Gênero em debate. Trajetórias e perspectivas na historiografia contemporânea – SAMARA et al (RBH)

SAMARA, Eni de Mesquita; SOHIET, Raquel e MATOS, M. Izilda S. de. Gênero em debate. Trajetórias e perspectivas na historiografia contemporânea. São Paulo, EDUC, 1997. Resenha de: MOREIRA, Maria de Fátima Salum. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.20 n.39, 2000.

Eni de Mesquita Samara, Rachel Sohiet e Maria Izilda S. de Matos são professoras universitárias, vinculadas aos Departamentos de História da USP, PUC-SP e UFF -RJ, respectivamente, cujas trajetórias junto à pesquisa em História têm sido marcadas pela preocupação com as investigações sobre as mulheres e, mais recentemente, também pelos estudos de gênero. Enquanto as análises de Samara e Sohiet denotam as suas preocupações mais marcadamente influenciadas pelos estudos e práticas feministas, Matos tem indicado em seus últimos trabalhos a necessidade de também se valorizar, em enfoques de gênero, as perspectivas de análise relacionadas às experiências vividas pelos homens e a construção das significações sociais relativas ao “ser masculino”. Autoras dos três textos que compõem o livro Gênero em Debate, Sohiet, Samara e Matos apresentam as suas abordagens teóricas particulares e também demarcam os temas e problemáticas aos quais têm dado primazia em seus trabalhos de pesquisadoras.

O que as reúne é o objetivo de discutir os referenciais teóricos de gênero que se fazem presentes na historiografia contemporânea e que têm nas mulheres o seu principal objeto de estudo. Para isto, discutem o contexto nos quais as pesquisas sobre a mulher e sobre gênero surgiram e foram originalmente pensadas, assim como a questão das influências recíprocas entre a produção historiográfica e o movimento feminista. Abordam a crise dos paradigmas e premissas conceituais da ciência moderna, bem como as diversas tendências e correntes teóricas presentes no campo da disciplina histórica contemporânea, situando, a partir daí, os seus pontos de vista quanto aos aspectos teóricos e metodológicos que priorizam na produção historiográfica.

As autoras ressaltam as análises que enfatizam a necessidade de crítica às noções abstratas e universais de homem e de mulher, apontando para a importância em se produzir interpretações que considerem a “diferença dentro da diferença”, isto é, a pluralidadade de masculinos e femininos que se constituem em cada situação histórica particular. Enquanto em seu texto “Outras Histórias: as Mulheres e Estudos dos Gêneros”, Matos ressalta a importância de se entrecruzar elementos como cultura, classe, etnia, geração e ocupação para se acompanhar a diversidade na construção social dos gêneros, em “O Discurso e a Construção da Identidade de Gênero na América Latina”, Mesquita aponta para a necessidade de atenção para as variáveis raça e classe, visando a “realizar estudos comparativos que vão nuançar as diferenças mas, ao mesmo tempo, realçar e permitir o entendimento dos pontos em comum das “identidades femininas”1.

Embora Sohiet, em “Enfoques Feministas e a História: desafios e perspectivas” também indique a crítica historiográfica que opôs as categorias históricas universais às idéias de diferença e de múltiplas identidades para as mulheres, a sua reflexão propõe um debate mais voltado para os pressupostos da história social que têm como eixo a investigação das relações de poder travadas nas lutas do viver cotidiano, com ênfase na análise das práticas e representações que constituem a experiência social e cultural dos sujeitos. Deste modo, a autora destaca a importância do trabalho com a categoria gênero nos estudos referentes aos interesses e jogos de poder relativos às políticas de Estado e demais instituições sociais. Porém, a sua ênfase é para a necessidade de um trabalho voltado para a história do cotidiano e das mulheres, de forma a garantir maior visibilidade aos processos sociais em que estas viveram “papéis informais, situações inéditas e atípicas”. Insistindo, portanto, no estudo das lutas e poderes das mulheres, inscritos em uma “experiência feminina”, a autora apresenta as suas ressalvas a uma historiografia sobre as mulheres que seja construída dentro dos mesmos pressupostos metodológicos e mesmos marcos políticos e cronológicos de uma história escrita pelos setores dominantes e do ponto de vista masculino.

