Em nome da palavra e da Lei: relações de crédito em Minas Gerais no Oitocentos | Rita de Cássia da Silva Almico

O mercado de crédito. Aparentemente um tema árduo e entediante, que é abordado por Rita de Cássia da Silva Almico de forma original e interessante. Emprestar e tomar emprestado são os dois lados de uma moeda que envolveu os mais diversos setores da sociedade, de fazendeiros, negociantes, pequenos comerciantes, carpinteiros a costureiras, e que, por isso, descortina relações sociais muitas vezes encobertas por análises centradas nos grandes agentes ligados ao complexo cafeeiro. Justamente por não ter por objeto o crédito bancário, mas o mercado de crédito como um todo, abrangendo as relações de empréstimo de dinheiro, bens e serviços, a autora analisa os diferentes aspetos que permitem vislumbrar as relações cotidianas da população de Juiz de Fora da segunda metade do século XIX. Essa é certamente a grande contribuição do livro Em nome da palavra e da Lei: relações de crédito em Minas Gerais no Oitocentos, resultado da tese de doutorado, defendida no PPGH da Universidade Federal Fluminense, em 2009.

O texto flui ao longo de cinco capítulos que escrutinam diferentes aspectos envolvidos nas relações de crédito em Juiz de Fora e seus distritos, buscando não apenas comprovar a existência de um mercado de crédito, mas também analisar suas diversas variáveis. A escolha desse município justifica-se pelo seu papel na região, a Zona da Mata, enquanto “capital regional” (p. 25), cidade destacada não apenas na Província (depois Estado) de Minas Gerais, mas um polo dinâmico integrante do complexo cafeeiro brasileiro, com fortes vínculos com o Rio de Janeiro. O período analisado é delimitado pelos anos de 1850 e 1906, corte cronológico que determinou outra contribuição importante da pesquisa de Almico, pois enfoca as relações de crédito inseridas em uma nova conjuntura institucional, ou seja, a vigência do Código Comercial Brasileiro (Lei n. 556, de 25/06/1850). Conjuntura que sofreu uma inflexão pela crescente intervenção do governo federal a partir do Convênio de Taubaté (1906).

A autora demonstra que Código Comercial contribuiu para a formação do mercado de crédito ao normatizar esse tipo de relação, fornecendo garantias aos credores e estabelecendo canais formais/legais para sua proteção. O recurso sistemático às execuções das dívidas e a celeridade do processo são evidências da eficiência dos mecanismos estabelecidos para a proteção dos credores. É nesse contexto que surge a principal fonte primária utilizada, as ações de execução de dívidas. Ao optar por essa fonte, a autora, conscientemente, limita sua pesquisa àquelas relações de crédito que, diante da inadimplência, foram cobradas judicialmente. Conclui-se que um grande número de relações de crédito escapou à análise, o que deixa várias dúvidas acerca do tamanho desse mercado, sobre os valores envolvidos e a proporção entre as ações de execução e a totalidade das relações de crédito no período estudado. Mas esse limite é sobrepujado pela riqueza de informações que a fonte oferece e por sua abrangência, levando a autora a tomar as relações judicializadas como referência representativa desse universo. Se os inventários post-mortem, com suas dívidas ativas e passivas, e os registros de hipotecas, fontes primárias também exploradas pela autora, oferecem uma visão estática da relação de crédito, as ações de execução de dívida permitem conhecer sua dinâmica, suas características e dar voz a todos os agentes nelas envolvidos. Dessa forma, surgem na análise variáveis como as taxas de juros praticadas, os prazos, as razões para a tomada da dívida e para a inadimplência, o papel das relações familiares e pessoais, os montantes emprestados, as categorias sociais de credores e devedores, a dispersão espacial das relações de crédito, entre outras. Essas ações abrangem relações de empréstimo de dinheiro, serviços e bens, incluindo as hipotecas, mas também aquelas sem esse tipo de garantias. A originalidade do trabalho se encontra em grande parte na sensibilidade de escolher e explorar competentemente essa fonte.

As informações constantes nas ações de execuções de dívidas, complementadas e contrapostas àquelas constantes nos inventários post-mortem e nas escrituras de hipotecas, para além da análise qualitativa, receberam um aprumado tratamento quantitativo, sintetizado em tabelas e gráficos. A análise desses dados permitiu à autora adentrar ao mundo das relações de crédito, não apenas corroborando sua hipótese de existência desse mercado regional de crédito em Juiz de Fora, mas também caracterizando de forma aprofundada a oferta e a demanda por crédito, assim como a trajetória dessa relação nas diferentes conjunturas econômicas do Brasil da segunda metade do século XIX.

A construção da obra traduz esse movimento, integrando a análise qualitativa e a quantitativa dos dados em constante diálogo com a historiografia econômica brasileira e estrangeira. O primeiro capítulo, intitulado “Dar crédito é acreditar: relações de crédito em uma sociedade do século XIX”, além de uma minuciosa análise da origem, da tramitação e implicação das ações de execução de dívidas, estabelecidas pelo Código Comercial de 1850, traz a definição dos conceitos essenciais à análise, tais como o conceito de mercado, de crédito e de circulação da informação. A autora segue a definição de crédito expresso pela historiadora portuguesa Maria Manuela Rocha (Viver de crédito: práticas de empréstimos no consumo individual e na venda a retalho. – Lisboa, séculos XVIII e XIX. Working Papers , Lisboa, GHES, n. 11, 1998), que abrange as trocas de bens e serviços, excetuando alguns casos, tais como dotes e heranças.

Contrapondo sua análise a várias outras que abordaram o crédito envolvendo bancos, comissários do café ou grandes “capitalistas” e relacionadas exclusivamente ao financiamento das atividades do complexo cafeeiro, a autora afirma que não irá utilizar “essa divisão em categorias sociais específicas” (p. 76), o que lhe permitiu visualizar a sociedade de Juiz de Fora nas diversas categorias declaradas pelos agentes, expondo a capilaridade do emprestar e do dever. Nesse sentido, o trabalho insere-se entre as recentes abordagens da historiografia econômica sobre o tema que trouxeram novas questões, tais como a importância e o peso das relações pessoais, os mecanismos informais de crédito, os aspectos não monetários dessa relação, etc.

O segundo capítulo, “Pedir e emprestar: o mercado de crédito em uma comunidade cafeeira”, analisa as diferentes conjunturas econômicas brasileiras na segunda metade do século XIX aos primeiros anos do século seguinte, com destaque para os movimentos decorrentes da crise da Casa Souto (1864) e a crise do Encilhamento, movimentos que tiveram impacto sobre as relações de crédito no Brasil. Demarcados esses momentos e à luz desses movimentos, a autora passa a apresentação do mercado de crédito de Juiz de Fora, apresentado dados gerais da documentação trabalhada, tais como número de processos, valores das dívidas e sua distribuição temporal e espacial, frequência com que os agentes emprestavam e tomavam emprestado, taxas de juros, prazos, garantias, etc. Trata-se de uma visão abrangente, mas que permite ao leitor compreender a pertinência da hipótese da autora, caracterizando, em linhas gerais, a existência de um mercado de crédito em Juiz de Fora e suas imbricações com o mercado nacional.

A partir do terceiro capítulo, “Regiões que emprestam e suas relações de crédito: a natureza das dívidas e a cobrança de juros”, a autora passa a caracterizar as relações estabelecidas nesse mercado: a dispersão espacial de credores e devedores, as taxas de juros praticadas e natureza das dívidas. A análise da distribuição espacial dos credores corrobora a hipótese do caráter regional do mercado de crédito nucleado pela cidade de Juiz de Fora, que abrange preponderantemente a Zona da Mata mineira, mas que se vincula fortemente com a Província/Estado do Rio de Janeiro, com destaque para a capital. Ao analisar a natureza das dívidas, a autora observa o predomínio de fazendeiros, negociantes e bancos nessas relações, as quais envolviam preponderantemente empréstimos de dinheiro (16,5% dos valores e 37% das transações), hipotecas (55,9% dos valores e 25,9% das transações) e letras (14,2% dos valores, representando 15,4% do total de transações creditícias). No entanto, a pesquisa traz à luz vinte e dois tipos de dívidas, revelando as várias formas assumidas pelo crédito, abrangendo o arrendamento de terras, compras de gêneros, jornais de escravos, vales, penhor, serviços prestados, compra e juros de debêntures, etc. Dados que demonstram a diversidade de relações envolvidas. Ponto interessante no trabalho foi demonstrar que as taxas de juros anuais variavam consideravelmente (de 4% a 30% a.a.), mas que predominava, em quase 50% dos contratos de crédito, a taxa de 12% a.a. Confrontando esses dados com os de outros historiadores, Almico observa que as taxas não eram elevadas, não havendo encontrado queixas em relação a cobranças extorsivas nas ações de execução de dívidas pesquisadas.

Os dois últimos capítulos tiveram como objeto de análise os dois polos da relação de crédito: o credor e o devedor. No capítulo “Se constitui meu devedor: credores e suas relações no mercado regional de crédito”, a autora analisa os agentes que emprestavam recursos, em diferentes aspectos, tais como categoria social, número de ações, valores transacionados, etc. O predomínio de emprestadores residentes em Juiz de Fora, seguidos daqueles do Rio de Janeiro, corrobora estudos que evidenciam a origem local dos recursos que financiavam o setor cafeeiro brasileiro, fato que em parte pode ser atribuído ao reduzido número e tardio surgimento de bancos que atendessem à demanda por crédito dos produtores de café. O predomínio de emprestadores residentes em Juiz de Fora corrobora uma das hipóteses da autora, a da existência de um mercado de crédito regional polarizado por aquele município e a importância da circulação de informações na região com uma variável que viabilizava a concretização desses negócios. O universo de credores era composto de 30 ocupações, dentre as quais se encontravam advogados, padeiros, carpinteiros, médicos, etc. Dentre os emprestadores, destacavam-se, em número e nos valores transacionados, aqueles que se identificaram com fazendeiros e negociantes. A participação destacada dos fazendeiros, segundo a autora, traduz a concentração de renda e da propriedade associada à sociedade brasileira e, particularmente, de uma região vinculada ao complexo cafeicultor, mas também permite verificar um transbordamento de recursos gerados pelo setor cafeicultor para outros setores da sociedade através das relações de crédito. Importante observar que os bancos se envolveram em um número pequeno de ações de execução de dívidas (1,93%) quando comparados aos fazendeiros e negociantes; no entanto, é relevante o elevado valor que suas transações, ocupando o terceiro lugar no conjunto do período (19,83%). As ações de execução movidas por bancos tornaram-se mais frequentes somente a partir da década de 1880, e tinham como devedores apenas fazendeiros e negociantes. Fato que evidencia que a maior parte dos devedores buscava recursos junto a outros agentes privados.

Os devedores foram analisados no quinto e último capítulo, “Devo que pagarei: devedores e suas relações no mercado regional de crédito”. Sendo as ações de execução de dívida abertas no município de domicílio dos devedores, esses eram quase que inteiramente residentes em Juiz de Fora e seus distritos (97,4% das ações), excetuando-se apenas aqueles que mudaram após a abertura do processo. Dentre esses destacavam-se os produtores de café, tomados como sinônimo de fazendeiros (62%). Interessante observar que o grupo de devedores era menos diversificado que o de credores; pois suas declarações abrangeram 21 ocupações diversas incluindo, entre outros, barbeiros, carpinteiros, marceneiros, um boticário e um operário. Como a fonte indica, se os fazendeiros se destacavam dentre os tomadores de empréstimos, eram aqueles que tiveram as dívidas executadas com maior frequência, as quais ocorreram predominantemente em conjunturas de crise econômica. Muito relevante é a evidência de que os fazendeiros buscavam empréstimos preferencialmente junto a outros fazendeiros. Da mesma forma, os que se identificavam como negociantes buscavam recursos prioritariamente junto àqueles de mesma ocupação. Fatos que demonstram que a boa circulação de informações, o conhecimento das condições de mercado e, infere-se, as relações pessoais desempenharam um papel importante nessas transações. O capitulo é encerrado com um estudo de caso, o de José Bernardino de Barros, Barão das Três Ilhas, produtor de café de um distrito de Juiz de Fora. Esse caso ganha relevância pela forma como seus credores se articularam em torno dos irmãos do devedor, dentre os quais, Gabriel Antônio de Barros, Barão de São José Del Rey, para reaver seus direitos. A autora demonstra que a ação dos irmãos, administrando as fazendas do devedor, foi pautada pelo desejo não apenas de preservar o patrimônio familiar, mas de garantir os direitos dos quarenta e dois credores.

Um ponto que causa estranhamento é o fato da filiação teórica-metodológica da autora não haver sido explicitada na introdução da obra. Como alertou José Jobson de Arruda (p. 19), na apresentação do livro, essa só é declarada na conclusão, ou seja, quando a autora explicita a influência de historiadores marxistas como Joseph Fontana, François Furet, Eric Hobsbawm e a sua filiação à história quantitativa e serial. O lidar com números, a construção de séries e o manejo de um grande volume de dados são, por si, tarefas árduas que exigem não apenas seleção criteriosa e crítica das fontes, mas também reflexão cuidadosa sobre os métodos empregados. Justamente por isso, sente-se falta de uma discussão mais profunda da metodologia utilizada e de seus pressupostos teóricos na introdução. No entanto, a leitura do livro supre essa lacuna inicial, desvendando um dos méritos da obra. Essa opção metodológica impõe ao historiador muitos cuidados para fugir à armadilha de simplesmente “ler” as tabelas e gráficos ou perder-se em análises baseadas na correção entre variáveis descoladas da realidade. Escapando à armadilha, tão em voga, de tomar o método como um fim em si mesmo, de fazer uma história “sem pessoas”, na qual os números são considerados necessários e suficientes para abrir a janela do passado, Almico busca “qualificar o quantificável” (p. 261). Ela pensa o passado com base nas evidências quantificáveis, as quais analisa em seus contextos para desnudar agentes e processos nem sempre presentes nos estudos sobre a Zona da Mata mineira ou o complexo cafeeiro. Assim, a autora construiu um livro interessante e original sobre um tema aparentemente árduo, revelando, para além de bancos, fazendeiros e grandes negociantes, relações que abrangiam diferentes categorias sociais até então desconhecidas como ofertantes e demandantes de crédito.

Marcia Eckert Miranda – Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: [email protected]


ALMICO, Rita de Cássia da Silva. Em nome da palavra e da Lei: relações de crédito em Minas Gerais no Oitocentos. Rio de Janeiro: 7 LETRAS, 2015. Resenha de: MIRANDA, Marcia Eckert. Entre devedores e credores: o mercado de crédito em Juiz de Fora, MG, 1850-1906. Almanack, Guarulhos, n.12, p. 209-213, jan./abr., 2016.

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