A teoria da história e a história da historiografia ante os desafios contemporâneos: saber histórico, comprometimento ético e ativismos políticos / Revista Trilhas da História / 2020

O dossiê “A teoria da história e a história da historiografia ante os desafios contemporâneos: saber histórico, comprometimento ético e ativismos políticos” surgiu a partir da ação conjunta do GT Nacional de Teoria da História e História da Historiografia da Associação Nacional de História – ANPUH, do Fórum de Teoria da História e História da Historiografia – FTHHH e do grupo de pesquisa Teoria da História e História da Historiografia no Brasil (UFMS), que reúnem pesquisadores de todas as regiões do país e de diversas instituições e níveis de ensino que refletem sobre a teoria da história e a história da historiografia como aspectos substanciais da produção do conhecimento histórico. Um dos propósitos que articulam esses grupos é contribuir para o fortalecimento dessa área de pesquisa não só nos meios acadêmicos, propondo agendas e debates, mas também procurando estabelecer a importância da aproximação desses historiadores com a sociedade e as demandas do tempo presente, ampliando com isso o horizonte de legitimidade social da disciplina e daquelas áreas de pesquisa.

Portanto, esse dossiê, em grande medida, se apresenta como um retrato dessas discussões. No conjunto de textos que se segue o leitor encontrará um debate sobre os múltiplos sentidos atribuídos a pesquisa e a escrita da história, pensada como um processo contínuo de construção, reconstrução e recepção do conhecimento histórico, produzido com base em critérios epistemológicos, teóricos, metodológicos, políticos, estéticos e historiográficos, mas sem perder de vista as suas responsabilidades éticas de atuar como lugar produtor de respostas possíveis para as demandas sociais e políticas de um dado período e lugar, que é sempre o presente a partir do qual o historiador perscruta o passado, visando dentre outras coisas entendimento e orientação.

O artigo que abre a discussão intitulado Rupturas na continuidade histórica e ação política: diálogos entre Hannah Arendt e Walter Benjamin de autoria de Mariana Amaral Fogueral apresenta um debate profícuo e atual sobre a produção do conhecimento histórico a partir das leituras de Hannah Arendt e Walter Benjamin, pensando essa produção a partir dos conceitos de experiência, tradição e narrativa e estabelecendo-a como horizonte político qualificado para reivindicar a intervenção direta em questões práticas do tempo presente, oferecendo um superávit cognitivo capaz de restaurar as expectativas no potencial humano, de produzir futuros menos sombrios e obscuros que o nosso presente.

Outro texto que investe nessa atualização do sentido histórico é Pós-Modernismo e Teoria da História: o relativismo revisitado, de Manoel Gustavo de Souza Neto. Nele o autor analisa o papel da linguagem na História dialogando com dois autores tidos como pós-modernos – Hayden White e J.F.Lyotard – para questionar o sentido corrente de algumas interpretações que reduzem o pós-modernismo a equiparação direta e rasa dos estatutos epistemológicos da História e da Literatura. Com essa proposta, o autor defende a primazia deste debate para a compreensão de uma necessária conciliação entre os critérios científicos da pesquisa histórica com a dimensão poética, atualizando estes autores com base em questões que já estavam sinalizadas para a pesquisa histórica desde o historicismo.

Ainda nessa senda de debate sobre representação e epistemologia histórica, o texto Emergentismo e representância: o debate historiográfico entre White e Ricoeur, de autoria de Dagmar Manieri, apresenta um debate que atualiza o sentido de objetividade histórica ao fazer uma leitura de White que ao mesmo tempo em que rebate algumas de suas proposições, incorpora outros de seus argumentos pensando-os e relacionando-os às discussões da epistemologia da história produzida por Paul Ricoeur.

Aprofundando e diversificando essas reflexões sobre a escrita da história a partir do eixo objetividade e narrativa o texto A subjetividade neoliberal contemporânea versus histórias baseadas na alteridade: identificação narrativa, linguagem e escrita da história de autoria de João Camilo Grazziotin Portal coloca como uma questão premente reconhecer que a disciplina histórica, tradicionalmente, afastou a imaginação e a subjetividade de sua narrativa, baseada numa preocupação com a verdade. Nesse sentido, o autor defende com base num diálogo com Judith Butler e Christian Dunker que a história precisa assumir seu papel de produção de corpos e inserir artifícios imaginativos e mnemônicos a partir de novas linguagens e problemáticas, principalmente se quiser alcançar públicos mais amplos que o dos pares.

