Saber na Idade Média / Textos de História / 2001

Apresentação

Na abertura do colóquio de Cerisy- la -salle em 1991, Jacques Le Goff,’ ao falar da evolução da historiografia medieval enfatizou como esta evolução se fez sempre com a aproximação de outros campos do conhecimento. A história medieval constituiu-se, assim, ao longo dos anos, um lugar de confluência de várias disciplinas e de distintas práticas metodológicas, que transformaram a Idade Média em lugar — objeto de reflexão —.

De fato a Idade Média que vem suscitando um grande interesse, colocou a história medieval como disciplina mestra da história; inovou na escolha dos objetos; ditou regras com propostas metodológicas arrojadas; ampliou a relação com outras disciplinas. Converteu-se em última palavra, em um campo interdisciplinar por excelência. Atualmente, a Idade Média não só serve de ponto de referência para o estudo de outras épocas, como a proposta metodológica dos medievalistas inspira, com freqüência, os demais historiadores.

De Marc Bloch a Georges Duby, na França, a história medieval ganhou uma grande importância graças ao desenvolvimento de pesquisas, que sem abandonar a erudição, derrubaram os antigos chavões. Prova disso, é a extensa bibliografia do Grupo Antropologia Histórica liderado por Jacques Le Goff, que vem demonstrando a importância dos tempos medievais na construção das sociedades modernas. A repercussão foi imediata, ultrapassou as fronteiras européias e conquistou historiadores no novo mundo. Os trabalhos de Patrick Geary e Andrew Lewis nos Estados Unidos ganharam merecida notoriedade; e na América Latina, as associações de estudos medievais revelam grande vitalidade.

No Brasil têm-se, seguidamente, discutido os obstáculos enfrentados pelos medievalistas. Dentre os mais apontados, salienta-se a indisponibilidade de fontes primárias, a pouca dedicação dos estudantes no estudo do latim, ou mesmo de línguas estrangeiras, a situação subalterna que a disciplina se encontra na maior parte das universidades brasileiras2 Na verdade, formou-se um ciclo vicioso difícil de ser vencido. Na medida em que a disciplina não é valorizada no ensino secundário, acentua- se a tendência à generalização. Ao ingressar no curso de História, não é apenas o domínio do ladm ou de línguas estrangeiras que falta aos jovens calouros. Boa parte não domina, como se desejaria, o conhecimento de história. A pouca importância, ou mesmo o ínfimo valor atribuído a Idade Média, faz com que a matéria seja ministrada de forma descuidada. Uma simples leitura nos programas de ensino de primeiro e segundo graus do Distrito Federal permite constatar a permanência de preconceitos.

Na universidade o desconhecimento da história medieval é um fato. É significativo o número daqueles que consideram que “não temos nada a ver com a Idade Média” e, que, em situações precisas, decida-se da superioridade ou peso de tal disciplina sobre os remotos tempos medievais.

Nos guetos formados pelas áreas de conhecimento, perdeu-se a noção elementar de que a história é um processo e que a especialização não implica na ignorância do processo histórico em sua totalidade. Nesse sentido, Maria Guadalupe Pedrero-Sánchez referindo-se a legitimidade dos estudos medievais no Brasil, afirmou que: a História do Brasil somente será compreendida partindo-se dos antecedentes da sua inserção na chamada Civilização Ocidental. Dessa maneira, sem boas aulas de História Medieval – ou Antiga – o futuro investigador, no Brasil, deixará de captar aspectos diversos e relevantes da própria história.

3 A despeito da ampla reflexão que vem se desenvolvendo acerca do ensino e da pesquisa da história medieval no Brasil, constata-se porém, que é dura a resistência no interior dos departamentos de História do país afora. Os dados são claros: muitos departamentos não possuem medievalistas e não é raro o caso em que o professor de história medieval acumula o ensino da disciplina, com a de Antigüidade ou com a de Idade Moderna.

Necessário se faz reconhecer que a Universidade deve assumir o seu compromisso na formação de pesquisadores, mas também de professores para o ensino secundário. Nos Estados Unidos tem-se constatado que a especialização crescente dos professores universitários, muito mais voltados para a pesquisa do que para o ensino, tem resultado no quase abandono da formação básica. A busca de financiamento para a pesquisa, mas também de prestígio pessoal, distanciaram o professor do ensino.

