Gênero & Interdisciplinaridade | Luciana Rosar Fornazari Kanovicz

Luciana Rosar Fornazari Kanovicz Imagem Unicentro
Luciana Rosar Fornazari Kanovicz | Imagem: Unicentro

A coletânea Gênero & Interdisciplinaridade organizada por Luciana R. F. Klanovicz (2020) inaugura a coleção “Desenvolvimento Comunitário e Interdisciplinaridade”. O livro reúne investigações e experiências de diversas/os pesquisadoras e pesquisadores brasileiras/os de variadas áreas do conhecimento que adotam perspectivas interdisciplinares a partir das quais a categoria gênero é discutida.

O volume está dividido em 16 capítulos, além de sua introdução, que assumem premissas teórico-metodológicas distintas e, ao mesmo tempo, imbricam-se, dialogando entre si e problematizando as relações de gênero em diversos campos ou segmentos da sociedade brasileira – no meio rural, nos espaços institucionalizados das universidades, em museus, no sistema prisional, no sistema de saúde e na mídia. Leia Mais

A Vulva é uma Ferida Aberta e Outros Ensaios | Gloria Anzaldúa

Gloria Anzaldua Imagem American Statesman 1
Gloria Anzaldúa | Imagem: American-Statesman

O ato de falar e de escrever é marcado por relações de poder e atravessado por modelos epistemológicos que tentam suprimir línguas e formas de existir (Conceição EVARISTO, 2021). Questiona-se: quem ousa falar tem o poder de se fazer ouvir? É da complexidade que envolve essa pergunta que sugerimos a leitura de Gloria Anzaldúa. A autora, ao produzir teorias sobre a sua existência nas fronteiras, dá cores e tons a sua linguagem insubmissa que desafiou os olhos do homem branco. A tradução do livro de Gloria Anzaldúa, A Vulva é uma Ferida Aberta e Outros Ensaios, foi lançada no Brasil em 2021, pela editora A Bolha.

O livro reúne seis ensaios e um poema produzidos em momentos distintos da sua carreira. Neles se encontra uma amálgama de discussões sobre as questões de mestiçagem, fronteira, raça, gênero, sexualidade, classe, saúde, espiritualidade, escrita e linguagem, que são questões centrais em sua obra. Cláudia de Lima Costa e Eliana Ávila (2021), tradutoras da obra de Gloria Anzaldúa no Brasil, assinam o prefácio do livro e destacam a importância da autora para o surgimento da discussão sobre diferenças – sexual, étnica e pós-colonial – no bojo feminismo norte-americano. Já o posfácio é um ensaio de AnaLouise Keanting (2021), professora na Texas Women’s University, em estudos de mulheres, e é a atual depositária do Gloria Anzaldúa Literary Trust. Nesse texto encontramos uma importante reflexão sobre as teorias mais recentes de Gloria Anzaldúa, pós-Borderlands/La Frontera, tornando a leitura de A Vulva é uma Ferida Aberta e Outros Ensaios ainda mais instigante. Leia Mais

A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero | Oyèrónke Oyewùmí

Oyeronke Oyewumi Foto Stine BoePor dentro da Africa
Oyèrónke Oyewùmí | Foto: Stine Boe/Por dentro da África

A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero, fruto da tese de doutorado da socióloga nigeriana Oyèrónkẹ Oyěwùmí, foi lançada originalmente em 1997, nos Estados Unidos, e teve sua primeira edição brasileira publicada no ano de 2021, pela editora Bazar do Tempo.

É logo no prefácio que Oyěwùmí antecipa à leitora aquilo que sua obra não é, a saber, um estudo sobre o que, no pensamento ocidental, se convencionou chamar a questão da mulher. Nos moldes daquilo que vem sendo proposto pelas abordagens do feminismo negro e decolonial, a autora problematiza as teorias feministas hegemônicas que preconizam a ideia de que as categorias de gênero seriam universais, totalizantes e atemporais. Ela argumenta que, no caso dos Oyó-iorubá, sociedade investigada em sua pesquisa, tais categorias não são autóctones, ou seja, não existiam antes do contato com o Ocidente, iniciado através da colonização inglesa na Iorubalândia. Leia Mais

Um feminismo decolonial | Françoise Vergès

Francoise Verges 2021 Imagem Anthony FrancinDivulgacao
Françoise Vergès (2020) | Imagem: Anthony Francin/Divulgação

Un féminisme décolonial, [Um Feminismo Decolonial], de Françoise Vergés, reivindica uma teoria multidimensional do movimento feminista: antirracista, antipatriarcal, anticolonial e anticapitalista. O livro também tece críticas ao movimento feminista civilizatório. Apresentado inicialmente por Flávia Rios, no texto ‘Por um feminismo radical’, traduzido por Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo. A obra é construída por um prefácio à edição brasileira, da própria autora, uma introdução – “Invisíveis, elas “abrem a cidade” – e dois capítulos: “Definir um campo: o Feminismo Decolonial” e “A evolução para um feminismo civilizatório do século XXI”. O livro resulta dos estudos da autora sobre o pensamento feminista e a decolonialidade, publicado originariamente na França, em 2019, e lançado em português, no Brasil, pela Ubu Editora, em 2020.

Um Feminismo DecolonialFrançoise Vergés é cientista política, historiadora, ativista e especialista em estudos pós-coloniais. Graduou-se em Ciências Políticas e Estudos Feministas na San Diego State University (1989) e tornou-se PhD em Teoria Política pela Berkeley University of California (1995) com a tese “Monsters and Revolutionaries: Colonial Family Romance and Métissage” [Monstros e revolucionários: o romance e a mestiçagem da família colonial] (Duke University Press, 1999). Vergés lecionou na Sussex University e na Goldsmiths College (Inglaterra). De 2009 a 2012, presidiu o comitê nacional francês de preservação da memória e da história da escravidão. Entre 2014 e 2018, foi titular do programa Global South(s) no Collège d’études mondiales da Fondation Maison des Sciences de l’Homme e publicou diversos artigos sobre Frantz Fanon, Aimé Césaire, abolicionismo, psiquiatria colonial e pós-colonial, memória da escravidão, processos de creolização no Oceano Índico e novas formas de colonização e racialização. Trabalha regularmente com artistas, tendo sido coautora dos documentários “Aimé Césaire face aux révoltes du monde” [Aimé Césaire em face das revoltas do mundo] e “Maryse Condé: une voix singulière” [Maryse Condé: uma voz singular] (Jérôme-Cécile Auffret, 2002; Paris Triennale, 2012). Vergé também organizou as exposições “L’Esclave au Louvre: une humanité invisible” [O escravo no Louvre: uma humanidade invisível] (Museu do Louvre, 2013), “Dix femmes puissantes” [Dez mulheres poderosas], (2013), e “Haiti, medo dos opressores, esperança dos oprimidos” (2014), ambas para o Mémorial de l’abolition de l’esclavage, de Nantes. (p.139-140) Leia Mais

Morrer para não sofrer: questões de gênero em Castro/PR (1890-1940) | Dulceli de Lourdes Tonet Estacheski

Dulcelli Estacheski e Silvia Delong. As pesquisadoras participaram do Programa CBN Linha Aberta Imagem CBN Vale do Iguacu
Dulcelli Estacheski e Silvia Delong. As pesquisadoras participaram do Programa CBN Linha Aberta | Imagem: CBN Vale do Iguaçu

A obra Morrer para não sofrer, aborda uma temática por vezes silenciada em nossa sociedade, trata sobre o sofrimento que levou mulheres e homens a morte voluntária. Desse modo, sua relevância transpõe as fronteiras da História – área de produção – e pode servir de referência para Sociologia, Psicologia, Ciências Sociais, Filosofia e outras áreas correlatas. A pesquisa elaborada durante o doutorado no Programa de Pós-Graduação em História da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), nos anos de 2016-2019, vem conceituar a autora que está nos Estudos de Gênero há mais de uma década.

Usando inquéritos policiais de 1890-1940 sobre suicídio na cidade interiorana de Castro-PR, Dulceli discorre como padrões estereotipados de gênero foram influências importantes no sofrimento cotidiano e social dessas pessoas, que decidiram por cabo à suas vidas como forma de descanso emocional, físico e/ou psicológico. Decidida a tratar sobre mulheres, homens e casais, ela divide seu livro em quatro capítulos, sendo o primeiro destinado ao “tabu do suicídio”, o segundo à violência, feminilidade e a morte voluntária, o terceiro à apresentação dos homens e o suicídio e o quarto ao debate sobre os romances suicidas. Leia Mais

História oral, gênero e interseccionalidade | História Oral | 2022

Interseccionalidade Patricia Hill
Interseccionalidade, livro de Patricia H. Collins e Sirma Bilge (Detalhe de capa)

O tema deste dossiê evidencia um movimento acadêmico e político na elaboração de conhecimento, voltado à escuta de vozes dissonantes em uma sociedade hegemonicamente branca, sexista e cis heteronormativa. Esse posicionamento se insere no que poderíamos denominar de “uma virada epistêmica” (Veiga, 2020), um “giro decolonial” (Ballestrin, 2013), ou ainda um “giro afetivo” (Lara; Enciso, 2013), produto e produtor de mudanças analíticas implicadas e afetadas (no sentido de afeto e de afetação) por demandas sociais e identitárias e pela entrada de “sujeitos improváveis” em uma universidade historicamente distanciada do perfil da maioria da população brasileira. As políticas públicas de ação afirmativa favoreceram o acesso de negras/os, indígenas, população LGBTQIA+, filhas e filhos da classe trabalhadora, assim como de pessoas que vivem nas mais diversas margens deste país desigual, a um espaço muitas vezes visto como um lugar inalcançável para tais populações.

Essa circulação de sujeitas/os em instituições de ensino e pesquisa, antes deles distanciadas, assim como debates intelectuais posicionados advindos dos feminismos negros e indígenas e dos chamados estudos queer, têm possibilitado e ampliado questionamentos relativos às colonialidades de saber, de ser e de gênero que orientam a ciência e atuam no apagamento ou no silenciamento de classe, gênero e raça. Como afirmou María Lugones, para que se desconstruam as relações de poder que perpassam o conhecimento científico e as próprias lutas políticas, é preciso “viajar entre mundos”, ou seja, habitar mais de um território, reconhecer os (entre)lugares de fala (Ribeiro, 2017) e compreender as diferenças subjetivas, raciais, identitárias e sociais como problemas a serem enfrentados na elaboração do conhecimento, visibilizados e postos ao debate público. Leia Mais

Gênero, sexualidade e redes sociais: a desigualdade social “curtida” e “compartilhada” | Rafael Morato

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Gênero, sexualidade e redes sociais | Detalhe de capa

O livro aqui resenhado foi publicado em 2019, mas as questões que ele nos traz fazem pensar que estamos séculos atrás. Como é possível ainda nos depararmos com o fato de que a nossa sociedade vive para criticar e aprovar a sexualidade e os comportamentos do outro? Estamos na chamada era digital, em que as redes sociais atuam com força e protagonismo nas interações humanas, cada curtida ou compartilhamento feito nesses meios digitais carrega consigo uma carga ideológica muito grande, julgando comportamentos e influenciando opiniões.

Nesse universo de possibilidades que a vida, o corpo humano e as relações sociais nos apresentam, há inúmeras formas de ser e de viver os gêneros e a sexualidade. No entanto, o que se percebe através de redes sociais como o Facebook, por exemplo, é que continuamos nos apegando a críticas pautadas na dualidade, que giram em torno de um modelo de homem e de mulher socialmente construídos, e de uma sexualidade baseada na heteronormatividade, invisibilizando – e muitas vezes condenando – outras formas possíveis de ser e de se relacionar emocional e sexualmente. Leia Mais

A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero | Oyèrónkẹ Oyěwùmí

A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero, fruto da tese de doutorado da socióloga nigeriana Oyèrónkẹ Oyěwùmí, foi lançada originalmente em 1997, nos Estados Unidos, e teve sua primeira edição brasileira publicada no ano de 2021, pela editora Bazar do Tempo. Leia Mais

Gênero & Interdisciplinaridade | Luciana Rosar Fornazari Klanovicz

A coletânea Gênero & Interdisciplinaridade organizada por Luciana R. F. Klanovicz (2020) inaugura a coleção “Desenvolvimento Comunitário e Interdisciplinaridade”. O livro reúne investigações e experiências de diversas/os pesquisadoras e pesquisadores brasileiras/os de variadas áreas do conhecimento que adotam perspectivas interdisciplinares a partir das quais a categoria gênero é discutida. Leia Mais

Slave Trade and Abolition: Gender/Commerce and Economic Transition in Luanda | Vanessa Oliveira

Slave Trade and Abolition, publicado em 2021, é a mais recente obra de Vanessa Oliveira. O livro analisa as estratégias adotadas pelos comerciantes sediados em Luanda face ao processo de transição do tráfico transatlântico de escravos para o comércio “lícito” de produtos tropicais. A obra presta particular atenção às interações sociais entre estrangeiros e a população local nas esferas do comércio, casamento e da exploração da mão de obra africana. Trata-se do estudo social e económico mais aprofundado e abrangente sobre Luanda no período do tráfico de escravos e após a abolição. No livro, a autora procura, com base na micro-história conectada à história global, desvendar as vivências cotidianas experimentadas pelos comerciantes de escravos em Luanda, sem perder de vista as conexões atlânticas dos seus residentes. Semelhante metodologia pode ser observada na obra Crosscultural Exchange in the Atlantic World, de Roquinaldo Ferreira, na qual o autor evidencia os fortes laços culturais e outros que interligavam Brasil e Angola na época do tráfico de escravos.1 Leia Mais

Gender and Diplomacy. Women and Men in European Embassies from the 15th to the 18th Century | Roberta Anderson, Laura Oliván Santaliestra e Suna Suner

1 En marzo de 2016 varios especialistas provenientes de diferentes casas de estudio de Europa y Rusia se reunieron en las instalaciones del Don Juan Archiv (Viena) para reflexionar en torno a la relación entre género y diplomacia entre los siglos XV y XVIII. El evento contó con la coordinación académica de Suna Suner, Laura Oliván Santaliestra y Reinhard Eisendle. El libro que reseñamos, publicado en 2021, recoge los trabajos presentados en el mencionado simposio. Se trata de una publicación de referencia que desarrolla una línea de investigación con notoria actualidad en el mundo académico: la historia diplomática de las mujeres. Leia Mais

Gender in World Perspective | Raewyn W. Connell

Em 2021, no primeiro semestre do segundo ano de uma devastadora pandemia, uma estudiosa veterana da área de estudos de gênero começa a ler a quarta edição de um livro paradidático da área. Escrito em linguagem direta e simples para pessoas jovens – universitárias, principalmente –, o livro bem serviria, a princípio, para uso em sala de aula em países anglófonos, ou nos diversos lugares do mundo que adotam o inglês como língua franca no ensino. E ela se pregunta sobre o valor concreto desse esforço para alunas e alunos do ensino superior no Brasil. Há inúmeros livros paradidáticos desse tipo disponíveis no mercado editorial mundial de língua inglesa, alguns mais gerais, outros mais específicos, e são todos excelentes recursos para docentes do ensino superior confrontados pelo desafio de sintetizar para seus discentes uma enorme quantidade de material relevante. O livro a que se refere esta resenha, contudo, destaca-se pela autoria: foi escrito pela renomada Raewyn Connell, grande figura não só no campo global dos estudos de gênero, como também da sociologia australiana. Leia Mais

Sex, skulls, and citizens: gender and racial science in Argentina (1860-1910) | Ashley Elizabeth Kerr

Todos nuestros huesos persisten al paso del tiempo. Son los últimos registros del archivo viviente que llamamos cuerpo. Frágiles e indestructibles, los restos óseos resisten archivados bajo tierra (o minan) nuestro vínculo con el pasado. Esto parece aún más evidente en una Argentina en la que los restos humanos se han transformado en poderosos agentes de las narrativas históricas. Quizás un ejemplo paradigmático de esto sean los restos de las víctimas del terrorismo de Estado de la última dictadura militar, que, activados por los equipos de antropología forense y los organismos de derechos humanos, se transformaron en actores indiscutibles en los procesos por la verdad, la memoria y la justicia.

Sex, skulls and citizens aborda otros restos: aquellos que durante décadas permanecieron como botines de guerra en las vitrinas de los museos. Este libro se ocupa de aquellos cuerpos violentados por el proyecto expansionista del Estado argentino para indagar sobre los puntos de contacto entre ciencia, raza y sexualidad en la formación de la argentina moderna. Leia Mais

Racismo y sexualidad en la Cuba colonia. Intersecciones | Verena Stolcke

Verena Stolke 2
Verena Stolke | Canal Santiago Morcillo

Racismo e sexualidade em CubaPeço licença para contar uma anedota. Penso que ela ajudará a compreender a importância do recentemente publicado Racismo y sexualidade em la Cuba colonial. Intersecciones. Também, auxilia a contextualizar as contribuições do livro, seja para os estudos de gênero e sexualidade, seja para os estudos de raça, seja para a história da antropologia. O ano era 2011. Eu havia ingressado no Mestrado em Antropologia Social na Unicamp. Em uma das disciplinas obrigatórias o professor responsável, Omar Ribeiro Thomaz, nos apresentou uma série de obras por ele denominadas de “heterodoxas”. Eram trabalhos que incorporavam a dinâmica social, os conflitos, a transformação sociopolítica e traçavam novos caminhos, métodos e técnicas do fazer antropológico. Em síntese, eram investigações de temas antropológicos considerados clássicos, mas realizados por perspectivas analíticas pouco usuais. Marriage, Class and Colour in Nineteenth Century Cuba. A study of Racial Attitudes of Sexual Values in a Slave Society, de Verena Stolcke, publicado originalmente em 1974 e reeditado em castelhano em 2017, era um destes livros.

Como bem salienta a autora (César; Lassali; Stolcke, 2017), é interessante notar que o título da versão em castelhano é mais apropriado que em inglês. Isso porque afirma ela, dimensiona não apenas a intersecção dos temas abordados, como destaca os elementos centrais que organizavam a sociedade cubana na época colonial. Na disciplina, não lemos o livro todo, fruto de sua pesquisa de doutoramento em Oxford orientada por Pierre Rivière, mas as discussões foram importantes para compreender os motivos pelos quais a “heterodoxia” de Verena nos fornecia uma instigante e inovadora maneira de fazer e praticar pesquisa antropológica. O trabalho de campo por ela realizado se centrou em Arquivos Coloniais de Cuba e Espanha. É verdade, porém, que este não fora desde sempre o objetivo da investigação. Stolcke conta que tinha como objetivo estudar as mudanças na família depois da Revolução de 1959. Chegou a ficar alguns meses em Sierra Maestra – juntamente com sua filha e com seu marido que investigava os efeitos da reforma agrária implementada por Fidel Castro – realizando a pesquisa. Entretanto, politicamente havia um contexto delicado e a presença de europeus passou a não ser bem quista. Leia Mais

Gênero, neoconservadorismo e democracia: disputas e retrocessos na América Latina | Flávia Biroli, Juan Marco Vaggione e Maria das Dores Campos Machado

Na América Latina, a década de 2010 foi marcada pela queda do que se convencionou chamar de “onda vermelha”. Fosse por meio de golpes ou eleições, essas mudanças levaram à instabilidade política e ao acentuado crescimento do conservadorismo religioso e do neoliberalismo no continente latino-americano. O resultado mais visível da chegada desse segmento das direitas ao poder vem sendo demonstrado pelo desprezo às políticas de direitos humanos e aos acordos internacionais de garantia de direitos sexuais e reprodutivos. Dessa forma, para sua autoafirmação diante de outras frações do conservadorismo, tais movimentos transformam seus adversários políticos em inimigos, agindo de modo violento contra movimentos feministas e LGBTQI.

É partindo desses pontos que a obra “Gênero, neoconservadorismo e democracia: disputas e retrocessos na América Latina”, de Flávia Biroli, Maria das Dores Campos Machado e Juan Marco Vaggione, traz as seguintes questões: qual (is) é (são) a(s) novidade(s) desses atuais ataques à agenda da igualdade de gênero e da diversidade sexual? Como esses atores conservadores, sobretudo religiosos, incidem sobre as democracias da região? Quais as consequências do uso do gênero dentro das disputas políticas? E quais são os efeitos da polarização em um contexto de erosão das democracias? Leia Mais

Jinga de Angola: a rainha Guerreira da África | Linda M. Heywood

Cercada por mitos e controvérsias, a história da Rainha Jinga já inspirou livros, canções, filmes e movimentos sociais. No Brasil, trabalhos como de Selma Pantoja (2000) e de Mariana Bracks Fonseca (2018) ilustram a importância da rainha Jinga no contexto africano as representações dela ao longo do tempo. Atualmente, o livro “Jinga de Angola: a rainha guerreira da África”, escrito por Linda M. Heywood, é o mais recente e um dos mais completos estudos sobre a história da rainha africana que enfrentou disputas internas e externas para reconstruir o reino do Ndongo entre os séculos XVI e XVII.

A autora tem uma carreira consagrada ao estudo das sociedades na África Centro Ocidental (grosso modo atual Angola), tendo publicado monografias e organizado livros sobre o tema. Seus trabalhos versam sobre assuntos relacionados à política, cultura, poder e diáspora no contexto africano. Entre nós, a produção de Heywood é tímida, resumindo-se ao livro de organização “Diáspora Negra no Brasil” (2008), da editora Contexto, versão do livro Central Africans and Cultural Transformations in American Diaspora, mas composta apenas com artigos relacionados ao Brasil. Leia Mais

El revés de las vacaciones: hotelería, trabajo y género. Mar del Plata, segunda mitad del siglo XX | Débora Garazi

En las sociedades modernas, las vacaciones se conformaron como un tiempo de ocio para el descanso y el esparcimiento. En la Argentina, Mar del Plata, balneario ubicado en el sudeste de la provincia de Buenos Aires, devino un destacado centro de veraneo que, si bien tuvo un origen social elitista, vivió un proceso de democratización hasta llegar a convertirse, al promediar el siglo XX, en una capital del turismo de masas, cuya cara oculta fue un extenso mundo laboral. En El revés de las vacaciones, Débora Garazi estudia el trabajo hotelero, en la ciudad de Mar del Plata, durante la segunda mitad del siglo XX, preguntándose por las experiencias laborales de sus protagonistas.

Este libro, producto de una investigación doctoral financiada por el sistema científico público argentino, se escribe desde la historia social y los estudios de género. Su primer logro es estudiar el mundo del trabajo a través de los procesos laborales que incluyen tanto los espacios y los tiempos como las tareas y los saberes involucrados, así como también tres dimensiones muy particulares como son la económica, la temporal y la emocional; es decir, la autora elige un camino distante del universo sindical y las acciones colectivas, lo cual no significa que desestime ni a las organizaciones gremiales ni a las protestas. Su segundo logro radica en ahondar en las relaciones de género atendiendo tanto a la segregación ocupacional entre personas —mujeres y varones— como a los sentidos implícitos en las tareas. Leia Mais

Concebendo a liberdade: mulheres de cor, gênero e abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro | Camillia Cowling

A edição brasileira do livro “Concebendo a Liberdade: mulheres de cor, gênero e abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro” da historiadora inglesa Camillia Cowling, professora de história da América Latina da Universidade de Warwick, foi lançada em 2018 pela editora da Universidade Estadual de Campinas, São Paulo. O livro é uma tradução do original intitulado Conceiving Freedom: Women of Color, Gender, and the Abolition of Slavery in Havana and Rio de Janeiro, lançado em 2013 pela University of North Carolina Press e, desde 2010, partes da obra já vinham sendo divulgadas em publicações internacionais pela autora.

Cowling trouxe para o centro desta narrativa as histórias de vida (ou pelo menos parte das histórias) de duas mulheres libertas: Ramona Oliva e Josepha Gonçalves de Moraes. Elas transcorrem por toda a obra, desde a introdução, quando a autora nos transporta para os respectivos dias em que estas mulheres, a primeira em Havana, a segunda no Rio de Janeiro, entraram com pedido de custódia de seus filhos nas instâncias judiciais máximas de cada uma destas cidades: Ramona no Gobierno General em Havana em busca de libertar seus quatro filhos María Fabiana, Agustina, Luis e María de las Nieves, e Josepha no tribunal local de primeira instância e depois no Tribunal de Relação no Rio de Janeiro, um tribunal de apelação, em busca de liberta sua filha Maria. Ramona teve que enfrentar “um dia escaldante do verão caribenho de 1883” e Josepha, diferentemente da cubana, “provavelmente sentiu arrepios de frio […] enquanto caminhava pelas ruas da cidade [do Rio de Janeiro]”, em agosto de 1884, quando é inverno na cidade. (COWLING, 2018, p. 23) Leia Mais

História das mulheres e gênero em suas diversas abordagens | História em Revista | 2021

As pesquisas voltadas para os mais diversos âmbitos relacionados à História das mulheres e aos Estudos de Gênero têm se ampliado desde meados do século passado, e, no tempo presente, consolidam esses campos de estudos como importantes áreas de produções acadêmicas. Trabalhos realizados, tanto nas esferas da graduação quanto da pós-graduação, refletem a dinâmica das investigações realizadas e, significativamente, têm contribuído para o fortalecimento dessas temáticas sensíveis. Tendo em vista suas diversas abordagens, permeadas por diferentes fontes, bibliografias, discussões teóricas e metodológicas, essas pesquisas são capazes de conduzir estudiosas e estudiosos desses assuntos a uma gama de novos conhecimentos históricos e epistemológicos.

As autoras e os autores que colaboram com seus artigos para a composição do dossiê, abordam discussões a respeito de sexualidades, construções culturais, preconceitos, desigualdades de gênero, violências, entre outros elementos, de forma que, com seus diferentes diálogos, problematizam os temas, oferecendo reflexões atualizadas e enriquecedoras. Leia Mais

História & outras eróticas | Marcos Antonio de Menezes, Martha S. Santos e Robson Pereira da Silva

Historia e outras eroticas3
Orestes perseguido por las Furias, de William-Adolphe Bouguereau (1862) | Domínio público |

SANTOS M Historia e outras eroticas 2Ninguém vai poder, querer nos dizer como amar
Um novo tempo há de vencer
Pra que a gente possa florescer
E, baby, amar, amar, sem temer
Eles não vão vencer
– Johnny Hooker

Apesar dos constates ataques que a educação e a ciência têm sofrido no Brasil, principalmente nos últimos anos, por conta da gestão genocida empreendida por Jair Bolsonaro bem como por todos os outros ignóbeis que se somam a ele, ainda assim é possível notar uma resistência por parte daqueles que não aceitam abaixar a guarda e continuam firmes na produção de um conhecimento que busca reflexões contínuas da sociedade atual e da pluralidade de indivíduos nela inseridos.

Desse desejo de resistir é que nasceu História e outras eróticas (2020), organizado por Martha S. Santos, Marcos Antonio de Menezes e Robson Pereira da Silva. A obra mostra a que veio logo em suas primeiras páginas, ao dar as boas-vindas aos leitores com uma citação do sociólogo inglês Anthony Giddens que, dentre outros assuntos, investiga as transformações contemporâneas e seus reflexos nas relações amorosas e eróticas, e também com um trecho do single God Control (2019), de Madonna, que em sua música faz um manifesto contra o porte de armas nos Estados Unidos e relembra no clipe da canção o massacre [2] ocorrido em uma boate LGBT, no mesmo país.

A coletânea de textos que se seguem é inaugurada por Tamsin Spargo, que no primeiro capítulo do livro tece considerações abarcando sexo, gênero e sexualidade, partindo principalmente dessas temáticas para promover reflexões que vão desde o tratamento misógino que observou em ambientes de trabalho dos quais fez parte até a maneira como a pornografia colabora para as representações sexualizadas de corpos hiperbólicos. Em seu texto, Spargo dialoga em grande medida com o filósofo Michel Foucault, umas das maiores referências no que diz respeito as temáticas de sexualidade e educação, bem como a relação destes com o poder. Ademais, a autora ainda relembra a publicação de seu ensaio Foucault e a teoria queer (1999), onde ela explora o modo como o pensamento do filósofo teria refletido na construção e entendimento da referida teoria.

Na sequência, Luisa Consuelo Soler Lizarazo reflete sobre as fronteiras sexuais que ainda perduram paralelamente a diversidade de gênero, sobretudo àquelas observadas em sociedades transculturais, ao mesmo tempo em que problematiza a ordem moral que continuamente busca impor um modelo de família funcional apenas à sistemas patriarcais e capitalistas. A autora faz um levantamento de como as questões relacionadas ao assunto foram observadas ao longo dos séculos e evidencia a importância do direito de se exercer a possibilidade de escolha de cada sujeito.

Ao longo do tempo tem-se observando a História e a ficção protagonizando discussões acaloradas que resultaram em mudanças e reestruturações no fazer historiográfico. Seguindo nessa linha de raciocínio, Peterson José de Oliveira constrói seu texto a partir da relação dos historiadores com a verdade e a ficção e traz para o leitor a novela, um gênero um tanto quanto subestimado e ainda pouco estudado. Para suas análises, Oliveira concentra seu trabalho principalmente a partir do uso da montagem e da polifonia, duas formas narrativas essenciais para a construção de O mezz da gripe (1998) de Valêncio Xavier que, por meio maneira de sua narrativa, mescla ficção e realidade e, por conseguinte, reflete sobre os efeitos de verdade presentes na novela.

No capítulo seguinte a autora Lúcia R. V. Romano promove reflexões importantes a respeito das intersecções entre as artes cênicas e o feminismo, elucidando a importância da história para a construção de um diálogo entre os dois campos e pontuando a colaboração cada vez mais notável da historiografia para os estudos feministas. Em seu texto, Romano deixa claro que muitas são as questões atuais envolvendo a história, o teatro e o pensamento feminista e abre espaço para se pensar o artivismo feminista, com ênfase no Madeirite Rosa, um coletivo teatral paulistano.

Outra linguagem artística colocada em pauta ao longo da obra História e outras eróticas (2020) é o cinema, abordado no texto de Grace Campos Costa e Lays da Cruz Capelozi, que trazem para os leitores um debate precioso sobre a representação feminina a partir da filmografia de Catherine Breillat. Em um texto bastante didático e rico em imagens, as autoras apresentam uma discussão que vai de encontro a um tabu ainda muito atual: o prazer feminino. Como objeto de estudo é analisado o filme Romance X (1999) e ao longo do texto, além de conhecer um pouco mais sobre o cinema de Breillat também é possível compreender a forma como ela se posiciona antagonicamente aos estereótipos que ainda são observados no que diz respeito ao desejo feminino em representações cinematográficas.

No capítulo seguinte, Ana Lorym Soares faz um interessante paralelo entre a realidade a qual temos vivido e a distopia, lançando seu olhar para o romance O conto da Aia (1939), de Margaret Atwood. A autora explica que em outras obras de distopia o que se observa é um padrão onde os personagens principais são, na grande maioria das vezes, homens, de modo que no romance estudado, Margaret Atwood inova ao trazer uma mulher como personagem central da obra, fugindo dos padrões observado neste gênero da literatura. Desse modo, além de importantes reflexões a respeito da escrita feminina de Atwood, direito das mulheres e seus corpos enquanto campo de poder, Ana Lorym Soares ainda deixa evidente a importância de um olhar atento a realidade, a fim de que as distopias permaneçam no campo de conhecimento da ficção.

Também no campo da literatura, Marcos Antonio de Menezes, constrói seu texto a partir de romances e poesias, sendo que nas páginas que se seguem os leitores serão levados a refletir sobre a(s) representações do(s) feminino(s) na obra de Charles Baudelaire, levando em consideração questões postas em pauta pelo movimento feminista atualmente. Indo contra a grande maioria das produções literárias do século XIX, tecidas a partir da ótica masculina e burguesa, os leitores poderão conhecer um pouco mais sobre a estética, a recepção e as temáticas abordadas nos enredos de grandes obras, como As flores do mal (1857), de Baudeleire e Madamy Bovary (1856), de Gustave Flaubert.

No capítulo seguinte, Robson Pereira da Silva, apresenta-nos ao subversivo Hélio Oiticia, um dos artistas mais completos e importantes da arte brasileira. No texto é apresentada e discutida a antiarte e a arte de subversão de Oiticica nos anos de 1960 e 1970, onde através da performance o mesmo combatia todo e qualquer autoritarismo institucionalizado. O texto é essencial para compreender as configurações do corpo como objeto inventivo bem como do uso da contraviolência de Hélio Oiticica, que se valia da arte para combater a repressão vivida no contexto da ditadura militar no Brasil. O trabalho de ativistas/artivistas negros queer no estado da Bahia é preconizado por meio do texto de Tanya Saunders, que a partir do seu estudo relacionado a discussões de gênero, raça e sexualidade debate de que maneira se tem observado a construção crescente do “não humano”. No capítulo, o retrocesso vivido atualmente no Brasil é colocado em xeque e debatido através da ótica da colonialidade, do afrofuturismo e da necropolítica, que de maneira cada vez mais pungente e perigosa busca ditar quem têm ou não importância em sociedade.

No capítulo seguinte, Martha S. Santos toca com coragem em uma ferida ainda aberta, especialmente, ao problematizar a importância da compreensão da instituição da escravidão no Brasil a fim de que se entenda de uma vez por todas os reflexos desta para a criação e manutenção de privilégios desfrutados por determinadas classes sociais em nosso país. Em seu texto, a autora busca fazer um rápido balanço historiográfico dos estudos ligados a escravidão nas últimas quatro décadas no Brasil além de apresentar seus estudos, concentrados no interior do Ceará, e dialogar intrinsicamente com os estudos de gênero ao refletir sobre a maneira pela qual mulheres e crianças aparecem inseridas no processo da escravidão.

Com um olhar voltado também para a escravidão, Murilo Borges da Silva dialoga com o texto anterior ao abordar os relatos de viajantes no estado de Goiás, bem como as contribuições destes para a produção de corpos femininos negros e representações do feminino muitas vezes equivocadas.

Em seu texto, Silva trabalha com os relatos de Saint-Hilaire (1975) e Johann Emanuel Pohl (1976) para verificar como as mulheres negras aparecem nestes relatos, através dos quais nota-se que há uma tentativa de silenciamento por parte dos viajantes em questão, que não raras vezes, faziam de seus escritos um lugar seletivo, tornando visível determinados fatos e invisíveis outros, da maneira como lhes era favorável e de acordo com aquilo que consideravam necessário.

Logo em seguida os leitores são postos frente a questões direcionadas principalmente aqueles que se dedicam a produção de conhecimento, pois Fábio Henrique Lopes lança um problema grave que diz respeito a maneira como muitas vezes utilizam-se de pessoas transsexuais e de outras identidades de gênero apenas como objetos de estudo. Partindo dessa colocação, o autor torna possível um olhar mais atento ao lugar de fala que cabe a nós, pesquisadores. Aqui, fica claro que é necessário que haja um repensar do fazer historiográfico e epistemológico de modo a não ferir o outro e deixa a todos uma breve, mas, importante advertência: “incluir, excluindo é fácil […]” (LOPES, 2020, p. 276).

O próximo capítulo é um nó na garganta, daqueles que a cada palavra lida cresce um pouco mais, pois logo de cara, Miguel Rodrigues de Sousa Neto e Diego Aparecido Cafola lançam alguns fatos que não podem serem ignorados: a heterossexualidade e a cisgeneridade compulsória tem acarretado na invisibilização e precarização da existência da população LGBTQI+ e, consequentemente, na sua eliminação física. Os autores afirmam que o conhecimento produzido na academia não tem ultrapassado seus muros e que os reflexos dos discursos construídos em cima de conservadorismos podem ser notados cada vez mais através da violência com que a população LGBTQI+ tem sido alvo constante. Em um texto tocante, os autores colocam em xeque a noção atual de humanidade e questionam o processo de exclusão de grupos marcados pela diferença, ou melhor, que as maiorias silenciadas têm sofrido.

No texto que se segue as problemáticas levantadas dialogam com estas do texto anterior, porém, são levadas para o espaço escolar ao demonstrar como a escola tem atuando como agente da normatividade. Neste capítulo, Aguinaldo Rodrigues Gomes problematiza a hierarquização e o silenciamento de corpos dissidentes por meio do discurso falacioso da “ideologia de gênero” difundida, inclusive, como uma das principais bandeiras levantadas e defendidas durante a eleição de Jair Bolsonaro. O autor reitera os ataques aos quais a educação tem sofrido no campo dos estudos de gênero e da educação sexual, além de expor o cerceamento de professores, aos quais os conservadores e reacionários tentam colocar em uma redoma cujas grades é a ignorância e o preconceito.

Por fim, o último capítulo traz aos leitores uma “greve selvagem” que resultou na derrota do capitalismo em uma luta protagonizada por estudantes e trabalhadores. Em seu texto, João Alberto da Costa Pinto aborda a Revolução do Maio de 1968, a mais importante revolução anticapitalista do século XX. Sua análise parte da trajetória política e teórica de Raoul Vaneigem e se expande para outros militantes que fizeram parte do movimento que ficou conhecido como Internacional Situacionista (IS). De forma clara, Pinto explana o que levou dez milhões de trabalhadores e estudantes a frearem o capitalismo na França de forma totalmente espontânea e auto-organizada.

Dessa feita, levando em consideração o cenário hostil em que a produção de conhecimento científico se encontra em discrédito, como política de governo, bem como os ataques que as populações negras, índigenas, de mulheres e LGBTQI+, sobretudo àqueles sujeitos e sujeitas marcadas pela pobreza e precariedade da vida e do mundo do trabalho tem sofrido cotidianamente com as políticas de morte e indiferença, conclui-se que a coletânea de textos reunida em História e outras eróticas (2020) além de sinônimo de resistência é também um contributo a produção intelectual que se preocupa em pensar, refletir e problematizar os campos de estudo da política, raça, femininos e performatividades de gênero. Nas páginas desta obra, os leitores irão encontrar questionamentos relevantes acerca de temas atuais e necessários, fazendo com que a obra se configure como um alento a defesa dos direitos humanos, revestido de esperança, força e coragem para continuar na luta por igualdade.

Nota

2. O massacre na boate “Pulse” aconteceu em Orlando, no dia 12 de junho de 2016. Na data, Omar Mateen abriu fogo dentro do local e assassinou quarenta e nove pessoas e deixou cinquenta e três gravemente feridas.

LOPES, Fábio Henrique. Efeitos de uma experimentação político-Historiográfica com travestis da primeira geração. Rio de janeiro. In: MENEZES, Marcos Antonio de; SANTOS, Martha S.; SILVA, Robson Pereira da (org.). História & outras eróticas. Curitiba: Appris, 2020.

MENEZES, Marcos Antonio de; SANTOS, Martha S.; SILVA, Robson Pereira da (org.). História & outras eróticas. Curitiba: Appris, 2020.

Natália Peres Carvalho – Graduada em História pela Universidade Federal de Goiás e mestranda no Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da Universidade Federal de Goiás. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9841094387536865. E-mail: nperescarvalho@gmail.com.


MENEZES, Marcos Antonio de; SANTOS, Martha S.; SILVA, Robson Pereira da (org.). História & outras eróticas. Curitiba: Appris, 2020. Resenha de: CARVALHO, Natália Peres. História & outras eróticas (2020) – Uma obra urgente e necessária. Albuquerque. Campo Grande, v.13, n.25, p.184-188, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [IF].

História & Outras Eróticas | Martha S. SAntos e Marcos Antonio Menezes

O que pode um corpo sem juízo? Quando saber que um corpo abjeto se torna um corpo objeto e vice-versa? Não somos definidos pela natureza assim que nascemos Mas pela cultura que criamos e somos criados

Sexualidade e gênero são campos abertos

De nossas personalidades e preenchemos

Conforme absorvemos elementos do mundo ao redor

Nos tornamos mulheres – ou homens,

Não nascemos nada

Talvez nem humanos nascemos

Sob a cultura, a ação do tempo, do espaço, história

Geografia, psicologia, antropologia, nos tornamos algo

Homens, mulheres, transgêneros, cisgêneros, heterossexuais

Homossexuais, bissexuais, e o que mais quisermos

Pudermos ou nos dispusermos a ser

O que pode o seu corpo?

Jup do Bairro.

História & Outras Eróticas, organizado por Martha S. Santos, Marcos Antonio Menezes e Robson Pereira da Silva, é fruto de um esforço científico coletivo que extrapola a materialidade dos textos que compõe a obra. O troca-troca cultural entre arte e agenda política (MEIHY, 2020, p. 13) que nos chega, tem origem na realização do VI Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Goiás, Regional Jataí. Desta feita, os louros pela excelência são creditados aos/às autores/as e estendem-se aos discentes e docentes do Curso de Licenciatura em História da referida universidade, bem como, à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pelo investimento na produção científica brasileira. Leia Mais

Mulheres por dentro e por fora de África: caminhos e possibilidades no debate de gênero | AbeÁfrica | 2021

A ideia que esteve na origem do dossiê que aqui apresentamos foi gestada a partir de uma mesa coordenada por uma das coorganizadoras deste volume, Andréa Lobo, do título “Mulheres africanas vistas por mulheres brasileiras”, tendo integrado algumas das contribuidoras4. A proposta da mesa foi a de reunir e confrontar experiências empíricas de estudiosas brasileiras e africanas, no continente africano, tendo como foco principal destacar os processos de produção e reprodução social efetivado por mulheres no cotidiano de suas sociedades, bem como refletir sobre a produção de conhecimento de mulheres (e homens) africanos/as sobre suas próprias dinâmicas sociais. Nesse sentido, o nosso objetivo foi o de debater sobre o “feminino”5 a partir das perspectivas das mulheres, tanto no ambiente doméstico quanto no espaço público e comunitário. Foi possível vislumbrar, a partir das discussões, a forma como se configuram as relações sociais e de poder a partir de dinâmicas de gênero em contextos específicos africanos, ressaltando dimensões importantes como a da emancipação, a da autoconsciência e a da capacidade de agenciamento das mulheres africanas.

Cabe salientar que as percepções e abordagens trazidas por essa mesa permitiram aprofundar a compreensão não apenas da complexidade que caracteriza o campo dos estudos africanos e de gênero, que envolvem vidas, cotidianos e o imaginário de mulheres e homens africanas/os, pelo olhar delxs própri@s e/ou de outr@s. A partir de uma perspectiva comparada, foi-nos possível estabelecer algumas conexões interessantes bem como vislumbrar possibilidades de agendas comuns e experiências partilhadas: questões como a construção da autonomia no espaço público, a luta antirracista e a participação histórica das mulheres nas construções dos estados africanos independentes, tendo em conta as narrativas das mulheres e suas experiências e trajetórias, nos demonstraram que existem diálogos possíveis e utopias que poderão se transformar em realidades, ainda que precisemos aprofundar amplamente nossos conhecimentos sobre as tantas histórias das mulheres e suas vivências, a partir de suas próprias vozes. Leia Mais

Fortineras, mujeres en las fronteras. Ejércitos, guerras y género en el siglo XIX | María Cristina Ockier

El presente libro recupera los resultados obtenidos en la tesis de maestría en género de Ockier. La autora se ha dedicado a la historia del alto valle del Río Negro, particularmente al período correspondiente a la “Conquista del desierto”, y en este trabajo continuó en esa línea de estudio en clave de género. En las últimas décadas los estudios en perspectiva de género se han incrementado y en gran medida se debe al esfuerzo de los movimientos feministas. Empero, los trabajos previos que refieren a las fortineras, las mujeres de las que se ocupa Ockier, se han limitado a un carácter sobre todo descriptivo, que sin duda han contribuido en el rastreo y conocimiento de las mismas al momento de elaborar el estudio más reflexivo y analítico que aquí se reseña. Ockier no solo va a dar cuenta de las actividades que realizaban dichas mujeres en los campamentos, sino que además devela el entramado de jerarquías y poderes en las relaciones sociales que se construyeron en base al patriarcado. Y en relación a ello observó cómo las mujeres resultaron desplazadas de las tareas socialmente consideradas de mayor relevancia, entre ellas la actividad militar.

El libro se estructura en tres partes. En la primera, que consta de dos capítulos, la autora se pregunta: “¿Dónde radica la particularidad del quehacer militar? En los fortísimos significados y representaciones de género que lo atraviesan” (p. 5). De este modo, pretende desmentir la idea biologicista de que las mujeres son incapaces de ejercer violencia. Concepto que ha conllevado a representar a las mujeres guerreras – Juana de Arco, las amazonas, Boadicea, entre otras– como figuras excepcionales, personajes románticos, no naturales. La autora realizó un recorrido histórico e historiográfico sobre diversos estudios que han analizado el papel de las mujeres en la guerra en diferentes contextos. Primeramente, lo hizo a una escala internacional e incluyó no solo relatos de mujeres occidentales, sino también orientales, para luego acercarse a los estudios latinoamericanos que han recuperado las voces de las mujeres que intervinieron en diferentes batallas, entre ellas: las amazonas, las paceñas, las cochabambinas que participaron en las Guerras de Independencia, las matriarcas, andarilhas y vivandeiras del Brasil que estuvieron en la Guerra del Paraguay, y las adelitas de la Revolución Mexicana. Asimismo, menciona a mujeres individuales, como Machaca Güemes, Juana Moro, Javiera Carrera y muchas más… Todas fueron enmarcadas bajo dos estereotipos o representaciones: de víctima o de bravura. El androcentrismo ha conllevado a crear esas imágenes dado que no es “natural” que una mujer tome las armas o ejerza la violencia. Leia Mais

Michael Young, Social Science & The British Left, 1945-1970 / Lise Butler

BUTLER Lise 1

Design sem nome 1All historical actors ultimately defy our neat labels. Practically speaking however, some are more defiant than others. One such figure is the dynamo ‘social entrepreneur’, Michael Young. (1) It has become a cliché to rattle off the dizzying array of institutions, projects and ideas with which Young was involved in his long and energetic career. But then, it is difficult to resist a list as eye-catching as: the Labour Party’s 1945 manifesto; the foundational sociology text Family and Kinship in East London (1957); the concept of ‘meritocracy’; the Consumer Association and Which? Magazine; and the Open University. While Young’s professional life is tricky to pin down, its diversity–and his archive at Churchill College, Cambridge–offers a promising avenue through which to approach post-war Britain. In this rich, textured, and revelatory book, the historian Lise Butler has seized this opportunity with both hands. Leia Mais

Lésbicas e Professoras. O Gênero na Docência | Patrícia Daniela Maciel

Um livro traz reflexão e novas compreensões sobre uma temática. Diante da necessidade de dar voz e visibilidade para a questão da lesbianidade na escola, Patricia Maciel escreveu o livro intitulado como “Lésbicas e Professoras. O Gênero na Docência” por ora resenhado.

A 1ª edição foi lançada em Curitiba, no ano de 2017 pela editora Appris. Suas 197 páginas destacam as questões que fogem a norma com o intuito de compreender as relações dos sistemas discursivos hegemônicos dentro da escola. O interesse da autora é romper com sistemas de controle e de assujeitamento dos corpos diante das questões que envolvem a sexualidade, assim, têm como ponto de análise as falas do ser docente lésbico e como rompem com o discurso heteronormativo em sua vida pessoal e profissional, e como confrontam e avaliam essas experiências em torno dos padrões de gênero ao longo da sua carreira profissional.

A forma de subjetivação e de enfrentamento dos padrões patriarcais na atuação profissional das lésbicas é o foco central do livro. Nesse aspecto, os cinco capítulos discorrem sobre atitudes de resistência contra os processos de subordinação heteronormativos e para embasamento, é utilizado Tereza de Lauretis, Judith Butler, Monique Wittig e Margareth Rago visando refletir sobre a representação social do corpo feminino lésbico no ambiente escolar e sua multiplicidade de atuação contra a heteronormatividade.

Para delimitar o objeto da pesquisa, a autora realizou a busca por docentes que se encaixavam no perfil da temática via email por um período de duas semanas. Nove docentes demonstram interesse em participar, contudo, a investigação ocorreu somente com sete que aceitaram realizar as entrevistas. Assim, o ponto inicial do livro visa a autocompreensão subjetiva das docentes lésbicas em torno da relação da escola e gênero. Para isso, destaca a multiplicidade de definições acerca da diversidade e o autorreconhecimento da sexualidade que foi encontrado, entendendo que, ser docente e lésbica não homogeneíza a visão das entrevistadas. Ao conceituar os resultados concomitante as ideias de Jorge Larossa, a autora do texto ora resenhado, discorre que a prática de conhecimento é uma condição de ascese para a experiência de existência.

Como resultado, é destacado três grupos de análise: O primeiro, as docentes podiam falar de si como lésbicas nas escolas. O segundo tem como foco a evidencia das lutas e os enfrentamentos contra os processos de condutas patriarcais no ambiente escolar e a valorização de suas experiências como lésbicas. Por fim, o último grupo de análise destaca como docentes reconstroem a feminilidade fora do padrão heteronormativo no ambiente escolar.

Para reconhecer a heterogeneidade das entrevistadas, a pesquisadora destaca no primeiro capítulo o perfil de cada através da autodescrição. O segundo capítulo descreve o efeito dos discursos de gênero na construção docente. Vale ressaltar que a autora ao se basear nos estudos de Michel Foucault, Judith Butler, Tereza de Lauretis, Linda Nickolson, Paul Beatriz Preciado e Guacira Lopes Louro, os conceitos de sexo/gênero utilizados ultrapassam os conceitos binários e tem como ideia central o dispositivo da sexualidade para descrever os discursos, enfatizando assim, as singularidades dos relatos e experiências sobre gênero de cada docente lésbica.

Tendo como referência as ideias de Foucault, o livro destaca o entendimento sobre o sexo como um poder que ganha legitimidade pela linguagem e práticas e leva o indivíduo a pensar de acordo com determinados domínios do saber. Entender o sexo/gênero como uma tecnologia discursiva que controla o campo das significações sociais e que produzem no sujeito algumas significações é destacado no decorrer da obra a ideia que, a partir das tecnologias dos discursos, se forma uma ideia do “eu” que se conhece e se controla através da sexualidade.

Cabe salientar que a autora respaldada em Louro (2008), descreve a forma que as professoras falam de si mesmas como uma forma de atravessar limites e fazer seu próprio obstáculo para penetrá-los, superá-los e transpô-los e assim, pensar fora da lógica imposta e viverem a sexualidade. Nesse aspecto, incita uma reflexão sobre a instabilidade profissional e pessoal causada pela escola por utilizar a heterossexualidade compulsória como normalizador das condutas sociais do ambiente escolar que reprime as professoras lésbicas para exercerem sua profissão.

Outra singularidade observada é sobre o significado que a escola atribui ao gênero e a forma que influi na relação das professoras com seus alunos. O tom e o sentido que as entrevistadas dão às suas trajetórias como professoras interferem no seu reconhecimento como lésbica. Mesmo que as entrevistadas não falem de forma explicita na escola sobre sua sexualidade elas garantem através do enfrentamento das normas sexistas, a defesa dos alunos gays e das alunas lésbicas, mas isto não garante que a escola fale de forma aberta sobre gênero.

Através dos relatos das professoras é notório que a hegemonia patriarcal no ambiente escolar ainda vigora de forma impositiva e normalizadora. Fugir à regra hegemônica é resistência, desafiar as regras de controle dos corpos é dar voz aos sujeitos em formação que são inferiorizados e marginalizados pelas estruturas sexistas dominantes tão enraizadas e que podem acarretar em danos irreversíveis na vida dos estudantes LGBTQIA+.

Nesse sentido, o cap. 3 descreve sobre os efeitos das experiências de si e do ser docente dentro da perspectiva da multiplicidade do discurso de gênero que dá forma ao sujeito. É destacado que as professoras pesquisadas ressignificam a docência e produzem uma ética de si para ser usada no campo educativo, assim, a forma que conduzem suas experiências como mulheres e a forma que vivem a sua sexualidade são vista como um ascese, uma episteme para pensar a partir da singularização e no modo como elas se relacionam com o mundo e com os seus alunos. Através dessas experiências elas tentaram introduzir novos espaços e novos modos de mudanças na cultura e na sociedade.

O penúltimo capítulo descreve sobre a produção dos femininos na escola mediante os discursos performativos e como as entrevistadas se auto afirmam individualmente como mulheres, professoras e lésbicas. A reflexão baseia-se nas relações de poder em torno dos discursos entre o ideal de mulher e os discursos flexibilizadores das suas escolhas.

Ao descrever como são produzidos os femininos e corrobar com os estudos de Hall (2000), o livro mostra que as identidades não são iguais, nem mesmo em meio a uma cultura histórica do povo. Assim, ao mostrar como se produz os femininos nas falas das professoras, a autora destacou os processos políticos universais que visam construir os discursos com o intuito de criar as desigualdades. Dessa forma, é observado nas entrevistas como funcionam os discursos de gênero e como estes constroem a si por meio da diferença. As falas das docentes demonstram que muitas vezes as estruturas de poder não dão às professoras lésbicas um essencialismo identitário aceitável, pois estas estruturas estão sempre em alerta em relação ao gênero da mulher e o que é visto como aceitável em relação à prática da feminilidade no mundo heteronormativo, mas mesmo diante de tantos obstáculos, elas assumiram uma forma de desconstruir os discursos binários baseados na lesbianidade.

Cabe salientar que apesar das professoras problematizarem sobre gênero na escola a partir das suas experiências como seres engendrados, algumas apresentaram receio e insegurança no tratamento dos alunos na escola. Um exemplo é o discurso da professora Ana que relata a mudança no seu jeito de tratar os alunos da educação infantil dos alunos dos anos iniciais e fundamental por receio de ser mal interpretada, ou seja, ela deixa que o padrão heteronormativo influencie na sua relação interpessoal onde a homossexualidade não é aceita, pois a escola nega tais relações como um de seus rígidos referentes culturais. “Em relação a isso, posso afirmar que: 1) os alunos têm dificuldades para significar as estéticas, os comportamentos e as posturas das professoras pesquisadas; 2) a escola não lhes proporciona condições para que eles possam pensar em outros tipos de feminilidades” (p. 178).

No último capítulo a autora termina suas considerações sobre a pesquisa destacando o redimensionamento da sua experiência como pesquisadora que as narrativas das docentes lhe oportunizaram. Ao relembrar como as professoras são envoltas diariamente por relações de poder através do dispositivo de gênero e como elas precisam interpretar, negar, afirmar e transformar esses discursos em sua vida para continuar sua vida pessoal por serem corpos sociais, é o ponto de destaque do livro e que norteia toda a reflexão do livro.

Ao realizar a leitura, percebi que caminhar para um processo de normalização do gênero nas escolas é uma busca que ainda necessita de longos caminhos, principalmente nas escolas públicas onde os sujeitos são invisibilizados e envoltos por questões políticas e de controle tradicional dos corpos. Mas a potência dos discursos das professoras tem dado voz para a desconstrução dos padrões sexistas que envolve o ambiente de atuação profissional.

Através da utilização de seus corpos como impulso para subverter a ordem binária instituída no ambiente escolar, as docentes lésbicas veem em seu trabalho uma forma de reestruturar as percepções sociais, mesmo sendo muitas vezes oprimidas pela heteronormatividade. Desta forma é notória a emergência no apoio e multiplicação das lutas contra determinismos falocêntricos para um maior reconhecimento dos sujeitos LGBTQIA+, bem como a necessidade de pesquisas que envolvam a temática da lesbianidade no ambiente escolar, pois desta forma, conseguiremos voz e um novo olhar para debates sobre gênero e sexualidade que ainda é invisibilizados e vista como um tabu científico no meio social, mas principalmente, nas escolas.

Mayana Morbeck Coelho –  Pedagoga. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Étnicas e Contemporaneidade – PPFREC/UESB/Jequié. https://orcid.org/0000-0003-2720-5930 Email: mmorbeckcoelho@gmail.com. Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB)


MACIEL, Patricia Daniela. Lésbicas e Professoras. O Gênero na Docência. Ed. Appris. 2018, p. 197. Resenha de: COELHO, Mayana Morbeck. Subvertendo padrões de gênero na docência. Abatirá. Eunápolis, v.1, n.2, p.150-154, jul./dez., 2020. Acessar publicação original [IF]

Corpos em Aliança: Diálogos Interdisciplinares sobre gênero, raça e sexualidade | Ana Claudia Martins e Elias Ferreira Veras

Nas últimas décadas, temos testemunhados constantes transformações sociais, históricas, políticas e culturais, que abalaram as estruturas cishetonormativas dos antigos padrões de gênero, raça e sexualidade. As lutas feministas, as conquistas LGBTQIA+, os movimentos trabalhistas e a descolonização dos países africanos, por exemplo, que perpassaram o século passado, desdobrando-se até os dias atuais, culminam em novas formas contemporâneas de fazer política e ciência.

A obra Corpos em Aliança: Diálogos Interdisciplinares sobre gênero, raça e sexualidade, organizada por Elias Ferreira Veras e Ana Claudia Aymoré Martins, professor/a da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), aparece nesse contexto teórico-metodológico-político de transformações, sendo oriundo dos debates realizados durante o II Colóquio diálogos interdisciplinares sobre gênero, raça e sexualidade: corpos em aliança, organizado pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em História, Gênero e Sexualidade (GEPHGS/CNPq), do Curso de História da UFAL – com apoio do CNPq -, em Maceió (AL), no mês de maio de 2019. Leia Mais

Queer in the Tropics: Gender and Sexuality in the Global South | Pedro Paulo Gomes Pereira

Queer in the Tropics: Gender and Sexuality in the Global South, de Pedro Paulo Gomes Pereira, é apresentado pelo autor como um livro-experiência. São vidas e teorias que tecem trajetórias e(m) afetos. Pedro Paulo vai incorporando seus encontros com experiências-outras, e aqui o uso do gerúndio se faz necessário, posto que o movimento e o devir são constituintes de um caminhar que segue abalando as teorias que viajaram aos trópicos, ao Sul Global. O livro constrói uma análise que, a partir da teoria queer, convida à interpelação da configuração sexo/gênero como parte do projeto colonial.

Ensaio passos entre mundos e teorias, daqui do interior, com um olhar caipira de quem desconfia de muita coisa: o encontro com o livro me afetou de modo a querer contar umas histórias com Pedro Paulo. Mas, no meio do caminho tinha uma pedra1. Não bastasse Richard Miskolci ter escrito a apresentação, Judith Butler escrevera o prefácio do livro. Para que eu adentraria nessa prosa? Leia Mais

Encontros e desencontros de lá e de cá do Atlântico: mulheres Africanas e Afro-brasileiras em perspectiva de gênero / Patrícia G. Gomes e Claudio A. Furtado

GOMES Patricia Godinho
Patrícia Godinho Gomes / Foto: Elaine Schmitt – UFSC Notícias /

GOMES P e FURTADO C Encontros e desencontros de la e de ca do AtlanticoEm um breve ensaio na introdução é apresentada a ideia de modernidade, acentuada no desenvolvimento do capitalismo e na industrialização. Esta faz com que transformações socioculturais e de categorias como as de gênero e raça derivem de fundamentos sociais euro-peus, influenciando em desigualdades e estratificações sociais. Destaca-se uma cronologia dos estudos e temas publicados sobre mulheres e relações de gênero, representando seus impasses, como a predominância de textos escritos por homens e a partir de seus olhares, mas também o crescimento significativo da produção literária sobre mulheres africanas e a partir de suas perspectivas. Quanto ao Brasil, mostra-se dados em relação ao período da escravidão e o peso da visão machista e eurocêntrica sobre eles, como o ideal do colonizador sobre o colonizado. Por isso, a importância de uma literatura produzida sobre as lutas das mulheres negras no Bra-sil, fazendo com que conceitos de raça e gênero sejam considerados intrínsecos, “insepará-veis”.

No primeiro capítulo, “De emancipadas a invisíveis: as mulheres guineenses na produ-ção intelectual do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas”, a autora Patrícia Godinho Go-mes apresenta um breve excursus teórico de Houtondji e Oyèwùmi e a questão dos estudos sobre mulheres e gênero, no qual destaca a origem da produção deste conhecimento e seus principais destinatários. No processo de independência de Guiné-Bissau, em 1973, a partici-pação das mulheres constituiu-se em um elemento-chave para seu desenvolvimento do pro-cesso, tanto externo como interno. Porém, a importância das mesmas é inviabilizada nos dis-cursos, como discutido no diálogo apresentado entre dois intelectuais guineenses- Carlos Lo-pes e Diana Lima Handem, que debatem temas como patriarcado, subalternização e relações de gênero e mercado de trabalho. É abordada a ausência de mulheres na produção intelectual do INEP, juntamente com a de temas sobre as mesmas, dando destaque às atitudes de alguns órgãos como A União Democrática das Mulheres Guineenses (Udemu) em relação a isto. Leia Mais

Entre márgenes/intersticios e intersecciones: diálogos posibles y desafíos pendientes entre género y migraciones | María José Magliano

La multiplicidad de aristas teóricas, trayectorias colectivas e individuales, apuestas metodológicas y desafíos epistemológicos que confluyen en este libro,se vuelven espacios intersticiales desde los cuales repensar la incorporación de la perspectiva de género al campo de los estudios migratorios en Argentina. Leia Mais

¿Reconocimiento o redistribución? Un debate entre marxismo y feminismo | Judith Butler e Nancy Fraser

Introducción

La presente reseña tiene como objetivo problematizar el debate Fraser-Butler, no a través del análisis de los dos postulados principales, sino a través de la crítica de los mismos y de las posibilidades que en ellos se encierran. Este ejercicio lo que pretende problematizar es la relación entre genitalia-sexo-género, con el capitalismo y la disolución de las certezas ontológicas con la pérdida de vigencia de lo denominado como moderno.

Tanto el debate Fraser-Butler, surgido en la New Left Review en el año 2000 y convertido en libro en 2017, como el debate filosófico en torno a la modernidad, aparecido en las primeras décadas del siglo XX, no son nuevos. Sin embargo, las problemáticas que abordan siguen estando vigentes, sobre todo, ahora, que los feminismos autodenominados radicales están en plena ofensiva reaccionaria poniendo en riesgo las vidas de las personas trans y lanzándose a una aventura colonizadora sobre aquellos cuerpos que consideran abyectos. Esto hace necesario señalar cómo determinadas articulaciones feministas pueden constituirse como represivas, donde una interpretación falaz de la relación entre género y sexo puede llegar a funcionar como vehículos de la dominación. Esto permitiría a grupos feministas enrocarse en el biologicismo y el etnocentrismo para instrumentalizar la lucha por la liberación y convertirla en su monopolio. De este modo, garantizarían, a través de la defensa de una feminidad cis y blanca, la invisibilización, persecución y represión de los colectivos más desfavorecidos. Es esta labor represiva de determinadas articulaciones feministas con vocación universalista y eurocéntrica, que se amparan en interpretaciones falaces de la realidad, la que constituye el objetivo de crítica de esta reseña. El texto de Fraser nos serán muy útiles para comprender este tipo de posiciones reaccionarias, sin que esto suponga que acusemos a Fraser en el presente por las afirmaciones teóricas mantenidas hace veinte años. Leia Mais

Mulheres, direito à cidade e estigmas de gênero. A segregação urbana da prostituição em Campinas | Diana Helene

O livro Mulheres, direito à cidade e estigmas de gênero: a segregação urbana da prostituição em Campinas, de Diana Helene Ramos (1), é o primeiro livro escrito por uma arquiteta e urbanista brasileira discutindo a relação entre prostituição e cidade. Publicado em 2019 pela editora Annablume, esse livro é resultado de tese de doutorado da autora em Planejamento Urbano e Regional, desenvolvida no Ippur UFRJ, pela qual recebeu o Prêmio Capes de Tese 2016 da área de Planejamento Regional/Demografia (2). O livro está dividido em três partes, com um total de seis capítulos que, em linhas gerais, discutem a presença das prostitutas na cidade de Campinas e sua participação enquanto agente na produção do espaço urbano, seu cotidiano e os deslocamentos ocorridos no contexto urbano e laboral dessas trabalhadoras. Leia Mais

Teoria do romance III: o romance como gênero literário – BAKHTIN (B-RED)

BAKHTIN, M. Teoria do romance III: o romance como gênero literário. Tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra; organização da edição russa de Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora 34, 2019. 144p. Resenha de: MELO JÚNIOR, Orison Marden Bandeira de. Bakhtiniana, Revista de Estudos do Discurso, v.15 n.2, São Paulo, Apr./June 2020.

Como já é notório a todos os leitores que acompanham as publicações de textos do Círculo pela Editora 34, a sequência dos textos Teoria do romance ITeoria do romance II e, agora, Teoria do romance III tem, como base, o tomo 3 da coletânea Obras reunidas em sete tomos [Sobránie sotchiniênii v siémi tomakh] de Mikhail Bakhtin, organizada por Vadim Valeriánovitch Kójinov (1930-2001) e Serguei Geórguievitch Botcharóv (1929), que, segundo Grillo (2009), são os detentores dos espólios bibliográficos de Bakhtin. Ainda segundo Grillo (2009), após a morte de Kójinov, ficou Botcharóv o responsável pela coordenação do projeto, dando, dessa forma, conforme a Nota à edição brasileira encontrada na Teoria do romance I (BAKHTIN, 2015), o consentimento para que Paulo Bezerra e a editora o dividissem em três volumes.

Com a finalização da publicação da Teoria do romance com esse terceiro volume, é possível ter uma visão privilegiada em relação ao conjunto dos textos que compõem o Tomo 3. Desse modo, é mais fácil perceber, agora, que o número de ensaios que os três volumes apresentam não corresponde totalmente aos ensaios encontrados na coletânea Questões de literatura e de estética: a teoria do romance (doravante, QLE) (BAKHTIN, 2002). QLE se inicia com o ensaio O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária. No entanto, esse ensaio não está publicado na trilogia. Segundo Bezerra (2015), ele foi suprimido da Teoria do romance pelos organizadores russos por ser um texto mais genérico sobre a teoria da literatura, com foco na contraposição aos formalistas russos. Grillo (2009) informa que ele aparece no Tomo 1 das Obras reunidas em sete tomos, juntamente com os textos Arte e responsabilidade, Para uma filosofia do ato e O autor e o herói na atividade estética.

O segundo ensaio O discurso no romance é publicado pela Editora 34 no primeiro volume da trilogia: Teoria do romance I: A estilística (BAKHTIN, 2015). Formas de tempo e de cronotopo no romance (ensaios da poética histórica), terceiro ensaio da QLE, é publicado em Teoria do romance II: as formas do tempo e do cronotopo (BAKHTIN, 2018). É interessante notar que, na tradução de Paulo Bezerra, o ensaio passa por uma pequena modificação no seu título: As formas do tempo e do cronotopo no romance: um ensaio de poética histórica. Vale destacar que ambas as obras (Teoria do romance I e Teoria do romance II) foram resenhadas logo após a sua publicação e suas resenhas foram publicadas na revista Bakhtiniana. A resenha de Adriana P. P. Silva do primeiro volume foi publicada no primeiro número de 2016 (SILVA, 2016) e a resenha de Maria Elizabeth S. Queijo do segundo volume, no segundo número de 2019 (QUEIJO, 2019).

A coletânea QLE finaliza com três curtos ensaios: Da pré-história do discurso romanesco, Epos e o romance (sobre a metodologia do estudo do romance) e Rabelais e Gógol (arte do discurso e cultura cômica popular). Desses três, dois deles aparecem no volume Teoria do romance III: o romance como gênero literário (BAKHTIN, 2019), a saber: Da pré-história do discurso romanesco e Epos e o romance (sobre a metodologia do estudo do romance), mas com modificações em seus títulos. O texto Rabelais e Gógol aparece no Tomo 4 das Obras reunidas que, segundo Grillo (2009), é dedicado aos textos de Bakhtin sobre Rabelais, o que inclui, obviamente, a obra sobre François Rabelais e a cultura popular na Idade Média e no Renascimento, publicada pela editora Hucitec no Brasil sob o título A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais (BAKHTIN, 2010).

Em relação aos ensaios que compõem o terceiro volume da Teoria do romance, em um primeiro momento o leitor consegue identificar apenas um, Sobre a pré-história do discurso romanesco, cujo título se assemelha ao anterior. No entanto, pode causar alguma estranheza o título do segundo ensaio que, inclusive, aparece como subtítulo do volume: O romance como gênero literário. Bezerra (2019), no seu posfácio intitulado O fechamento de um grande ciclo teórico, conta que esse era o título original do texto, publicado de forma fragmentada sob o título Epos e o romance. Esse mesmo título é encontrado nas versões em inglês, espanhol, francês e italiano: Epic and novel: toward a methodology for the study of the novel (BAKHTIN, 1981); Épica y novela: (acerca de la metodología del análisis novelístico) (BAJTÍN, 1989); Récit épique et roman: (méthodologie de l’analyse du roman) (BAKHTINE, 1978); Epos e romanzo: sulla metodologia dello studio del romanzo (BACHTIN, 2001). Bezerra (2019) explica que o título do ensaio foi restaurado pelos organizadores das Obras reunidas com o objetivo de corresponder, de forma integral, ao projeto de Bakhtin de versar sobre “o romance como gênero literário específico”, mostrando, dessa forma, “os encontros e os desencontros dos dois gêneros” (p. 120), ou seja, da epopeia e do romance. Essa estranheza, no entanto, é facilmente dissipada pela compreensão do seu sentido, restando aos leitores e estudiosos do romance à luz bakhtiniana se adequar aos novos termos e títulos, sabendo que são resultados de estudos e pesquisas de scholars especialistas nas obras do Círculo. Ademais, o leitor da tradução de Paulo Bezerra deve se sentir privilegiado por essa informação, trazida no terceiro volume da Teoria do romance, tendo em vista que em nenhuma versão da obra no inglês, espanhol, francês e italiano essa explicação é dada ao leitor.

Antes de adentrar nas considerações mais específicas sobre o terceiro volume da teoria do romance, novamente devido a essa visão privilegiada da totalidade dos textos que compõem a Teoria do romance de Bakhtin, é necessário observar a macroestrutura dos três volumes. Como já foi ressaltado por Silva (2016) e Queijo (2019), essas obras trazem um enriquecimento aos estudos do romance não somente por serem textos cuja tradução “se aproxima da voz de seu autor” (SILVA, 2016, p.269), mas por todos os paratextos encontrados nelas, o que inclui o posfácio do tradutor que, segundo Queijo (2019, p.155) “emoldura o texto que as [páginas do posfácio] precedem”. Brait (2019) afirma que compreender uma obra como enunciado concreto, conforme o Círculo, implica entender que todos os textos dessa obra fazem parte do seu todo arquitetônico, o que inclui os paratextos, ou seja, “textos que se avizinham do texto principal, caso do título, subtítulos, dedicatórias, epígrafes, prefácio, posfácio, etc. e que […] abrem caminho para o leitor adentrar os meandros do texto principal” (p.251). Na Teoria do romance I, além do prefácio por Paulo Bezerra, o tradutor também apresenta um glossário de alguns conceitos-chave. Além desses paratextos, ainda há uma nota à edição brasileira, um nota de informação sobre Bakhtin e outra sobre Bezerra. No segundo volume, é adicionado, ao texto principal, alguns rascunhos que Bakhtin fez para o último capítulo que ele adicionou posteriormente. Esse rascunho foi intitulado de Folhas esparsas. Além desse rascunho, há o posfácio de Bezerra, que ele intitula de Uma teoria antropológica da literatura, além das notas recorrentes nos três volumes (nota dos editores, nota sobre Bakhtin e nota sobre o tradutor). O terceiro volume segue o formato do segundo, com um posfácio por Paulo Bezerra e as três notas. O posfácio de Bezerra é intitulado O fechamento de um grande ciclo teórico, que dá, como se percebe, o tom de completude a esse grande enunciado Teoria do romance. É interessante notar que apenas o primeiro volume traz um glossário, com notas explicativas do tradutor. Isso possivelmente se deve ao fato de que o tradutor assumiu novos termos para aqueles que já estavam consolidados na academia. Um exemplo é o termo “heterodiscurso”, que veio substituir “o já consagrado termo plurilinguismo nos trabalhos dos pesquisadores brasileiros que se debruçam sobre o pensamento bakhtiniano” (SILVA, 2016, p. 268).

Em relação ao conteúdo de Teoria do romance III (BAKHTIN, 2019), não me aterei ao resumo de cada ensaio, já que eles já têm sido apresentados por vários estudiosos das obras de Bakhtin sobre o romance, em específico, e sobre a literatura, em geral. Um exemplo disso é o capítulo de Maria Inês B. Campos (2009) na coletânea Bakhtin: dialogismo e polifonia (BRAIT, 2009), que apresenta todos os ensaios da coletânea Questões de literatura e de estética (BAKHTIN, 2002). Para a apresentação do ensaio Dá pré-história do discurso romanesco/Sobre a pré-história do discurso romanesco, escreveu o texto intitulado O importante papel do riso e do plurilinguismo (CAMPOS, 2009, p.137-139) e para a do ensaio Epos e o romance (sobre a metodologia do estudo do romance)/O romance como gênero literário, escreveu Sobre a metodologia do estudo do romance (CAMPOS, 2009, p.139-142). Diante disso, é necessário explicar ao leitor que os ensaios foram enriquecidos substancialmente não só pelo fato, já apontado, de eles terem sido restaurados quanto aos títulos originais, mas também por incorporarem as próprias correções de Bakhtin, restituírem trechos anteriormente cortados e preservarem as anotações que Bakhtin fez nas margens dos textos datilografados. Segundo a Nota à edição brasileira (2019), além dessas notas do próprio Bakhtin, o leitor encontrará esses trechos restaurados (indicados por asterisco) e as notas do tradutor.

