Memórias ancoradas em corpos negros | Maria Antonieta Antonacci

Espetaculo Imalẹ Inu Iyagba mergulha na ancestralidade de um universo experimentado pela artista Foto Thais Andressa G1
Espetáculo “Imalẹ̀ Inú Ìyágbà” mergulha na ancestralidade de um universo experimentado pela artista | Foto: Thais Andressa / G1

Maria Antonieta Antonacci possui graduação em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, além de ser mestra em História Econômica pela Universidade de São Paulo e pósdoutora em Antropologia Social pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), da França. Atualmente é professora associada da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo demonstrando maestria em História da África, Culturas Africanas, Afro-Brasileiras e também em História do Brasil.

É imprescindível citar que em 2003, quando promulgada a Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira nas escolas do Brasil, Antonacci posicionou-se veementemente contra o ensino, no curso de História da PUC-SP, de uma História Africana contada sob a ótica de historiadores europeus. A partir dessa justa militância, a professora intensifica seus estudos acerca da temática supracitada, dando vida a sua obra mais famosa, o livro Memórias Ancoradas em Corpos Negros. Leia Mais

Paulo Freire: uma prática docente a favor da educação crítico-libertadora – SAUL (C)

SAUL, Ana Maria. Paulo Freire: uma prática docente a favor da educação crítico-libertadora. São Paulo: Educ, 2016. Resenha de: DALZOTTO, Mariana Parise Brandalise. Conjectura, Caxias do Sul, v. 22, n. 3, p. 623-626, set/dez, 2017.

Quando pensamos nos autores que estudaram e reinventaram o conceito de educação no Brasil,1 é impossível não lembrar Paulo Freire. Seu pensamento é referência e tema de estudo, independentemente do passar dos anos, pois está fundamentado na prática educativa realizada, principalmente, neste país. De forma concisa, Ana Maria Saul busca tratar da atualidade do pensamento de Paulo Freire ao refletir sobre sua notória presença em pesquisas de pós-graduação e em práticas educativas no Brasil.

Ela também comenta, brevemente, a história do educador, escrevendo a respeito de algumas vivências com o mesmo. Por isso, em alguma medida, é possível observar que parte da biografia da autora se mistura com seus escritos no livro. Leia Mais

Tragtenberg: 10 anos de encantamento – VALVERDE (ES)

VALVERDE, Antonio José Romera (Org.). Tragtenberg: 10 anos de encantamento. São Paulo: Educ; Fapesp, 2011. Resenha de: HELOANI, Roberto. Maurício Tragtenberg: 10 anos de encantamento. Educação & Sociedade, Campinas, v.35 n.126 jan./mar. 2014.

O livro Maurício Tragtenberg: 10 anos de encantamento, organizado por Antonio José Romera Valverde, teve sua origem no evento homônimo que ocorreu na PUC-SP, em novembro de 2008. O acontecimento contou não só com a participação de professores e pesquisadores ligados à academia, como também com a presença de ex-alunos, artistas, sindicalistas, além de representantes dos mais variados setores civis da sociedade. Como se explica tão vasta e diversificada confluência? Será devido à genialidade e vastíssima cultura deste grande intelectual e mestre? A sua capacidade de sintetizar e reinterpretar ideias que vão de Weber a Bakhunin, tangenciando e, às vezes, passando por Marx? Decerto, tal fato é de suma relevância, mas não explica tudo. O carisma, o humanismo e o profundo sentimento de solidariedade e compaixão de Maurício Tragtenberg por certo também foram decisivos.

A riqueza do material, organizado neste livro que tenho a honra de resenhar, está relacionada ao tipo de abordagem crítica que Tragtenberg fazia de temas complexos da política, da economia, do mundo do trabalho, do sindicalismo e da defesa de minorias. A crítica independente e a liberdade de pensamento são marcas características desses escritos, um traço muito raro nos dias de hoje.

Os escritos expressam a capacidade que Maurício – como gostava de ser chamado – tinha de transpor seu conhecimento, de forma inteligível e provocativa, para públicos diferenciados. Se Maurício Tragtenberg debruçava-se sobre complexas e alentadas obras clássicas, muitas delas escritas em idiomas estrangeiros, entre eles o alemão, o inglês, o italiano e o francês, com a mesma dedicação e respeito escrevia para o povo e pelo povo em jornais dirigidos à grande massa de trabalhadores, como o Notícias Populares, no qual escreveu por muitos anos uma coluna intitulada “No Batente”, ou mesmo os artigos enviados a veículos como a Folha de S. Paulo e o Jornal da Tarde, voltados a um público mais intelectualizado. Isso dá uma ideia exata do que estamos querendo dizer.