No máximo ele comunica a seus alunos o resultado e o método da pesquisa que, no momento, desenvolve4 . Na França, os pais da História Nova expressaram sua preocupação com a maneira bastante perigosa que a Nova História penetrou no ensino secundário5 . No Brasil a situação é análoga, provocando uma série de distorções. No que toca à Idade Média, forçoso é reconhecer que não nos livramos dos preconceitos, nem fora, nem dentro das instituições.

Os textos aqui apresentados resultam do esforço que os seus autores vêm realizando nos últimos anos, no sentido de demonstrar as possibilidades da pesquisa sobre a Idade Média no Brasil e o espaço que a disciplina deve assumir no interior das universidades. A maioria dos trabalhos foram apresentados na I I I Semana de Estudos Medievais6, realizada em Brasília, em outubro de 1996. Incorporaram-se também, outras colaborações, que pertencem a membros do Programa de Estudos Medievais, PEM/UnB-UFG’. Os textos reunidos tratam da produção do saber na Idade Média, revelando também, o lado prático deste saber, posto em prática na organização da vida no interior dos conventos, seja do ponto de vista da produção da sua própria regra, seja do ponto de vista da vida material. Na primeira parte, intitulada “O universo feminino”, Dulce Oliveira Amarante dos Santos analisa as representações corporais e a discussão sobre os pecados, apoiando-se em duas obras eclesiásdcas ibéricas da primeira metade do século X I V : o Livro das Confissões de Marfim Pere% e o Status et Planctus Ec/esiae, de Á l v a r o Pais. Em “A querelle des femmes”, Claudia Costa Brochado demonstra como, a partir do século X I I , as mulheres passaram a ocupar espaços tradicionalmente masculinos, aumentando a tensão entre os sexos. O movimento denominado querelle des femmes é abordado por Claudia Brochado, tomando como referência, a participação de Isabel de Villena, autora de Protagonistes Femenines a la Vita Christi; espécie de resposta a misoginia literária da Baixa Idade Média. No artigo seguinte, “Clara de Assis, a presença feminina no movimento franciscano”, Teresinha Duarte demonstra a luta de Clara de Assis para formação de sua Ordem e aprovação de uma Regra, que não se enquadrava na observância de uma Regra monástica tradicional. Clara logrou elaborar uma Regra específica, que foi aprovada por Inocêncio IV em 1253, mas apenas para o mosteiro de São Dam ão.

Os mosteiros encontram-se no cenrro das preocupações dos textos que compõem a segunda parte, “Monaquismo e cristandade ocidental”.

Considerando ser redutor e equivocado supor que o monaquismo nasceu da função protestatória contra o sistema de Cristandade ou Império cristão, e que, o protesto destinava-se contra a Igreja ou o clero, Francisco José Silva Gomes, em “Peregrinado e Stabilitas: monaquismo e cristandade ocidental nos séculos V I a V I I I ” , afirma que o protesto destinava- se contra o que era considerado, por alguns cristãos, como uma mundanização do cristianismo e da Igreja. Francisco Gomes dedica-se à análise de dois modelos da espiritualidade monástica na Cristandade Ocidental da Alta Idade Média — peregrinatio e stabilitas – modelos anteriores ao monaquismo, mas, que foram apropriados e redefinidos para servirem à espiritualidade monástica. Em “O Couto de Alcobaça: matriz de um novo ordenamento sócio — econômico na Estremadura Portuguesa”, Celso Silva Fonseca contextualiza os princípios de defesa, ampliação e colonização do limes portucalense à partir do século X I . Dentro deste contexto foram doadas, no início do século seguinte, as terras de Alcobaça a Bernardo de Claraval. Tal doação teve importantes conseqüências para todo o reino português. Os monges cistercienses, afirma o autor, por princípios doutrinários e pelos conhecimentos técnico — agrícolas, obtiveram excedentes de produção que foram comercializados. A ascensão da Ordem Cisterciense, graças a sua autonomia e centralização, garantiu o desenvolvimento dessa colonização até meados do século XIV. “A Regra de São Bento e a arte: questões acerca do não dito”, de Maria Cristina Pereira analisa a contradição entre a Regra de São Bento, que praticamente ignora a produção artística — apenas um capítulo é dedicado aos artífices do mosteiro —, e a inspiração, que ainda assim, encontra na Regra a Ordem de Cluny, produtora e patrocinadora da arte na Idade Média. O objetivo de Cristina Pereira é discutir esse alheamento e analisar as sutilezas do não dito. Ela busca desvendar a leitura que a Ordem de Cluny fez da Regra de São Bento em relação à arte e à iconografia.