Essas inserções e modificações no texto podem ser vistas, em primeiro lugar, pelas escolhas tradutórias de Bezerra que, em alguns momentos, diferem das escolhas dos tradutores de QLEBezerra (2015, p.10) explica que “[t]raduzir Bakhtin, além de ser um desafio extremamente difícil, é também arriscado”. Para ele, isso se dá pelo fato de que o tradutor está diante de “conceitos que abrangem todo um sistema de reflexões embasado em algo que talvez se possa chamar de filosofia estética” (BEZERRA, 2015, p.10). Nesse sentido, é possível destacar dois exemplos de diferenças tradutórias entre Bezerra e os tradutores de QLE. Em primeiro lugar, pensando nas categorias bakhtinianas, Bezerra ilumina muitos trechos dos ensaios com a utilização de termos teoricamente mais específicos. Como exemplo, encontramos a seguinte oração no ensaio Dá pré-história do discurso romanesco: “Pode-se notar cinco tipos de abordagens para o discurso romanesco” (BAKHTIN, 2002, p.364); na tradução de Bezerra, em Sobre a pré-história do discurso romanesco, lê-se: “observam-se cinco tipos de enfoque estilístico do discurso romanesco” (BAKHTIN, 2019, p.13). Observa-se que Bezerra utiliza termos específicos (“enfoque estilístico”) em vez de termos mais genéricos (“abordagem”). Em segundo lugar, é pertinente destacar a escolha tradutória de Bezerra diante de termos multissêmicos da língua russa, como a palavra slovo. Segundo Grillo e Américo (2017, p.364), o termo “tem um significado amplo, que compreende desde a unidade lexical até a ‘a linguagem verbal em uso’ ou o enunciado e o discurso”. Diante disso, o tradutor necessita fazer escolhas, levando em consideração as possibilidades tradutórias e o contexto teórico do termo no texto de partida. Por exemplo, no ensaio A palavra na vida e a palavra na poesia de Volóchinov (2019), Grillo e Américo explicam, na Nota do Tradutor 1, que a tradução de slovo como “palavra” se deu pelo fato de o ensaio estabelecer um diálogo mais direto com o manifesto dos futuristas russos intitulado Slóvo kak takovóie [A palavra como tal]. No entanto, esclarecem que a tradução como “discurso” seria favorecida pelo fato de que “a linguagem é considerada na relação com o seu meio social, com o criador e o contemplador, com a sua esfera de circulação etc.” (2019, p.109). Nessa esteira, ainda no primeiro ensaio de Teoria do romance III, verifica-se que a escolha de Bezerra também difere da escolha dos tradutores de QLE (BAKHTIN, 2002). Em Dá pré-história do discurso romanesco, lê-se: “Entretanto, nas condições do romance, a palavra tem uma existência inteiramente particular […]” (BAKHTIN, 2002, p.364). Já em Sobre a pré-história do discurso romanesco, percebe-se que Bezerra escolhe o termo “discurso”: “Entretanto, nas condições do romance o discurso vive uma vida totalmente específica […]” (BAKHTIN, 2029, p.14).

Além dessas diferenças tradutórias, é necessário que o leitor esteja ciente para o fato de que os ensaios que formam Teoria do romance III possuem trechos novos. Como já mencionado anteriormente, essa nova versão dos ensaios recupera trechos anteriormente cortados. Um exemplo disso é o primeiro parágrafo do ensaio O romance como gênero literário (BAKHTIN, 2019, p.65). Esse parágrafo traz uma explicação necessária da razão pela qual o autor teve de dedicar um espaço do ensaio que trata da teoria do gênero romanesco para uma discussão sobre a filosofia dos gêneros. Esse parágrafo não existe na tradução de 2002. De fato, o primeiro parágrafo da tradução de 2002 se inicia com a oração: “O estudo do romance enquanto gênero caracteriza-se por dificuldades particulares” (BAKHTIN, 2002, p.397). Esse é o segundo parágrafo da tradução de 2019, que se inicia com a oração: “A teoria do romance enquanto gênero distingue-se por dificuldades peculiares […]” (BAKHTIN, 2019, p.65).

Com essas breves notas, já é possível perceber a singularidade da nova tradução ao português brasileiro desses ensaios. Como mencionado anteriormente, além de uma tradução teoricamente mais específica e das incorporações textuais feitas, Teoria do romance III ainda recebe um ensaio de Paulo Bezerra em que não só explica a origem dos ensaios de Bakhtin, ou seja, as “duas conferências proferidas por Bakhtin nas reuniões do grupo de teoria da literatura organizado pelo professor Leonid Timofêiev no Instituto de Literatura Mundial Maskim Górki de Moscou” (BEZERRA, 2019, p.113), como também tece detalhes sobre os dois ensaios separadamente. Dessa forma, destaca, em Sobre a pré-histórica do discurso romanesco, o riso e a paródia, e o objetivo central do ensaio, e demonstra como O romance como gênero literário “[…] quebrou os paradigmas tradicionais nos estudos e enfoques da história e da teoria do romance” (BEZERRA, 2019, p.122).

Teoria do romance III, portanto, é uma obra de excelência, que deve ser lida por todos aqueles que estudam o romance pelas lentes bakhtinianas. Esse convite não é feito somente para aqueles que ainda não tiveram a oportunidade de ler os ensaios, mas também para aqueles que já os leram, discutiram, estudaram em QLE, pois poderão perceber o enriquecimento ao texto proporcionado por Paulo Bezerra, que, mais uma vez, utilizando-se dos seus conhecimentos linguísticos, literários, tradutórios e teóricos (em especial, da teoria dialógica), traz ao leitor um texto que é mais completo em si mesmo – com a inserção de todas as notas de Bakhtin suprimidas anteriormente e as notas e observações tão ricas do tradutor -, completando a Teoria do romance proposta por Bakhtin.

Referências

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Orison Marden Bandeira de Melo Júnior – Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, Departamento de Línguas e Literaturas Estrangeiras Modernas, Natal, Rio Grande do Norte, Brasil; junori36@uol.com.br.

Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa da assembleia / Judith Butler

Conhecida internacionalmente pelo livro Problemas de gênero: feminismo e a subversão da identidade2, publicado no início da década de 1990 e lançado no Brasil apenas em 2003, a filósofa estadunidense Judith Butler se dedica às análises sobre feminismos, gêneros, corpos e sexualidades. Sua obra, que mantém fluxo entre teoria e engajamento político, exerce significativa influência, tanto nos debates acadêmicos em diferentes áreas do conhecimento quanto nos movimentos sociais e em setores da sociedade civil. Suas teorias, em destaque sobre a performatividade dos gêneros, ensejaram um intenso debate e tensões, por deslocar certezas naturalizadas como a do sexo biológico. Na sua perspectiva, há um esforço em retirar o caráter ontológico das interpretações sobre as identidades de gênero e sobre o sexo, gerando uma dissociação entre o sexo, gênero e desejo.

Nos últimos títulos publicados pela autora, como Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?3 e Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia4, há o interesse em discutir sobre formas de inserção políticas contemporâneas, violências institucionalizadas ou não e sobre a precariedade a que determinados conjunto de sujeitos são induzidos e que limitam a prática efetiva da democracia e que encontram no gênero e na experiência corporificada espaços privilegiados de acontecimento.

O livro Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia reúne seis capítulos que possuem como eixo norteador a relação entre os corpos, suas performances em assembleias e a ocupação de espaços públicos promovida pelas manifestações que se multiplicaram em vários países do mundo, desde 2010, quando cerca de um milhão de pessoas se reuniram na Praça Tahrir no centro do Cairo, no que ficou conhecido como Primavera Árabe. Para a autora, as manifestações no Egito, além de servirem de exemplo para lutas políticas em outros países, renovaram o interesse de pesquisadores de várias partes do mundo sobre o estudo de assembleias públicas e de movimentos sociais que tomaram como fator estimulante a condição precária a que muitos corpos são submetidos, nas chamadas democracias neoliberais.

Para iniciar a reflexão, Butler apresenta algumas categorias importantes para pensar os temas desenvolvidos ao longo dos capítulos, entre elas: democracia, povo, precariedade e performance. A autora sofistica a análise dessas categorias, considerando a polifonia à qual são sujeitas. No que se refere à conceitualização de democracia, é apontada a necessidade de pensá-la, para além de uma abordagem nominalista que não considera os limites da prática democrática em contextos neoliberais que operam pela precarização da vida, limitando o direito à existência de grupos. Em outros termos, para pensar em democracia na contemporaneidade é necessário ir além de estruturas governamentais que se autoproclamam democráticas, discutindo a inserção de práticas em assembleia que reivindicam formas de existência não precárias. Verticalizando ainda mais a análise sobre esse aspecto, Butler aponta que os discursos que se apoiam no marketing e na propaganda são os definidores de quais movimentos populares podem ou não serem chamados de democráticos.

Nesse debate, emerge a segunda categoria problematizada pela autora: povo. Seu interesse é responder às seguintes questões: quem realmente é o povo? Que operações de poder discursivo e com que intencionalidades se constrói essa categoria? A resposta que a autora constrói para essas perguntas é a de que não existe “povo” sem uma fronteira discursiva, ou seja, sua definição é um ato de autodemarcação que corresponderia a uma “vontade popular”. Aplicando à análise dos movimentos contra a condição precária, como a Primavera Árabe e o Occupy the Wall Street, a autora conclui que é necessário “ler tais cenas não apenas através da versão de povo que eles enunciam, mas das relações de poder por meio das quais são representadas”5.

Por precariedade, Butler entende uma condição induzida por violência a grupos vulneráveis ou ainda a ausência de políticas protetivas. Sua análise situa em torno das economias neoliberais que cada vez mais retira direitos – previdenciários, trabalhistas, de moradia – e acesso a serviços públicos como escolas e universidades.

A última categoria basilar para entender as discussões que seguem nos seis capítulos do livro é a de performance, já discutida pela autora em outros textos, mas que, nesta obra, é pensada através do viés das coletividades e para além do gênero. Em outros termos, Butler incorpora o seu conceito de performance para entender como os corpos agem de forma coordenada em assembleias. Para a autora, podemos perceber as manifestações de massa como uma rejeição coletiva à precariedade e, mais que isso, como um exercício performativo do direito de aparecer, “uma demanda corporal por um conjunto de vidas mais vivíveis”6.

A tese sobre a qual os capítulos versam é a de que, quando os corpos se reúnem em assembleias, quer sejam em praças, ruas ou mesmo no ambiente virtual, eles estão exercitando o direito plural e performativo de aparecer e de exigir formas menos precárias de existência. Os objetivos dessas assembleias são desde oposição a governos autoritários até redução de desigualdades sociais, questões ecológicas ou de gênero. Pensar sobre elas e sobre a pluralidade que incorporam é discutir como a condição precária é representada e antagonizada nesses movimentos e como se materializam na expressão de corpos que entram em alianças.

Os capítulos deste livro “buscam antes de tudo compreender as funções expressivas e significantes das formas improvisadas de assembleias públicas, mas também questionar o que conta como público e quem pode ser considerado povo.”7 Os primeiros capítulos se concentram na discussão sobre formas de assembleia que possuem modos de pertencimento e que ocorrem em locais específicos. Já os últimos capítulos discutem movimentações que acontecem entre aqueles que não compartilham um sentido de pertencimento geográfico ou linguístico.

No capítulo 1, intitulado “Políticas de gênero e o direito de aparecer”, Butler discute as manifestações de massa, com destaque àquelas que pautam as questões de gênero, como uma rejeição coletiva à precariedade de corpos que se reúnem por meio de um exercício performativo do direito de aparecer. Nesse sentido, a autora insere a discussão sobre o reconhecimento com um dos cernes dessas manifestações públicas. Segundo ela, os sujeitos estariam lutando por reconhecimento em um campo altamente regulado e demarcado de zonas que permitem ou interditam formas corporificadas. No capítulo, a autora ainda se lança a responder questões como: por que esse campo é regulado de tal modo que determinados tipos de seres podem aparecer como sujeitos reconhecíveis e outros tantos não podem? Quais humanos contam como humanos? Quais humanos são dignos na esfera do aparecimento e quais não são? Para a autora, o reconhecimento passa pela noção de poder que segmenta e classifica os sujeitos de acordo com as normas dominantes que buscam normalizar determinadas versões de humanos em detrimentos a outras. A autora avança ainda mais: a necessidade de se questionar como as normas são instaladas é o começo para não as tomar como algo certo/ um dado.

Utilizando o gênero para pensar essa questão, Butler argumenta que as normas de gênero são transmitidas por meio de fantasias psicossomáticas como patologização e a criminalização, que buscam normalizar determinadas práticas e versões do humano em relação às outras, basta pensar que há formas de sexualidade para as quais não existe um vocabulário adequado porque as lógicas como pensamos sobre o desejo, orientação, atos sexuais e prazeres não permitem que elas se tornem inteligíveis. Nesse processo de apagamento, o que se observa é a luta em assembleia pelo direito de viver uma vida visível e reconhecível que opera por meio de rompimentos no campo do poder.

No segundo capítulo, “Corpos em aliança e a política das ruas”, é dada visibilidade para os significados das manifestações no espaço público que articulam pluralidades de corpos que compartilham a experiência da precariedade e que se exibem e lutam por direito de existir. Para a autora, a política nas ruas deve congregar uma luta mais ampla contra a precariedade, sem que sejam apagadas as especificidades e pluralidades identitárias. Para tanto, há a necessidade de uma luta mais articulada que requer uma “ética de coabitação”. A ideia não é de “se reunir por modos de igualdade que nos mergulhariam a todos em condição igualmente não vivíveis”8, mas sim de “exigir uma vida igualmente possível de ser vivida”9.

Para pensar no espaço de aparecimento, Butler recorre e questiona Hanna Arendt que pensa o espaço a partir da perspectiva da pólis, onde a ação política é sine qua non ao aparecimento do corpo no espaço público. Para Butler, o direito de ter direitos não depende de nenhuma organização política particular para sua legitimação, pois antecede qualquer instituição política. O direito, então, passa a existir quando é exercido por aqueles que estão unidos em alianças e que foram excluídos da esfera pública, que é marcada por exclusões constitutivas e por formas de negação. Isso fica claro quando:

Ocupantes reivindicam prédios na Argentina como uma maneira de exercer o direito a uma moradia habitável; quando populações reclamam para si uma praça pública que pertenceu aos militares; quando refugiados participam de revoltas coletivas por habitação, alimento e direito a asilo; quando populações se unem, sem a proteção da lei e sem permissão para se manifestar, com o objetivo de derrubar um regime legal injusto ou criminoso, ou para protestar contra medidas de austeridade que destroem a possibilidade de emprego e de educação para muitos. Ou quando aqueles cujo aparecimento público é criminoso – pessoas transgênero na Turquia ou mulheres que usam véu na França – aparecem para contestar esse estatuto criminoso e reafirmar o seu direito de aparecer10.

Em outros termos, o espaço público é tomado por aqueles que não possuem nenhum direito de se reunir nele. Indivíduos que emergem de zonas de invisibilidade para tomarem o espaço, ao mesmo tempo em que se tornam vulneráveis às formas de violência que tentam reduzi-los ao desaparecimento. Neste capítulo, a autora discute o direito de ter direitos não como uma questão natural ou metafísica, mas como uma persistência dos corpos contra as forças que buscam sua erradicação.

No terceiro capítulo chamado “A vida precária e a ética da convivência”, Butler discute os significados de aparecer na política contemporânea e as possibilidades de aproximação entre corpos identitariamente diferentes e espacialmente separados, unidos apenas pela experiência da globalização e mediados pelos fenômenos tecnológicos e comunicacionais atuais, como as redes sociais. Para Butler, “alguma coisa diferente está acontecendo quando uma parte do globo, moralmente ultrajada, se insurge contra as ações e os eventos que acontecem em outra parte do globo”11. Para a autora, trata-se de laços de solidariedade que emergem através do espaço e do tempo, ou seja, uma forma de indignação que não depende da proximidade física ou do compartilhamento de um língua. Em outros termos, as obrigações éticas são surgem apenas nos contextos de comunidades “paroquiais” que estão reunidas dentro das mesmas fronteiras, constituintes de um povo ou uma nação.

Em parte, essas experiências compartilhadas são possibilitadas pelas novas mídias que, além de espaço de mobilização, se configuram também como uma potente possibilidade de transpor a cena, simultaneamente, para vários outros lugares. De outro modo, “quando o evento viaja e consegue convocar e sustentar indignação e pressão globais, o que inclui o poder de parar mercados ou de romper relações diplomáticas, então o local terá que ser estabelecido, repetidas vezes, em um circuito que o ultrapassa a cada instante”12. Assim:

Quando a cena é transmitida, está ao mesmo tempo lá e aqui, e se não estivesse abrangendo ambas as localizações – na verdade, múltiplas localizações – não seria a cena que é. A sua localidade não é negada pelo fato de que a cena é comunicada para além de si mesma e assim constituída em mídia global; ela depende dessa mediação para acontecer como o evento que é. Isso significa que o local tem que ser reformulado para fora de si mesmo a fim de ser estabelecido como local, o que significa que é apenas por meio da mídia globalizante que o local pode ser estabelecido e que alguma coisa pode realmente acontecer ali. […] As cenas das ruas se tornam politicamente potentes apenas quando – e se – temos uma versão visual e audível da cena comunicada ao vivo ou em tempo imediato, de modo que a mídia não apenas reporta a cena, mas é parte da cena e da ação; na verdade, a mídia é a cena ou o espaço em suas dimensões visuais e audíveis estendidas e replicáveis. Quando a cena é transmitida, está ao mesmo tempo lá e aqui, e se não estivesse abrangendo ambas as localizações – na verdade, múltiplas localizações […]13

O quarto capítulo – “A vulnerabilidade corporal e a política de coligação” – estrutura-se em torno de três questões fundamentais: vulnerabilidade corporal, coligações e políticas das ruas. A vulnerabilidade é uma experiência corpórea de exposição a possíveis formas de violências como conflitos entre manifestantes, violência policial ou violência de gênero, pois “algumas vezes o objetivo de uma luta política é exatamente superar as condições indesejadas da exposição corporal. Outras vezes a exposição deliberada do corpo a uma possível violência faz parte do próprio significado de resistência política”14. Para a autora, essa vulnerabilidade torna-se menos problemática quando os coletivos criam redes de proteção. A multidão, então, assumiria a função de suporte coletivo, pois:

Quando os corpos daqueles que são considerados “dispensáveis” se reúnem em público (como acontece de tempos em tempos quando os imigrantes ilegais vão às ruas nos Estados Unidos como parte de manifestações públicas), eles estão dizendo: “Não nos recolhemos silenciosamente nas sombras da vida pública: não nos tornamos a ausência flagrante que estrutura a vida pública de vocês.” De certa maneira, a reunião coletiva dos corpos em assembleia é um exercício da vontade popular, a ocupação e a tomada de uma rua que parece pertencer a outro público, uma apropriação da pavimentação com o objetivo de agir e discursar que pressiona contra os limites da condição de ser reconhecido em sociedade. Mas as ruas e a praça não são a única maneira de as pessoas se reunirem em assembleia, e sabemos que uma rede social produz ligações de solidariedade que podem ser bastante impressionantes e efetivas no domínio virtual15.

No quinto capítulo intitulado “Nós, o povo – considerações sobre a liberdade de assembleia”, Butler discute a categorização e a reivindicação da ideia de “povo”, em meio às lutas políticas, problematizando concepções restritivas de povo, como no caso da Constituição dos Estados Unidos. Necessário pensar que a construção de “povo” é uma autodenominação que opera por meio de uma construção discursiva, integrando e excluindo grupos que estão ou não dentro dessa categoria. Ainda no capítulo, a autora discute as privatizações no contexto neoliberal, que minimiza a proteção do Estado e enseja formas de alianças nas ruas que lutam contra o precário.

No último capítulo, intitulado “É possível viver uma vida boa em uma vida ruim?”, Butler aborda, a partir da proposta analítica de Adorno, sobre as possibilidades de vida em um mundo marcado pela condição de desigualdade. Para a autora, a luta política e a performance coletiva em assembleia são ações que vão de encontro à lógica da precarização e que podem ser uma alternativa no contexto neoliberal de diminuição de direitos.

O fio que costura toda a argumentação do livro é o da necessidade de criar condições coletivas de existência e de visibilidade de corpos contra as formas de precariedade que limitam a vida de vários sujeitos. A proposta da autora é a criação de alianças políticas que incluam várias pautas e demandas no contexto das democracias neoliberais. Butler revisita alguns conceitos como de performatividade e de precariedade, já utilizados em outras obras, aplicando-os às questões contemporâneas. Nessa obra, Butler extrapola a análise teórica acerca das assembleias contemporâneas e assume uma postura política de incitação à luta por democracia e direitos sociais no contexto de precarização provocada pelo neoliberalismo.

Laura Lene Lima Brandão – Doutoranda/Universidade Federal do Piauí. Teresina/ Piauí/ Brasil. E-mail: laurallbrandao@hotmail.com.


BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa da assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018. Resenha de: BRANDÃO, Laura Lene Lima. Pelo direito de (r)existir: os corpos nas ruas. Outros Tempos, São Luís, v.17, n.29, p.396-342, 2020. Acessar publicação original. [IF].

Vira-vira, Violeta – LACERDA (REF)

LACERDA, Socorro. Vira-vira, Violeta. Petrolina, PE: Edição da Autora, 2017. Resenha de: DINIZ, Rozeane Porto; KARLO-GOMES, Geam. Representações de gênero em Vira-Vira, Violeta. Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, v.28 n.2 2020.

Socorro Lacerda, professora, feminista e filha do Rio São Francisco – autodescrição da autora -, lançou, em 2017, o seu segundo livro: Vira-Vira, Violeta. Trata-se de uma obra de literatura infantojuvenil com discussões sobre diversas representações de gênero, apresentando, de forma estratégica, personagens que estão no cerne dessa problematização. É surpreendente o quanto o livro é acessível, podendo ser lido por pessoas de qualquer idade, pois, mesmo numa linguagem coerente com o público infantojuvenil, traz configurações de personagens históricas muito significativas para o contexto de luta por igualdade de gênero.

O livro de Socorro aborda as relações de gênero a partir da protagonização de uma luta das mulheres, representadas na narrativa pelas personagens nomeadas como Violetas, em prol da igualdade de direitos em relação aos homens, configurados no livro como Cravos. Violetas e Cravos são nomes e personagens simbólicos usados pela autora para protagonizar a luta e a resistência entre homens e mulheres. Leia Mais

Aquí se baila el tango: una etnografía de las milongas porteñas – CAROZZI (REF)

CAROZZI, María Julia. Aquí se baila el tango: una etnografía de las milongas porteñas. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2015. Resenha de CASTELAO-HUERTA, Isaura. Prácticas generizadas del tango milonguero. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.28 n.2 2020.

A través de un lenguaje fluido y fácil de seguir, María Julia Carozzi nos introduce al mundo del tango milonguero en donde las distintas prácticas espaciales y corporales hacen el género. Para lograrlo, Carozzi realiza un doble ejercicio: traza un recorrido histórico sobre el tango y desarrolla una etnografía con una inmersión profunda debido a que su trabajo de campo incluyó, además de clases de tango como alumna y posteriormente como profesora, acudir a milongas y a todo tiempo de eventos donde se baila tango casi todos los días de la semana (María Julia CAROZZI, 2015, p. 30).

María Julia Carozzi es doctora en Antropología por la Universidad de California, Los Ángeles. Actualmente es investigadora independiente del Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET) de Argentina. Asimismo, coordina el Núcleo de Estudios Antropológicos sobre Danza, Movimiento y Sociedad en el Instituto de Altos Estudios Sociales de la Universidad Nacional de San Martín. Ha investigado sobre educación y relaciones inter-étnicas, sobre la religión Umbanda, el movimiento new age, la religiosidad popular y el culto a Gardel y el tango bailado. Leia Mais

Concebendo a liberdade / Camillia Cowling

O livro de Camillia Cowling publicado nos Estados Unidos, em 2013, e recentemente traduzido para o português já se constitui uma leitura obrigatória para historiadoras, historiadores e demais pessoas interessadas em conhecer aspectos da luta de pessoas escravizadas na Diáspora. Em Concebendo a liberdade a autora apresentou uma pesquisa comparativa entre Havana (Cuba) e Rio de Janeiro (Brasil) na qual “mulheres de cor” apareciam na linha de frente da luta por liberdade legal para elas próprias e suas crianças nas décadas de 1870 e 1880.

Ao prefaciar a obra Sidney Chalhoub foi muito feliz ao lembrar a acolhida que o livro de Rebeca Scott a Emancipação Escrava em Cuba teve no Brasil, ainda na década de 1980, evidenciando o interesse do público brasileiro em saber mais sobre este processo em Cuba, colônia Espanhola que assim como o Brasil e Porto Rico foi um dos últimos redutos da escravidão nas Américas.

Mais de três décadas desde a tradução do livro de Scott, a pesquisa de Cowling chegou ao Brasil em um momento que embora já possamos contar com vários estudos de referência para o conhecimento a respeito da escravidão e da liberdade muitos lacunas ainda estão por serem preenchidas, a exemplo, das especificidades da experiência das mulheres – escravizadas, libertas e “livres cor”.

Felizmente, o alerta das feministas negras, especialmente a partir da década de 1980 de que as mulheres negras tinham um jeito específico de estar no mundo ganhou novo impulso nos últimos anos, notadamente, devido ao processo que resultou na Primeira Marcha Nacional de Mulheres Negras, ocorrida no Brasil, em 2015, cujos desdobramentos já podem ser percebidos na sociedade brasileira e tem inspirado pesquisadoras e pesquisadores no desafio de reconstituir esse passado.

Inserida no campo da história social e utilizando uma escala de tempo pequena para descortinar a agência feminina negra, Cowling esteve atenta também para questões mais amplas do período investigado como às conexões atlânticas entre Cuba e Brasil no contexto da “segunda escravidão”. Isso permite que a leitora e o leitor possam notar que embora tivessem optado por um processo de abolição gradual da escravidão ambos vivenciaram processos paralelos e distintos um do outro.

A obra foi dividida em três partes e subdividido em 8 capítulos. Neste texto destaco alguns aspectos, dentre vários outros, que chamaram minha atenção de maneira especial. Primeiramente, saliento que Cowling conseguiu remontar o itinerário de duas libertas tornado visíveis as marcas deixadas por elas tanto em Havana como no Rio de Janeiro, de modo que personagens tradicionalmente invisibilizadas pela documentação e, até mesmo, pela historiografia tiveram seu ponto de vista descortinado nas páginas de seu livro.

Os fragmentos da experiência de Romana Oliva e Josepha Gonçalves de Moraes remontados pela autora é a demonstração de um esforço investigativo de fôlego e bem sucedido. As questões levantadas e o exercício de imaginação histórica da pesquisadora tornaram possíveis que a partir do ponto de vista dessas mulheres possamos saber como pensavam várias outras de seu tempo e compreender os sentidos de suas escolhas, bem como daquelas feitas por seus familiares, escrivães, curadores e integrantes do movimento abolicionista.

A liberta Romana que comprara a própria liberdade um ano antes de migrar para Havana, em 1883, encaminhou uma petição dirigida ao governo-geral de Cuba reivindicando a liberdade de suas 4 crianças, María Fabiana, Agustina, Luis e María de las Nieves que estavam em poder de seu ex-senhor, Manuel Oliva. Quase um ano depois, foi a vez da liberta Josepha dar início a uma ação de liberdade na cidade do Rio de Janeiro com o objetivo de retirar sua filha, Maria, ingênua, com apenas 10 anos, do domínio de seus ex-senhores José Gonçalves de Pinho e sua esposa, Maria Amélia da Silva Pinho.

Assim como outras tantas pessoas, Romana e Josepha eram migrantes que a despeito das dificuldades das cidades, usaram a seu favor as possibilidades que as mesmas ofereciam na busca pela liberdade, além disso, como ressaltou a autora as chances de uma pessoa escravizada conseguir a liberdade morando nas áreas urbanas eram maiores do que aquelas que moravam nas áreas rurais.

De acordo com Cowling as duas libertas se apegaram as brechas da lei e fizeram omesmo tipo de alegação para contestar a legitimidade do domínio senhorial. EnquantoRomana declarou que sua filha era vítima de negligência e abuso sexual, Josepha alegou que suas crianças não estavam recebendo educação. Foi com base nessas denúncias que os senhores foram acusados de maus tratos, o que implicava na perda do domínio sobre as mencionadas crianças, conforme a legislação de Cuba e do Brasil respectivamente determinava.

No livro de Cowling, a leitora e o leitor interessado no tema pode verificar que as perguntas feitas a documentos como petições, ações judiciais, correspondências, jornais, obras literárias, imagens e legislação explicitam que as mulheres escravizadas, libertas e “livres de cor” sempre estiveram no centro da luta por liberdade legal. Isso porque as noções de gênero foram determinantes para o modo como elas vivenciaram a escravidão e consequentemente influenciaram em suas escolhas na luta pela conquista da manumissão. Além disso, especialmente nas décadas de 1870 e 1880, elas que sempre estiveram na linha de frente das disputas judiciais foram colocadas ainda mais no centro do processo da abolição gradual da escravidão.

As Romanas e as Josephas foram muitas nas duas cidades portuárias investigadas pela autora e com o objetivo de conseguir a própria liberdade e de suas crianças, elas se apegaram a argumentos legais tomando como base a legislação, como a Lei Moret de 1870 e a Lei do Patronato de 1880, em Cuba; e a Lei do Ventre Livre de 1871, no Brasil, mas também se apegaram a argumentos extralegais baseados em valores culturais como o“sagrado” direito a maternidade, apelando para piedade e a caridade das autoridadespara os quais levaram suas demandas de liberdade para serem julgadas.

Para Cowling, sobretudo, a retórica da maternidade era tão forte que era utilizada tanto por mulheres ao reivindicarem a liberdade de suas filhas e filhos como nos casos em que eram os filhos que buscavam libertar suas mães, e mesmo, nos casos em que os pais apareceram junto com as mães tentando libertar suas crianças, a opção era por colocar a maternidade no centro.

Não poderia deixar de trazer para este texto aquele que a meu ver é um dos pontos mais fortes da obra. Trata-se da opção da autora de enfrentar o tema da violência sexual contra “mulheres de cor”, aspecto da vida de muitas dessas personagens, ainda pouco explorado pela historiografia brasileira, seja devido ao sub-registro dessa violência na documentação disponível que era escrita em sua maioria por homens da elite e autoridades muitos dos quais também proprietários de cativas, seja devido à própria tradição de priorizar outros aspectos da experiência das pessoas.

Para a autora a tradição de violar o corpo de “mulheres de cor” era naturalizada entre os senhores e os homens da lei tanto que os primeiros não viam qualquer impedimento à prática de estuprá-las. Por isso mesmo, a falta de proteção extrapolava a condição de cativas e nem mesmo a liberdade legal era garantia de proteção ou reparação contra aqueles que as forçassem a ter relações sexuais com eles ou com outros (muitas escravizadas eram forçadas a prostituição por suas proprietárias e proprietários).

No entanto, se por um lado, ao se depararem com denúncias de violência sexual as autoridades geralmente posicionavam-se a favor dos agressores, inclusive responsabilizando as próprias “mulheres de cor”, prática que tinha a ver com a imagem que esses homens de maneira geral faziam desse grupo social considerado por eles como lascívias e corruptoras das famílias da elite. Por outro, ao procurar à justiça para denunciar a violência sexual elas explicitavam sua própria compreensão sobre si mesmas. Ao fazer isso Romana e várias outras estavam dizendo que acreditavam ter conquistado para si e para suas filhas o direito de poder dizer não para um homem com quem não quisessem fazer sexo.

Cheguei ao epílogo da obra convencida por Cowling de que embora Romana e Josepha tenham vivido em lugares diferentes e nem se quer se conhecessem, caso tivessem tido a oportunidade de se encontrar naqueles anos cruciais de suas vidas, elas teriam muito que conversar. Inevitavelmente suspeito ainda que várias mulheres negras do século XXI que tiverem acesso as minúcias do itinerário das personagens trazidas no trabalho terão a sensação de que também poderiam participar da conversa.

Por fim, acredito que as questões levantadas ao longo da obra sob vários aspectos servirão de inspiração para historiadoras e historiadores empenhados na reconstituição tanto quanto possível da vida de mulheres escravizadas, libertas e “livres de cor”, bem como de seus familiares e das pessoas com as quais elas se aliaram na construção de outros tantos processos coletivos de luta por liberdade legal.

Karine Teixeira Damasceno – Pós-Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura (PUC-Rio), Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).


COWLING, Camillia. Concebendo a liberdade: mulheres de cor, gênero e a abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro. Tradução: Patrícia Ramos Geremias e Clemente Penna. Campinas: UNICAMP, 2018. 440p.. Resenha de: DAMASCENO Karine Teixeira. “Mulheres de cor” no centro da luta por liberdade legal em Havana e no Rio de Janeiro. Canoa do Tempo, Manaus, v.11, n.2, p.294-297, out./dez., 2019. Acessar publicação original.

Gênero e consumo no espaço doméstico: representações na mídia durante o século XX na Argentina e no Brasil | Inés Pérez Marinês Ribeiro dos Santos

Gênero e consumo no espaço doméstico: representações na mídia durante o século XX na Argentina e no Brasil é o título do livro organizado por Inés Pérez e Marinês Ribeiro dos Santos a partir de artigos apresentados no 10º Seminário Internacional Fazendo Gênero (2013). A publicação tem como objetivo analisar, por meio dos artefatos, práticas e difusão do consumo, a construção de noções de feminilidades e masculinidades que incidem sobre a divisão sexuada do trabalho, a organização, a concepção e a ocupação do espaço habitado.

Temas afins foram pesquisados pelas organizadoras em suas teses de doutorado a partir dos campos da história da família e do design e da perspectiva de gênero. Enquanto Pérez (2012) analisou as transformações nas estruturas familiares na Argentina dos anos 1940 e 1970 em relação às dinâmicas de gênero e ao processo de industrialização da vida doméstica, Santos (2015) investigou as relações entre as transformações de gênero no Brasil dos anos 1960 e 1970 e a assimilação da linguagem pop no design de produtos. No desenvolvimento das pesquisas foi ficando clara a centralidade do consumo para a compreensão da modernidade, uma vez que a estruturação de um mercado diversificado de artefatos produzidos em massa foi acompanhada por discursos que contribuíram para a estratificação das vendas e a desigualdade de aquisição por gênero, classe e raça, incidindo nos ambientes urbano e doméstico, este último alvo privilegiado da produção industrial no período. Leia Mais

Gênero e Desigualdades: os limites da democracia no Brasil | Flávia Biroli

Como garantir a maior participação política (nas diferentes esferas) das minorias? De que maneira é possível superar as dificuldades enfrentadas pelas mulheres (como limitação temporal, causada pelo acúmulo de responsabilidades do trabalho doméstico, cuidado e maternidade) para um maior envolvimento político? Que direitos ainda são negados às mulheres e às pessoas LGBTQI+ pela democracia 1 brasileira? Como os feminismos têm contribuído para uma sociedade mais igualitária no que tange aos direitos e à participação política? Quais foram os avanços, os limites e as desigualdades ao longo das últimas décadas no Brasil? Essas e muitas outras questões foram respondidas por Flávia Biroli no livro Gênero e Desigualdades: os limites da democracia no Brasil, publicado no ano de 2018, no qual enfatiza, como anunciado no título, as limitações, as desigualdades e as relações de gênero presentes na democracia brasileira, a partir de uma análise que entrelaça local/global e as diferentes teorias feministas.

Flávia Milena Biroli Tokarski é formada em Comunicação Social pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita (UNESP), e possui mestrado e doutorado em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Ao longo de seus anos de pesquisadora e professora no Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), tem se dedicado às temáticas da democracia, política, estudos de gênero e teoria feminista, sobretudo, com enfoque nas áreas de mídia e política. Suas principais publicações, além do livro resenhado aqui, são: Caleidoscópio convexo: mulheres, política e mídia (2011, publicado com Luis Felipe Miguel), Autonomia e desigualdades de gênero: contribuições do feminismo para a crítica democrática (2013), Família: novos conceitos (2014) e Feminismo e Política (2014, também com Luis Felipe Miguel). Leia Mais

Mulheres, Gênero, Sertanidades  | SÆCULUM – Revista de História | 2019

Pretendemos, com este breve balanço apresentado na forma de ensaio, dar conta de apresentar um campo que começa a se consolidar, agregando pesquisas e trabalhos acadêmicos em torno da temática gênero e sertões. Mapeado inicialmente por esforços isolados e pontuais, o campo passa pela formação de uma rede que começa a atuar em conjunto, ganhando aos poucos espaço e reconhecimento, abrindo territórios intelectuais próprios. Entre competências científicas e afetos, as trocas e os compartilhamentos estão na base dessa proposta de pensar sertanidades com perspectivas outras, que buscam ir além da leitura e interpretação dos clássicos e da visibilidade dos “cabra-machos” e coronéis. Os sertões que aparecem são narrados na ótica das mulheres, das práticas sociais invisíveis, dos sujeitos antes considerados impossíveis, deslocados, seja nos termos de existências e vivências socialmente localizadas, mas, mais ainda, na visibilidade de suas histórias, trajetórias e memórias.

Se buscarmos nos embrenhar nos sertões da teoria, iremos perceber a necessidade da aproximação com outras noções que demarquem uma ausência ou um afastamento de uma historiografia preponderante, de mainstream, protagonizada por universidades localizadas em eixos historicamente privilegiados, como as regiões sudeste e sul do Brasil. Leia Mais

Darwinismo, raça e gênero: projetos modernizadores da nação em conferências e cursos públicos (Rio de Janeiro, 1870-1889) | Karoline Carula

A década de 1870 assinala o momento da chegada ao Brasil das “ideias novas”, como destacou Silvio Romero. Entre estas ideias, uma, o darwinismo, logrou grande sucesso entre os pensadores que buscavam fazer do Brasil um país moderno e civilizado. O darwinismo sofreu diversas apropriações e direções discursivas, sendo isto perceptível nas discussões que ocorriam nos jornais e revistas da Corte. Como exemplo dessa ampla difusão do darwinismo, temos o encontro do cientista francês Louis Couty com um fazendeiro de nome Tibiriçá. Dizia Couty (1988, p.98): “Estava eu percorrendo os títulos dos livros que via sobre a mesa de meu anfitrião, [Charles] Darwin, [Herbert] Spencer” e admitia “sem surpresa que os via ali, e que os via trazerem as marcas de uma leitura prolongada”.

O leitor que abrisse os jornais, como a Gazeta de Notícias ou o Jornal do Commercio , entre as décadas de 1870 e 1880, encontraria várias chamadas para conferências e cursos públicos na Corte que tratavam dos mais diversos assuntos discutidos pela ciência na época, quase todos perpassados pela perspectiva do darwinismo. O homem de letras desse período tinha uma ampla programação de ciência para realizar nos espaços públicos da capital do Império. Decorriam disso discussões e sociabilidades novas, permeadas pelas várias interpretações da teoria de Charles Darwin. Esse assunto é objeto de exame do livro Darwinismo, raça e gênero , escrito por Karoline Carula e publicado pela Editora Unicamp. O livro é resultado de sua pesquisa de doutoramento em história social defendida na Universidade de São Paulo. Atualmente, Carula é professora de história na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Leia Mais

A violência de gênero nos espaços do Direito: Narrativas sobre ensino e aplicação do direito em uma sociedade machista – SCHINKE (RTA)

SCHINKE, Vanessa Dorneles (Org.). A violência de gênero nos espaços do Direito: Narrativas sobre ensino e aplicação do direito em uma sociedade machista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. 388 p. Resenha de: REIS, Jade. Relações de Gênero nos espaços do Direito: experiências compartilhadas. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.11, n.27, p.523-529, maio/ago., 2019.

Diversos relatos de mulheres advogadas sobre o seu ofício diário mostram que durante sua trajetória jurídica lhes são apresentados empecilhos e violências simbólicas que envolvem as relações de gênero. Não coincidentemente, a coletânea de artigos organizada pela professora e doutora em Direito Vanessa Dorneles Schinke, objeto desta resenha, aborda experiências de mulheres da área do Direito, em carreiras absolutamente marcadas pelos estereótipos historicamente construídos nas relações de gênero.

O livro, lançado no ano de 2017, é dividido em três partes, sendo a primeira delas o “Prelúdio”, na qual estudantes de Direito narram suas trajetórias e experiências da vida universitária, bem como expressam as relações complexas de poder que permeiam estes espaços. O exercício de questionar e historicizar a situação das mulheres está presente nesta parte, assim como em todo o livro, bem como o de refletir sobre o papel de educadoras e operadoras do Direito em uma sociedade machista. Para as autoras, partindo da perspectiva de que, por muito tempo, este campo científico foi essencialmente masculino em termos de representatividade, e tendo em vista a luta das mulheres pela democratização do ensino superior e do mercado de trabalho, sua presença nestes espaços e no espaço público de maneira geral, estudando, profissionalizando-se, adentrando carreiras e cargos públicos, se apresenta como um avanço no que se refere ao árduo processo de ocupação dos espaços considerados pela norma patriarcal como “masculinos”.

A segunda parte, intitulada “Andante”, conta com doze artigos escritos por professoras, estudantes de graduação, pós-graduação e operadoras do Direito. Esta tem como foco temático questões que, como afirmam, não encontram espaço na circulação acadêmica do campo do Direito, mas fazem parte das experiências e cotidianos destas mulheres no âmbito universitário, como, por exemplo, nas salas de aula e instâncias politicamente deliberativas do meio universitário. As autoras buscam, por meio da narrativa de suas experiências, problematizar a naturalização de práticas violentas e machistas no ensino do Direito.

Segundo estas autoras, a condição de gênero expressa nas relações sociais no campo do ensino do Direito é definida historicamente a partir da socialização e das definições impostas pela sociedade patriarcal, gerando assim o problema da ausência de reconhecimento e a descrença no seu potencial de desenvolvimento na área jurídica. Roberta Baggio, professora do curso de Direito da UFRGS relatou em seu artigo que, na banca de um concurso público que prestou, ouviu de um membro a seguinte frase “como pode você ser mulher e ter um currículo com tantas experiências acadêmicas ao mesmo tempo?” (BAGGIO, 2017, p. 66), demonstrando assim o grau de incapacitação destinado às mulheres em suas avaliações de emprego, o que é por vezes um fator determinante em suas trajetórias profissionais. A autora afirma que na medida em que o ensino do Direito contribui para tais práticas, formam-se juristas que naturalizam as violências de gênero, culpabilizam e responsabilizam as mulheres pela cultura machista em casos de opressão.

As violências físicas e simbólicas existentes nos “trotes” nos cursos de Direito são, também, tema de abordagem nesta parte do livro. Violências estas que, muitas vezes advindas dos professores, envolvem provocações e incitações machistas, homofóbicas, transfóbicas e racistas, nas quais os corpos femininos são objetificados. Estudantes e professoras se organizam em ações contra os episódios de extremo machismo e preconceitos na universidade através de cartas de repúdio, escrachos, atos e movimentações, criação de coletivos e meios de solidariedade e articulações via internet e redes sociais. No entanto, denunciam as poucas oportunidades de debater gênero e violência nos cursos de Direito, bem como nos demais cursos de graduação e pós-graduação. A pesquisa realizada pela advogada Luana Pereira com estudantes da faculdade de Direito da UFRGS revela que 69% destas afirmaram já ter sido vítimas de práticas machistas na academia, 52% afirmaram ter passado por situações de assédio moral e 19,4% assédio sexual (PEREIRA, 2017, p. 94). Muitos dos casos de extrema violência de gênero que ocorrem nestes espaços têm repercussão em nível público, atingindo assim um maior número de mulheres, formando uma rede de sociabilidades e luta contra tais práticas. Todavia, o silenciamento dos assédios continua sendo uma realidade para as mulheres, professoras, estudantes e funcionárias técnicas e terceirizadas. Segundo a advogada Alice Abelar, na PUCRS, dentre 126 professores de graduação, 26% são mulheres. Apenas 20% na Pós-graduação em Direito e 10% na Pós-graduação em Ciências Criminais. Estes dados evidenciam a dificuldade do acesso das mulheres ao cargo de professora universitária, enquanto que não há discussão e questionamento sobre o assunto que não sejam impulsionados pelas mulheres, e daí a importância de sua representatividade.

A partir da leitura da obra é possível observar que entre as décadas de 1970 e 1990, com a crescente expansão das universidades, as mulheres passam a ter maior expressão neste campo, ainda que com as demarcações de classe e raça. Problematizar a violência de gênero nestes espaços deve considerar a gritante ausência de mulheres negras, indígenas e deficientes no ensino superior, que tem se democratizado processualmente a partir das lutas dos Movimentos Sociais e dos incentivos governamentais, como, por exemplo, a Lei n.º 12.711 de 2012 (Lei de Cotas).

O machismo dentro da militância do movimento estudantil também é apontado pelas autoras, na medida em que os estudantes homens ocupam cargos de representatividade, interrompem as falas de companheiras do movimento, não levam em consideração suas boas ideias, considerando-as apenas auxiliares de determinadas funções dentro das organizações.

As mulheres encontram-se em árduo combate político na academia, espaço que durante muito tempo fora homogeneizado pela presença masculina. Por isso a importância dada às professoras e militantes deste espaço na construção de diferentes futuros para estas mulheres. A terceira parte da coletânea, intitulada “Adagio”, reúne o total de onze artigos que apresentam criticamente a disputa de gênero no interior do judiciário, no qual a presença das violências simbólicas se destaca sobremaneira. Nesta parte da obra em questão, são narrados diversos casos que apresentam a naturalização e o descaso com as violências de gênero expressas no campo.

Marta Machado e Fernanda Matsuda, em seu estudo sobre a representação das mulheres nos processos judiciais no Sistema de Justiça Criminal, apontam que o discurso sobre as mulheres apresenta figuras dicotômicas idealizadas de mulher, sendo a “boa mulher” de família, boa esposa, dedicada, trabalhadeira, e a “mulher desafiadora, festeira, nervosa” (MACHADO e MATSUDA, 2017, p. 196), enquanto que os homens são sempre representados como pais de família, honestos e trabalhadores. As violências cometidas por estes, segundo as autoras, são rotineiramente justificadas nas salas de audiência pelo “mau comportamento” das mulheres, e apontadas como comportamento isolado dos homens. Estas demarcações interferem sobremaneira nos desfechos processuais das ações, legitimando, por vezes, danos irreparáveis às vidas de mulheres que são vítimas das violências de gênero, raça, etnicidade e demais preconceitos.

Segundo as autoras, os órgãos do Sistema Judiciário não reconhecem tais violências, e portanto não incidem os dispositivos legais específicos para os respectivos casos. Neste sentido, percebemos a desigualdade de gênero do exercício de poder nas instâncias do Judiciário brasileiro, o que está expresso, também, na baixa representatividade das mulheres nas esferas de decisão das organizações jurídicas, igualmente abordadas nesta parte do livro. Da mesma forma, ocorre nos escritórios de advocacia, nos quais a pesquisadora Patrícia Bertolin observou alto número de evasão de mulheres, ainda que nas entrevistas realizadas com os advogados homens que trabalham nestes espaços tenha sido frequente a negação de qualquer tipo de discriminação de gênero. A maternidade nesta profissão parece ser um dos principais problemas aparentes que obstacularizam a ascensão das mulheres no meio, como um “problema a ser resolvido”. Nesse sentido, é consenso entre as autoras que a advocacia é uma profissão que vem se femilinizando, mas ainda nos padrões machistas excludentes, obrigando as mulheres a afirmar e provar o tempo todo sua competência e eficiência profissional.

O livro “A violência de gênero nos espaços do Direito” é uma obra sobre experiências cotidianas. Um manifesto de mulheres feministas. Mulheres que lutam pela igualdade e promoção de direitos. Trata-se de pesquisadoras guiadas pela epistemologia feminista, que buscam problematizar seus posicionamentos e lugares de fala de forma interseccional, considerando os diferentes tipos de opressão decorrentes dos diversos marcadores sociais historicamente constituídos em nossa sociedade. Suas narrativas expressam uma série de subjetividades, com as quais se identificam o tempo todo as mulheres que as leem. Estas narrativas, como afirmam diversas vezes as autoras, saem da posição estritamente acadêmica, na medida em que tratam de experiências de mulheres que vivenciam as violências e demarcações de gênero não apenas nos espaços do Direito, mas na sociedade como um todo. A pesquisadora e organizadora da obra, Vanessa Dorneles Schinke, apontou ao encerrar as discussões realizadas no livro: “Aqui não há linha clara entre sujeito e objeto, empiria e teoria. O resultado é uma complexa composição que se retroalimenta da colaboração entre diversas pessoas – verbais e de carne e osso” (SCHINKE, 2017, p. 367) São diversos os arcabouços teóricos sobre Relações de Gênero e Teoria Feminista, específicos de cada temática abordada, utilizados nos 23 artigos que compõem a obra. Dentre eles, estão os que possibilitam articular as categorias como gênero e poder, através dos escritos de Michel Foucault e Joann Scott, por exemplo, gênero, raça e interseccionalidade, através dos estudos das teóricas Kimberlé Crenshaw e Helena Hirata, por exemplo, gênero e classe social, utilizando como referencial teórico os escritos da socióloga Heleieth Saffioti, dentre outras. Bem como referenciais teóricos clássicos dos estudos de gênero, como Simone de Beauvoir, Judith Butler e Bell Hooks, por exemplo. As autoras partem, em comum, da já mencionada epistemologia feminista, na medida em que têm como proposta a mudança do paradigma referencial das experiências compartilhadas pelos sujeitos e abordadas nas pesquisas científicas. A lógica da narrativa de suas experiências vivenciadas no campo alinha-se na epistemologia feminista, na medida em que justamente descola a figura masculina como detentora principal das discussões acerca das relações no meio jurídico.

A universidade e os demais campos do Judiciário são entendidos por estas pesquisadoras como espaços privilegiados da reprodução de uma cultura machista e sexista, mas são também expressos como espaços de luta e resistência de mulheres pela democratização dos espaços do Direito.

Jade Liz Almeida dos Reis – Mestranda em História na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Florianópolis, SC – BRASIL. E-mail: jjadeliz@gmail.com.

Women as Foreign Policy Leaders: National Security and Gender Politics in Superpower America – BASHEVKIN (REF)

BASHEVKIN, Sylvia. Women as Foreign Policy Leaders: National Security and Gender Politics in Superpower America. Oxford: Oxford University Press, 2018. Resenha de: SALOMÓN, Mónica. La política exterior ya no es cosa de hombres. Revista Etudos Feministas, Florianópolis, v.27, n.2, 2019.

¿En qué medida las mujeres que ocupan altos cargos en el poder ejecutivo representan a las mujeres como un todo o categorías específicas de mujeres? ¿Qué nos dice el desempeño de mujeres con responsabilidad en la conducción de la política exterior y de seguridad de sus países – y, específicamente, de los Estados Unidos – en relación a la discusión sobre la supuesta mayor disposición al pacifismo de las mujeres en comparación con los hombres? ¿Las decisiones de esas mujeres son evaluadas con los mismos criterios habitualmente empleados para juzgar a sus homólogos masculinos?

Women as Foreign Policy Leaders avanza en las respuestas a esas y a otras instigadoras preguntas centrales en las discusiones del campo de conocimiento de género y política y en sus intersecciones con otras áreas, como los estudios sobre seguridad internacional, la historia diplomática o el análisis de política exterior. Lo hace a través del estudio de las trayectorias vitales y políticas de cuatro mujeres que ocuparon altos puestos diplomáticos en los Estados Unidos: Jeane Kirkpatrick, embajadora ante la ONU durante la administración Reagan; Madeleine Albright, primera embajadora ante la ONU y luego secretaria de estado con Bill Clinton; Condolezza Rice, consejera de seguridad nacional en el primer mandato de George W. Bush y secretaria de estado en el segundo mandato y por último Hillary Clinton, secretaria de estado en el gobierno Obama. Leia Mais

Linguagens pajubeyras: re(ex)istência cultural e subversão da heteronormatividade – LIMA (REF)

LIMA, Carlos Henrique Lucas. Linguagens pajubeyras: re(ex)istência cultural e subversão da heteronormatividade. Salvador: Devires, 2017. Resenha de: OLIVEIRA, João Manuel de. Performatividade Pajubá. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.27, n.2, Florianópolis, 2019.

Este livro, editado pela Devires, que no panorama editorial brasileiro tem sido vital para sustentar e fomentar uma cultura de literatura e ensaio queer, é um marco no pensamento sobre subversão da heteronormatividade que poderíamos chamar de kuir/queer. Carlos Henrique Lucas Lima, autor da obra, recorre ao termo queer, sem o manter acriticamente. Toda a obra é precisamente uma celebração, de formas de resistir culturalmente, de torcer a norma e ressignificá-la, de produzir uma teoria e prática torcidas.

Carlos Henrique Lucas Lima é professor na Universidade Federal do Oeste da Bahia e escreveu este livro como resultado do seu doutoramento em Cultura e Sociedade na Universidade Federal da Bahia e fez esse trabalho no CuS, Cultura e Sexualidades, recentemente constituído como núcleo de pesquisa. Com formação inicial em Letras e História da Literatura, o seu olhar simultaneamente interdisciplinar e indisciplinar ajuda a entender algumas das propostas intrincadas deste texto híbrido que a editora Devires publicou. Leia Mais

Género y cuidado: teorías, escenarios y políticas – ARANGO GAVIRIA et al (REF)

ARANGO GAVIRIA, Luz Gabriela; AMAYA URQUIJO, Adira; PÉREZ BUSTOS, Tania; PINEDA DUQUE, Javier. Género y cuidado: teorías, escenarios y políticas. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia, Pontificia Universidad Javeriana, Universidad de los Andes, 2018. Resenha de: GASCA, Ells Natalia Galeano. La dimensión política del cuidado Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.27, n.2, 2019.

El libro Género y cuidado: teorías, escenarios y políticas contiene reflexiones sobre la interrelación entre las categorías de género y cuidado desde diferentes perspectivas. La edición académica a cargo de Luz Gabriela Arango, Adira Amauya, Tania Pérez Bustos y Javier Pineda Duque resulta de un esfuerzo interinstitucional entre la Universidad Nacional de Colombia, la Universidad Javeriana y la Universidad de los Andes de Bogotá. Se abordan debates teóricos y aportes empíricos derivados de investigaciones de autoras/es adscritas/os a distintas instituciones alrededor del mundo, lo que permite vislumbrar cómo el fenómeno del cuidado mantiene ciertas continuidades en el nivel doméstico, local y global. Las aportaciones contribuyen a entender cómo la categoría de cuidado tiene un potencial político de importancia, sobre todo en lo referente a la necesidad de encontrar formas de relación más justas y equitativas, desde los espacios micro sociológicos que afectan la vida cotidiana, hasta los macro sociales que afectan a los colectivos.

El libro se encuentra divido en tres secciones: “Ética y ethos del cuidado”, “Escenarios y significados del trabajo del cuidado” y “Organización social del cuidado y política pública”. El primer capítulo, de autoría de Joan Tronto, es titulado “Economía, ética y democracia: tres lenguajes en torno al cuidado”. La autora hace una reflexión ética desde la óptica del cuidado, vinculando aspectos relativos a la democracia. Igualmente, reflexiona sobre las atribuciones inequitativas de responsabilidades de cuidado y las asocia con las desigualdades de poder, expresadas en la clase social, la raza, la etnicidad, la sexualidad, entre otras diferencias. Aquí, la autora tipifica diversas formas de exención de las responsabilidades. Su enfoque intenta evitar que, al considerar la dimensión ética, se dejen de lado las preocupaciones sociales y estructurales, intentando tener presentes las dimensiones morales y las asociadas a la economía del cuidado. En este sentido, considera que es importante enmarcar el cuidado de manera que nadie se entienda ni totalmente dependiente, ni totalmente autónomo. Leia Mais

Ambulare – PRADO (REF)

PRADO, Marco Aurélio Máximo. Ambulare. Belo Horizonte: PPGCOM UFMG, 2018. Resenha de: COACCI, Thiago. Como funciona a despatologização na prática? Revista Etudos Feministas, v.27, n.2, Florianópolis,  2019.

Muita tinta tem sido gasta sobre a (des)patologização das transexualidades (Guilherme ALMEIDA; Daniela MURTA, 2013; Berenice BENTO; Larissa PELÚCIO, 2012; Daniela MURTA, 2011; Amets SUESS, 2016). O assunto já foi tema de reuniões no Ministério da Saúde, de debates em várias universidades e foi discutido também na Organização Mundial de Saúde (OMS). Desde 2008, a OMS iniciou o processo de reformulação de sua Classificação Internacional de Doenças, a CID. Esse documento orienta as práticas e as políticas de saúde em todo o mundo. Até a décima revisão, publicada em 1990, as formas de vida trans eram classificadas como uma patologia mental e traduzidas no diagnóstico F64.0 – transexualismo, dentre outros códigos similares. É essa classificação, em conjunto ao DSM, que tem orientado os documentos oficiais da política pública brasileira do processo transexualizador1.

Uma das principais demandas dos movimentos internacionais de pessoas trans era justamente a despatologização dessas experiências, isto é, sua retirada desses manuais e, principalmente, sua retirada do capítulo relativo aos transtornos mentais. Diversos grupos como o GATE* e a TGEU2 se mobilizaram para influir nesse processo. Participaram das reuniões, fizeram campanhas e mobilizações internacionais para sensibilizar as/os pesquisadoras/es e profissionais envolvidas no Grupo de Trabalho responsável por repensar as práticas de cuidado com essas pessoas. O desejo sempre foi pela despatologização, todavia, como Guilherme Almeida e Daniela Murta (2013) já chamavam atenção, fazendo coro a algumas organizações do movimento social, despatologizar não pode ser sinônimo de descuidar ou desassistir. A despatologização não poderia, nem deveria implicar perda de direito para essa população. Leia Mais

Feminismo em Comum: Para Todas, Todes e Todos – TIBURI (REF)

TIBURI, Marcia. Feminismo em Comum: Para Todas, Todes e Todos. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018. 125pp. Resenha de: LUCENA, Srah Catão. Da teoria às práticas: a epistemologia cotidiana de um feminismo em comunhão. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.27, n.3, 2019.

Filósofa de formação, a também escritora, artista plástica, professora e militante associada ao Partido dos Trabalhadores Marcia Tiburi publicou seu oitavo livro de ensaios, o qual vem avultar uma produção já robusta desta intelectual que também escreve romances, livros infantis, além de participar de antologias em coautoria com outras autoras de referência no campo da filosofia, como Suzana Albornoz e Jeanne Marie Gagnebin. De maneira geral, Feminismo em Comum amplia o projeto intelectual de Marcia Tiburi ao alinhavar recortes da sua biografia profissional à sua produção escrita, dotada de um estilo perspicaz, porque sabe traduzir filosofia, política e arte em linguagem acessível. Neste volume, a escritora reúne em um total de 125 páginas um debate que conecta seus temas predominantes, filosofia e política, à problemática de gênero. Ao elaborar como a estrutura opressora do patriarcado sistematiza a ordem social e mental brasileiras de maneira a cingir a vida das mulheres, a autora propõe, através de uma dicção prática e por vezes pungente, a perspectiva feminista como uma alternativa à recuperação da democracia para todas, todes e todos.

Organizado em dezessete capítulos, o ensaio inicia com uma chamada, “Feminismo já!”, convocando leitoras e leitores a compreenderem os extremos em que se encontra a questão feminista, separada, de um lado, pelo grupo que teme e rejeita o feminismo e, do outro, pelo que se entrega ao conceito com muita esperança, mas sem necessariamente pensá-lo como prática e, portanto, modo de vivência e atuação na sociedade. A questão da transfiguração da teoria feminista em exercício social é uma preocupação atual do campo de estudos e encontra-se presente em trabalhos de referência do pensamento feminista, a exemplo de Sara Ahmed no seu Living a Feminist Life (2017). Nesse sentido, propor o feminismo como ferramenta de trabalho e modo de estar no mundo é um ponto forte do livro de Tiburi, já que sintoniza a sua discussão a um contexto amplo e universal, mas sem perder de vista a especificidade brasileira que serve como referência direta para quem tem seu livro em mãos. Leia Mais

Debates feministas. Um intercâmbio filosófico – BENHABIB et al (REF)

BENHABIB, Seyla; BUTLER, Judith; CORNELL, Drucilla; FRASER, Nancy. Debates feministas. Um intercâmbio filosófico. Trad. de Fernanda Veríssimo, São Paulo: Editora Unesp, 2018. Resenha de: SANTOS, Patrícia da Silva. Feminismo, filosofia e teoria social: mulheres em debate. Revista Estududos Feministas, Florianópolis, v.27, n.3 2019.

O discurso filosófico e teórico nas sociedades ocidentais estabeleceu-se, por muito tempo, como território predominantemente masculino. O debate acerca da boa vida e as concepções em torno de suas instituições subjacentes à filosofia e à teoria social eram, até há pouco, protagonizados por homens que se apresentavam como as vozes “neutras” e “objetivas” de nossas formulações teóricas. O que acontece quando quatro feministas se reúnem para debater suas questões em profundo diálogo com algumas das mais relevantes tendências teóricas contemporâneas – como a teoria crítica, o pós-estruturalismo e a psicanálise? É claro que não se poderia exigir dessa empreitada a homogeneidade e o consenso próprios da suposta “universalidade” com que se disfarçou a moderna racionalidade ocidental.

Debates feministas, publicado originalmente no início dos anos 1990 e só agora disponível em edição brasileira, não é somente um livro sobre teoria feminista (uma das lições implícitas é justamente a impossibilidade de se pensar tal concepção no singular). É um testemunho de que o abalo geral provocado pelo pensamento contemporâneo em concepções basilares como identidade, normas e cultura exige que sejam autorizados sujeitos de discurso até então silenciados para que a filosofia e a teoria social se dispam da falsa neutralidade e incorporem os ruídos do não-idêntico, da subversão e da diferença. Em seus debates, Seyla Benhabib, Judith Butler, Drucilla Cornell e Nancy Fraser buscam apontar o lugar dos discursos feministas nessa tarefa de reelaboração do pensamento filosófico e teórico – as quatro pensadoras já apareciam, juntamente a outras, em volume publicado no Brasil há um bom tempo (Seyla BENHABIB; Drucilla CORNELL, 1987). Leia Mais

Género y sociedad en el Egipto romano. Una Mirada desde las cartas de mujeres – ZABALEGUI (PR)

ZABALEGUI, A. Goñi. Género y sociedad en el Egipto romano. Una Mirada desde las cartas de mujeres. Oviedo: Ediciones de la Universidad de Oviedo, 2019, 360p. Resenha de: PERALES, A. Izquierdo. Panta Rei. Revista Digital de Ciencia y Didáctica de la Historia, Murcia, p.199-201, 2019.

La doctora Goñi Zabalegui nos sumerge, a partir de las cartas de las mujeres en el Egipto romano, en la historia social de Egipto bajo el dominio del Imperio. Esta publicación es la adaptación en formato libro de la tesis doctoral de la autora, Cartas papiráceas de mujeres del Egipto Romano: género y sociedad. Esta obra se incluye dentro de la Colección Deméter vinculada al grupo de investigación Deméter. Maternidad, género y familia de la Universidad de Oviedo, cuyo objetivo es la implantación y desarrollo de los estudios de género a través de dicha colección monográfica.

Para realizar este estudio la autora parte de la obra de R. S. Bagnall y R. Cribiore, Women’s Letters from Ancient Egypt, 300 BC-AD 800 que, a principios de nuestro siglo, realizaron una recopilación de los papiros y los ostraca de las mujeres desde época ptolemaica hasta parte de la Alta Edad Media. No obstante, decide profundizar en la situación concreta de las mujeres en el Egipto romano, abarcando un periodo histórico desde el siglo I a. C. al siglo III d. C. El libro se centra en tres ámbitos de la sociedad de este periodo: las relaciones sociales, la movilidad y las actividades económicas. La premisa de su autora es que un estudio exhaustivo de las cartas de este momento puede aportar una visión sobre las relaciones de género y de poder, así como la situación en que se encontraban las mujeres en este contexto.

En el primer capítulo se analizan las cartas en papiro de mujeres y la práctica epistolar durante este periodo. La autora señala que, en general, el acceso al papiro no fue caro ni difícil, aunque en algunas zonas el acceso al mismo debió ser más caro, por lo que parece ser el motivo por el cual encontramos reutilización de papiros o el uso de ostraca. Por otro lado, mientras que durante el Egipto ptolemaico la documentación se halla principalmente en el contexto funerario, en el Egipto romano aparece en el espacio urbano. No obstante, hay pruebas de correspondencia en época ptolemaica, ya que había un sistema bastante desarrollado de correspondencia entre el monarca y los subordinados, aunque la mayor parte de las cartas en papiro proceden de época romana.

Durante el segundo capítulo se retratan las relaciones sociales a través de la correspondencia. La familia constituye entonces la unidad básica de organización social y, por otro lado, es un vehículo de construcción de identidades. Había diferentes tipos de familia (nuclear, extensa, y hermanos y/o hermanas que convivían de forma independiente o con sus parejas en una misma vivienda) que podían variar dependiendo del cambio de estatus del individuo. Además, los matrimonios consanguíneos fueron habituales hasta su desaparición en el siglo III d. C. Asimismo, se trata de un periodo con altas tasas de mortalidad, un factor que influyó a las estructuras familiares de la época, y en el caso de las mujeres hay muchas muertes vinculadas al parto.

En cuanto a la situación de la mujer, mientras que el derecho egipcio proporcionaba una mayor libertad a las mujeres, en época ptolemaica se introduce la figura del tutor legal para las féminas, que continúa hasta época romana. Aunque las mujeres siguieron gozando de cierta autonomía pese a esta figura legal, se vieron afectadas ya que, aunque no dependían del tutor para gestionar propiedades o negocios, o para presentar una demanda, sí que precisaban de su compañía en determinados momentos de procesos judiciales, y, por otro lado, su participación política se vio afectada por el derecho latino y las limitaciones que este establecía para desempeñar la mayoría de oficios públicos en la zona griega del Imperio romano. Dentro del contexto familiar, al mismo tiempo, las mujeres tenían un papel importante dentro de la vida de los hijos en la tradición greco-egipcia: las madres, incluso las abuelas, podían decidir sobre la vida de los hijos.

En cuanto a las relaciones fuera del núcleo familiar las amistades también tenían un papel importante en la sociedad grecolatina, sin embargo su concepto de amistad va más allá del actual, ya que adquieren un papel primordial dentro de la esfera pública y política.

Por otro lado se encuentran las relaciones de dependencia, los esclavos y las esclavas por ejemplo, aunque en las cartas aparecen en ocasiones difuminados con otro grupo de personas cuyo estatus no aparece definido, pero que sabemos que recibían un jornal muy pequeño, por lo que su relación de dependencia podría equipararse a la de los esclavos. En las cartas la forma de comunicación de las personas dependientes es diferente, porque se muestra la necesidad o el deseo de desempeñar correctamente la tarea que se les ha encomendado, ya que probablemente en el pasado recibieron alguna crítica por no haber desempeñado bien la función encomendada, como bien señala la autora.

Se destaca que las relaciones sociales no solo están marcadas por el poder, sino que también están influidas por la reciprocidad, algo que tuvo una gran importancia en el mundo grecorromano. La reciprocidad regulaba todas las relaciones sociales, pero también las relaciones entre las personas y los dioses.

En el tercer capítulo aborda los espacios relacionados con las cartas, desde el hogar hasta los viajes. El acceso a la vivienda en el Egipto romano era privilegiado en esta provincia, cuyo valor económico lo podemos estudiar a través de contratos (alquiler, compraventa, matrimoniales), testamentos, así como los préstamos de dinero en los que se hipoteca la casa. Por otro lado, la diferencia entre lo público y lo privado es fundamental para entender los roles de género en el mundo antiguo. El papel de la mujer en la vida pública queda muy limitado debido al derecho latino, por lo que solo realizaron participaron en algunas actividades religiosas con poco poder ejecutivo, siempre determinadas por el estatus económico de las mujeres.

Asimismo hay pruebas en las cartas de los viajes de las mujeres. Dependiendo de la situación socioeconómica de cada mujer podía viajar sola o acompañada: había mujeres que solo estaban acompañadas por otros viajeros del camino, conocidos o familiares, y esclavos o escoltas en el caso de las mujeres de un estatus social elevado.

A lo largo del cuarto capítulo se detiene a analizar el rol de las mujeres dentro de la economía a través de las cartas privadas. En de este contexto el papel de las cartas fue fundamental, ya que en ellas se produce la comunicación de gestiones administrativas, por lo que forman parte de un corpus de documentación administrativa que nos permite entender la distribución y administración de la economía durante este periodo. Durante el periodo de ocupación romana se consolida la propiedad privada, lo cual provoca una fragmentación de la misma y el aumento de las parcelas pequeñas en la chora egipcia, fruto de las herencias, lo cual determina la situación socioeconómica tanto de hombres como de mujeres.

Finalmente la autora proporciona al lector un apartado de anexos: en el primer anexo encontramos una serie de tablas descriptivas con el nombre del documento, el emisor o emisora, el destinatario o destinataria, el lugar donde se ha encontrado el documento, y la fecha en que está datado; en el segundo anexo describe y analiza brevemente cada una de las cartas que se han tenido en cuenta para la realización de su estudio; y, finalmente, en el tercer anexo la autora proporciona una serie de mapas e ilustraciones.

En definitiva, el trabajo realizado por Goñi Zabalegui es, sin lugar a dudas, fundamental, no solo para entender la historia del Egipto grecorromano, sino también para el estudio del Imperio romano, la historia de género, la historia de la economía y la historia social. Además, a través de esta obra se contribuye claramente al desarrollo y la difusión de la papirología. Su obra tiene una magnífica profundidad y diversidad cuyo alcance va más allá de un estudio de género, ya que la cantidad de datos y perspectivas que maneja la autora demuestran la calidad de su estudio. Por otro lado resultaría sumamente interesante ampliar este mismo estudio a los otros periodos que aparecen en la obra de Bagnall y Cribiore, para así culminar realizando un estudio comparativo de los cambios sociales y de la construcción del género entre el año 300 a. C. y el 800 d. C. Asimismo, también supondría un gran aporte científico una profundización en la historia emocional a través de las cartas de las mujeres: por ejemplo, tratando cómo vivían su emocionalidad y qué tipo de vínculos se generaban dentro de la familia. No obstante, el estudio de la autora ya es de por sí bastante extenso y polifacético, y es en sí mismo un gran aporte para el mundo de la investigación.

Alejandra Izquierdo Perales – Universidad Complutense de Madrid.

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Calibã e a bruxa – FEDERICI (Topoi)

FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa. Mulheres, corpo e acumulação primitiva. Trad. de Coletivo Sycorax, São Paulo: Elefante, 2017. I Tomo, Migraciones. Ciudad de México: Palabra de Clío, 2017, 194p.p. Resenha de: REIS, Marcus. A normatização dos corpos e a regulação dos gêneros no processo de transição do feudalismo para o capitalismo. Topoi v.19 n.39 Rio de Janeiro Sept./Dec. 2018.

Calibã e a bruxa não é um livro que foge aos debates atuais envolvendo o movimento feminista. O fato de a tradução desta obra para o português ter sido encabeçada justamente por um “Coletivo”, o Sycorax, demonstra o alcance desse trabalho para além do contexto estadunidense. A proposta de Silvia Federicié clara ainda na introdução de sua obra, afirmando seu desejo em “esboçar a história das mulheres na transição do feudalismo para o capitalismo” como modo de explicar a relação entre essa história e a exploração decorrente desse processo. Por outro lado, não se desvincula dos primeiros momentos em que o feminismo se posicionou contrariamente ao status quo, ainda que a publicação original seja de 2004.

Não há, ressalte-se, um apego ao anacronismo por parte de Silvia Federici, como se o conceito de gênero fosse utilizado para enxergar as raízes do feminismo na Época Moderna. A originalidade de sua obra consiste em se preocupar não apenas com a multiplicidade que o conceito de mulher possui, mas principalmente com os espaços sociais distintos e atrelados ao fenômeno sobre o qual a autora se debruça. É nesse sentido que Federici parte para o uso em plural da ideia de mulher, assumindo, no âmbito de seu trabalho, o entendimento de que as práticas capitalistas são essenciais para perceber como as relações sociais em que as mulheres se inseriram estiveram marcadas por um contexto de exploração (p. 27).

Há, também, a preocupação em discutir os conceitos de caráter marxista antes mesmo de operacionalizá-los, como a noção de acumulação primitiva. Ao tratar dessa noção, a autora a articula ao objetivo central de sua obra, a “caça às bruxas”, afirmando que esse fenômeno, seja no mundo europeu ou no Novo Mundo, “foi tão importante para o desenvolvimento do capitalismo quanto a colonização e a expropriação do campesinato europeu de suas terras” (p. 26). É nesse objetivo que, aliás, Federici destaca seu distanciamento das análises de Marx na medida em que o autor, a seu ver, negligenciou a participação das mulheres no contexto da acumulação primitiva. Se Marx “tivesse olhado sua história {do capitalismo} do ponto de vista das mulheres” (p. 27), não teria afirmado que o capitalismo prepararia o caminho para a libertação do proletariado. É, portanto, na tentativa de ampliar a ótica marxista ao atrelá-la à categoria de gênero que seu trabalho se insere, dividindo-se em cinco capítulos.

Seu primeiro capítulo, intitulado “O mundo precisa de uma sacudida”, parte essencialmente da discussão voltada ao surgimento dos Estados Absolutistas, iniciando o debate ainda no contexto da Baixa Idade Média, caracterizada pelas relações de servidão e seus conflitos. No campo das relações de gênero, a contribuição da autora reside no interesse em atrelar o surgimento desses Estados a uma forte política de regulação dos sexos, dos papéis sociais que homens e mulheres deveriam cumprir, apontando para o forte revés sofrido pelas mulheres por conta da legalização do estupro. O resultado disso, para além da degradação da honra feminina, foi o fato de que essa legalização “insensibilizou a população frente à violência contra as mulheres, preparando o terreno para a caça às bruxas que começaria nesse mesmo período” (p. 104).

“A acumulação do trabalho e a degradação das mulheres” confere título ao segundo capítulo da obra de Federici, acompanhando a lógica que finalizou o capítulo anterior, atrelando a emergência dos Estados Absolutistas à maior degradação social das mulheres e à emergência de uma nova feminilidade. É nesse espaço de discussões que, por exemplo, a autora retoma o conceito de acumulação primitiva. Ao defender a hipótese de que esse conceito não diz respeito apenas a uma “acumulação e concentração de trabalhadores exploráveis e de capital”, a autora o entendeu como contexto de reformulação das relações de trabalho a partir da sujeição das mulheres. No entender de Federici, esse contexto contribuiu para o processo de ressignificação das funções sociais prescritas às mulheres, que teria atingido seu auge no século XIX “com a criação da dona de casa em tempo integral”, na medida em que à figura feminina coube exclusivamente o papel de reprodutora, distanciando-a da vida pública por conta da nova divisão sexual do trabalho.1

É também nesse segundo capítulo que a autora passa a apresentar com mais clareza sua hipótese central de trabalho: o fenômeno de caça às bruxas corresponderia à maior derrota sofrida pelas mulheres na medida em que teria culminado no surgimento de um novo modelo de feminilidade. As mulheres seriam, assim, destituídas do universo público, relegadas ao papel de reprodutoras, esposas, viúvas ou prostitutas, ficando, por fim, distantes das “relações coletivas e {dos} sistemas de conhecimento que haviam sido a base do poder das mulheres na Europa pré-capitalista” (p. 187). Desse modo, até finais do século XVII o que predominou foi um novo “cânone cultural”, encarando as mulheres como “selvagens, mentalmente débeis, de desejos insaciáveis, rebeldes, insubordinadas, incapazes de se controlarem”.

Seu terceiro capítulo, “O grande calibã”, analisa como esse processo de disciplinamento dos corpos direcionado às mulheres foi colocado em prática ao longo da Época Moderna, já que, no capítulo anterior, a autora discutiu as bases que permitiram o avanço dessa estrutura normativa. Esse novo contexto foi caracterizado pela dicotomia da “Razão e as Paixões do Corpo”. Como pano de fundo desse binômio, enxergou a emergência de uma “engenharia social” interessada em reinterpretar as funções do corpo e inseri-lo numa nova lógica em que este foi encarado como fonte de todos os males. Sob a filosofia mecanicista, interessada amplamente em destrinchar as funções corporais, Federici percebeu como o controle da classe dominante sobre o mundo natural se deu progressivamente até culminar no “controle sobre a natureza humana”. Como consequência, ocorreu a morte do conceito de corpo enquanto receptáculo de forças mágicas, amplamente difundido ao longo do Medievo. Aqui, sentimos falta de uma reflexão mais atenta à diversidade documental do período. Nesse sentido, em que medida essa morte de fato teria ocorrido nos séculos XVI e XVII se tomássemos por base as narrativas presentes nos processos dos diversos tribunais do Santo Ofício, e não somente os tratados da época?

Outro argumento empregado por Federici baseia-se no crescente interesse da burguesia em desclassificar a magia, encarando-a como principal entrave para o disciplinamento social e, por consequência, do trabalho. Esse ataque aos indivíduos que se valiam do sobrenatural como forma de resposta às demandas cotidianas, foi, inclusive, um dos principais alicerces para que os Estados investissem na perseguição contra a magia, resultando no fenômeno que é base do trabalho da autora. Disciplinar o corpo esteve, portanto, diretamente relacionado à desconstrução da magia, ambas tornando-se “laboratório no qual tomou forma e sentido a disciplina social” (p. 261).

Seu penúltimo capítulo, “A grande caça às bruxas na Europa”, busca, em sua essência, confirmar que o fenômeno da caça às bruxas foi resultado de um processo planejado e encabeçado pelas diversas estruturas de poder, maiormente Igreja e Estados, a fim de levar adiante um disciplinamento social em que as mulheres foram subjugadas.2 Foi, portanto, “iniciativa política”,3 com forte atuação da Igreja Católica por fornecer o “arcabouço metafísico e ideológico” que sustentou as perseguições a partir do século XVI. Além disso, tais perseguições devem ser vistas como uma reação à resistência das mulheres contra as relações capitalistas que ressignificaram a feminilidade. Por fim, esse fenômeno foi instrumento de construção de uma ordem patriarcal que criou modelos de feminilidade prescritos às mulheres, tornando seu “trabalho, seus poderes sexuais e reprodutivos” a serem controlados pelos Estados, segundo a forma de força de trabalho defendida pela burguesia. Se pensarmos numa síntese do que foi esse fenômeno, segundo Federici, poderíamos dizer que a caça às bruxas foi “uma guerra contra as mulheres; {…} uma tentativa coordenada de degradá-las, demonizá-las e destruir seu poder social {…} onde se forjaram os ideais burgueses de feminilidade e domesticidade” (p. 334).

O derradeiro capítulo, “Colonização e cristianização”, se debruça na extensão que o fenômeno da caça às bruxas adquiriu no Novo Mundo. A autora defende que a abrangência desse fenômeno para além do espaço europeu foi motivada pelo interesse das autoridades em utilizá-lo como ferramenta capaz de minar a “resistência anticolonial e anticapitalista” e levar adiante o interesse exploratório. Seu foco se direcionou basicamente ao contexto da América espanhola, percebendo similaridades com o processo de definição da bruxaria no âmbito europeu, como no perfil das mulheres que foram acusadas por esse delito no espaço americano: “as mulheres se converteram nas principais inimigas do domínio colonial, negando-se a ir à missa, a batizar seus filhos, ou a qualquer tipo de cooperação com as autoridades coloniais e os sacerdotes” (p. 402). Tal qual na Europa, a perseguição se direcionou ao combate de práticas e crenças heterodoxas ao catolicismo bem como às revoltas contra o sistema dominante, neste caso, colonialista.

Ao conferir protagonismo a um “sistema em que a vida está subordinada à produção de lucro” (p. 35), o que implica na imposição da violência, a autora acaba por privilegiar sua análise a partir de uma estrutura hegemônica. E, talvez, seja no excessivo olhar estruturante de sua obra que as análises empreendidas por Federici perdem força, principalmente em relação a outros campos de discussões associados ao fenômeno estudado.4 Perde-se a avaliação precisa do peso das práticas encabeçadas pelas mulheres como resultado da própria crença dessas mulheres na sua capacidade de dialogar com o sobrenatural. Ao enxergar nas práticas heréticas protagonizadas por elas ao longo da Baixa Idade Média como exemplos claros de uma verdadeira “revolução sexual”, a autora cai no risco de desconsiderar que, por vezes, essas mesmas mulheres, ao ingressarem no universo do sobrenatural, almejavam apenas a manutenção de seus casamentos, sem que a estrutura normativa fosse colocada em xeque.5

Mesmo ao chamar o “Novo Mundo” para o debate, relacionando-o ao contexto de perseguição à feitiçaria, a autora não se descola de um olhar homogeneizante, como ao considerar o período de 1580 a 1630 como ápice da “caça às bruxas”. Se partirmos para a América portuguesa, espaço que é negligenciado em sua obra, é possível perceber que, mesmo no século XVIII, os índices de denúncias e processos promovidos pela Inquisição portuguesa por esse delito são elevados, até maiores que os números relativos ao século XVI.6

Mesmo nesse século, as realidades são diversas quando comparamos regiões distantes, ainda que seja possível identificar algumas coerências nos argumentos da autora. No contexto inglês, Federici enxerga uma relação intrínseca entre o elevado número de acusações contra supostas feiticeiras em Essex e a grande quantidade de terras cercadas nessa região. O mesmo vale quando a autora, concordando com Henry Kamen, estabelece um paralelo entre as graves crises econômicas e o avanço da perseguição à bruxaria, já que muitas mulheres participaram das revoltas como protagonistas. No entanto, a imprecisão existe quando outros contextos são comparados, como em Portugal, em que a realidade é outra. Conforme apontou Francisco Bethencourt, nesse espaço, a figura da mulher, pobre e marginalizada socialmente, pouco apareceu nos processos da Inquisição lusitana.7

Por fim, outro importante debate historiográfico no qual se insere Calibã e a bruxa diz respeito ao entendimento da autora de que a misoginia, juntamente com o conceito de acumulação primitiva, contribuiu decisivamente para que a “caça às bruxas” se sustentasse como importante ferramenta de submissão das mulheres aos mecanismos de poder marcadamente masculinos. Trabalhos como o apresentado por Silvia Federici demarcam, assim, uma diferença visível em relação a outro viés analítico defendido, por exemplo, por Stuart Clark, no qual o peso da misoginia é relativizado.

Em Pensando com demônios, o conceito de contrariedade é tomado como base para refutar a ideia de que a misoginia foi o grande pilar que sustentou a demonologia e a “caça às bruxas”. Clark parte do entendimento de que a modernidade europeia sustentou suas visões de mundo e interpretações a partir de um “extremismo cognitivo”, do qual a figura da “bruxa” foi resultado direto. Bem e Mal se tornaram conceitos essenciais para tais sociedades.8 Esse novo “idioma” foi recorrente não apenas nos corredores eclesiásticos, mas também no modo como a religiosidade foi vivenciada, fazendo com que a alma do indivíduo fosse objeto de disputas. Assim, a misoginia perde força como categoria explicativa, na medida em que a contrariedade se tornou o elemento capaz de explicar os motivos das mulheres terem sido relacionadas à bruxaria.9

Por isso, ao perceber a pouca ocorrência de tratados que se interessaram exclusivamente em injuriar as mulheres e tendo em vista que os trabalhos da época pouco se direcionaram a “explorar o fundamento da bruxaria no gênero”,10 o autor defendeu a necessidade de se relativizar o uso da noção de misoginia. No entanto, ao afirmar que havia uma conexão óbvia para os estudiosos entre a presença das mulheres e a sua predisposição às influências diabólicas, a ponto de fazerem com que tais autores não sentissem “a menor necessidade de elaborar sobre ela ou apelar para o ódio às mulheres em seu respaldo”, Stuart Clark acabou por abrir uma aresta nos seus pressupostos, o que faz com que trabalhos como o de Silvia Federici seja um importante contraponto a esse viés.

Essa relativização por parte do autor a respeito da misoginia foi sustentada por outras duas interpretações. Clark percebeu que na maioria das vezes os tratados demonológicos não se interessaram exclusivamente em injuriar as mulheres – elemento que, a seu ver, sustenta a ideia de misoginia. Além disso, os tratados interessados em discutir sobre o fenômeno da bruxaria “mostraram pouco interesse tanto em explorar o fundamento da bruxaria no gênero quanto em usá-la para denegrir as mulheres”. Assim, as obras que foram amplamente difundidas pela historiografia como exemplo da misoginia presente nas perseguições à bruxaria, como o Malleus Maleficarum e os tratados de Jean Bodin e Martin del Rio, foram encaradas sob uma leitura isolada que pouco ou quase nada se preocupou com a justificativa da presença de mulheres no fenômeno da bruxaria. Todavia, os argumentos de Stuart Clark também são passiveis de críticas.

Se há uma obviedade na conexão entre a figura das mulheres e a presença do Diabo, conforme aponta o autor,11 não é na identificação desse caráter que reside a chave para a compreensão de todo o fenômeno de “caça às bruxas”. Em Calibã e a bruxa , o aspecto central para responder à problemática levantada consistiu justamente em conferir peso à misoginia como instrumento que sustentou a conexão citada, sem perder de vista que a história das mulheres em meio ao contexto de “caça às bruxas” é uma história eivada de trajetórias por vezes silenciadas, inclusive pelos próprios historiadores que negligenciaram o peso das estruturas de poder na normatização dos corpos, na definição dos gêneros e na sustentação de uma heterossexualidade compulsória. Um dos méritos da obra de Federici consiste justamente em perceber como o consenso entre as autoridades religiosas e civis produziu uma série de mecanismos de vigilância e normatização interessados na manutenção do binarismo masculino/feminino. Vide exemplo apontado pela autora nos discursos que se produziram a respeito do pacto diabólico, em que, mesmo ao defenderem a existência de rituais em que as mulheres negavam o catolicismo, se relacionavam com os diabos e consolidavam sua posição de “feiticeiras”, prevalecia a supremacia masculina: “as mulheres tinham que ser retratadas como subservientes a um homem {o Diabo} e o ponto culminante de sua rebelião – o famoso pacto com o diabo – devia ser representado como um contrato de casamento pervertido” (p. 343).

Calibã e a bruxa é uma obra que merece uma leitura atenta por se preocupar em compreender os longos séculos de associação das mulheres à figura do Diabo, à predisposição ao delito da feitiçaria, ou bruxaria, sem isolar as trajetórias dessas mulheres dos motivos que sustentaram essa associação. Por isso a relevância de sua obra: reafirmar a necessidade de se compreender passado e presente sem negligenciar o peso das relações de gênero e dos papéis sociais atribuídos aos homens e mulheres. Além disso, se levarmos em consideração não apenas a temática em que a autora se debruça, mas também o recorte temporal escolhido, percebemos o quão necessário são as publicações interessadas em articular religiosidade e relações de gênero na Época Moderna, tornando-se exemplos da diversidade de interpretações resultantes dessa interação. Para o contexto brasileiro, que tem acesso relativamente tardio à publicação em português deCalibã e a bruxa , tais aspectos estão igualmente presentes (talvez até com maior peso). Eles nos permitem entender que o estudo da bruxaria está longe de se esgotar quando o conceito de gênero é operacionalizado.

Referências

FEDERICI, Silvia; Calibã e a bruxa . Mulheres, corpo e acumulação primitiva. Trad. de Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017. Tomo I: Migraciones. Ciudad de México: Palabra de Clío, 2017. 194p. [ Links ]

1É nesse contexto de disciplinamento dos corpos e de normatização das mulheres, atrelando-as ao papel reprodutivo, que a autora enxerga um forte paralelo com o aumento dos processos envolvendo os delitos de infanticídio e bruxaria (p. 157).

2Um dos argumentos mais sólidos que a autora construiu referente à submissão feminina no âmbito da caça às bruxas diz respeito à mudança de status adquirida pela figura do Diabo a partir do século XVI, deixando de ser escravo e servo das mulheres, tornando-se figura abominável, “seu dono e senhor, cafetão e marido”. Tanto é que o pacto diabólico, considerado pelos demonólogos como auge dos rituais empreendidos pelas mulheres com a figura do Diabo, evocava a supremacia masculina através de tal personagem, para a qual as mulheres deveriam prestar juramento (p. 338).

3A autora chega a afirmar que a “caça às bruxas foi o primeiro terreno de unidade na política dos novos Estados-nação europeus”, muito por conta de protestantes e católicos terem compartilhado do mesmo interesse em coibir a presença da bruxaria entre seus fiéis (p. 303).

4Como, por exemplo, a possibilidade de promover estudos mais aprofundados das crenças, das práticas, da possibilidade de se compreender o universo mágico-religioso e suas relações entre os indivíduos a partir do entendimento de que havia ali uma coerência interna distanciada do materialismo.

5No contexto da Coimbra Seiscentista, José Pedro Paiva identificou a predominância das mulheres casadas como as maiores interessadas em contar com a ajuda das feiticeiras para a manutenção de seus casamentos. Cf.: PAIVA, José Pedro. O papel dos mágicos nas estratégias do casamento e na vida conjugal na diocese de Coimbra (1650-1730). Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1990, p. 168-169; 180-182.

6MATTOS, Yllan de. A última Inquisição: os meios de ação e funcionamento do Santo Ofício no Grão-Pará pombalino. 1750-1774. Jundiaí: Paco Editorial, 2012.

7BETHENCOURT, Francisco. O imaginário da magia. Feiticeiras, adivinhos, curandeiros em Portugal no século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 371. Destaque-se ainda, entre os denunciantes, a multiplicidade de classes sociais interessadas em denunciar o delito da feitiçaria.

8CLARK, Stuart. Pensando com demônios. A ideia de bruxaria no princípio da Europa Moderna. Trad. de Celso Mauro Paciornik. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006, p. 87.

9Ibidem, p. 187.

10Ibidem, p. 166.

11“Os autores sobre bruxaria evidentemente davam como certo uma maior propensão das mulheres ao demonismo, e tudo em seu ambiente cultural os encorajava a isso. A conexão era tão óbvia para eles, tão profundamente enraizada em suas crenças e comportamento, que não sentiam a menor necessidade de elaborar sobre ela ou apelar para o ódio às mulheres em seu respaldo.” Cf.: Ibidem, p. 168.

Marcus Reis – Doutorando da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: mv.historia@gmail.com.

Uma Estrela Negra no teatro brasileiro. Relações raciais e de gênero nas memórias de Ruth de Souza (1945-1952) | Julio Claudio da Silva (R)

O livro de Julio Claudio da Silva, Uma Estrela Negra no Teatro Brasileiro, é fruto da esmerada pesquisa para a tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Se insere nas discussões sobre o papel dos negros, e negras, na sociedade brasileira do pós-Abolição e as tensas relações raciais tão presentes no pensamento intelectual brasileiro das primeiras décadas do século XX.

Tomando como referencial a bem-sucedida carreira da atriz negra Ruth de Souza, o historiador problematiza as relações raciais, de gênero, a construção e reconstrução da memória da atriz, e as tensas dimensões vivenciadas por ela, pelo direito de inserir-se no complexo universo cultural brasileiro.

Esse exercício apurado de análise da memória pública de Ruth de Souza, de sua problemática, e da sua relação com as questões raciais e de gênero é o principal caminho trilhado por ele para dar destaque às lutas sociais e culturais de artistas negros entre as décadas de 1930 e 1950, e as profundas conexões dessas lutas com a vida política brasileira do período.

Professor da Universidade do Estado do Amazonas, Julio Claudio da Silva realizou sua formação como historiador na UFF. E ao longo de sua trajetória como pesquisador, tem se dedicado a investigar a questão racial no Brasil, e os desdobramentos correlatos a temática, como a História África e da Cultura Afrobrasileira, o Movimento Negro, e a memória e trajetória dos/as intelectuais negros/as.

Assim, algumas das inquietações do pesquisador podem ser percebidas no livro Uma Estrela Negra no Teatro Brasileiro, que em seu argumento central tem como proposta refletir sobre as relações raciais e de gênero no Brasil a partir da recuperação de alguns aspectos da memória e trajetória da atriz brasileira Ruth de Souza. Passando ainda pela história de umas das importantes associações negras do século XX, o Teatro Experimental do Negro.

Um dos esforços da narrativa do autor ao longo dos capítulos consiste em historicizar e refletir a temática do racismo no Brasil, visando contribuir com novas formulações e respostas para os estudos das relações raciais e de gênero (p. 21-23).[1] Desse modo, O trabalho insere-se no diálogo com a ampla produção historiográfica que analisa os processos de construção de conceitos como raça, relações raciais e da identidade negra na sociedade brasileira.[2] Especialmente na discussão que considera a identidade não somente como uma ideia, desligada da realidade concreta, mas que, antes de tudo, se manifesta na realidade social.[3]

Preocupado com as formas complexas dos processos ligados à cidadania nas sociedades pós-emancipação, as questões levantadas pelo autor ao longo de sua pesquisa buscaram evidenciar, a partir da trajetória artística da jovem Ruth de Souza, como a racismo se manifestou de forma muito particular para as mulheres negras. [4] Debruçando-se sobre a história da atriz, Silva procura observar “os processos de construção de memórias e os limites estabelecidos pelas relações raciais e de gênero, em uma sociedade pretensamente meritocrata fundada sobre o mito da democracia racial” (p. 25). Para tal, a figura de Ruth de Souza favorece a problematização das temáticas raciais e a generificação nos palcos brasileiros, uma vez que como mulher, afrodescendente, e proveniente das classes subalternas, ela conquistou reconhecimento, conseguindo se profissionalizar como uma das primeiras atrizes com esse perfil a fazer teatro erudito no nosso país.

O autor segue a tradição de estudos ligados à história social, fazendo uso da biografia de Ruth de Souza para compreender as dinâmicas da modernização do teatro brasileiro e como a questão racial e de gênero impactaram nesse processo. Como estratégia, Julio Claudio da Silva utiliza-se de depoimentos concedidos pela atriz em diversas décadas, assim como de relatos fornecidos por seus contemporâneos, e ainda da reunião de reportagens publicadas nos anos 1940 e 1950 selecionadas pela própria Ruth de Souza ao construir seu acervo pessoal.

Na primeira parte do seu livro, composta por dois capítulos, a analise do autor recai sobre os anos iniciais da carreira de Ruth de Souza como atriz no Teatro Experimental do Negro. Silva utiliza-se dos pressupostos metodológicos da História Oral, para problematizar a memória narrada dos entrevistados, demonstrando que a memória faz muito mais referencia ao presente que ao passado.

As tensões diante da recuperação da memória, os silêncios e esquecimentos foram analisadas pelo autor sem perder de vistas a dimensão política, que se mostrava marcadamente nas vivências de Ruth de Souza desde sua infância pobre, ao lado de sua mãe, viúva e empregada doméstica. Mas que, apaixonada pelas artes cênicas, ousou ser atriz.

Ao introduzir o leitor, logo no primeiro capítulo, na discussão dos conceitos memória, gênero e cultura afro-brasileira – os três pilares teóricos fundamentais para o desenvolvimento de sua argumentação nos capítulos seguintes, o autor pretende fundamentar os conceitos de sua pesquisa tendo como ponto de partida os depoimentos cedidos a ele pela própria Ruth de Souza. E com sensibilidade apurada e comprometida, Julio de Souza, além de dar visibilidade para os primeiros anos da trajetória da atriz, insere aos leitores e leitoras na bela história de homens e mulheres do Rio de Janeiro efervescente das décadas de 1930 e 1940.

A luta de Ruth de Souza, e de seus contemporâneos do Teatro Experimental do Negro, por maiores oportunidades na dramaturgia brasileira demonstram o quanto são racializadas as relações sociais no Brasil. Investigando os laços de amizade e as redes de solidariedade utilizadas pela atriz para conquistar seu espaço no cenário artístico brasileiro o autor nos conduz por um amplo universo de personagens engajados no combate às desigualdades e de lutas em meio à intensa exclusão do Rio de Janeiro de inícios do século XX.

Apesar dos entraves impostos pelo racismo cordial brasileiro, e pela suposta democracia racial, o autor realiza um cruzamento entre os depoimentos da atriz e recortes de jornais que apresentam muitas informações sobre o início da sua carreira, destacando a dimensão política de lutas e embates, por vezes “esquecida” nos relatos de Ruth de Souza, mas recuperada nos textos dos seus contemporâneos. Um exemplo disso é o depoimento de Raquel da Trindade sobre os primeiros anos de atuação do Teatro Experimental do Negro e das estratégias utilizadas por aqueles sujeitos na luta contra o racismo, especialmente as formas de racismo tão comuns nos palcos brasileiros daqueles anos.

As preocupações com novas questões que pudessem complexificar as narrativas elaboradas pela atriz Ruth de Souza nas entrevistas dadas ao autor, e a promoção do diálogo entre esses depoimentos com outras falas da atriz em gravações que estão sob guarda do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro (MIS RJ), constituem o segundo capítulo do livro. Nele, Julio Claudio da Silva dá particular atenção para as tensões, lacunas e contradições desses relatos, e como novas questões propostas por ele podem ampliar o campo de análise, permitindo compreendermos as estratégias utilizadas pela atriz na elaboração, e reelaboração, da memória sobre a ausência de oportunidades para uma jovem negra e pobre no campo teatral das décadas de 1930 e 1940.

A redação envolvente de Julio Claudio de Silva, e sua apurada análise apontam para ambiguidades nos depoimentos de Ruth de Souza, especialmente quanto a racialização do teatro, e como em alguns momentos a atriz atribui seu sucesso quase que unicamente a seu mérito, “desracializando” obstáculos de sua trajetória, e sublimando sua condição de artista afrodescendente, que viveu intensamente a realidade de exclusão imposta pelas artes cênicas no Brasil.

Na segunda parte do livro, o autor dedica-se a investigar o complexo processo de “arquivamento de si” e do Teatro Experimental Negro realizado pela própria Ruth de Souza. Para tal, Julio Claudio da Silva faz uso dos registros sobre a vida da atriz e da companhia de teatro reunidos no “Acervo Ruth de Souza”, do Laboratório de História Oral, da Universidade Federal Fluminense (LABHOI UFF). A intenção de Silva consiste em compreender os níveis de retroalimentação que os recortes de jornais reunidos pela própria Ruth de Souza tiveram sobre sua memória e, até certo modo, ancoraram o relato que a atriz fez de si.

Ao atentar para os silêncios presentes nos relatos da “Dama Negra do Teatro”, o autor recupera a organização de uma rede de alianças formadas em torno do grupo de artistas ligados ao Teatro Experimental do Negro, bem como a importância do grupo para o processo de modernização do teatro brasileiro, e das iniciativas de combate ao racismo no Rio de Janeiro do período. No capítulo 3, ao cotejar a documentação do Acervo Ruth de Souza, o historiador mergulha na problemática relativa às restrições impostas aos artistas afrodescendentes nos palcos, e como tais práticas, seja nos locais, ou mesmo na forma com que eram mostrados nos espetáculos teatrais, se materializavam frequentemente.

Desse modo, ao recuperar a memória sobre o papel da companhia Teatro Experimental do Negro, a narrativa de Silva nos apresenta “acirradas batalhas de memória entre Paschoal Carlos Magno e Abdias Nascimento” em torno da “paternidade da entidade” (p. 128), e como tais embates foram capazes de complexificar ainda mais a história de uma das mais importantes manifestações culturais do movimento negro brasileiro. Assim, o capítulo nos fornece amplamente uma riqueza considerável de informações sobre o panorama teatral brasileiro do período, especialmente quanto às dificuldades de funcionamento, e estratégias usadas pelos artistas do Teatro Experimental do Negro nas lutas contra “o complexo de inferioridade do negro e contra o preconceito de cor dos brancos”, como parafraseia o próprio autor (p. 134).

É especialmente bem sucedida a escolha de Silva ao investigar o grupo de artistas ligados ao Teatro Experimental do Negro, pois permite aos leitores a compreensão da importância da entidade para os artistas e para a cultura brasileira, justamente por criar e organizar uma “nova modalidade do teatro negro no Brasil” (p. 141). Mostrando o compromisso daqueles sujeitos em constituir espaços igualitários, que permitissem atuar plenamente como artistas, verem representados com justiça o seu universo étnico-racial e, portanto, contribuindo para a elevação cultural e dos valores individuais dos negros (p. 163).

No capítulo quatro, Julio Claudio da Silva busca investigar os limites e possibilidades para a construção de um teatro negro no Brasil da década de 1940 (p. 167). Para isso, o autor utiliza a cobertura dada pela imprensa sobre os espetáculos montados pelo Teatro Experimental do Negro, a partir dos recortes guardados pela atriz Ruth de Souza, tentando compreender como os críticos teatrais viam as adaptações de peças teatrais estrangeiros para o público brasileiro pelos artistas da entidade, e também as percepções racializadas sobre a atuação dos atores e atrizes da companhia de teatro.

Deslocando o foco de análise para os possíveis diálogos entre o palco e a platéia o autor analisa as montagens dos espetáculos estrangeiros O Imperador Jones, Todos os filhos de Deus têm asas e O Moleque sonhador, de autoria de Eugene O’Neill. Assim como os espetáculos escritos por brasileiros especialmente para o Teatro Experimental de Negros, como a peça O filho pródigo, de Lucio Cardoso, ou a Aruanda, escrita por Joaquim Ribeiro; e por fim a peça Filho de Santo, escrita por José Moraes Pinho. Dessa maneira, Silva nos auxilia a compreender como a montagem de espetáculos com temas ligados à realidade afrodescendente se constituiu elemento primordial para o crescimento das artes, e particularmente do teatro, no Brasil.

Montados entre os anos de 1945 e 1949, os textos iluminam “temáticas sócioculturais das populações e culturas afrodescendentes” (p. 168), e tal esforço de destaque da cultura negra é reconhecido pelos críticos como iniciativa fundamental no complexo cenário de lutas contra o racismo tão presente na sociedade brasileira. O olhar multifacetado do autor revelou um esforço de pesquisa que nos indica o quanto racialização cultural não passava somente pelos palcos, mas também pelo espaço destinado aos espectadores, e de como o grupo de artistas reunidos em torno do Teatro Experimental do Negro consolidava-se paulatinamente como uma espécie de oásis artístico em que era possível difundir textos e performances antirracistas, em que os artistas negros pudessem também apresentar sua arte e seu talento.

Por fim, no último capítulo, Silva dedica-se aos anos em que a atriz Ruth de Souza desliga-se do Teatro Experimental do Negro e vai para o exterior, onde tem a oportunidade de estudar artes cênicas nos Estados Unidos da América. O episódio, descrito pelo historiador como “um divisor de águas” na vida profissional da artista, revela o quão fundamental foi o apoio recebido pela atriz e o quanto a rede de solidariedades em que ela estava inserida foi primordial para o seu processo aprimoramento e profissionalização.

Essa temporada de estudos no exterior, de fato, abriu novas portas para a atriz, proporcionando a ela novos contratos, e uma carreira em ascensão nas principais companhias de cinema dos anos 1940 e 1950. Mesmo diante da tensão e do preconceito expressos na oferta de pequenos papeis para a atriz negra, seu talento e esforço foram reconhecidos em prêmios e indicações importantes pro seguimento, seja no Brasil ou ainda internacionalmente.

Ao se deparar com as questões metodológicas em torno da memória e do racismo na sociedade brasileira, o autor enfrenta o desafio de nos apresentar um texto rico teoricamente e que contribui amplamente com as discussões sobre os papéis da mulher negra no Brasil, especialmente no cenário cultural e político do pós Abolição, por meio da trajetória de uma mulher negra, que ousou ser artista, em uma sociedade que negou, e continua negligenciando, os direitos básicos aos afrodescendentes.

Notas

1. Optei em citar ao longo da resenha, entre aspas, palavras do próprio Julio Claudio da Silva, ou citações feitas por ele no livro.

2. Ver os trabalhos de GUIMARÃES, Antonio Sergio Alfredo. Classes, Raça e Democracia. São Paulo: Fapesp; Editora 34, 2002; SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993; SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

3. NASCIMENTO, Elisa Larkin. O sortilégio da cor: identidade, raça e gênero no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2003.

4. O debate tem sido feito em trabalhos como o de ALMADA, Sandra. Damas Negras: sucesso, lutas e discriminação: Xica Xavier, Lea Garcia, Ruth de Souza, Zezé Motta. Rio de Janeiro: Mauad, 1995; ARAÚJO, Joel Zito Almeida de. A negação do Brasil: o negro na telenovela brasileira. São Paulo: Editora Senac, 2000.

Vitor Leandro de Souza – Mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente é Doutorando em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. E-mail: vitorleandro@id.uff.br . ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9869-8907 .


SILVA, Julio Claudio da. Uma Estrela Negra no teatro brasileiro. Relações raciais e de gênero nas memórias de Ruth de Souza (1945-1952). Manaus: UEA Edições, 2017. Resenha de: SOUZA, Vitor Leandro de. Memória, gênero e antirracismo: a trajetória de lutas da atriz Ruth de Souza. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.36, n.2, p.319-324, jul./dez. 2018. Acessar publicação original [DR]

Dramatização dos corpos: arte contemporânea e crítica feminista no Brasil e na Argentina – TVARDOVSKAS (HU)

TVARDOVSKAS, L.S. Dramatização dos corpos: arte contemporânea e crítica feminista no Brasil e na Argentina. São Paulo: Intermeios, 2015. 488 p. Resenha de: RIBEIRO JÚNIOR, Benedito Inácio. História, gênero e feminismo: arte e práticas de liberdade no Brasil e na Argentina. História Unisinos 22(2):320-325, Maio/Agosto 2018.

Com mais de dez artigos publicados versando sobre os temas feminismo, gênero, arte e história, Luana Saturnino Tvardovskas traz a público os frutos colhidos na sua pesquisa de doutorado, defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Unicamp, sob a orientação de Margareth Rago.2 A obra, intensa nas reflexões e no peso, contempla a produção artística das brasileiras Rosana Paulino, Ana Miguel e Cristina Salgado e das argentinas Silvia Gai, Claudia Contreras e Nicola Costantino. Atravessando e historiando os caminhos de “[…] verdades cáusticas, de saberes menosprezados e de vozes inauditas” (Tvardovskas, 2015, p. 430) de tais artistas, a historiadora costura perspectivas historiográficas sobre mulheres, gênero e feminismos aos conceitos e práticas políticas e de pensamento de intelectuais como Michel Foucault, Judith Butler, Rosi Braidotti, André Malraux, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Margareth Rago, Norma Telles, Suely Rolnik, Tânia Navarro-Swain, Nelly Richard e Leonor Arfuch. O que garante a qualidade dessa urdidura é um apurado trabalho de análise das obras e das trajetórias das artistas e uma escrita politizada, afetada e afetuosa.

Comprometida com o assunto – arte, história e feminismo –e com a orientação de Rago desde a graduação, Tvardovskas privilegiou pensar estilísticas da existência e produções artísticas a partir do ferramental teórico-político- -metodológico feminista em sua trajetória como historiadora. Sua dissertação de mestrado é exemplo disso: defendida em 2008, Figurações feministas na arte contemporânea: Márcia X., Fernanda Magalhães e Rosângela Rennó, ela analisa instalações, performances e objetos artisticamente construídos com o objetivo que questionar verdades instituídas em relação à sexualidade, ao corpo feminino e à subjetividade (Tvardovskas, 2008).

Voltando à obra, esta foi defendida como tese de doutorado em 2013 e revista para ser publicada como livro em 2015. O livro foi dividido em cinco capítulos e em duas partes. Junto com a introdução, o primeiro capítulo –“Um museu imaginário feminista: histórias da arte e feminismos, diálogos possíveis” – está separado das duas partes do livro. A primeira parte – intitulada Brasil– contém os capítulos 2 e 3. No primeiro deles, “De ousadias discretas e manobras radicais: mulheres artistas no Brasil”, a reflexão sobre a produção de mulheres na arte brasileira a partir de 1970 e do movimento feminista toma lugar, ao mesmo tempo que a temática de gênero é discutida em relação aos contextos curatoriais e aos estudos acadêmicos. Já o terceiro capítulo, que recebeu o nome de “Potência desconstrutiva: Rosana Paulino, Ana Miguel e Cristina Salgado”, é escrito a partir do estudo das produções e trajetórias artísticas das três brasileiras investigadas por Tvardovskas. Argentina, como é denominada a segunda parte do livro, é composta pelos quarto e quinto capítulos, respectivamente intitulados “Cuerpos aflictos: arte e gênero na Argentina contemporânea” e “Memórias insatisfeitas: Silvia Gai, Claudia Contrerase Nicola Costantino”. Assim, a segunda parte da obra obedece à organização feita pela autora na sua primeira parte, pois os capítulos são organizados com o intuito de evidenciar as discussões sobre as artes e os feminismos nos seus contextos nacionais e, em seguida, verticalizar a análise abordando as artistas separadamente. O primeiro deles relaciona os temas da arte, política e gênero na Argentina contemporânea, trazendo reflexões acerca do período ditatorial e de abertura política e sobre a crítica de arte no país. No seu quinto e último capítulo, a obra interpreta as imagens plásticas produzidas por Gai, Contreras e Costantino.