No entanto, devo destacar aqui que Tragtenberg, com sua grande erudição e o amor aos livros, tinha um profundo respeito à inteligência e à capacidade de crítica dos trabalhadores. Naquele contexto, muitos trabalhadores foram movidos a pensar e a refletir criticamente sobre a exploração do trabalho, a política, a economia e a organização sindical. Ao comunicar-se de forma clara com todos os públicos e ao fazer sua opção pela defesa da causa dos trabalhadores, das minorias e dos desfavorecidos, o professor, sem ser professoral, ia se distanciando da recorrente “pedantocracia universitária” e do “salto alto da vida acadêmica”.

Ao mesmo tempo – como já dissemos – , Maurício Tragtenberg colaborou com o jornal Folha de S. Paulo, direcionado a outro tipo de leitor, fazendo história com artigos em que divertidamente colocava Weber e Maquiavel, redivivos, respondendo às suas perguntas, como repórter, no que concerne à realidade do Brasil.

Também como colaborador do O São Paulo e da Folha de S. Paulo (FSP), este grande mestre soube demonstrar que o compromisso com a ética deve estar acima de interesses pessoais ou de questões raciais. Apesar de ascendência judaica, sempre reconheceu a necessidade da criação de um Estado palestino: “[…] Da mesma maneira que defendemos o direito de Israel subsistir como Estado, defendemos o direito dos palestinos construírem seu Estado […]” (O São Paulo, 19 jul. 1982). Ou ainda: “[…] O fato é que sob o nazismo houve o holocausto judaico, isso não justifica haver holocausto de libaneses, drussos, palestinos. O terrorismo israelita no Líbano, com bombas de bilha, de fragmentação, de fósforo, de nada contribui para manter a tradição humanística judaica” (FSP, 21 set. 1982).

É esta figura humana de importância ímpar o centro de reflexão dessa bela obra. Como menciona Antonio Valverde, o livro compõe-se de quatorze capítulos. Treze de análises de aspectos focais da obra deste sociólogo e um depoimento. Logo de início aparece o capítulo “A obra de Maurício Tragtenberg – in memoriam”, do professor da Universidade Estadual de Maringá, Antonio Ozaí da Silva, que realça o compromisso deste intelectual que tratava de temas históricos sociológicos, políticos e educacionais “sempre com o compromisso militante e uma perspectiva política crítica à sociedade capitalista e às concepções autoritárias sobre o socialismo”. É uma análise da obra de Maurício que nos lembra da forte influência do autor em tantos intelectuais, professores e militantes e deságua na “reafirmação de uma concepção de socialismo libertário”.

Doris Accioly e Silva constitui o capítulo “Polifonia e unidade na obra-trajeto de Maurício Tragtenberg”. Neste instigante texto, a autora propõe uma releitura da obra deste mestre, considerando-se a categoria “afinidades eletivas”. Ademais, nos lembra que “A obra de Maurício Tragtenberg espelha alguns dos traços que Ítalo Calvino (1994) definiu como inerentes aos clássicos: a virtude de ser sempre atual e permeável a novas interpretações, podendo ser localizada na genealogia de outros clássicos […]”, e também dá destaque para a profunda coerência de pensamento e ação desse profícuo escritor.

No capítulo seguinte, José Henrique de Faria, no texto intitulado “Burocracia, poder e ideologia”, nos ensina qual era a tese central do grande mestre no que concerne à Teoria Geral da Administração (TGA): esta é uma ideologia! Isto faz com que esta TGA seja “uma teoria dominante”.

Em seguida, Ana Paula Paes de Paula assina um texto cujo título já diz uma verdade em si: “A magia de Maurício Tragtenberg”. Assim, a autora esclarece ao leitor qual a posição de um dos melhores tradutores de Weber no que concerne à burocracia: é como pensador libertário que Tragtenberg procura analisar Weber: a crítica da burocracia que faz se baseando em Weber está ligada ao projeto emancipatório anarquista no qual aposta. Lembra-nos que, além de ser um árduo defensor da autogestão, na figura das organizações horizontais, também segue a tendência anarquista no que concerne ao desenvolvimento de iniciativas de natureza educacional, discutidas por Proudhon, Robin e Ferrer.

Por sua vez, Lucia Bruno, no texto “O político e o econômico na obra de Maurício Tragtenberg”, demonstra como o referido autor nunca se esqueceu da relação entre a esfera do político e a do econômico. Mais que isso, lembra-nos que a ideia de que são os próprios trabalhadores autonomamente organizados que devem conduzir suas lutas nega a ideia de “vanguarda” sempre combatida por Maurício, que terá a coragem de criticar o bolchevismo, mormente na sua vertente estalinista.