Analisando a produção bibliográfica, principalmente a brasileira e européia ocidental, as discussões de Matos levantam questões em torno dos novos desafios colocados para o trabalho do historiador, a partir da “politização do privado e da privatização do público”, considerando-se a “pluralidade de possíveis vivências e interpretações em relação às diferentes dimensões da experiência social, inclusive, a da trama das relações cotidianas”2. Indica, ainda, para o campo de controvérsias que se encontra aberto e que requer a continuidade dos debates sobre o trabalho com o conceito de gênero em torno de problemas tais como os de “definição, fontes, método e explicação”. A sua crítica, entretanto, ressalta o quanto a produção historiográfica tem privilegiado “o enfoque das experiências femininas em detrimento de seu universo de relações com o mundo masculino”, sendo poucos os estudos que tratam da masculinidade ou da homossexualidade, “deixando de revelar a pluralidade dos masculinos e femininos”3.

Mesquita propõe uma discussão em torno da utilização das categorias gênero e identidade nos estudos sobre as mulheres na América Latina. A sua preocupação é discutir como a historiografia tem abordado a “condição feminina e as relações entre os sexos na América Latina” e para isto apresenta aos seus leitores uma discussão da ampla e variada produção bibliográfica mais recentemente publicada nos Estados Unidos e em vários países da América Latina. Conclui que, “apesar das tradições culturais comuns, é impossível traçar um perfil único para a mulher da América Latina”, sendo que a complexidade da vida destas mulheres deve ser remetida a uma reflexão sobre a diferença “nas práticas cotidianas, no discurso, no processo de socialização e na construção da identidade social de gênero”4. A autora realiza, ainda, uma discussão sobre o significado do “marianismo” e do “machismo” na construção dessas identidades de gênero.

Os textos indicam tanto para os impasses e tensões que permeiam a discussão do conceito de gênero diante da impossibilidade em se trabalhar com categorias definitivas ou precisas no campo da ciência atual, como para a carência de um aprofundamento da discussão teórica e interpretativa que fundamenta estudos sobre gênero, sugerindo a necessidade de adensar a bagagem conceitual e intelectual que envolve tal categoria. Sem dúvida, no campo geral dos estudos históricos, é necessário que se realizem e concretizem trabalhos que permitam avançar para além de meras descrições ou apresentações de determinados temas ou matérias. Ao invés disto, é preciso que se venha a propor novas configurações interpretativas e conceituais, as quais possam servir de suporte e de ferramentas para a descoberta de outras realidades históricas.

Constituindo-se em um importante referencial para a ampliação das reflexões propostas atualmente pelos estudos de gênero, este livro pode corresponder a um duplo interesse do leitor, tanto pela discussão teórica e bibliográfica proposta, como pelo diálogo com autores que são agentes do próprio processo de produção de conhecimento que se propuseram analisar e discutir. Em uma linguagem didática e acessível àqueles que se pretendem iniciar os estudos neste campo historiográfico, e sem incidir na simplicação dos conceitos, tal obra visa a situá-los nos debates teóricos e colocá-los a par da diversificada bibliografia recentemente publicada sobre o assunto.

Notas

1 SAMARA, Eni de Mesquita; SOHIET, Raquel e MATOS M. Izilda S. de. Gênero em DebateTrajetórias e Perspectivas na Historiografia Contemporânea. São Paulo, EDUC, 1997,
pp. 45-46.

2 Idem, p. 105.

3 Idem. p. 106.

4 Idem, p. 13.

Maria de Fátima Salum Moreira – UNESP/Pres. Prudente.

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