No início do seu primeiro capítulo, Tvardovskas esclarece que seu trabalho buscará uma conjunção entre crítica cultural e História para abordar as poéticas visuais das artistas que são seu objeto de estudo. O intuito da autora é problematizar a partir de um olhar feminista essas estéticas femininas, partindo da hipótese de que tais produções “[…] anunciam novas possibilidades de intervenções na cultura”, e, inspirada em Walter Benjamim, questiona se elas podem ser “[…] compreendidas como espaços de resistência ao empobrecimento ético, político e subjetivo atual” (Tvardovskas, 2015, p. 37).

Nessa esteira, a autora vai situando os seus referenciais para a discussão de suas artistas-objeto: chama para a conversa Michel Foucault e Judith Butler para questionar a naturalidade dos corpos, percebendo-os a partir daí como produtos de discursos sobre o sexo. Interessa-se pelo conceito foucaultiano de parrhesia, que seria uma experiência antiga greco-romana construída a partir do cuidado de si e dos outros, buscando a afirmação de uma existência bela, libertária e ética. Desse modo, a opressão feminina vivenciada em seus corpos, a negação de seus desejos e a renúncia de si seriam terrenos de desconstrução de mulheres artistas que buscam em suas próprias vidas a matéria de seu trabalho. Logo, a autora situa as produções das seis artistas analisadas nessa convergência teórico-política.

Ainda no primeiro capítulo, preocupa-se em pensar a crítica feminista sobre as artes visuais, pontuando as concepções de arte e história da arte no Brasil, na América Latina, na Europa e nos Estados Unidos. Assim, Tvardovskas evidencia as condições históricas que excluíram as mulheres da história da arte ocidental. A partir de autoras como Griselda Pollock, Linda Nochlin, Rozsika Parker, Whitney Chadwick, para citar apenas algumas, a autora expõe que nos séculos XVIII e XIX as mulheres foram impedidas de pintar os gêneros tidos como maiores, entre eles os nus, sendo-lhes permitido apenas o estudo da natureza morta, do retrato e da paisagem. Também a ordem burguesa, no mesmo período, afastou ainda mais o conceito de artista da identidade das mulheres, com a redução delas ao papel reprodutivo e ao lar. No século XX, as concepções de originalidade e genialidade foram quase sempre atribuídas aos homens, assim como as mulheres foram banidas da história do modernismo. Embasada por reflexões que desconstroem as bases da História da Arte, bem como da própria disciplina histórica, Tvardovskas aponta para a compreensão da História que não se vê mais como discurso neutro ou universal como importante passo para a compreensão das mulheres, artistas ou não, como sujeitos históricos, concluindo que “[…] a história enquanto enunciado verdadeiro e absoluto não serve ao feminismo” (Tvardovskas, 2015, p. 61). O primeiro capítulo se encerra com uma crítica à pretensão de compreender uma periodização para a crítica de arte feminista latino-americana que coincida com a efervescência desses temas na Europa e nos Estados Unidos, iniciada a partir dos anos 1970. Os regimes ditatoriais que se deram no nosso continente na segunda metade do século XX ritmaram de outro modo o movimento feminista e seus efeitos no campo artístico, e, de acordo com a autora, apenas depois dos momentos de abertura política o feminismo impactou de forma mais efetiva a indústria cultural e as artes em geral. Por esse desenvolvimento mais tardio, Tvardovskas afirma que não houve no Brasil uma revisão dos cânones artísticos ou uma rememoração de nomes de mulheres em outros períodos históricos, como ocorreu nos países de língua inglesa. Assim, a partir de uma vontade de evidenciar perspectivas feministas e seus locais na arte latino-americana, Tvardovskas inicia suas análises.

O segundo capítulo se encarrega da discussão sobre as mulheres na arte brasileira e também introduz pequenas biografias de Ana Miguel, Rosana Paulino e Cristina Salgado, bem como apresenta seus estilos e materiais de trabalho. Insere, dessa forma, a produção e carreiras das três artistas na fase de abertura do regime militar, na década de 1980, caracterizada pela euforia por novas possibilidades artísticas e políticas. A história política do Brasil, do movimento feminista, das artistas-objeto e de outros artistas brasileiros é enfocada no estudo, gerando um panorama crítico das condições históricas que caracterizaram a arte e os trabalhos de Miguel, Paulino e Salgado. Com o fim da ditadura, Tvardovskas percebe como os movimentos sociais foram fortalecidos e, dentre eles, o feminismo. Isso levou as mulheres a se imporem mais abertamente como sujeitos políticos e atuarem criticamente em áreas como produção cultural, academia e no poder legislativo, repensando a cidadania, os corpos, o gênero, a sexualidade feminina e seus papéis de mães, esposas e filhas. Os anos 90 vão se caracterizar, então, por uma maior interação das obras de mulheres na desconstrução do imaginário misógino brasileiro, resultado do fim dos governos autoritários e da visibilidade conquistada pelos movimentos feministas.

Duas informações são importantes para entender o engajamento necessário às artistas mulheres para fazer arte no Brasil. Primeira: a entrada das mulheres nas instituições de educação artística no Brasil enfrentou grandes dificuldades, percebidas pela autora até finais do século XIX, já que apenas em 1892 foi concedido o acesso às mulheres ao ensino superior, como na Academia Nacional de Belas Artes. Outra informação buscada por Tvardovskas é a questão de grandes nomes femininos do modernismo brasileiro. Amparada nos resultados de sua própria dissertação e nas pesquisas de Marilda Ionta, a autora entende que o grande reconhecimento de Tarsila do Amaral e de Anita Malfatti estabelece a importância das mulheres na arte nacional e, ao mesmo tempo, sugere-se que não haveria distinções entre homens e mulheres nesse campo: “Criou-se a representação na mídia e na historiografia de que a presença dessas duas artistas confirmava que no Brasil não existiam problemas de gênero no território artístico” (Tvardovskas, 2015, p. 96).

Na seção final do capítulo 2, a autora dá visibilidade à maneira pela qual a discussão de gênero veio tomando lugar nas artes visuais brasileiras, percorrendo catálogos de exposições, obras analisadas, exposições organizadas com o intuito de divulgar a arte de mulheres no país, concluindo que tais discussões serviram para deslocar conceitos e valores, questionando as naturalizações que envolvem a arte brasileira, as mulheres e a domesticidade. Tvardovskas conclui que a arte contemporânea abriu espaços de liberdade e de questionamento de normas e, por isso, pode ser compreendida pela ideia foucaultiana de estética da existência.

Ao iniciar o terceiro capítulo, Tvardovskas esclarece que fará uma leitura feminista das produções dessas autoras – que nem sempre entendem suas obras ou a si mesmas como feministas –, conjugando autobiografia e política para compreender seu objeto de pesquisa. Desse modo, as três artistas brasileiras e seus trabalhos são percebidos desde suas questões cotidianas e “marcas vividas”, mesclando aspectos culturais e sociais para a “[…] busca de caminhos diferenciados para a constituição das subjetividades na atualidade” (Tvardovskas, 2015, p. 114).

Em decorrência disso, nas narrativas pós-estruturalistas e feministas, como defende a obra, autorretrato foge às narrativas tradicionais de uma constituição de um eu verdadeiro. No caso das artistas mulheres, o uso de temas e materiais íntimos, cotidianos e domésticos serviria, segundo suas perspectivas de gênero, para negociar, reagir e inverter os ditames da feminilidade “[…] e da identidade ‘Mulher’, constituindo imagens muito surpreendentes de si mesmas” (Tvardovskas, 2015, p. 11). Não seria a autobiografia individualista, branca, ocidental, masculina e universal, mas, em nome da pluralidade, apostas na ressignificação e intensificação das experiências vividas.

Assim, obras como a instalação My bed, da inglesa Tracey Emin, trazem uma interrogação sobre os limites entre público e privado, na qual a cama, objeto íntimo, pode despertar questionamentos sobre a vida em sociedade. Salgado, Paulino e Miguel seriam exemplos dessa arte que conjuga elementos autobiográficos, íntimos e privados ao mundo político e público. Rosana Paulino3 tematizará em suas obras as questões de gênero e etnicidade: questiona modelos de comportamento e corpo a ela destinados historicamente, “[…] marcando sua arte com ‘traços de revolta’” (Tvardovskas, 2015, p. 139). Uma das obras analisadas em Dramatização dos corpos é a impactante Bastidores (2013), em que seis fotos de mulheres negras são expostas em bastidores de costura com suas bocas, testas, olhos ou gargantas costurados grosseiramente com linha escura.

Paulino, em entrevista colhida por Tvardovskas, afirma que a obra reúne memórias familiares aos problemas coletivos. A historiadora entende que do espaço íntimo de Paulino emerge uma crítica atroz à sexualização e silenciamento das mulheres negras, mas também conexões com o passado escravista brasileiro. Nessa esteira, sendo mulher negra, tendo passado pela experiência ainda na infância da pobreza, do racismo e do sexismo, Paulino se vale dessas experiências subjetivas em grande parte do seu trabalho: ressignificando práticas cotidianas femininas como o costurar, o tecer, o bordar, gera posicionamentos e reflexões sobre as práticas violentas que caminham juntas às vivências femininas e negras. Guiada por Deleuze e Guattari, a autora vê nessa artista e suas criações espaços abertos a devires e desterritorializações identitárias sobre as mulheres; e, inspirada em Foucault, lê as mesmas imagens como a “coragem da verdade”, numa implicação ética na qual Paulino fala francamente da escravidão.

Em Ana Miguel4 é possível ver as associações do feminino com aranhas e fiandeiras, bem como personagens de contos de fadas como Rapunzel. Recorrendo aos materiais e às técnicas comumente ligados ao feminino, como a linha, a cama e o crochê, Ana Miguel gera afeto e incômodo na sua obra I love you. A descrição e as camadas de sentido que recobrem a obra são pensadas por Tvardovskas a partir de referências clássicas, como o mito de Aracne, da influência do pensamento psicanalítico na obra de Miguel e as questões envolvendo o corpo feminino. A autora percebe que a sua instalação Um livro para Rapunzel (2003), assim como suas teias de crochê, caracterizam-se como modos de deslocar naturalizações sobre o feminino. A infância é pensada também, ao lado da instalação supracitada, com a exposição Pensando a pequena sereia, “a matéria é o que deseja minha alma” (1990), como lugar de repensar a subjetivação das meninas.

Por fim, Miguel tem seu trabalho Ninhohumano (2008) estudado por Tvardovskas: trata-se de uma intervenção urbana feita em conjunto com Claudia Herz, na qual as duas habitam por dias uma árvore no aterro do Flamengo (RJ). Para Tvardovskas, a intervenção força os limites entre o jardim público e o espaço privado da casa: desloca as divisões estabelecidas entre público e privado, entre locais habitáveis e não habitáveis. Assim, Miguel revela uma multiplicidade de sentidos sobre o humano, o feminino e a infância, repensando o corpo e o desejo para uma “potência feminina criativa”.

A última brasileira abordada no livro é Cristina Salgado.5 Esta se volta para o corpo feminino com a intenção de romper com significados cristalizados por meio de torções, fraturas, rompimentos, dobras e incisões, representando esculturas de corpos impossíveis e problematizando a questão da nudez (Tvardovskas, 2015). Também envolvida em temáticas que cruzam estética e psicanálise, os corpos esculpidos por Salgado são plasmados às paredes e objetos de decoração, com inchaços e torções se fazendo evidentes. De acordo com Tvardovskas, a estratégia já vinha sendo usada por outras artistas surrealistas como crítica à domesticidade feminina.

Em sua instalação Grande nua na poltrona vermelha, composta em 2009 e com direta associação com Grande nu no sofá vermelho (1929), de Pablo Picasso, o corpo de uma mulher se derrama pelo espaço, excedendo as proporções humanas, mas rostos, mãos e pés dão caráter humano ao emaranhado de dobras e torções. O nu para a artista mulher torna-se uma presença e uma ausência que, nas palavras de Tvardovskas, significa o corpo nu feminino sempre em evidência em obras de arte, mas criadas e vistas por olhares masculinos. Ao contrário, Salgado o deforma e o recria: a sua mulher nua se derrama aspirando buscar outras formas de entender o feminino, o corpo, a arte e as próprias maneiras de conceber nosso olhar sobre o mundo, inventando o feminino como dobras não localizáveis, numa leitura deleuziana.

A segunda parte da obra se inicia no quarto capítulo, que tem como objetivo entender as nuances das relações entre arte e gênero na Argentina contemporânea. Como fez ao tratar do Brasil, a obra pensa a história política recente naquele país como terreno fértil para as artes em geral: a violência, a tortura, os desaparecimentos e os assassinatos vividos no período ditatorial (1966-1973) fazem surgir um luto simbólico nas expressões estéticas, e as artistas argentinas analisadas não escapam a essa problemática. Traçando um panorama da história da arte argentina, Tvardovskas aponta para as omissões das quais as artistas mulheres foram vítimas. Assim como aconteceu no Brasil com Tarsila do Amaral e Anita Malfatti, artistas mulheres que atingiram certo reconhecimento na Argentina, como Lola Mora e Marta Minujín, têm suas trajetórias usadas para mascarar o silenciamento das poéticas visuais femininas e a inexistência de interesse sobre as obras das demais artistas.

Tvardovskas afirma que em meados da década de 1980 tem-se a inserção de prismas de gênero na arte argentina: depois da ditadura, numa realidade econômica e social deteriorada, a cena underground refletiu acerca dos corpos e suas sexualidades “fora da ordem”. Já em 1986, a exposição Mitominas I acolhe obras de mulheres que se perguntavam acerca dos mitos que as construíam enquanto mulheres, e, dois anos depois, a exposição Mitominas II. Los limites de la sangre fará alusão à violência política na Argentina, à AIDS e à violência de gênero.

Para pensar as relações entre arte e gênero na Argentina, a historiadora relembra os parâmetros que consideraram certas manifestações artísticas como “arte política” na década de 1960: em confronto com a ditadura, artistas se dedicavam a tecer críticas ao poder e às estruturas macropolíticas. A partir dos anos 80, Tvardovskas reconhece um fortalecimento e maior visibilidade dos movimentos sociais, mas o foco da crítica dos artistas não é mais somente o estado. Assim, artistas militantes que discutiam os novos impasses sociais, diferentes dos anos 60, foram tachados de despolitizados e frívolos, pois baseariam seus trabalhos em temas muito subjetivos, como o corpo e a sexualidade. Por isso, suas obras acabaram sendo pejorativamente denominadas de “arte rosa”, “arte light” e “arte gay”.

Por seu turno, o último capítulo de Dramatização dos corpos coloca os trabalhos das argentinas Silvia Gai, Claudia Contreras e Nicola Costantino sob a perspectiva dos estudos feministas. Tvardovskas encontra como eixo tematizador dos trabalhos dessas artistas as questões relacionadas ao corpo, grande sensibilidade e uma crítica forte à história do seu país. Assim, as três artistas-objeto enfatizam em suas criações a memória como prática ativa no presente e lugar de reflexão política. Silvia Gai6 começa seus trabalhos com técnicas têxteis em meados dos anos 90, tecendo órgãos humanos em crochês de formato tridimensional, aplicando-lhes um banho de água e açúcar que lhes garante uma estrutura firme, como se vê na sua série de órgãos Donaciones, de 1997. Esses trabalhos levam à reflexão sobre a enfermidade e a fragilidade dos corpos: pequenos tumores, más-formações e lacerações se alastram por seus trabalhos. As reflexões acerca do HIV, que preocupou a argentina desde os anos 80, da mesma maneira emergem em suas obras. Também há trabalhos da artista que se dão em almofadas e aventais, objetos do uso cotidiano e doméstico. Tvardovskas os entende por uma perspectiva feminista, pois Silvia Gai “[…] explicita os enunciados sociais que tradicionalmente restringem as mulheres à domesticidade, em nome de uma suposta ‘ordem biológica’” (Tvardovskas, 2015, p. 320). É possível ver a criação de corpos sensíveis à percepção, de uma maneira muito diferente daquela expressa pelos invasivos discursos médicos e cirúrgicos. As linhas e redes formadas pelos seus trabalhos igualmente aludem às interpretações feministas, podendo sugerir a criação cultural de órgãos, tecidos e corpos.

Já Claudia Contreras7 usa materiais e técnicas de criação muitas vezes tachadas como menores e atribuídas às mulheres, confrontando acidamente a história do último século, em especial os genocídios e a ditadura em seu país. Os problemas que inundam a Argentina na década de 1990, como as mazelas do neoliberalismo e o empobrecimento massivo da população, suscitam na arte de Contreras questões a serem tratadas, bem como os desaparecimentos políticos da ditadura militar, numa tentativa de reconstruir o passado de forma crítica, questionando discursos oficiais e os problemas da memória e do esquecimento. Em reconstruções do mapa argentino, ela expõe corpos atacados e agredidos, como nas obras Argentina Corazóne Columna vertebral, ambas de 1994-1995. Já a série Cita envenenada (2001), “[…] remete à prisão de militantes políticos pela polícia, por meio do descobrimento de esconderijos e encontros marcados, associada, portanto, à traição” (Tvardovskas, 2015, p. 375). Nesse sentido, Contreras utiliza um objeto cotidiano, banal, como uma xícara, e nele expõe dentes humanos, estabelecendo uma relação entre os micropodores que perpassam nossos cotidianos e revelam violências e impactos sobre nossos corpos. Os trabalhos que nem sempre se mostram como críticas feministas – como, à primeira vista, pode parecer Cita envenenada – podem ser lidos numa perspectiva feminista, uma vez que, para Tvardovskas, conceitos como corpo, desejo, cotidiano e poder são postulados pelas discussões de mulheres interessadas na transformação da realidade social e cultural.

Nicola Costantino8 encerra as análises de Dramatização dos corpos, mostrando o olhar ácido sobre a cultura argentina e as convenções de moda, do feminino e da maternidade presente nos trabalhos dessa artista. Assim como Contreras e Gai, Costantino é entendida por Tvardovskas como uma daquelas artistas que utilizam a água como elemento sofredor e matéria de desespero, o que pode ser visto na obra Ofelia, Muertede Nicola Nº II.9 A maternidade, a cozinha, o envelhecimento e a beleza feminina são constantemente questionados pelas corrosivas obras de Nicola Costantino, o que fica claro nos seus trabalhos de inkjetprint, como nas impactantes Nicola costurera (2008), Madonna (2007) e Savon de corps (2003). Em Nicola Alada, de 2010, a imagem de si é usada para refletir acerca do corpo, o imaginário sobre a mulher e a violência histórica. Seu autorretrato como Vênus na frente de uma enorme carcaça bovina pendurada causa uma mordaz contradição entre o ideal da imagem feminina e a violência causada ao olhar espectador pela carne animal exposta. O corpo animal entrecruzado ao corpo de Vênus nos faz perceber, segundo Tvardovskas, o sofrimento possível em um corpo, em especial o das mulheres.

Passando à conclusão, Tvardovskas entende as obras das seis artistas estudadas como práticas fluidas e em constante reelaboração e como exercícios de reconstrução de si e da cultura no seu entorno: as produções de Salgado, Paulino, Miguel, Gai, Contreras e Costantino ampliam nossas formas de perceber o feminino e as ex não hierárquicas e não binárias. A autobiografia, o corpo, o espaço privado se constituem como espaços possíveis de repensar a memória e com potência criativa e libertária. Não há um sentido feminista essencial, pretendido pelas autoras ou fixo na análise de Tvardovskas; muito pelo contrário, a autora deixa explícita a intenção de lançar um olhar histórico e feminista sobre as obras estudadas. Durante toda a sua análise, por meio da crítica de suas fontes, das obras e das mulheres estudadas, reescreve um passado sobre a arte muitas vezes negligenciado, afirmando abertamente a sua leitura sobre elas: “Não se trata, assim, de uma simples invenção de sentidos inexistentes, mas de uma lente necessária para um olhar social que parece não conseguir enxergar com acuidade seus contínuos processos de apagamento das diferenças” (Tvardovskas, 2015, p. 380). Uma leitura mais que necessária nos tristes tempos vivenciados pela cultura e arte brasileiras, quando se olha, por exemplo, para as recentes polêmicas acerca do cancelamento da exposição QueerMuseu (Folha de S. Paulo, 2017) e em torno da performance La bête, acusada de pedofilia (Carta Capital, 2017). Dramatização dos corpos se torna leitura obrigatória num ambiente em que a arte que discute gênero, cultura LGBT, o corpo e o desejo é cada vez mais vítima de discursos censores e intolerantes.

Referências

CARTA CAPITAL. 2017. Museu de SP é acusado de pedofilia e rebate: performance não tem conteúdo erótico. Disponível em: https:// www.cartacapital.com.br/sociedade/museu-de-sp-e-acusado-de- -pedofilia-e-rebate-performance-nao-tem-conteudo-erotico. 29 set. Acesso em: 31/10/2017.

FOLHA DE S. PAULO.2017. Após protesto, mostra com temática LGBT em Porto Alegre é cancelada. Disponível em: http:// www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/09/1917269-apos-protesto- mostra-com-tematica-lgbt-em-porto-alegre-e-cancelada. shtml. 10 fev. Acesso em: 31/10/2017.

TVARDOVSKAS, L.S. 2008. Figurações feministas na arte contemporânea: Márcia X., Fernanda Magalhães e Rosângela Rennó. Campinas, SP. Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas, 223 p.

TVARDOVSKAS, L.S.2013. Dramatização dos corpos: arte contemporânea de mulheres no Brasil e na Argentina. Campinas, SP. Tese de Doutoramento. Universidade Estadual de Campinas, 370 p.

TVARDOVSKAS, L.S.2017. Currículo da Plataforma Lattes. Brasília. Disponível em: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv. do?id=K4594129J5. Acesso em: 09/05/2017.

Notas

2 Esses dados foram consultados no Currículo Lattes de Luana Saturnino Tvardvoskas. Ver na lista de referências Tvardovskas (2017).

3 Nascida em 1967, é gravadora e especialista em gravura pelo London Print Studio e possui doutorado em Artes Plásticas pela ECA/USP. Todas as informações biográficas das artistas foram encontradas na própria obra de Luana Tvardovskas (2015).

4 Nascida em 1962, gravadora e escultora, estudou na Escola de Artes Visuais do Parque Lage (RJ) e Filosofia Contemporânea e Antropologia na Universidade Federal Fluminense e na Universidade de Brasília.

5 Pintora, desenhista e escultora. Nasceu em 1957, estudou desenho, pintura e litografia na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, onde se tornou professora. É doutora em Linguagens Visuais pela UFRJ e professora da UERJ e da PUC-RJ.

6 Nascida em Buenos Aires em 1959, é uma escultora que trabalha com crochês e bordados, dialogando com práticas têxteis.

7 Nasceu em 1956, também em Buenos Aires. Trabalha com colagem, costura, paródia, desenhos, pinturas, bordados, objetos, fotografias e animação digital. Estudou na Escuela Nacional de Bellas Artes de Quilmes, na Escuela Nacional de Bellas Artes Manuel Belgrano e na Escuela Superior de Bellas Artes Ernesto de la Cárcova. Também estudou em Madri.

8 Nascida em Rosário, em 1964, tem sido bastante comentada no circuito latino-americano contemporâneo, trabalhando com autorretratos, esculturas, embalsamamento de animais, imitações de pele humana, performances, vídeos e instalações. Formou-se na Escola de Artes Plásticas da Universidad de Rosario e embalsamamento e mumificação de animais no Museo Nacional de Ciencias Naturales de Rosario.

9 A água possui esse lugar na produção dessas três artistas e no imaginário argentino contemporâneo pelas memórias da ditadura militar, já que eram comuns os voos nos quais militares jogavam militantes políticos no mar e no Río de la Plata.

Benedito Inácio Ribeiro Junior – Doutorando em História na Universidade Estadual Paulista (UNESP) em Assis. Professor Assistente I na Faculdade de Administração de Santa Cruz do Rio Pardo da Organização Aparecido Pimentel de Educação e Cultura. Praça Dr. Pedro Cesar Sampaio, 31, Centro, 198000-000, Santa Cruz do Rio Pardo, SP, Brasil. E-mail: beneditoinacioribeiro@gmail.com.

Health Equity in Brazil: Intersections of Gender/Race/and Policy | Kia Lilly Caldwell

No livro Health Equity in Brazil: Intersections of Gender, Race, and Policy (Equidade em saúde no Brasil: intersecções de gênero, raça, e política Pública), Kia Caldwell, professora da Universidade da Carolina do Norte, procura analisar como fatores estruturais e institucionais contribuíram e continuam a contribuir para a precarização da saúde de milhares de mulheres e homens negros. Caldwell chama a atenção para o insucesso do Brasil em desenvolver políticas que resolvam as questões de saúde que impactam desproporcionalmente a população negra até o início do século XXI. Ela enfatiza, ainda, o fato de o país não apresentar longa tradição de pesquisas ou de políticas em saúde focadas nas desigualdades raciais ou étnicas. Discorre, por um lado, sobre os esforços do Brasil no que se refere ao enfrentamento da epidemia de HIV/AIDS, e, por outro, sobre os desafios para assegurar equidade em saúde para a população afrodescendente. No que se refere à questão da garantia de saúde de qualidade para seus cidadãos, em particular para negras e negros, Caldwell examina o fato de o país ter sido bem-sucedido em certos desafios, mas ter falhado em confrontar outros. Leia Mais

Os gêneros do discurso – BAKHTIN (B-RED)

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Paulo Bezerra (Organização, Tradução, Posfácio e Notas); Notas da edição russa: Seguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016. 164p. Resenha de: BRAIT, Beth. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.12 n.2 São Paulo May./Aug. 2017.

Por que determinados textos, literários ou não, comportam mais de uma boa tradução, dentro de uma língua, sem que a ordem de aparecimento desqualifique a anterior? E se pensarmos num mesmo tradutor, o que justificaria a (re)tradução? Evidente que as respostas são muitas e vão depender, necessariamente, da maneira como se considera a passagem de um texto de uma língua a outra. Se, por exemplo, compreendermos a tradução como uma relação singular, estabelecida entre um texto de partida e um contexto de chegada, implicando modos de ler/reler uma obra e seu autor, será possível considerar não somente as idiossincrasias do tradutor criterioso que se volta mais de uma vez para um mesmo texto, e que com sua lupa persegue as minúcias estilístico-significativas do diálogo aí estabelecido entre duas línguas, duas consciências produtivas e em tensão, mas também, a possibilidade de reconhecer singularidades do tempo-espaço em que as traduções e (re)traduções acontecem. O novo contexto de recepção envolve, ao mesmo tempo, uma tradição temporal e espacial de estudos a respeito do autor/obra/tradução e a possiblidade de conferir ao novo trabalho do tradutor, ao texto de origem e à (re)tradução um estatuto diferenciado das manifestações anteriores.

Assim deve ser compreendido Mikhail Bakhtin: os gêneros do discurso, livro que chegou ao leitor em 2016, representando ganhos e significados especiais para os estudos bakhtinianos no Brasil. O crítico, ensaísta, professor e pesquisador Paulo Bezerra, reconhecido por suas importantes traduções literárias e por ser um dos responsáveis pela existência de Mikhail Bakhtin em língua portuguesa, retoma dois textos por ele traduzidos diretamente do russo e publicados em 2003 na coletânea Estética da criação verbal – “Os gêneros do discurso” e “O problema do texto na linguística e nas outras ciências humanas: uma experiência de análise filosófica”, este último renomeado como “O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas: um experimento de análise filosófica” – e a eles acrescenta dois inéditos – “Diálogo I. A questão do discurso dialógico e Diálogo II”, publicados pela primeira vez na Rússia em 1997.

Sem dúvida, esse evento tradutório, que interliga versões pontualmente modificadas de dois textos que, juntamente com outros do pensador russo, são centrais para a compreensão dos conceitos de gênero discursivoenunciado, texto, cadeia comunicativa, cadeia da comunicação discursiva, campos da comunicação cultural, cadeia histórica da cultura, deixa os estudiosos entusiasmados por ao menos duas razões. Pela estética das traduções de Paulo Bezerra, produto do reconhecido rigor acadêmico-científico, pautado na ética da pesquisa, sempre atento ao estado da arte de suas traduções e ao estado atual do conhecimento dos escritos do autor de Problemas da poética de Dostoiévski, notadamente na Rússia, onde vai buscar e conferir fontes. E pela chegada de dois novos escritos, voltados para diálogo, outra grandeza essencial na reflexão teórico-filosófica bakhtiniana que, como afirma Bezerra, “mesmo sendo textos preparatórios de ‘Os gêneros do discurso’, discutem questões congêneres não contempladas nessa obra e trazem rascunhos de projetos teóricos que o mestre pretendia desenvolver, revelando sua permanente preocupação com o aprofundamento e uma maior abrangência de sua teoria do discurso em vários campos das humanidades” (p.151).

Portanto, o gesto que implica (re)tradução acrescida de tradução de inéditos acontece a partir de um retorno do tradutor-pesquisador às fontes russas, aí consideradas a edição de Estética da criação verbal (Moscou, Iskusstvo,1979, organização e notas de Serguei Botcharov) e o tomo 5 das Obras reunidas de M. M. Bakhtin, (Moscou, 1997, volume organizado por Botcharov e Liudmila Gogotichvíli). A consequência imediata, altamente positiva para o leitor brasileiro e para o conhecimento do pensamento bakhtiniano, é uma decisão editorial que repensa a natureza dos textos reunidos em Estética da criação verbal, obra publicada na Rússia após a morte do autor.

Bastante conhecida no Brasil, essa coletânea, que teve uma primeira tradução feita a partir da edição francesa (Maria Ermantina Galvão G. Pereira, 1992), tem desde 2003 tradução feita por Paulo Bezerra, diretamente do russo. E é nela que se encontram os textos “Os gêneros do discurso”, “O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas: uma experiência de análise filosófica”, assim como diversos outros trabalhos produzidos em diferentes momentos por Mikhail Bakhtin. Como afirma Paulo Bezerra, “não é um livro tematicamente uniforme; são três livros em um, todos diferentes entre si pelos objetos de análise e reflexão, além de dois textos sobre Dostoiévski e outros quatro sobre diferentes temas de ciências humanas” (p.151). Ou seja, trata-se de um conjunto que, de fato, poderia, por um critério de relação e coerência entre obras, ser desmembrado e, com isso, oferecer ao leitor de hoje um panorama mais esclarecedor da maneira como alguns constructos do pensamento bakhtiniano foram aparecendo, sendo trabalhados e retrabalhados, evidenciando seu papel, função e participação na edificação da arquitetônica que rege e abriga o conjunto desse forte pensamento sobre linguagem.

E é justamente essa perspectiva que, considerando a possibilidade de agrupamentos coerentes dos trabalhos presentes em Estética da criação verbal, apresenta Os gêneros do discurso como o primeiro de quatro volumes previstos. Nesse sentido, o leitor se pergunta: “E qual é a coerência temática que dá conta, nesse primeiro volume, dos dois trabalhos conhecidos somados aos dois inéditos?”.

Os estudiosos interessados em alguns dos fios condutores do pensamento bakhtiniano têm procurado estabelecer, dentre outras coisas, a relação existente entre os conceitos de enunciado (por vezes enunciado concreto ou mesmo enunciação em algumas traduções), textodiscurso, gênero do discurso, cadeia da comunicação discursiva, campos ou esferas da comunicação cultural, sem dúvida pilares da construção reflexiva bakhtiniana, voltada para a linguagem nas artes e nas ciências humanas e, especialmente, a maneira como esses elementos constituem unidades e elos para a compreensão do processo vivo da comunicação humana, das cadeias discursivas.

Essa busca leva, necessariamente, aos dois trabalhos produzidos por Mikhail Bakhtin nas décadas de 50 e início de 60, do século passado, aproximados de forma muito pertinente nesse volume: “Os gêneros do discurso” (1952 – 53) e “O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas: um experimento de análise filosófica” (1959-61). Neles, os conceitos mencionados são apresentados, tematizados, discutidos e inseridos na construção de uma perspectiva dialógica de concepção e abordagem da linguagem, bem como interligados numa interdependência que evoca outros escritos de Bakhtin, caso de “O discurso no romance” (texto iniciado em 1929 e concluído entre 1934 e 1936, publicado pela primeira vez na União Soviética em 1972).

A tentativa constante de compreensão do significado desses constructos fundamentais para a perspectiva dialógica da linguagem, caso de gênero do discursoenunciado, texto fica facilitada pela organização desse primeiro volume do desmembramento de Estética da criação verbal, justamente pela forma como discurso, gênero e enunciado se articulam em relação a texto e vice-versa.

Em “Os gêneros do discurso” encontra-se um momento da concepção bakhtiniana de linguagem que sistematiza a importância da noção gênero para a compreensão da língua em movimento, plena de vida e de mobilidade, flagrada no diz-que-diz do burburinho da vida e da cultura, da vida na cultura, quer artística ou científica, do enunciado como unidade dialógica de tensão entre um/outro, entre ao menos duas consciências, entre identidades/alteridades, entre a língua/unidade, preservada a duras penas pelas forças centrípetas, e a língua/plural, multifacetada, plenamente realizada pelas forças centrífugas provocadoras do plurilinguismo. E é precisamente por essa dualidade – unidade/unicidade – que em “Os gêneros do discurso” encontra-se a importante discussão sobre as realidades representadas pela oração, enquanto unidade/modelo do conjunto de possiblidades de um sistema, e o enunciado, oral ou escrito, proferido de forma concreta e única, por integrantes das diferentes esferas da atividade humana.

Se gênero do discurso é um tema que acompanha o pensador russo ao longo de toda a sua vida, podendo essa presença ser vivenciada em Problemas da poética de Dostoiévski e em O discurso no romance, por exemplo, a concepção de texto como unidade semiótico ideológica também se reitera ao longo do conjunto da obra, ganhando discussão específica em “O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas: um experimento de análise filosófica”, no qual se pode ler: “[…] por trás de cada texto está o sistema da linguagem. […]. Concomitantemente, porém, cada texto (como enunciado) é algo individual, único e singular, e nisso reside todo o seu sentido […]. Esse segundo elemento (polo) é inerente ao próprio texto, mas só se revela numa situação e na cadeia dos textos (na comunicação discursiva de dado campo)” (p.74-75).

O trecho em destaque indica duas dimensões implicadas, como também se pode observar em Os gêneros do discurso, que são evocadas como condição de existência de um texto: a materialidade sígnica ou dimensão semiótica, que o constitui e o faz participante de um sistema; a singularidade que lhe é conferida a partir de sua participação ativa e efetiva na cadeia da comunicação discursiva da vida em sociedade. Essa combinatória constitutiva de elementos dados (sistema) e elementos criados (linguagem em uso) possibilita a um texto ser reconhecido como pertencente a um sistema (linguístico, pictórico, musical, etc.), e, ao mesmo tempo, como portador de valores, de posições que garantem a produção de sentidos, sempre em confronto com outras posições e valores presentes numa sociedade, numa cultura. De acordo com Bakhtin, “Onde não há texto não há objeto de pesquisa e pensamento” (p.71).

Os dois inéditos, por sua vez, tem um sabor muito especial. O título evoca uma das peças-chave da teoria bakhtiniana, que é o diálogo, concebido como constitutivo da linguagem humana e não apenas como estrutura de conversa. Escritos antes da versão definitiva de “Os gêneros do discurso”, “Diálogo I” (1950) e “Diálogo II” (1952), publicados em 1997 no volume 5 das Obras de Bakhtin (Editora Rússkie Slovarí), certamente surpreendem, conforme afirma Bezerra:

À primeira vista são rascunhos do que viria a ser o texto final de “Os gêneros do discurso”, porém, uma leitura atenta mostra que Bakhtin vai além do livro projetado. […] Em toda a concepção bakhtiniana a linguagem humana é vista sob um prisma dialógico, mas nesses “diálogos” atribui-se à própria língua uma natureza dialógica, o que, a meu ver, é uma novidade na teoria linguística de Bakhtin (p.111).

A esse coerente conjunto, Paulo Bezerra ainda acrescenta um posfácio, a bem da verdade um substancioso ensaio de quase vinte páginas, sugestivamente intitulado “No limiar de várias ciências”, por meio do qual caracteriza a coerência do quarteto, enquanto composição teórica interligada por uma das unidades temáticas própria do pensamento bakhtiniano, relacionando-a com outros trabalhos do autor, discutindo a importância desse conjunto e auxiliando, neste momento dos estudos bakhtinianos, a compreensão dos complexos meandros de “Os gêneros do discurso”, trabalho nem sempre pensado em suas reais especificidades, em consonância com outros trabalhos de Mikhail Bakhtin. E aí a (re)tradução se justifica, ganhando corpo e lugar na cultura brasileira.

Beth Brait – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-PUC-SP, São Paulo, Brasil; CNPq-PQ nº. 303643/2014-5; bbrait@uol.com.br.

Botitas Negras en Calama. Género, magia y violencia en uma ciudad minera del norte de Chile – KRAUSHAAR (RCH)

KRAUSHAAR, Lilith. Botitas Negras en Calama. Género, magia y violencia en uma ciudad minera del norte de Chile. Santiago de Chile. Ceibo Ediciones, 2016. 398p. Resenha de: ESPIRITO-SANTO, Diana. Revista Chilena de Antropología, n.34, p.109-111, jul./dic., 2016.   

Este texto fue tomado de la presentación del libro, el 16 de Noviembre, en la Sala de Teatro Cinema.

Sabía que la antropóloga Lilith Kraushaar trabajaba con magia, relaciones y políticas de género, violencia y economía del poder en el culto a un espíritu de una señora que había muerto trágicamente en una ciudad minera en el norte de Chile. Pero no más. Cuando ella me pidió que participara de la presentación de su libro Botitas Negras en Calama, me di cuenta de que su trabajo era más que una simple etnografía de la biografía (y necrografía) de una mujer del ambiente. Además de trazar una historiografía rizomática, plural, de los hechos y del contexto de su construcción posicionada en múltiples sectores de la sociedad calameña, el libro también intenta entender la gran fe que sus varios caminos y encarnaciones, así como las intersecciones del significado de su muerte, siguen inspirando en los habitantes de estas precarias economías políticas. Este trabajo demuestra destreza en múltiples niveles de análisis discursivo y narrativo, socio-histórico y de cultura material, y es la combinación experta y sensible de estos métodos sumamente antropológicos, lo que es verdaderamente inspirador. Así es que gracias a Lilith por haber escrito este libro.

Botitas Negras es Irene Iturra, una mujer de 27 años brutalmente asesinada en los alrededores de Calama en 1969. Los detalles de su muerte son violentos en cualquier estándar: fue encontrada con la cara, cuero cabelludo y pechos cortados, sin una mano, piel y tendones de brazo, y semi-desnuda, como si hubiera sido violada. Se notó que vestía botas negras, la marca que la sexualizó desde ese momento, y que además la identificó. Tanto en los medios de comunicación, en la policía como en la población se genero un sinnúmero de hipótesis coherentes con la división sexual y económica del trabajo, y también con las ideologías de género y poder de ese tiempo y espacio: que había sido víctima de un triángulo amoroso, de alguna venganza o ira de parte del “marido”. Finalmente, cuando se produjo la imagen de “prostituta” en los medios de comunicación, se vio el asesinato como una conclusión casi naturalizada de un “ambiente” sexualmente depravado, y se apuntó a los males de una ciudad con vicios mineros descontrolados. Sin embargo, como sabemos, el caso se quedó sin culpables.

Pero Lilith Kraushaar no nos pinta un cuadro simple o sencillo de este “ambiente”, ni del enredo de conexiones en las cuales Irene Iturra se mueve, a veces secretamente de su celosa pareja, a veces con esperanza para su futuro en la prostitución. La autora nos recrea no solo el lenguaje del contexto bohemio de Chillán y Calama, trazando los pasos de Irene por una multitud de espacios y las discusiones públicas más amplias que siguieron, sino que es minuciosa hasta con el más pequeño detalle socio-histórico y documental, tejiendo una historia compleja, rica, cuyas partes sin embargo encajan de una forma disonante, en ángulos rectos, como la historia siempre es, vista de perspectivas diferentes. No hay una narrativa; hay muchas, paralelas, simultáneas, que hacen a la vez total sentido en el trabajo aquí expuesto.

Este no es solamente un libro sobre el comercio sexual en centros mineros; es también un tratado antropológico y crítico sobre la propia organización económica, sexual, y social en comunidades mineras en Chile, una organización que tiene fuertes raíces en las compañías norteamericanas que promovían modelos de familia y género que producían (y producen) tensiones irreconciliables. El hecho es que Irene Iturra desafió la tenue barrera construida entre esposas de trabajadores, protegidas por su marido y fieles a él, y las demás: solteras, mujeres nocturnas, prostitutas, sujetas a la violencia indiscriminada de sádicos. Al hacerlo, Irene puso en relieve estas mismas categorías, confundiendo los dos roles.

Pero tal como Irene utilizaba diferentes nombres, encarnando personajes diferentes según el contexto y las relaciones sociales que cultivaba en él, su cuerpo y la figura que sobresale eventualmente de su muerte tendrá repercusiones, algunas inesperadas. De hecho, hay que decir que Lilith hace más que caracterizar un espacio histórico: también ha escrito una especie de antropología del amor y de los sentimientos calameños, por medio de la magia dejada al pie del altar de Botitas Negras: cartas, velas, flores, placas, cigarros, cerveza, dulces y otros regalos que se enmarcan dentro del homenaje y de los pedidos que jóvenes y viejos pero especialmente mujeres, le vienen hacer a ella. De Irene Iturra a Botitas Negras hay una transformación: la prostituta se vuelve maestra en temas del ambiente, de clientes y prostíbulos; como ente sexual, se convierte en especialista del amor y atracción; como esposa, en temas de matrimonio y vida doméstica; la mujer asesinada y violada se vuelve la protectora de otras mujeres, experta en técnicas de venganza; se vuelve milagrera y destructora a la vez. Sus múltiples resignificaciones no son extrañas a otros difuntos especiales, no solo en Chile. La cultura material hace el milagro posible; materializa la esperanza. Por alguna razón nosotros antropólogos de fenómenos religiosos le prestamos especial atención. La figura de Irene es, por lo tanto, reclamada y rehecha en Botitas, disputada por distintos grupos con diferentes creencias relativas a la muerte y a sus prácticas funerarias.

En la segunda parte del libro, por lo tanto, Lilith nos lleva por los variadísimos motivos que impulsan el culto a Botitas, la santa prostituta. Al final, vemos que se anuda perfectamente un lado del libro con el otro: aparte de otras solicitudes, las mujeres que vienen a la tumba, desamparadas, saben que Botitas “entiende”, como dice Lilith, y cito,

lo que implica el ser mujer en esta ciudad minera, con todos los impedimentos y los papeles que se le atribuyen: conservar la familia, arreglársela con varios tipos de trabajo para obtener un sueldo, complacer sexualmente, vivir con el sueldo de otro, competir entre mujeres, admitir el privilegio masculino de escoger entre varias mujeres, el entretenimiento homosocial, situaciones todas que anuncian la expresión diaria y la eventualidad de la violencia en las relaciones de género, amparadas por las instituciones y el mercado capitalista (p. 296).

Pero, para finalizar, podemos decir que si por un lado, a través del culto a Botitas se articulan las condiciones del capitalismo industrial y los valores subjetivos mantenidos por la gente en una ciudad minera en tiempos actuales, en tanto “muerta” Irene Iturra trasciende estas mismas condiciones. Ella no es solo testigo de la historia verídica, de hechos socio- económicos refractados a través de su biografía, pero también en cierto modo hace y rehace historia.

Dice Stephan Palmié (2002: 4-5), un antropólogo y historiógrafo de religiones afro-cubanas, que en un sentido muy concreto, cada forma de conocimiento histórico involucra proposiciones sobre el papel de los muertos en el mundo de los vivos, conformado como es por la existencia y agencia pasada de humanos.

Estos conocimientos hacen reclamos al pasado; un pasado que viene a instanciar, mantener o contestar un mundo presente. Pero estos reclamos no deberán ser vistos como concepciones objetivistas de representaciones históricas, como si el pasado fuera sujeto de fácil rescate o recuperación. La historia, nos cuenta Palmié, es, invariablemente, constituida por imaginación histórica, por historias personales y familiares inacabadas, discursos y imágenes que compiten, donde no hay una linealidad entre realidades pasadas, a ciertas distancias temporales, y el presente.

Tomar en serio a los muertos afro-cubanos es, según él, indagar sobre las relaciones entre el pasado y el presente que subyacen a un orden contemporáneo pero quedan no-reconocidos, en silencio, no obstante que su existencia en el mundo haya tenido consecuencias que todavía resuenan entre los vivos.

A mi modo de ver, y en consonancia con lo que señala Palmié, lo que logra el culto a Botitas es también eso: traer a la consciencia que el pasado no terminó, y nunca va a terminar. Hay personajes, como los afroamericanos, pero también Irene Iturra, cuyas historias no son la propiedad especial de sus descendientes, sino parte del patrimonio ético e intelectual del Occidente como tal. Mientras que los muertos de que habla Palmié hacen parte de la formación de la modernidad Atlántica, como espíritu, podemos igualmente proclamar que Botitas pertenece a una conformación mucho más grande que los contornos de su propia vida.

Referências

Palmié, S. 2002. Wizards and Scientists: Explorations in Afro- Cuban Modernity and Tradition. Duke University Press, Durham

Diana Espirito-Santo – Profesora Asistente de Antropología, Pontificia Universidad Católica de Chile. E-mail: diana.espirito@uc.cl.

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Lugares para a história – FARGE (RHR)

FARGE, Arlette. Lugares para a história. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. Resenha de: ESTACHESKI, Dulceli de Loures Tonet. Relações de gênero nos lugares para a história. Revista de História Regional n.21 v.2, p.735-739, 2016.

Uma das características dos estudos de gênero é a pluralidade teórica, metodológica e temática. São diversas possibilidades reflexivas que refletem a própria essência de tais estudos, que visam não apenas produções acadêmicas consistentes, mas principalmente, objetivam reflexões que possibilitem transformações nas práticas sociais. O intuito é a construção de um mundo mais justo que, como os estudos de gênero, valorize a diversidade. Teorias e metodologias diversas para pensar práticas diversas de pessoas diversas, essa é a essência.

Arlette Farge é uma historiadora francesa que se dedica aos estudos do século XVIII. No Brasil temos duas de suas importantes obras publicadas, o primeiro, ‘O sabor do arquivo’, de 20091 é uma escrita quase poética sobre a pesquisa arquivística. Trata do contato com o documento, do encantamento pela descoberta na pesquisa histórica que utiliza como fontes os documentos judiciais. Pessoas, queixas, delinquência, vigilância, controle, narrativas, são elementos que constituem tais documentos e revelam histórias, costumes, o cotidiano de pessoas que não queriam suas vidas expostas de tal forma, mas que por terem sido assim documentadas, ajudam a pensar sobre as relações de poder. Os arquivos judiciários expressam os ajustes e os impasses nas relações do sujeito com seu grupo social e com os poderes estabelecidos. E quando pensamos em relações de poder, pensamos em gênero, que “é um primeiro modo de dar significado”2 a elas e, mesmo que a autora não cite especificamente o termo, ela salienta que as mulheres são encontradas nesses arquivos que, para ela, desvendam também “o funcionamento do confronto do masculino e do feminino”3. A segunda obra, mais recente, publicada em 2015, é ‘Lugares para a História’4 e novamente ela não escreve especificamente sobre gênero, mas então, como sua obra pode ser importante para as pesquisas na área? Afinal, de que ela trata? Em sua introdução Farge ressalta que a historiografia precisa ocupar-se de escritas que interessem à comunidade social e que confrontem o passado e o presente. Quando pesquisamos as relações hierárquicas de gênero por uma perspectiva histórica, é isso que fazemos, é o que queremos, confrontar o passado, as formas como foram constituídas essas relações para melhor argumentar em nossas problematizações em relação ao presente. As questões de gênero são essenciais para a comunidade social e por isso devem ser escritas, lidas e refletidas.

Em sete capítulos a autora apresenta o que chama de ‘lugares para história’, que são situações que encontram eco na atualidade, como o sofrimento, a violência e a guerra, ou que consideram sujeitos e experiências singulares, como a fala, o acontecimento, a opinião e a diferença dos sexos. Para ela Esses dois conjuntos se religam pela presença hoje de configurações sociais violentas e sofridas, e de dificuldades sociais que desqualificam o conjunto das relações entre o um e o coletivo, entre o homem e a mulher, o ser singular e sua – ou suas – comunidade social, entre o separado e sua história.5 No primeiro capítulo, ‘Do sofrimento’, Farge questiona se a historiografia pode dar conta do sofrimento humano. O sofrer pode ser um tema para a história ou o sofrimento um lugar para ela? A história tem dado conta de grandes “catástrofes humanas” fazendo com que a dor que elas causam nos sujeitos seja pensada como se fosse apenas fatalidade, consequência de eventos maiores que merecem a total atenção. Dificilmente a história se volta para os “ditos do sofrimento”, para as palavras de dor, à exceção, como aponta a autora, da história do tempo presente que valoriza os relatos de pessoas que vivenciaram momentos históricos tensos e apresentam as suas percepções sobre eles. Um bom exemplo disso é o texto de Wollf6 que analisa relatos de familiares de desaparecidos políticos da América Latina, evidenciando que os apelos aos sentimentos da opinião pública foram utilizados para fins políticos, para desacreditar regimes militares e fortalecer a luta por direitos humanos.

Para Farge é possível e preciso entender que “a dor significa, e a maneira como a sociedade a capta ou a reusa é extremamente importante”.7 Os grandes eventos como guerras e revoluções afetam a vida das pessoas de formas muito distintas, dependendo do lugar social que elas ocupam. Farge salienta a necessidade de se pensar na tristeza de mulheres que sofrem em um mundo caracteristicamente masculino e de pobres que vivem em sociedades tão desiguais. Ela enfatiza que há racionalidade nessas distorções, nessas diferenciações que causam dor e pesquisar sobre isso, escrever a partir desse entendimento, é uma forma de buscar erradicar o sofrimento dos que hoje são atingidos pelos ecos dessas situações históricas. Para Wolff8 emoções e gênero se entrelaçam, pois fazem parte da experiência humana. É sobre essa experiência, essencialmente a que causa sofrimento, que Farge nos convida a escrever e é por isso que sua obra é tão importante para pensar as relações de gênero. A racionalização do sofrimento nessas relações sendo historicamente analisados pode explicar os dispositivos que fizeram surgir tais sentimentos e práticas, podendo “fornecer os meios intelectuais de suprimi-los ou de evitá-los”9 Há uma insatisfação em relação aos discursos históricos sobre a violência.

“A interpretação histórica da violência, dos massacres passados, dos conflitos e das crueldades, praticamente não permite, na hora atual, ‘captar’ em sua desorientadora atualidade o que se passa sob nossos olhos”10. Em seu capítulo ‘Da violência’, a autora convida a não nos dobrarmos ao sentimento de fatalidade ou impotência diante da violência e ressalta que é legítimo buscar outras interpretações históricas, como o fazem as pesquisas sobre as emoções que destacam sujeitos, gestos e falas. Para ela, a historiografia pode, não apenas, apresentar o conhecimento, mas indicar caminhos para a luta, para o enfrentamento à violência.

A violência tem racionalidade. A violência de gênero é pautada numa racionalidade em relação a uma sociedade hierarquizada na qual homens devem ser dominadores e mulheres submissas, contrariar essa lógica pode levar ao ato violento. Entender a racionalidade da violência, para Farge, é um caminho para evitá-la, transformando a realidade com outras formas de racionalização.

‘Da guerra’ problematiza a ideia de que a guerra é inevitável e questiona a “estranha disposição que nos fez considerar esse fenômeno como normal”11.

No capítulo seguinte, ‘Da fala’, Farge afirma que o/a historiador/a dá sentido à fala para que o passado se torne inteligível ao leitor e alerta para o fato de que “a história pode ser dita rápido demais”12 e dessa forma invisibilizar as pessoas que a fazem. A escrita da história pode dar lugar aos sujeitos, como Foucault o fez em ‘A vida dos homens infames’13 ou em ‘Eu, Pierre Riviere…’14, como Davis fez com Martin Guerre15, Esteves com as ‘meninas perdidas’16 e Wolff com as mães de desaparecidos políticos17.

A história pode pensar a resistência pelas vozes de quem transgride a ordem. Estas percepções são apresentadas nos capítulos seguintes, ‘Do acontecimento’ e ‘Da opinião’. Em seguida, a autora dedica um capítulo para pensar a ‘diferença dos sexos’ como um lugar para a história. Como salientado acima, Farge não parte dos estudos de gênero, então não se ocupa em pensar as categorias de análise sexo e gênero e suas problematizações. Ela parte de discussões propostas por uma história das mulheres da França, para acusá-la de pessimista, marcada por uma inércia que apresenta as diferenças entre homens e mulheres como algo estável, não tendo como intuito mover o leitor a pensar a necessidade de mudança. A autora critica, assim como o fazem os estudos de gênero, esse caráter fixo das coisas. A ordem hierárquica, desigual, deve ser pensada pelas transgressões que sofre, pois “reconstituir os momentos em que a instabilidade, o desequilíbrio, as recusas”18, ocorrem pode demonstrar a possibilidade de novas estruturas.

Farge conclui que “buscando conhecer outro tempo, não escapamos do nosso, e, se este último, como o faz hoje, se arranca brutalmente do passado, a história se engaja também nessa ‘realidade’ para encontrar seu sentido”.19 Ao propor uma reflexão histórica que dê conta das dores humanas, sem entendê-las apenas como fatalidades, mas embrenhando-se pelo que move as ações, os sentimentos, as inquietações e os desejos, que transformam as pessoas, fazem sofrer ou lutar, submeter-se ou transgredir, ‘Lugares para História’ ajuda a pensar a categoria gênero como essencial para as reflexões históricas, mesmo que não a cite. Os estudos de gênero possibilitam compreensões que podem gerar mudança social, que se configuram em uma história engajada, como almeja a autora.

Notas

1 FARGE, Arlette. O sabor do arquivo. São Paulo: EDUSP, 2009.

2 SCOTT, Joan. Gênero uma categoria útil para análise histórica. Educação e realidade. Porto Alegre. Vol. 20. N. 2. Jul/dez, 1995. p. 14.

3 FARGE, op. cit.,p. 43.

4 FARGE, Arlette. Lugares para a história. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

5 FARGE, Lugares… Op. cit. p. 9-10.

6 WOLFF, Cristina Scheibe. Pedaços da alma: emoções e gênero nos discursos da resistência. Revista Estudos Feministas. Florianópolis, 23(3), setembro/dezembro, 2015.

7 Ibidem. p. 19.

8 WOLFF, op. cit.

9 FARGE, Lugares… Op. cit., p. 23.

10 Ibidem. p. 25.

11 Ibidem. p. 43.

12 FARGE, Lugares… Op. cit., p. 61.

13 FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. In: Ditos e escritos. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2006.

14 FOUCAULT, Michel. Eu, Pierre Riviere, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão. Rio de Janeiro: Graal, 1977.

15 DAVIS, Natalie Zemon. O retorno de Martin Guerre. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

16 ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas Perdidas: Os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.

17 WOLFF, op. cit.

18 FARGE, Lugares… Op. cit., p. 114.

19 Ibidem, p. 129.

Dulceli de Loures Tonet Estacheski – Doutoranda em História pela UFSC. Professora do curso de História da UNESPAR, campus de União da Vitória. E-mail: dulce_tonet@yahoo.com.br.

 

 

História das mulheres e do gênero em Minas Gerais / Cláudia Maia e Vera L. Puga

Escrever a história das mulheres e do gênero ainda é uma tarefa ousada. Desde os anos 1980, o tema chega ao Brasil e se consolida como um campo definido de pesquisa para as/os historiadoras/es ganhando visibilidade, apesar de ainda sofrer restrições no interior das instituições acadêmicas. O número significativo de publicações revela gradativo fortalecimento desse campo, como atesta o crescimento das publicações de livros, artigos em revistas especializadas, teses, dissertações e simpósios temáticos versando sobre o tema. O que significa escrever uma história das mulheres e do gênero? A história se tornou o lugar a partir do qual o feminismo questionou o sujeito universal moderno (homem, branco, heterossexual e cristão), fazendo emergir uma vasta gama de sujeitos históricos em suas especificidades de gênero, étnico-raciais, sociais e sexuais.

O livro História das mulheres e do gênero em Minas Gerais, organizado por Cláudia Maia (UNIMONTES) e Vera Puga (UFU) resulta de uma parceria de longa data entre as organizadoras, que são pesquisadoras conceituadas e bastante atuantes nos simpósios sobre “História das mulheres e do gênero” na Associação Nacional de Professoras/es Universitários de História (ANPUH). Cláudia Maia é doutora em História pela Universidade de Brasília, na área de Estudos Feministas e de Gênero, e pós-doutora pela Universidade Nova de Lisboa. Atua como professora adjunta do Departamento de História e dos Programas de Pós-graduação em História e de Letras/Estudos Literários, da Universidade Estadual de Montes Claros. Vera Puga é doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), desde 1998, e atualmente faz parte de algumas comissões: do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (ENADE-Formação Geral) e da Secretaria de Políticas para as Mulheres (Comitê Técnico-Institucional, questões de gênero). É professora Associada II da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), onde atua no Programa de Mestrado e Doutorado em História Social, no Núcleo de Estudos de Gênero e Mulheres (NEGUEM) e na Revista Caderno Espaço Feminino, como editora.

O livro em questão conta ainda com a participação de pesquisadoras/es de vários estados brasileiros que se debruçaram sobre  diferentes momentos da história das mulheres em Minas Gerais, partindo de variados tipos de fontes e abordagens metodológicas. Foi publicado pela Editora Mulheres e financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig). Trata-se de uma coletânea de 552 páginas, organizada em quatro partes que indicam os múltiplos olhares sobre as mulheres mineiras: 1) transgressoras e insubmissas mineiras; 2) damas, donas do sertão; 3) saberes e fazeres femininos; 4) casamento e maternidade: mecanismos de um destino social.

A primeira parte da obra é constituída por textos que tratam das variadas ações de mulheres mineiras em diferentes temporalidades e espaços, para romper com as amarras das tradições patriarcais. Através da escrita sensível da pesquisadora Diva do Couto Muniz, conhecemos professoras mineiras cujo conjunto de ações “insubordinadas, indóceis e indisciplinadas” fincaram um marco de resistência ante o conjunto das estratégias elaboradas nas Minas oitocentistas, para circunscrevê-las a um ideal de mestra, recatada e submissa. Encontramos também as mulheres que ousaram contrariar regras “sagradas” e constituíram famílias com padres, mesmo estando sujeitas a sanções sociais, conforme divisou Vanda Praxedes. Mulheres mineiras livres ou escravizadas com suas práticas e estratégias em favor da abolição, como a escravizada Catarina que se destacou pela “astúcia empreendida em seus projetos de liberdade” (p.87), são desveladas por Fabiana Macena. A mineira Maria Lacerda de Moura, sua trajetória e escrita libertárias compõem o texto escrito por Cláudia Maia e Patrícia Lessa. Os três últimos textos discorrem sobre a escrita feminina: Maura Lopes Cançado e sua vida marcada pela insanidade e transgressão das normas de gênero, cuja obra Hospício é Deus foi discutida de forma densa por Márcia Custódio e Alex Fabiano Jardim. Contribuindo para visibilizar as mulheres negras e suas escritas, Constância Duarte nos presenteia com uma análise belíssima de parte da obra da escritora mineira Conceição Evaristo. Nos contos analisados, as personagens negras nos convidam a conhecer suas trajetórias, nas quais a intersecção entre gênero, etnia e classe se fazem presentes nas suas estratégias, vivências e resistências cotidianas. Fechando a primeira parte, conhecemos Márcia, prostituta de Pouso Alegre, cujas cartas são analisadas por Varlei do Couto a partir da noção foucaultiana de escrita de si. Vivendo e lutando num contexto em que as campanhas de moralização e higienização sociais têm como foco seu local de trabalho e residência, Márcia elabora táticas de resistência, enquanto troca correspondências com pessoas de sua estima, nas quais fala de si e de sua posição frente à sociedade em que vive.

Na segunda parte da obra, intitulada “Damas, donas do sertão”, os olhares das/os pesquisadoras/es se voltam para as regiões consideradas mais distantes de Minas Gerais: os sertões longínquos, tradicionalmente considerados como espaços do desmando e poderio falocêntricos, agora são relidos sob novo viés. Assim, conhecemos por meio do texto de Gilberto Noronha as imagens contraditórias construídas sobre Joaquina de Pompéu e sua atuação no Oeste de Minas Gerais, entre os séculos XVIII e XIX. Em alguns discursos, ela é a mulher reta, recatada e justa; em outros, figura como “caudilho de saias” ou “sinhá Braba”, colérica, descomedida sexualmente e cruel com seus subordinados. Dona Tiburtina de Andrade Alves é outra mulher cuja posição ativa suscitou inúmeras representações: seu envolvimento em episódio sangrento da política de Montes Claros, no início do século XX, foi lido e relido ao longo do tempo a partir de várias perspectivas, sendo ora louvada, ora criticada, conforme destacam as autoras Maria de Fátima Nascimento e Filomena Cordeiro Reis. Correndo mundo através da literatura, as personagens femininas de Guimarães Rosa, tão vivazes quanto os viventes de carne e osso, em suas ações destecem o tecido da tradição falocêntrica e conduzem os destinos por caminhos por elas mesmas traçados. Zidica, Rivília e “Dlena, aranha em jejum” apresentam possibilidades de “desarticular o estabelecido” e nos são apresentadas com sua astúcia, pela pena sutil de Telma Borges.

Os textos que compõem a terceira parteda obra, denominada “Saberes e fazeres femininos”, têm em comum o cuidado das/o autoras/res em ouvir as próprias mulheres acerca de seus conhecimentos e práticase das formas pelas quais atuaram em suas comunidades. As falas das narradoras são permeadas de satisfação em rememorar suas trajetórias de vida e, ao mesmo tempo, reiteram sentidos tradicionais sobre as atividades consideradas como apanágio feminino ou masculino. Através do texto de Lúcia Helena da Costa, acessamos as narrativas das parteiras do norte de Minas Geraiscujas práticas de partejar sofreram a interferência dos médicos no processo de medicalização da saúde das mulheres e dos recém-nascidos, a partir dos anos de 1950. No texto de Cairo Katrib e Fernanda Naves, nas memórias de mulheres congadeiras em Ituiutaba se entrelaçam trajetórias pessoais e a prática cultural do Congado. Durante muito tempo silenciadas pela tradição judaico-cristã, as vozes das mulheres que atuaram na fundação de Igrejas pentecostais no Norte de Minas Gerais são enfim ouvidas por meio da pesquisa de João Augusto dos Santos. A ligação entre os fazeres considerados como femininos ligados à cozinha e aos hábitos alimentares mineiros são discutidos por Mônica Abdala. Ainda sobre saberes, temos as narrativas das mulheres trabalhadoras rurais no Triângulo Mineiro, visibilizadas por Maria Andréa Angelotti. A exclusão feminina do acesso à educação formal é discutida por Leila Almeida, que se debruça sobre as narrativas de mulheres de Januária acerca de suas trajetórias de escolarização. As hierarquias de gênero que comumente estabelecem restrições diversas às mulheres marcaram a vida de muitas das narradoras, que foram impedidas de estudar durante a juventude por maridos ciumentos e obrigações domésticas. Encerrando a terceira parte, conhecemos a luta pela terra travada pelas mulheres negras remanescentes de um Quilombo em Paracatu, através da pesquisa de Maria Clara Machado e Paulo Sérgio da Silva.

O casamento e a maternidade têm sido apontados enfaticamente como formas de aprisionamento das mulheres, transformados em destinos social e biológico circunscrevendo as mulheres na esfera da casa e da família, submetidas a cerceamentos e violências. A quarta e última parte do livro se caracteriza por discutir os dispositivos sociais responsáveis por restringir as mulheres às funções de esposas e mães, bem como as estratégias encontradas por muitas para se livrarem de situações de violência em casamentos infelizes. Helen Ulhôa Pimentel examina documentação do século XVIII do tribunal eclesiástico instalado em Paracatu. A autora estuda o papel da Igreja quanto ao casamento e a possibilidade de anulação do mesmo. Entre a documentação encontrou vários casos nos quais as mulheres resistiram às imposições da Igreja e a procuravam buscando se livrar de situações intoleráveis, como casamentos violentos, o caso, por exemplo, de Joana de Souza Pereira. Na sequência, também tratando de casamento e divórcio, temos o texto de Dayse Lúcide Santos, que discute a legislação brasileira, do final do século XIX e início do século XX, acerca do tema e analisa alguns processos de separação ocorridos em Diamantina. Uma das conclusões a que chega é a de que havia um descompasso entre as normas instituídas pelo Estado e pela Igreja e as vivências de homens e mulheres, o que levava a transgressões da norma. Os discursos produzidos no início do século XX sobre os papéis das mulheres na formação dos cidadãos nas regiões do triângulo mineiro constituem foco da pesquisa de Florisvaldo Ribeiro Júnior. As mulheres eram “alvos de prescrições físicas e morais de jornalistas, médicos, intelectuais, políticos e padres”, que procuravam estabelecer normas e controle sobre os seus corpos e condutas. Temos, aqui, excelente análise a respeito da relação entre as representações de gênero e os projetos de Nação Moderna do período. Na sequência, os discursos de mães adolescentes sobre maternidade e casamento, em Uberlândia, são analisados por Carla Denari, que percebe um descompasso entre os discursos do Estado acerca da gravidez na adolescência e os sentidos positivos que as mães adolescentes atribuem à maternidade e ao casamento. A educação enquanto espaço de produção das diferenças de gênero é objeto de Vera Lúcia Puga que percorre criticamente o processo educacional dicotômico, desde o século passado, com os internatos separados por sexo, até o presente, com a permanência da educação binária que se evidencia pelo funcionamento da escola deprincesas em Uberlândia.

Enfim, o livro como um todo oferece uma importante contribuição paraa história eos estudos de Gênero; seu diferencial é a abordagem centrada nas mulheres mineiras de várias regiões do estado, suas atuações em cada contexto ondese inseriram na luta pela liberdade de existir e agir. Se por um lado a obra congrega estudos variados que pretendem visibilizar as ações das mulheres mineiras, por outro tem nessa diversidade de perspectivas a emergência de alguns problemas: em alguns textos percebe-se que as mulheres estão subsumidas nas condições históricas de suas sociedades, em outros é possível vislumbrar a ideia de predestinação de determinadas mulheres para a atuação política em seus contextos. Notam-se também algumas lacunas no que tange às mulheres indígenas e às lesbianas, denotando uma ausência de estudos sobre essas mulheres em Minas Gerais e apontando, por outro lado, para a possibilidade de exploração destes campos pelas novas levas de historiadoras/es feministas. As brechas apontadas não diminuem o mérito da obra, visto que, nós historiadoras/es feministas somos conscientes de que todo texto histórico é parcial. Nesse sentido, as organizadoras na apresentação explicam que o “livro não teve a pretensão de percorrer o conjunto dos estudos que têm sido desenvolvidos sobre mulheres e gênero em Minas Gerais no campo da História, mas é uma pequena mostra desses estudos”1. Dentro do proposto, o livro contribui imensamente para que se conheça um pouco mais da história das mulheres mineiras.

Rosana de Jesus dos Santos – Doutoranda em História na Universidade Federal de Uberlândia.Bolsista Fapemig.E-mail: mariabunitaxxi@yahoo.com.br.


MAIA, Claúdia; PUGA, Vera Lúcia (Org.). História das mulheres e do gênero em Minas Gerais. Ilha de Santa Catarina: Editora Mulheres, 2015. 552p. Resenha de: SANTOS, Rosana de Jesus. História histórias. Brasília, v.3, n.6, p.223-227, 2015. Acessar publicação original. [IF]

A Poverty of Rights: Citizenship and Inequality in Twentieth-Century Rio de Janeiro – FISCHER (RBH)

FISCHER, Brodwyn. A Poverty of Rights: Citizenship and Inequality in Twentieth-Century Rio de Janeiro. Stanford, California: Stanford University Press, 2008. 488p. Resenha de: OLIVEIRA, Samuel Silva Rodrigues de. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.33, n.66, jul./dez. 2013.

O livro A Poverty of Rights: Citizenship and Inequality in Twentieth-Century Rio de Janeiro é o resultado da tese defendida por Brodwyn Fischer, em 1999, na Universidade Harvard. A autora analisa o processo de formação dos direitos na organização do Estado e da sociedade brasileira e os conflitos de classe, raça e gênero que permearam a constituição do espaço urbano carioca.

Por eleger como cerne de sua análise os embates estruturados no cotidiano dos pobres do Rio de Janeiro, A Poverty of Rights é uma contribuição original à história social da pobreza urbana. O trabalho relaciona-se à renovação da historiografia em tempos recentes, dando destaque ao tema das favelas. Como observou Brum,

se a história urbana e, em especial, a história da cidade do Rio de Janeiro se consolidaram como campo de pesquisa institucionalizado de historiadores a partir da década de 1980, será apenas na primeira do século XXI que começou a tomar corpo uma produção dos programas de pós-graduação em história em que a favela é tomada como objeto de estudos históricos. (Brum, 2012, p.121)

Junto aos livros Um século de Favela (2001), organizado por Alba Zaluar e Marcos Alvito, Favelas Cariocas (2005), de Maria Lais Pereira da Silva, A invenção da favela (2005), de Lícia do Prado Valladares, e Favelas cariocas: ontem e hoje (2012), organizado por Marco Antônio da Silva Mello, Luiz Antônio Machado da Silva, Letícia de Luna Freire e Soraya Silveira Simões, a obra de Fischer inscreve-se na renovação dos estudos históricos sobre a cidade do Rio de Janeiro, tendo como eixo a problematização das práticas e representações da pobreza e do espaço urbano.

O diferencial da pesquisa de Fischer é o recorte temporal, o escopo de fontes que utiliza e a maneira como enfoca o tema da cidadania. Ao enfrentar uma questão de ampla tradição na História e nas Ciências Sociais que tratam do Brasil e da América Latina – a relação entre desigualdade, direito e espaço urbano –, Fischer desenvolve um argumento centrado em processos que transcorreram entre a década de 1920 e o início da década de 1960. Esse foi o período de rápida urbanização, industrialização e expansão dos subúrbios, favelas e outras formas urbanas. O corte temporal também se justifica em vista da estrutura de poder que presidiu o campo político carioca. Desde a primeira Constituição republicana (1891) até 1960, o Rio de Janeiro tinha um prefeito indicado pelo presidente e aprovado pelo Senado, elegia vereadores para o legislativo municipal e deputados e senadores para o legislativo federal. Sendo a capital da República, as reformas no sistema político encontravam ampla repercussão e expressão na vida política e cultural da cidade. Além disso, o governo de Lacerda (1961-1965) foi um marco para os estudos sobre a pobreza urbana no Rio de Janeiro: ao iniciar uma política de remoção que culminaria no despejo parcial ou completo de cinquenta a sessenta favelas (atingindo cerca de 100 mil pessoas), alterou profundamente a rotina e a conformação do espaço urbano carioca.

Além do recorte temporal, a autora usa diversos tipos de documentos para desenvolver o seu argumento. Uma vez que as classes subalternas não deixam arquivos organizados que informem sobre suas práticas, justifica-se o uso de sambas, jornais, fotografias, discursos políticos, relatórios de agências do poder público, projetos de lei, legislação, cartas e processos de justiça, entre outros documentos, para compreender as estratégias dos pobres na conquista da cidadania. O material acumulado pela autora é eclético, encontra-se disperso numa miríade de lugares e instituições, e estabelece vários filtros culturais para representar a pobreza urbana. Somente com a leitura de um caleidoscópio de registros, somada à análise da bibliografia específica sobre a relação entre direito e cidadania, consegue-se colocar em pauta problemas relevantes na análise da sociabilidade e das práticas dos grupos subalternos.

Para analisar o corpus documental heterogêneo que acumulou, a autora organizou a análise em quatro partes que possuem certa autonomia, cada uma das quais é constituída por dois capítulos. Na primeira parte, intitulada “Direitos na Cidade Maravilhosa”, analisa o processo de formação do espaço urbano do Rio de Janeiro e a classificação das formas de habitar da população pobre. Interessa à autora salientar como a construção do status de ilegalidade para as formas de habitar e viver na cidade, a restrição do espaço político dominado pela interferência do governo federal e as legislações restritivas ao crescimento das favelas contribuíram para a reprodução de uma incorporação clientelista dos pobres na política urbana. Na segunda parte, intitulada “Trabalho, Direito e Justiça Social no Rio de Vargas”, Fischer tem como principal material de análise as cartas enviadas para o presidente Getúlio Vargas. A promulgação da legislação trabalhista, o discurso varguista incorporando o trabalhador na comunidade política nacional, e as estratégias dos grupos populares para conquistar direitos sociais são o eixo de sua análise. Na terceira parte, intitulada “Direito dos pobres na Justiça Criminal”, a autora analisa a forma como o crime era definido por critérios do sistema jurídico e de uma moralidade popular, e como esse jogo de força foi alterado pela reforma do Código Penal na década de 1940, com o surgimento da noção de ‘vida pregressa’. Na última parte, intitulada “Donos da Cidade Ilegal”, Fischer analisa os conflitos pela terra e pelo direito à moradia travados na zona rural e nas favelas do Rio de Janeiro.

A “Era Vargas” (1930-1945) foi um período de grandes transformações no que toca o direito da classe trabalhadora. Esse fato político e social já foi analisado por diferentes autores, constituindo-se em uma questão clássica para a historiografia brasileira. Fischer consegue trazer uma novidade para o tema, pois não restringe a análise ao direito social e político, mas aborda como as reformas penal e urbanística do Rio de Janeiro também afetaram a cidadania dos grupos populares. Destarte, a política de massa e o Código Eleitoral de 1932, o direito à cidade e o Código de Obras de 1937 do Rio de Janeiro, o direito civil e o Código Penal de 1940, e o direito social e a Consolidação das Leis Trabalhistas (1943) são os eixos de sua análise, como fica evidenciado na divisão das partes do livro.

A autora mostra que a conquista de direitos para os ‘pobres’, para os trabalhadores informais e parcela significativa da população brasileira sem registro civil delineou-se em situações de grande ambiguidade. Longe de desenvolver uma narrativa linear da evolução do Estado e da sociedade na sedimentação dos direitos, como na análise clássica de T. H. Marshall em Cidadania, classe social e status, ou de incorporar o discurso das ideologias políticas que transformaram Vargas em um mito, a autora apresenta a contingência das situações vivenciadas pelos ‘pobres’. Preocupa-se com a forma pela qual as pessoas com baixa educação formal e com pouco poder econômico e político construíram várias estratégias para lutar por direitos, sempre marcadas pela contingência de suas vidas e experiências sociais.

Ao sublinhar o processo de formação dos direitos e da cidadania, Fischer enfatiza que os pobres “formam a maioria numérica em várias cidades brasileiras, e eles compartilham experiências de poucas conquistas, exclusão política, discriminação social e segregação residencial”, conformando “uma identidade e em alguns momentos uma agenda comum” (Fischer, 2008, p.4). Ela compreende que esse grupo não tem sido pesquisado de forma verticalizada, visto que a história social do período posterior à década de 1930 tem privilegiado a análise da consciência da classe trabalhadora, dos afrodescendentes, dos imigrantes estrangeiros e das mulheres. Segundo a autora,

a verdade é que no Rio – como em outros lugares, da Cidade do México a Caracas, a Lima ou Salvador – nem raça, nem gênero, nem classe trabalhadora foram identidades generalizadas e poderosas o suficiente para definir a relação entre a população urbana pobre e sua sociedade circundante, durante a maior parte do século XX. Muito poucas pessoas realmente pertenciam à classe trabalhadora organizada; muitas identidades raciais e regionais competiram umas com as outras em muitos planos; muitos laços culturais, econômicos e pessoais vinculavam os mais pobres aos clientes, empregadores e protetores de outras categorias sociais; também muitos migrantes foram para a cidade para alimentar suas esperanças. O povo pobre no Rio compreendeu a si mesmo, em parte, como mulheres e homens, em parte como brancos e negros, nativos ou estrangeiros, classe trabalhadora ou não. Mas eles também se entenderam como um segmento específico, simplesmente como pessoas pobres tentando sobreviver na cidade. (Fischer, 2008, p.3, tradução nossa)

Nesse sentido, Fischer também enfatiza que a experiência da pobreza urbana não pode ser reduzida à definição de classe trabalhadora no sentido clássico do marxismo. Ao reduzir a experiência da pobreza urbana a uma situação de classe, corre-se o risco de perder as dimensões étnicas, raciais e de gênero que moldam as identidades e as relações tecidas com as variadas instâncias sociopolíticas. A desigualdade social foi tomada no livro como uma condição que atravessa diversos tipos de situações e que perpassa transversalmente as relações tecidas na sociedade e no Estado brasileiros.

Por tudo isso, A Poverty of Rights constitui um importante trabalho para a renovação dos estudos sobre a cidadania no período posterior à década de 1930 e da história social da pobreza urbana no Rio de Janeiro.

Referências

ALVITO, M.; ZALUAR, A. (Org.) Um século de favela. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001.         [ Links ]

BRUM, Mario Sergio Ignácio. Cidade Alta: história, memórias e estigma de favela num conjunto habitacional do Rio de Janeiro. (Prefácio de Paulo Knauss). Rio de Janeiro: Ponteio, 2012.         [ Links ]

MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.         [ Links ]

MELLO, M. A. da Silva; MACHADO DA SILVA, L. A.; FREIRE, L. L.; SIMÕES, S. S. (Org.) Favelas cariocas: ontem e hoje. Rio de Janeiro: Garamond, 2012.         [ Links ]

SILVA, Maria Lais Pereira da. Favelas Ccariocas (1930-1964). Rio de Janeiro: Contratempo, 2005.         [ Links ]

VALLADARES, Lícia do Prado. A invenção da favela: do mito de origem à favela.com. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2005.         [ Links ]

Samuel Silva Rodrigues de Oliveira – Doutorando, Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais, Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC-FGV). Bolsista Faperj. E-mail: samu_oliveira@yahoo.com.br.

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Marking samba: A new History of race and music in Brazil – HERTZMAN (NE-C)

HERTZMAN, Marc. A. Marking samba: A new History of race and music in Brazil Durhcham: University Press, 2015. Trad. Livre  Dmitri Cerbonicine Fernandes. Resenha de: FERNANDEZ, Dmitri Cerbonicine. De “pelo telefone” a “internet”: tensões entre raça, direitos, gênero e nação. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.102, Jul, 2013.

Nos últimos quinze anos, os chamados brasilianistas norte-americanos e britânicos voltaram seus olhos a temas anteriormente circunscritos aos nativos – caso geral da música popular brasileira e, em específico, do samba e do choro1. Se, por um lado, nossas obras musicais populares desde há tempos são bastante apreciadas e (re) conhecidas, chamando a atenção de vasto público, o mesmo não se poderia dizer das reflexões acadêmicas tecidas sobre essas obras e seus criadores.Os trabalhos da nova geração de brasilianistas são,por isso mesmo,um alento em diversos sentidos.A mera existência de um interesse estrangeiro por objetos de pesquisa tradicionalmente relegados a segundo plano nas ciências humanas auxilia a modificação do panorama de certo desapreço pelo assunto, forçando a universidade e demais instituições a reverem suas posições.A lastimável ausência de tradução dessas pesquisas para o português e a falta de interlocução dos estudiosos brasileiros – muitas vezes encerrados apenas na discussão em língua pátria e,quando não,em sua própria área ou subárea-talvez estejam com os dias contados; prenúncio de uma possível maturação de um campo de estudos que, embora secundário se comparado com o dos “grandes temas” – políticos, históricos, sociais -, não se iniciou ontem2.

Conquanto os resultados das análises empreendidas por esse novo grupo de brasilianistas variem bastante em termos de metodologia empregada, escopo, materiais coletados e ineditismo, são evidentes o impacto e a qualidade, se não de todas, pelo menos de algumas delas, o que as equipara ao que de melhor já foi escrito por aqui sobre a música popular em seus diversos aspectos. Dentre os livros que se destacam, um deles, sem dúvida, é Making samba: a new history of race and music in Brazil, do professor da Universidade de Illinois, Estados Unidos, Marc A. Hertzman. Originalmente uma tese de doutorado em História da América Latina defendida na Universidade de Wisconsin-Madison, em 2008, o livro recebeu dois prestigiosos prêmios nos Estados Unidos3, o que o gabaritaria, por si só, à tradução imediata.

Logo de início, Marc Hertzman propõe um novo mergulho em águas passadas, quer dizer, ele se dispõe a revisitar pelo menos três eixos estruturantes de nossa música que já foram, em separado, alvos da bibliografia específica: 1) o lugar do negro e as possibilidades de ação, repressão e reconhecimento no nascente universo artístico4; 2) o aparecimento das instituições comerciais em meio ao fazer musical popular e as resistências e colaborações que essas instituições passaram a alimentar da parte de artistas, intelectuais, jornalistas, políticos, folcloristas etc.5; 3) os sentidos do entrelaçamento da ascendente forma musical popular brasileira no início do século XX com a ideia emergente de nação e a instauração da República6. No entanto, há em sua problematização um entrelaçamento entre esses três eixos, algo que nunca havia sido tentado antes. O resultado é um livro que traz inúmeros dados, situações, fotos e declarações que recebem nova luz interpretativa, fornecendo no conjunto um panorama inédito de questões que se pensavam solucionadas.Os que,mesmo assim,ainda imaginarem que se trata de mero exercício desnecessário e repetitivo de diletantismo rapidamente se convencerão do contrário por conta de outro motivo: a presença de um elemento que confere o tom central à obra e que, sozinho, já a justificaria de imediato. Falamos aqui da postura epistemológica adotada por Hertzman, que o diferencia do viés que predominou durante largo espaço de tempo na academia brasileira: o do ensaísmo.

Por um lado, é bem verdade, tal pendor ao ensaio conformou uma maneira toda especial, muito criativa e prolífica de interpretação em um ambiente científico inóspito e incipiente,momento em que financiamentos para a realização de surveys e a disposição de arquivos e materiais minimamente organizados eram escassos em nosso país. Em tal conjuntura, onde sobravam erudição e capacidade de síntese aos nossos intelectuais “heroicos”, a necessidade teve de se fazer virtude, e os clássicos pioneiros demarcaram o início de uma profunda autocompreensão que ensejou, por linhas tortuosas, trabalhos como os do próprio Marc Hertzman. Por outro lado, há até hoje resquícios desse modo de fazer que, desacompanhados das antigas virtudes, mais servem para escamotear resultados duvidosos, destilar arrogância, falta de empenho e de energia em vasculhar bibliotecas, museus e arquivos do que em iluminar o que quer que seja. Atêm-se ou a materiais recauchutados, apropriando-se de modo acrítico de “verdades” jornalísticas que rondam os mais diversos estudos sobre música no Brasil há tempos, ou a letras de canções e células musicais, como se a partir delas, e só delas, fosse possível, sem um objetivo claro ou um problema teoricamente orientado, reconstruir toda a história de um gênero musical ou de uma época.

Nesse sentido, Hertzman desdobrou-se como poucos haviam feito nos estudos históricos sobre o samba; correu atrás de comprovações documentais, muitas delas localizadas em acervos pessoais de difícil acesso ou em museus que, geralmente, sofrem e sofreram durante décadas com o descaso governamental, a falta de verbas, incêndios, desfalques, perdas, desorganização. O resultado dessa tarefa árdua e minuciosa de levantamento de informações não o tornou mero coletor nem fez de seu trabalho uma descrição insossa de materiais repertoriados,o que costuma ocorrer quando tamanha energia tem de ser gasta tão somente no serviço de garimpagem. Pelo contrário, ele logrou conectar a criatividade intelectual e a audácia interpretativa de nossos antigos ensaístas com o emprego de uma empiria embasada em recolhimento e análise de dados, descortinando de maneira surpreendente, aos nativos e aos gringos, um novo universo em torno de um domínio que, à primeira vista, nada mais ou muito pouco ainda tinha a render. Dito isso, não se trata, assim, de qualquer “revisita” às três questões apontadas; antes, de uma pesquisa de fôlego que tenta fornecer, se não a última palavra sobre o assunto, ao menos uma palavra muito mais balizada, material e metodologicamente bem orientada do que as que tínhamos à mão até o presente momento.

O livro percorre um largo período cronológico ao longo de seus nove capítulos: passa-se desde a abolição da escravidão no Brasil, em 1888,até meados da década de 1970,quando se dá a instauração definitiva das modernas leis de proteção aos direitos autorais – embora as análises mais consistentes do livro, com fartura de materiais inéditos, estejam concentradas nas quatro primeiras décadas do século XX. Apenas o último capítulo se dedica ao escrutínio da conjuntura musical da década de 1960 em diante, o que, no conjunto da obra, representa mais elemento de verificação das teses defendidas sobre a “época de ouro” do que uma parte autônoma. O acompanhamento da noção de autoria, em termos legais e materiais, e seu correlato simbólico, qual seja, a individuação dos artistas, bem como o desenvolvimento das instituições que lidavam com essas questões e a legislação pertinente serviram como o fio de Ariadne de toda a estruturação do argumento de Hertzman; ele empregou uma embocadura até então menosprezada pelos demais estudiosos no intento de penetrar, de modo inovador, por veredas já caminhadas: “Embora estudiosos de muitas disciplinas venham se fascinando com a construção da autoria, poucos se interessaram pela relação entre propriedade intelectual e constituição nacional pós-colonial – sobretudo nas Américas – ou as histórias imbricadas entre raça, propriedade intelectual e nação” (p. 3)7.Em outras palavras,os marcos legislativos e as instituições que regulamentavam o fazer musical, a distribuição monetária e o papel desempenhado pelo Estado na garantia,manutenção e modernização de todo o engenho assomado no espaço de tempo compreendido pela pesquisa fizeram render uma nova visão sobre processos há muito mal compreendidos, pois faltavam materiais pertinentes ao demais autores,conforme argumentado,a fim de que pudessem chegar a conclusões mais robustas e precisas, que ultrapassassem o acolhimento acrítico dos depoimentos de quem viveu os acontecimentos em tela – referenciais fartamente empregados até então por alguns estudiosos.E é justamente a esta tarefa que Marc Hertzman se propõe:buscar no emaranhado que se formou entre as questões que envolvem raça, propriedade intelectual e nação o sentido da constituição do samba e, em uma via de mão dupla, a partir da problematização que parte da constituição do samba enquanto gênero musical negro, comercial e nacional, enxergar de modo mais exato e minucioso a imbricação de todo o processo cultural,econômico e político que conformou o Brasil.

No primeiro capítulo, Hertzman procura traçar uma espécie de pré-história das formas musicais populares que desaguariam no samba, bem como dos condicionantes sociais que assomavam ao final do século XIX com elas, isto é, os lugares de raça, de autoria e do vínculo possível dessas formas artísticas e seus produtores correspondentes com a ideia de nação em uma sociedade escravocrata. Hertzman, no entanto, passa longe de um denuncismo vazio ou de tomar um parti pris tão comum nos estudos atuais sobre raça e nação. O autor deixa claro desde o início que não guarda o propósito de esposar asserções como as que essencializam o samba como puro produto de uma “resistência negra” em abstrato nem as que retiram a agência dos negros, outorgando aos intelectuais brancos ou ao Estado varguista a proeminência na conformação dos traços das expressões culturais brasileiras. Hertzman tampouco se vincula seja à visão que adula a intermediação efetuada pelos meios de reprodução comercial da música popular,seja à que a rechaça apriori,pois considerada maléfica ou deturpadora de uma imagem “pura” e “autêntica”.Pelo contrário,colocar todas essas cosmovisões nativas abraçadas pela academia em perspectiva, fazê-las confrontarem-se umas com as outras para que, ao fim e ao cabo, venha à tona um panorama mais complexo do que aquele com o qual a literatura específica se habituou: este sim é um dos propósitos centrais de Hertzman, alcançado justamente por meio do que anunciamos como o grande feito de seu trabalho, quer dizer, a confrontação com materiais inéditos, que auxiliam a desvendar mitos até então inquestionáveis e uma visão que não se detém em fronteiras específicas do saber.

Um desses mitos que fundamentaram o memorialismo da música popular brasileira é o do que o autor denomina de “paradigma da punição” (p. 31). A ação supostamente praticada por parte do Estado de maneira sistemática,que penalizava os praticantes do samba com a prisão, de acordo com declarações à imprensa de sambistas que viveram a “época gloriosa dos primórdios”,é posta em suspenso no segundo capítulo. Hertzman, por meio de pioneiro mergulho nos arquivos penais das primeiras décadas do século XX,descobre que jamais houve uma única punição estatal por conta da prática do samba,ao contrário do que é alardeado em quase todos os trabalhos acadêmicos que lidam com a época. Tal relato mais servia como estratégia discursiva – um tanto exagerada para antigos sambistas firmarem-se como mártires de uma época ou para construírem a autenticidade requerida do gênero samba e, de lambujem, de si mesmos, dentro do circuito de valores que aos poucos foi se estabelecendo naquele gênero – do que refletia fielmente os processos históricos, entremeados na realidade de alianças e colaborações entre a polícia, o Departamento de Imprensa e Propaganda de Vargas e os órgãos representativos dos músicos.Isso não quer dizer, por outro lado, que Hertzman pinte um ambiente de igualdade e liberalidade generalizados para a prática musical popular no início do século XX, conforme veremos a seguir.

O olhar atento do historiador,que busca em uma miríade de eventos nem sempre vinculados imediatamente ao fenômeno a ser explicado os desenvolvimentos possíveis dos caminhos da história, evidencia-se no terceiro capítulo, em meio à interpretação de uma ilustração de um jornal da década de 1910 trazida à baila por Hertzman. O desenho tentava retratar uma tragédia: um dos primeiros artistas populares de relativo sucesso à época, um negro de apelido “Moreno”, havia sido supostamente traído por sua esposa,uma branca portuguesa.Ele resolveu matá-la a facadas e, em seguida, se matar. A representação da situação congregava todas as chaves necessárias para o desvendamento da figuração que ascendia na primeira década do século XX, para os temores que suscitava, para as apreensões que fazia refulgir: um novo universo estava se abrindo,com possibilidade de fama e sucesso àqueles que sempre foram apartados da ribalta da vida nacional, embora prenhe de todas as contradições que tão bem expressam a nossa formação. Que se atentasse para o “perigo” de permitir que essas figuras tão fascinantes quanto temerárias, aos olhos dos brancos, prosseguissem por uma via de acesso a patamares que já tinham dono: as mulheres brancas, o dinheiro, a fama. Isso é o que argumentavam os jornalistas que comentaram a mencionada cena de “Moreno”:o negro não tinha estruturas psicológicas nem sociais para angariar sucesso, para se manter na independência econômica, para se casar com uma mulher branca, em suma, para deixar de ser negro naquela sociedade dominada pelos brancos (p. 87). A igualdade democrática, o reino do direito abstrato e universal, a possibilidade de uma vida econômica e socialmente digna em seu próprio país não passavam de quimeras. Afinal, “quem eles pensavam que eram?”. Em contrapartida, alguns conseguiam escalar parcialmente as trilhas abertas pelo desenrolar da individuação artística e pelo novo comércio, por mais que tivessem que forjar por meio de suas mãos,do sangue de “Moreno”,ou de oportunidades ímpares, por um lado, ou apoiados em trajetórias distintas e caminhos compartilhados com os dominantes, por outro.

O que importa até aqui é que não cabem mais,de acordo com a proposta do autor,a aceitação pura e simples de quaisquer generalizações de categorias, como as de “o samba”, “a raça”, “a nação”, “a autoria” ou “o comércio”: há nas entrelinhas dos processos constitutivos de cada um dos fatores assinalados minúcias geralmente ignoradas, tensões e conflitos constitutivos dos próprios conceitos e processos que, se vistos desvinculados dos artífices que lhes deram viço,de seus tempos históricos, das funções que cumpriram e das atuações concretas dos atores que as encarnavam, mais borram a compreensão historiográfica do que a auxiliam em sua missão de reconstituição da figuração em pauta. Assim, Hertzman dá à mostra que existiram projetos autorais, intelectuais mesmo, por trás de cada grupo e personagens distintos que ocupavam posições díspares na sociedade brasileira das primeiras décadas do século XX. Figuras que, ao mesmo tempo que se confrontavam, teciam por vezes alianças e podiam ainda manter certo grau de cumplicidade, de animosidade, de distanciamento ou de proximidade, a depender de coordenadas e de conjunturas específicas.

Uma das mais expressivas comprovações diz respeito ao escrutínio dos que rodeavam a famosa casa de Tia Ciata, figuras centrais que participaram do que se convencionou denominar de “a nossa música” (p. 95): Hertzman demonstra no quarto e no quinto capítulos que jamais eles poderiam ser equiparados sem mediação a outros artistas que não tivessem nem a inserção socioeconômica deles, nem o conhecimento formal de música, nem o trânsito com jornalistas, industriais da arte e figurões da política e da intelectualidade nacional, nem a decorrente capacidade de mediação, seja artística ou intelectual. Igualar um Pixinguinha a um Baiaco ou a um Brancura, ou até mesmo a um Ismael Silva, pelo simples fato de serem negros esconde um abismo muito revelador do próprio modo pelo qual o racismo à brasileira se constituiu: por meio de reentrâncias e sutilezas, ou, mais especificamente, por meio de um engenhoso dégradé. Se é verdade que em determinado momento de suas trajetórias artísticas todos os citados enfrentaram alguma face do racismo, não se pode dizer que tenha sido da mesma maneira: as margens de manobra variavam muito, bem como o grau de sofrimento que os acometia,a depender da posição social que ocupavam. No caso de Pixinguinha e dos seus, tratou-se de notícias jornalísticas denominando-os de “negroides pardavascos”, incapazes de representar o Brasil,ou de pretendentes a um patamar mais elevado, como Catulo da Paixão Cearense, a desatiná-los (p. 113); no caso de Brancura, Baiaco e Ismael, tratou-se de uma vida tortuosa e de pobreza, de marginalidade, eivada de prisões, brigas e outros eventos manifestos de violência. Embora todos eles, de alguma forma, tenham contribuído para a criação e sustentação de símbolos guindados à condição de “nacional”, Hertzman chama a atenção para o fato de que cumpre visualizar com cuidado os modos pelos quais quando e cada um deles pôde – e se pôde – e por meio de quais contextos e estratégias ser alçado e se alçar ao panteão do samba e, por que não e por consequência, ao panteão nacional. A luta que envolveu a imposição de certa visão que concedia às suas criações a imagem de autêntica, única, sofisticada e respeitável toma, assim, lugar de destaque na análise (p. 115).

Transparecem, destarte, por meio de diversos exemplos, elementos intrínsecos à formação da nação, caracterizada sobretudo pelo tipo de estrutura social herdada da escravidão. Pela primeira vez tal situação é sistematicamente levada em consideração em conjunto com os efeitos simbólicos e econômicos que incidiram nas atividades artísticas populares. Hertzman demonstra no capítulo sexto como até mesmo intelectuais e artistas do porte de Villa-Lobos,Mário de Andrade e Luciano Gallet compartilhavam com maior ou menor ênfase de visões de época, segundo as quais se deveriam abrir alas à construção de um desejado Brasil “civilizado” e seu pressuposto, as correntes da modernidade, o que incorria em algum tipo de rebaixamento do que era apreendido como hierarquicamente inferior em uma escala artística de sensibilidade e racionalidade. Nesses casos, iniciavam-se discussões sobre o que podia ser aproveitável ou não para se entabular o concerto da nação,e aquilo que identificassem como “africano” era posto na berlinda.O mesmo se passava entre os intelectuais nativos do samba, como Tio Faustino, Vagalume ou China, irmão de Pixinguinha,que buscavam enfatizar a autenticidade de certa herança da África contra o que viria a ser uma África corrompida (p.156).Nesse cenário, alguns podiam tanto desempenhar o papel de dominantes em meio aos dominados como podiam ser defenestrados e ter as portas fechadas em diversos âmbitos. Em outros momentos, conforme frisado por Hertzman no capítulo sétimo, alguns podiam até mesmo se reportar diretamente ao presidente da República, como ocorreu em 1930 com os mencionados Pixinguinha e Donga, que clamavam a Getúlio Vargas,em meio a uma procissão de músicos,o auxílio do “pai dos pobres” à música nacional (p. 170). Já dentre os diversos artistas negros, sobretudo os semidesconhecidos resgatados pelo autor na intenção de iluminar comparativamente as possíveis trajetórias artísticas e seus liames com suas posições sociais, a situação era distinta: torna-se claro como os empecilhos enfrentados por eles dificultavam não só suas condições simbólicas naquelas instituições como ainda a simples manutenção econômica de suas vidas. A vinculação desses e de vários estorvos com outros fatores, como o de gênero, foi realizada no trabalho também de modo pioneiro.

A ascensão do samba em sua concretude pôde ser vislumbrada por meio de representações monetárias de quanto ganhava um grande artista – um cantor branco como Francisco Alves, por exemplo – em comparação com um compositor negro à margem dos estabelecimentos comerciais da música, como Ismael Silva (p. 129); de outro lado,a partir da constatação de uma tal pista micro,quer dizer, da assimetria econômica existente entre figuras de um mesmo universo, passa-se ao escrutínio do modo pelo qual se organizavam as instituições políticas e culturais, e como os elementos “raça”, “classe” e “gênero” se vinculavam de forma intrínseca ao funcionamento dessas instituições. É o que se vê com nitidez nos capítulos sétimo e oitavo. No caso das que lidavam com a música popular, como a Sociedade Brasileira de Autores (SBAT, fundada em 1917), a primeira que tomou para si a função de arrecadação e distribuição monetária dos proventos das atividades artísticas em geral no Brasil, percebia-se em suas entranhas a reprodução de todas as desigualdades de nossa sociedade em termos econômicos e simbólicos. O mesmo ocorrendo com os produtos de seus cismas ao longo do tempo,casos da União Brasileira dos Compositores (UBC),a Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música (SBACEM) etc., todas as que deram origem ao moderno sistema de arrecadação e distribuição de direitos ainda hoje vigente.Seus dirigentes,em maioria homens brancos vinculados a atividades consideradas “nobres” à época – como o teatro ou a “grande” música, em meados dos anos 1910 e 1920,ou os mais bem-sucedidos em termos econômicos com a ascensão do universo musical popular, a partir dos anos 1930 -, não se fizeram de rogados para eternizar a posição subalterna que os artífices negros, sobretudo os socialmente mais desprivilegiados, ocupavam em meio às estruturas das instituições à primeira vista “universais” que dirigiam, o que sublinha o caráter racial e economicamente assimétrico que perpassou a constituição de todas as nossas instituições democráticas, quando vistas de mais perto.

Emerge, assim, uma verdadeira história “materialista” do samba – e, por que não, do choro -, na melhor acepção do termo: em primeiro lugar, pelo fato de Hertzman lidar com estimativas sistematizadas de vendas de discos, com cifras relativas aos direitos autorais de canções, de lucros de gravadoras e de estações de rádio, de execuções de canções e de várias operações econômicas que dão à mostra a real dimensão das transformações estruturais ocorridas em meio à atividade musical popular. Em segundo lugar, o aspecto eminentemente “materialista” de sua proposta também se revela por conta do método: a visada totalizante, que pressupõe uma aguçada capacidade comparativa entre fatos, personagens e momentos aparentemente despidos de qualquer relação ou pertinência a fim de iluminar, a partir de distintos vieses, uma mesma questão específica. Hertzman arrisca, destarte, uma espécie de história total, onde condicionantes institucionais, geográficos, raciais, econômicos e culturais são movimentados para dar vida à agência dos atores (p. 11). Modificando seu foco a todo instante,passando de uma interpretação de um fato micro a uma correlação estrutural macro,e vice-versa,um verdadeiro mosaico das relações que davam viço àquela figuração nascente vem à tona. Embora a incursão na justificativa teórica de seu trabalho seja deveras enxuta,haja vista Hertzman nomear,e muito de relance,apenas Homi Bhabha, Michel Foucault e Peter Wade como inspiradores da empreitada (p. 10), é notória a contribuição tácita de autores como Norbert Elias, Pierre Bourdieu, Fernand Braudel, E. P. Thompson, Raymond Williams,dentre outros grandes nomes das ciências humanas,em seu modo de reconstituir a urdidura da história em voga. Mas essa explicitação, enfim, é o que menos importa, pois o primordial foi efetuado, quer dizer, o manejo teoricamente orientado do material levantado para além das fronteiras disciplinares artificialmente demarcadas.

Notas

1 Ver, por exemplo, DAVIS, DARIÉN J. White face, black mask: Africaneity and the early social history of popular music in Brazil. East Lansing: Michigan State University Press, 2009; Livinsgton-Isenhour, Tamara E. e Garcia, Thomas G. C. Choro: a social history of a Brazilian popular music. Bloomington: Indiana University Press, 2005; McCann, Bryan. Hello, hello Brazil: popular music in the making of modern Brazil. Durham: Duke University Press,2004;Stroud,Sean.The defence of tradition in Brazilian popular music: politics, culture and creation of Música Popular Brasileira. Aldershot: Ashgate, 2008; Shaw, Lisa. The social history of the Brazilian samba. Aldershot: Ashgate, 1999.

2 Ressalte-se a ausência de obras dedicadas à reflexão sobre música popular nos principais centros brasileiros produtores de conhecimento até meados da década de 1970, que vê, muito timidamente em sua segunda metade, o início de estudos regulares e sistematizados sobre o assunto. Balanços críticos de publicações na área podem ser encontrados em Béhague, Gerard. “Perspectivas atuais na pesquisa musical e estratégias analíticas da Música Popular Brasileira”. Latin American Music Review. Austin: University of Texas Press, v. 27, no 1, 2006; Napolitano, Marcos. “A Música Popular Brasileira (MPB) dos anos 70: resistência política e consumo cultural”. In: IV Congreso de la Rama Latinoamericana del IASPM, 2002, Nicarágua. Atas del IV Congreso de la Rama Latinoamericana del IASPM, 2002, mimeo; Naves, Santuza C. et alli. “Levantamento e comentário crítico de estudos acadêmicos sobre música popular no Brasil”. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais — BIB. São Paulo: ANPOCS, no 51, 2001.

3 Trata-se do prêmio de melhor tese de doutorado da New England Council of Latin American Studies (NECLAS) e de uma menção honrosa do Bryce Wood Book Award pelo livro, comenda concedida anualmente pela Latin American Studies Association ao melhor livro que verse sobre a América Latina.

4 Como, por exemplo, RODRIGUES, Ana Maria. Samba negro, espoliação branca. São Paulo: Hucitec, 1984.

5 Como, por exemplo, FROTA, Wander Nunes. Auxílio luxuoso: samba símbolo nacional, geração Noel Rosa e indústria cultural. São Paulo: Annablume, 2003.

6 Como, por exemplo, WISNIK, José Miguel e SQUEFF, Enio. Música: o nacional e o popular na cultura brasileira. São Paulo:Brasiliense,2a ed.,1983.

7 Tradução livre realizada pelo autor da resenha.

Dmitri Cerboncini – Fernandes– Professor de Sociologia na Universidade Federal de Juiz de Fora.

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Gênero, etnia e movimentos sociais na história da educação – FRANCO (RBHE)

FRANCO, Sebastião Pimentel; SÁ, Nicanor Palhares (Org.). Gênero, etnia e movimentos sociais na história da educação. Vitória: EDUFES, 2011. (Coleção Horizontes da pesquisa em História da Educação no Brasil, 9) Resenha De: FORDE, Gustavo Henrique Araújo. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, v. 13, n. 2 (32), p. 249-255, maio/ago. 2013.

Há parcerias que apresentam resultados bastante profícuos: a Coleção “Horizontes da pesquisa em História da Educação no Brasil” é um deles. Resulta de bem-sucedida parceria entre a Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE) e a Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), em comemoração ao aniversário de dez anos de existência da primeira.

Publicada pela Edufes, a coleção comprova o êxito notável desse projeto editorial, que busca refletir parte das pesquisas realizadas na última década em História da Educação no Brasil, e leva o leitor a percorrer, de maneira ampla e profunda, diferentes temáticas localizadas em espaços-tempos diversos, sob análises a partir de variadas perspectivas teórico-metodológicas. O volume 9 da coleção, organizado pelos pesquisadores Sebastião Pimentel Franco e Nicanor Palhares Sá e intitulado Gênero, etnia e movimentos sociais na história da educação, é o objeto desta resenha.

O primeiro capítulo do livro, “Mulheres preceptoras no Brasil oitocentista: gênero, sistema social e educação feminina”, de autoria de Maria Celi Chaves Vasconcelos, investiga a construção social do gênero feminino a partir da educação doméstica, realizada por mulheres preceptoras no Brasil. A pesquisa analisa o sistema societário vivido pelas mulheres durante a segunda metade dos Oitocentos (1850-1889) e seus papéis sociais como preceptoras, professoras ou mães/mestras dos filhos, em diálogo com o tipo de educação permitida e/ou negada nessa modalidade educativa.

O artigo de Vasconcelos apresenta as diferenciações de gênero na educação e na infância de meninos e meninas do Brasil e identifica o perfil das mulheres preceptoras e as possibilidades que elas viam para a educação formal. As análises revelam que tais mulheres colaboraram para iniciar as primeiras rupturas na ordem estabelecida, no que diz respeito aos limites e às possibilidades femininas de trabalho, sustento e independência no Brasil dos Oitocentos.

O segundo capítulo, “Gênero e partilha desigual: a escolarização de meninas e meninos nas escolas mineiras do século XIX”, de autoria de Diva do Couto Gontijo Muniz, de boa inspiração poética, com epígrafe em que é citado poema de Carlos Drummond de Andrade, nos convida a questionar a lógica da partilha binária do sistema sexo/ gênero. Com esse fio condutor, a autora observa que as salas mistas constituem uma mudança ocorrida apenas no regime republicano do País.

As análises percorrem os conflituosos processos de instruções públicas, problematizando a lógica de partilha binária e desigual de gênero na instrução pública, que separava meninas e meninos com um atendimento escolar diferenciado, em conformidade com as legislações da época, dedicadas à organização e ao funcionamento das escolas mineiras. A autora finaliza o trabalho, concluindo que, mesmo que o percurso escolar dos meninos oferecesse possibilidades para o mundo do trabalho e da política e o percurso das meninas fosse destinado ao mundo do lar e da família, muitas mulheres não se sujeitaram plenamente às imposições educacionais e sociais da época, tendo optado pelo exercício profissional e pela autonomia financeira a partir do ingresso no magistério.

“O sistema coeducativo nas escolas protestantes em São Paulo (séc. XIX/XX)”, de Jane Soares de Almeida, é o terceiro capítulo do livro. Contextualizando os anos iniciais do século XX a partir dos princípios liberais e da educação marcada pelo conservadorismo dos anos pré-republicanos, a autora afirma que, a partir de 1870, escolas protestantes adeptas da coeducação buscavam ampliar a sua atuação no nosso país, pautadas em seus objetivos igualitários e democráticos, tendo como missão não apenas evangelizar, mas, igualmente, educar os indivíduos no âmbito da moral e da ética.

O artigo ressalta que as missionárias protestantes eram ativas defensoras de ensino igual para os sexos, tendo sido, inclusive, adotado o sistema de classes mistas sob o princípio da coeducação, o que favorecia a igualdade de oportunidades educacionais entre meninos e meninas. Todavia, finaliza concluindo que, apesar das classes mistas e da coeducação, meninos e meninas, na vida social, eram educados separadamente, e o lugar das mulheres seria o lar, fossem elas católicas, protestantes ou de qualquer outra orientação religiosa.

Com foco nos estudos de gênero, o quarto capítulo, “A instrução feminina na visão dos presidentes de províncias do Espírito Santo (1845 – 1888)”, de Sebastião Pimentel Franco, investiga a ação do Estado em favor da ampliação da oferta de escolarização para as mulheres no século XIX. A pesquisa estuda os primeiros passos dados na instrução pública do Espírito Santo oitocentista, pautada na garantia e na ampliação da oferta da escolarização primária às mulheres.

O artigo destaca que a ideia da submissão da mulher foi instalada na sociedade brasileira desde o início da colonização. A partir da terceira década do período oitocentista, com o advento da ideia de que a instrução tiraria o País do atraso e da incivilidade, diz o autor, a mudança desse cenário tornou-se favorável, uma vez que, para formar bons homens, era preciso formar boas mães. Na visão dos dirigentes dessa época, as mulheres eram a força motriz que impulsionaria a sociedade, sendo elas as formadoras e as educadoras das gerações futuras. Esse fato fomentou ações dos dirigentes da província do Espírito Santo, no sentido de garantir o acesso das mulheres à instrução e a ampliação do número delas no magistério. Assim, até o final do século XIX, o magistério primário se transformaria numa atividade feminina.

Em “Educação e perspectiva de gênero no novo mercado de trabalho vitoriense”, o quinto capítulo do livro, de autoria de Maria Beatriz Nader, é analisado o processo que favoreceu, em fins do século XX, que as mulheres vitorienses deixassem a vida doméstica em busca do mercado de trabalho. O artigo faz breve abordagem sobre a história da educação feminina na perspectiva dos estudos de gênero e descreve as alterações na formação instrucional e profissional das mulheres, no período pesquisado, com base no novo segmento profissional terciário representado pelas indústrias de base.

A autora destaca que, ao lado da modernização urbana, que trouxe novas oportunidades educacionais e profissionais às mulheres, impulsionando-as a saírem do âmbito doméstico e a lançarem-se no mercado de trabalho, o período de 1990 a 2000 foi marcado por um maior grau de escol