A terceira parte volta-se para o ato de pensar e representar. “Realidade e sonho nas representações dramádcas medievais”, cuja autoria é de José Carlos Gimenez, tem o propósito de estudar as imagens da sociedade castelhana no final da Idade Média. Gimenez toma como base as imagens construídas pelos autores do teatro natalino nas representações dramáticas.

Para o autor é possível, a partir dessas representações e imagens, fazer uma leitura da sociedade e aproximar-se da mentalidade dos protagonistas.

J o s é Carlos Gimenez considera os autos natalinos como uma prática cultural e social religiosa, que concebia uma sociedade inalterável e que, como tal, não devia ser transgredida pelos seus membros. Tomando como fonte os Cosrumes de Beauvaisis, uma das mais importantes obras do século X I I I , Ana Catarina Zema Rezende analisa a obra cuja autoria pertence a Felipe de Beaumanoir e que coloca no papel os hábitos e os costumes já ha muito conhecidos. Chamando a atenção para a influência do direito romano no pensamento jurídico do século X I I I e sua preocupação com a escrita, a autora aborda os direitos senhoriais do conde de Beauvaisis, adotando a c l a s s i f i c a ç ã o proposta por Pierre Charbonnier. Zema Rezende conclui que o coutumier de Felipe de Beaumanoir, enquadra-se historicamente no movimento determinado pelas modificações da organização do senhorio e que as prerrogativas do poder do conde de Beauvaisis eram bastante amplas.

Na última parte, “A Idade Média: em torno da historiografia”, a preocupação dos autores é de ordem historiográfica. No primeiro artigo, “Vocabulário de História Medieval”, Celso Taveira propõe-se a elucidar o vocabulário empregado pelos medievalistas tomando como ponto de parüda 0 Ano Mil de Georges Duby. Trata-se de algumas reflexões anteriormente desenvolvidas em sala de aula, que o autor apresenta, tendo como meta a elaboração de um glossário, que pretende ampliar o universo conceituai das úlümas décadas do século X e o século X I . O último artigo, “Controvérsias historiográficas acerca da doutrina gregoriana” é de Marcelo Cândido da Silva que discute as diferentes abordagens historiográficas acerca da doutrina gregoriana. O autor localiza as raízes das controvérsias, em uma certa ambigüidade presente nos textos de Gregório V I I , a Segunda Sentença contra Henrique IV e a Segunda Carta à Hermann de Met\. Concluindo, para ele, a doutrina gregoriana, na medida em que procurou estabelecer as fronteiras entre os poderes temporal e espiritual, buscou dessacralizar este último. Isto, porém, não implica que desconsiderasse a origem divina do poder imperial.

Notas

1 Jacques Le Goff, “Prefacio”, in: Le mqyen âge aujourd’hui. Paris, Le léopard d’or, 1998.

2 Consultar a respeito José Roberto Melo e Ivone Marques Dias, Anais da II Semana Medievais, Brasília, PEM, 1994, pp 44 – 48.

3 Maria Guadalupe Predrero Sánchez, História da Idade Media, Textos e Testemunhos, São Paulo, Unesp, 1999.

* Cf. A introdução de Júlio Trebolle Barrera em A Bíblia Judaica e a Bíblia Cristã, Petrópolis.Verbo, 1993, p. 7.

3 Jacques Le Goff, A Nora História, Lisboa, Ed.70, s/d.

6 Os Anais da I Semana e da II Semana, foram publicados respectivamente, em A vida na Idade Média, Brasília, Edunb, 1998 e Anais da II Semana, Brasília PEM, 1994.

Desde 1999 o PEM, Programa de Estudos Medievais – UnB, inter-institucionalizou-se ligando-se à equipe de medievalistas da Universidade Federal de Goiás.

Maria Eurydice de Barros Ribeiro – Professora do Departamento de História e do Programa de Pós-Gradução em Artes da Universidade de Brasília.

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