Refletindo sobre subjetividade, alteridade e escrita da história, o texto Interseccionalidade como categoria de análise na Revista Estudos Feministas (1992-2019), de autoria de Janai Lopes Harin apresenta a historicização da apropriação desta categoria nos trabalhos deste periódico tão significativo para os estudos de gênero e a teoria feminista no Brasil. Para além de uma história das apropriações e usos de uma categoria de análise histórica, o texto também apresenta uma reflexão historiográfica, sobre o lugar e a importância das revistas especializadas na produção da pesquisa histórica no Brasil.

Tendo como mote analítico as categorias imaginação, estética, narrativa e performatividade o texto Paul Gilroy e a Black Britain: a figuração-performativa da narrativa e a escrita antirracista da história, de autoria de Gabriel Gonzaga apresenta uma contextualização do pensamento do autor através de um esforço de definição do seu conceito de diáspora, para inquirir sobre a possibilidade de identificar uma historiografia antirracista em sua obra e como esta pode ser mobilizada para o enfrentamento político de tais questões no presente.

A relação entre tempo presente e produção historiográfica é colocada em primeiro plano pelo texto O que a COVID-19 tem a dizer aos historiadores? Uma breve reflexão sobre o presente e o futuro historiográfico, de autoria de Marlon Ferreira dos Reis. Nele o autor professa a importância da teoria da história e dos historiadores profissionais colocarem a crise político-ambiental, escancarada pela pandemia, como um tema central das análises históricas objetivando formas de enfrentamento das fake news, dos diversos negacionismos e do anticientificismo de uma maneira geral, o que no atual contexto de pandemia no Brasil têm atingido as ciências como um todo, colocando em cheque a legitimidade social do conhecimento científico e sua capacidade de dar respostas a crises como essa que vivemos.

Na mesma trilha de pensamento do texto anterior, mas desbravando outros espaços históricos e geográficos, o texto Pensando o papel social do historiador a partir da publicação do Manifesto de Historiadores no Chile (1998-1999) assinado por Lays Correa da Silva coloca como problema central a questão ética que evolve o trabalho nos historiadores no seu fazer historiográfico. Essa análise da experiência professada no manifesto dos historiadores chilenos contra os usos públicos do passado ditatorial do Chile que tentavam enaltecê-lo ou oferecer uma leitura laudatória tem muito a dizer numa perspectiva comparativa sobre as demandas postas aos historiadores brasileiros diante de um governo que trabalha para monumentalizar o passado, fazendo tabua rasa da violência, flertando com a morte na medida que além de elogiar a tortura e torturadores publicamente, nada faz para impedir a proliferação de uma doença que já matou mais de 60 mil pessoas e segue contando…

O texto A cultura brasileira na síntese de Fernando de Azevedo de autoria de Wilson de Sousa Gomes retoma e aprofunda uma discussão corrente na historiografia brasileira de pensar os debates acerca da interpretação do Brasil e da formação nacional por meio da análise da obra de um dos seus maiores expoentes. Esse olhar para o passado mediado pela fonte, carrega um desejo fecundo e manifesto de pensar a sociedade brasileira contemporânea por meio da compreensão da historicidade de suas mazelas.

O texto (In)Confiabilidade da Memória como Introdução à Interpretação Temporal da Lembrança: um diálogo com Aleida Assmann, de autoria de Rodrigo Tavares Godoi, propõe um diálogo crítico com a autora alemã pela via de uma hermenêutica da memória estruturada no pensamento de Henri Bergson. O diálogo com a autora é mediado por um esforço reflexivo de pensar a tensão entre experiência e historicidade. A ênfase do texto recai na reflexão da memória a partir de uma dimensão retórica que se vincula há algumas ideias de história trabalhadas pela historiografia.

Como nos faz lembrar o histórico e o título da Revista Trilhas da História: “trilhas são frestas costumeiramente abertas em lugares ditos ermos, quando buscamos construir novos caminhos ou mesmo encurtar aqueles já existentes”. Elas se desenham pelo percurso de muitos passos e na tentativa de romper com as vias oficiais que se instauram. Nesse sentido, esse conjunto de textos aqui reunidos, seguindo uma orientação proposta pelo dossiê, se propuseram a apresentar a partir de suas experiências de pesquisa trilhas possíveis que podem ser percorridas e pavimentadas por outras pesquisas no futuro.

Boa leitura a tod@s, estamos certos de que será apenas percorrendo as trilhas do conhecimento que poderemos desbravar um amanhã menos tenebroso, mais humano e sustentável.

Luiz Carlos Bento – Professor Doutor (UFMS / CPTL)

Wagner Geminiano dos Santos – Professor Doutor (Redes municipais de ensino de São J. C. Grande e Água Preta – PE)

Organizadores do dossiê


BENTO, Luiz Carlos; SANTOS, Wagner Geminiano dos. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.9, n.18, jan. / jun., 2020. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê