas visam a elaboração de ensaios e estudos sobre as origens e a trajetória da UFMG, o arrolamento de fontes bibliográficas e documentais e a produção de fontes orais, escritas e audiovisuais. O projeto tem o apoio financeiro da FAPEMIG, CNPq, FUNDEP, UFMG e FAFICH. O resultado das pesquisas será apresentado em uma série de 5 volumes. E o primeiro volume acaba de ser oferecido ao público belo-horizonte, mineiro e brasileiro. Trata-se do livro do Professor Fernando Correia Dias UFMG: Projeto Intelectual e Político. Quem o apresenta é o atual Reitor, o Professor Tomaz Aroldo da Mota Santos. A editora da UFMG se esmerou na produção gráfica e artística do livro: uma bela capa que é como a “foto de uma lembrança” do prédio da Faculdade Livre de Direito, o papel de boa qualidade, a impressão bem definida, o texto corretamente tratado e revisado.

O Professor Dias, 71, mineiro de Três Pontas, autor do livro, teve toda a sua formação feita na UFMG: Bacharel em Direito (1951), Bacharel em Sociologia e Política (1957), Doutor em Ciências Sociais (1969). De 1962 a 1969, ele foi professor da FACE e da FAFICH; de 1969 a 1984, foi professor da Universidade Nacional de Brasília. O Professor Dias possui uma obra numerosa, dedicada à sociologia da cultura e à história da cultura. Em suas principais obras, ele tematizou os “caracteres originais” de Minas, a cultura mineira, o barroco, a Inconfidência, a literatura, a educação.

Nesse seu novo livro, o Professor Dias deseja “estudar a mentalidade das elites políticas e intelectuais de Minas nos anos 20, uma quadra de inovação e alvoroço, para compreender o contexto político e intelectual da emergência de projetos coletivos de maior alcance, como a preservação da arte barroca e a construção da primeira universidade do Estado”. E ele atingiu o seu objetivo, cumpriu a sua missão. Ele nos oferece um relato das origens da UFMG, que não pretende ser completo, mas que é uma bem realizada análise da conjuntura política e cultural de Minas na segunda metade da década de 1920, repleta de datas, nomes e episódios. Ele menciona ao final do volume uma vasta e consistente bibliografia. As fontes para o seu livro, ele as encontrou na Biblioteca Central/UFMG, no Arquivo Público Mineiro, na seção Mineiriana da Biblioteca Estadual Prof. “Luis de Bessa”. Ele se apoiou também nos jornais de 20/30.

Eis, portanto, o projeto UFMG: Memória & História e, dentro dele, o livro e o seu autor. Sobre o livro, seria necessário e interessante reter algumas de suas análises e informaçöes. Em 1927, criou-se a UMG. Aurélio Pires, um dos seus maiores defensores e fundadores, divide a “história da idéia da universidade mineira” em três fases: 1789-1925: iniciativa; 1925/27: início da realização; 1927: criação definitiva. Vamos nos apoiar nessa periodização para organizar os dados que nos oferece em seu livro o Professor Dias. A periodização é uma estratégia especificamente historiadora para organizar o vivido, oferecendo dele alguma inteligibilidade. Aurélio Pires considera que a “inteligibilidade da UMG” poderia ser percebida nessas três fases, e o Professor Dias parece concordar, pois a estrutura implícita do seu livro leva em consideração essa periodização.

De 1789 a 1925: iniciativa. A UMG foi sobretudo um “sonho dourado” dos Inconfidentes. Em sua origem, ela já era um “projeto político e intelectual”. Os Inconfidentes eram intelectuais com um projeto político, que marcou profundamente a memória mineira e nacional. A fundação da UMG veio realizar uma espera que não pode ser realizada pelos seus sonhadores do passado. Ela será o resgate de uma dívida com o passado, a realização do sonho dos ilustres antepassados mineiros, os Inconfidentes. A universidade apareceu tardiamente no Brasil; elas apareceram somente no século XX. Durante todo o século XIX foram vários os projetos apresentados e arquivados por inércia e indiferença. Por que? Os governantes, afirma Dias, preferiam manter escolas isoladas tendo em vista a profissionalização das novas gerações. Predominava uma mentalidade pragmática, “naturalista”. A universidade seria um retrocesso, um lugar de retórica e pedantismo literário. Para o Professor Dias, foi a “orientação pragmática” que impediu o surgimento antecipado da universidade brasileira. O positivismo que predominou no final do século XIX reforçou esta atitude ao considerar a universidade elitizante e promotora do saber ornamental. A consequência disso era uma cultura dominada pelo autodidatismo e pela bibliografia estrangeira. A tradição cultural mineira se dividia em duas vertentes: a da “razão humanista” e a da “razão pragmática”. A primeira era orientada pela herança católica e greco-latina; a segunda, pela utilidade prática da informação técnica. As duas vertentes predominaram alternadamente e coexistiram e ambas foram prejudiciais à idéia da universidade.

O ensino superior era feito em escolas isoladas. A primeira escola superior fundada no Brasil foi a de Farmácia, em 1839, em Ouro Preto. A segunda, também em Ouro Preto, foi a Escola de Minas, em 1875. Criou-se uma Escola Livre de Direito também em Ouro Preto, em 1892. Mas, com a fundação de Belo Horizonte, a cultura mineira se deslocou de Ouro Preto para a nova capital. Várias escolas superiores isoladas foram criadas em Belo Horizonte: em 1907, a Escola de Odontologia; em 1911/ 12, a Escola de Medicina; em 1911, a Escola de Engenharia. Antes, em 1898, a Escola Livre de Direito de Ouro Preto transferiu-se para Belo Horizonte. A nova capital passou a ter uma importante rede de escolas superiores isoladas. Eram estabelecimentos livres, particulares e autônomos. Belo Horizonte se consolidou como centro político-administrativo e intelectual de Minas. De Ouro Preto, vieram funcionários, profissionais liberais, professores e, inclusive, costumes e rituais. O autor discorre longa e detalhadamente sobre cada uma das escolas de Ouro Preto e de Belo Horizonte. Ele apresenta listas de nomes dos professores e biografias de alguns deles.

Essas são, portanto, as condições iniciais da UMG: subjetivas, o sonho sagrado dos Inconfidentes, uma sensação de menoridade e inferioridade em relação aos países estrangeiros e vizinhos e ao Rio de Janeiro; objetivas: quatro escolas superiores isoladas, que existiam bem e concretamente, que poderiam ser o núcleo inicial da sonhada universidade. Outros fatores vão se associar a esses: a efervescência política e intelectual dos anos 1920, o projeto político do Presidente do Estado Antônio Carlos Andrada, a aspiração da comunidade mineira e belohorizontina.

1925-1927: início da realização. Um reparo em relação a esse corte temporal: ele parece muito curto! Se é verdade que o movimento pró-Universidade se acentuou na segunda metade da década de 20, ele deve ter começado um pouco antes, pelo menos no início da década. Talvez se obtenha uma maior “inteligibilidade do processo” se se estendesse essas datas para 1920/1927. O Professor Dias afirma que o ambiente político e intelectual da década de 20 era marcado por três fatores que aceleraram a fundação da UMG:

1º) a formação dos intelectuais. Nos anos 20, as escolas isoladas começaram a dar os seus primeiros frutos. Os estudantes de Direito se destacavam na política e no setor literário. A maior parte dos jovens intelectuais modernistas passaram pela escola de Direito. A geração modernista mineira possui uma unidade coletiva real, é um grupo social homogêneo. Ela está interessada em resgatar o regionalismo cultural mineiro, quer retomar a tradição intelectual mineira desde o século XVIII. Há interesse na preservação da arte barroca, da cultura mineira. Os novos têm uma formação Iluminista, assim como os seus antepassados do século XVIII. Eles convivem com os tradicionais, egressos do Caraça e dos Seminários de Mariana e Diamantina, de herança católica e greco-latina.

2º) as condições e consequências da urbanização. Belo Horizonte continuava a ser uma tranquila cidade político-administrativa. Ela simbolizava a unidade mineira e recebia os mineiros vindos de todo o Estado. A sua vida urbana se acelerou. Ela centralizava a vida cultural. A imprensa era mais contínua e estável. A oligarquia política perremista não era tão fechada — ela ouve e acolhe intelectuais e políticos oriundos de outras camadas sociais. O Estado não era controlado exclusivamente por uma oligarquia, mas por “elites autoritário-modernizantes”, cuja expressão maior era o próprio Presidente Antônio Carlos. O Professor Dias tem uma opinião, talvez, muito favorável de Antônio Carlos, que uma citação que faz de Norma de Góes Monteiro ajuda a relativizar: é uma “velha raposa”, autoritário, mas modernizante, com tintas de liberal. O autor parece ter-se deixado seduzir por Antônio Carlos.

3º) o pensamento social vigente: foi um momento de forte expressão do regionalismo cultural e político em Minas. Falou-se em “civilização mineira”, em “mineiridade”, que só hoje se rediscute e se busca restringir, limitar. Minas teria uma “visão de mundo” peculiar, da qual o barroco mineiro seria a maior expressão. Havia, em Minas, nos anos 20, um clima de renovação política e intelectual.

Esses três fatores somados teriam levado à realização do sonho dos Inconfidentes: à fundação da UMG. A elite política andava de mãos dadas com a elite intelectual. Dessa convergência nasceu a UMG.

1927: criação definitiva. Os modernistas não foram os mentores e nem os fundadores da UMG. Mas, situados em postos estratégicos no campo intelectual, eles deram decidido apoio à iniciativa de criá-la e implementá-la. Pedro Nava, por exemplo, foi um modernista que a defendeu e consagrou. O jornal “Diário de Minas”, que era órgão oficial do PRM e onde trabalhavam os jovens intelectuais, como Carlos Drumond de Andrade, revela a união das elites em torno da fundação da UMG. Os modernistas, enfim, não a fundaram, mas lutaram também por ela. Eles estarão mais ligados à outra iniciativa cultural importante dos anos 20: a preservação do patrimônio artístico e cultural de Minas, no que tiveram o apoio dos modernistas paulistas.

A fundação da UMG fazia parte do projeto político de Antônio Carlos. Ele tinha um verdadeiro programa de reforma da educação. Aliás, nos anos 20, o tema educacional tornou-se plataforma política. Várias propostas de reforma da educação foram apresentadas. Fernando Azevedo se destacou nessa discussão em São Paulo; em Minas, destacaram-se Francisco Campos e Francisco Mendes Pimentel. Foi esse último que se ocupou do problema da universidade, dos textos legais e do projeto. A UMG teria como objetivo: estimular a cultura científica, a produção nacional de conhecimento científico, promover o progresso e o bem-estar da população, a formação profissional, a fidelidade à cultura mineira e nacional, a responsabilidade e compromisso social. A instituição deveria servir à região mineira e ao Brasil. Ela teria autonomia didática e administrativa. A Universidade não seria um agregado de escolas, mas uma “confederação”. Ela deveria integrar as quatro escolas que a constituíam, bem como os professores e alunos. O espírito da Universidade seria o da convergência da “razão pragmática” e da “razão humanística” em uma “razão científica”, que não separa, mas reúne as duas primeiras. Alguns dos seus fundadores eram ao mesmo tempo técnicos e humanistas: juristas e naturalistas, físicos e filósofos, engenheiros e historiadores, farmacólogos e latinistas… Propõe-se um espírito comum, de solidariedade entre as suas quatro unidades e os corpos docente e discente.

Portanto, a UMG nasceu como resultado da convergência de conjunturas favoráveis: o projeto de um homem político forte, a cidade nova e centralizadora da vida político-administrativa e cultural, o anseio antigo das elites políticas e intelectuais e de outras camadas da população. A sua criação obteve o apoio entusiástico de toda a população. A imprensa, os estudantes, os políticos, os profissionais liberais, todos aplaudiram a iniciativa do Presidente do Estado. Fundada, a luta passou a ser pela construção de uma “cidade universitária”, uma sede espacial bem delimitada, um campus. A crise financeira do Estado adiou o projeto.

O Presidente escolheu para ser o seu primeiro Reitor um homem de sua confiança e que lutou pela UMG: Francisco Mendes Pimentel (18691957). Ele foi aluno, professor e diretor da Escola de Direito. Pimentel tomou a sua indicação como uma “missão”. Mas, durou pouco! O Professor Dias descreve de modo dramático o conflito que opôs o Reitor, o Conselho Universitário e os estudantes em torno da questão da “aprovação anual sem exames finais!”. Pimentel sofreu duramente a violência estudantil. Houve gritos, ameaças, pedradas, ovos atirados, tiros, mortos, feridos, humilhados, polícia e processos na justiça. Pimentel abandonou a universidade, decepcionado e ressentido. O autor sugere que esta fase seria a da criação definitiva. Mas, depois desse episódio, a UMG esteve ameaçada: ela pareceu passar de um “sonho dourado” a um “pesadelo infernal”. O Presidente do Estado pensou em desistir da idéia, pois estava frustrado. Mas, não o fez. A vida universitária ficou carregada de desconfiança e ressentimentos. No entanto, o tempo passou, a ferida sarou. E nos anos 40/50, a universidade se consolidou: incorporou a FAFICH e a Escola de Arquitetura e Belas Artes. Em 1949, ela foi federalizada.

Hoje, a UFMG é um dos centros de pesquisa e de formação de quadros e cidadãos, um centro de produção de conhecimentos científicos, sociais e filósoficos e de educação dos mais férteis do Brasil e em padrões excelentes. A universidade sofreu com as reviravoltas políticas: 30,37,64. Ela teve de lutar por sua existência e pela sua autonomia contra as ditaduras. Ela sempre foi uma referência democrática, um centro de resistência aos ventos mais turbulentos da história brasileira. Os fundadores e dirigentes da UMG e da UFMG lutaram com dedicação e competência pela sua fundação e continuidade. Se eles se inspiraram nos antepassados mineiros do século XVIII, eles nos inspiram, hoje, na defesa da Universidade contra aqueles que, muitos saídos dela, querem passar para a história como seus “coveiros”.

O livro do Professor Dias é encerrado com alguns interessantes apêndices: belas fotos dos primeiros prédios da UMG e de Belo Horizonte dos anos 20/40; as biografias dos cientistas mineiros dos séculos XVIII e XIX, feitas por Aurélio Pires; o discurso de Pedro Nava louvando a criação da UMG; o documento da fundação com as assinaturas dos fundadores; um documento em que a nova universidade responde às questões da ABE sobre a sua idéia de universidade; documentos dramáticos que revelam a luta dos Reitores da UMG e UFMG pela sua autonomia, destacando-se os de Aluísio Pimenta em 64.

Concluída a leitura do livro do Professor Dias, tem-se a certeza de que a pesquisa promovida pelo departamento de História para comemorar os 70 anos da UFMG, que está planejada para 5 volumes, começou muito bem em seu primeiro volume. Os próximos 4 volumes terão no livro do Professor Dias um bom preâmbulo, uma boa referência. O projeto UFMG: Memória & História foi bem iniciado; agora, aguardemos os próximos resultados desse importante trabalho.

José Carlos Reis – Departamento de História/UFMG.

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