Com sinceridade e honestidade intelectual, Maria Ester de Freitas resgata aspectos da obra e vida de Maurício no capítulo “Tragtenberg e a questão ideológica da Teoria Geral da Administração”. Ela afirma que o seu ex-professor na Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP) era um docente cuidadoso com os estudantes: dava aulas maravilhosas, não faltava, nem atrasava e, não raro, passava do horário ou continuava aula no corredor com seus discípulos. Era um orientador prestimoso, mesmo quando não era o docente-orientador oficial. Contudo desabafa: “Foi um privilégio e uma honra ter vivido uma época em que podíamos conviver com professores desse porte. A mim parece que vivemos uma onda obscurantista na profissão e na academia, senão pela proibição das ideias diferentes, pela própria definição na base de perfis profissionais aventureiros e mercenários, cujo compromisso é tão somente relacionado com a produtividade a qualquer preço”.

Em seguida, Afrânio Mendes Catani dá início ao seu capítulo com o título: “Walter Rathenau analisado por Maurício Tragtenberg”. Conta-nos a sua história como aluno de Tragtenberg e depois como colega na FGV/SP. Ademais, faz considerações interessantes e pouco conhecidas a respeito de um dos mais importantes empresários alemães que, além de ensaísta social, também era importante filósofo, político e economista em sua época (1867-1922). Maurício demonstrava grande interesse por essa figura ambígua e procurava estudá-la em uma pesquisa na FGV/SP. Este é o foco deste capítulo fascinante.

Em “Travessia”, Antonio Jose Romera Valverde defende a tese de que Maurício Tragtenberg “adentrou estruturas diversificadas de pensamentos e de poros da microfísica do poder para construir uma visão política pontual, aprofundada e sobejamente sintética dos conflitos explícitos e latentes do mundo contemporâneo e, particularmente, do Brasil”.

Evaldo Vieira, em seu capítulo, faz o papel de pescador: “pesca” trechos significativos em algumas obras de Maurício Tragtenberg que permitem ao leitor fazer suas próprias reflexões. Assuntos atuais, tais como vestibular, repetência diploma, mercado, educação política, entre outros. Não é sem razão que o seu capítulo assim é denominado: “Maurício Tragtenberg: assim vale a pena”.

Paulo-Edgar Almeida Resende se conduz por belas memórias e por passagens eruditas no capítulo que bem expressa a coragem do protagonista dessa obra: “Maurício Tragtenberg: ousou saber, ousou dizer”. Resende conta, às vezes em detalhes, a convivência com Maurício, na PUC/SP, dez anos depois.

“Maurício Tragtenberg é um parresiasta contemporâneo”. É assim que Edson Passetti refere-se ao mestre. No capítulo intitulado “Um parresiasta no socialismo libertário”, o autor explica que a parrésia, na antiga democracia ateniense, era uma atitude de homens livres diante da verdade dos governantes. Era a marca de homens que expressavam suas ideias com franqueza, sem medo das consequências, mesmo diante de superiores hierárquicos. O parresiasta era incisivo e, portanto, às vezes, incômodo. Qualquer semelhança não é mera coincidência.

O texto “Um convite: pensar é resistir”, assinado por Flávia Schilling e Cintya Ribeiro, nos instiga a pensar: “educar é basicamente introduzir um sujeito numa determinada ordem de discurso?” As autoras problematizam no que concerne à educação, liberdade e formação e, brilhantemente, recorrem a um pensador que nunca foi estranho ao mestre Maurício Tragtenberg: Michel Foucault.

Ainda, Gustavo Gutierrez, em seu texto “Maurício Tragtenberg como um autor complexo”, faz alusão àquilo que considera como categorias eleitas por Tragtenberg como capitais, ou seja, burocracia e controle; público, privado e gestão; e, logicamente, marxismo heterodoxo. Assim Gutierrez faz verdadeira varredura epistêmica de um autor que enxergava no construto “heterodoxo” a opção por uma liberdade crítica.

Fechando esta bela obra, Ediógenes Aragão dos Santos nos brinda com um comovente e vívido depoimento. Esta, agora docente da Unicamp, relata que conheceu Maurício Tragtenberg em 1961, em um ginásio estadual, no qual assistia, como ouvinte, aulas de História. Sua admiração foi crescendo por “um intelectual erudito, libertário, solidário com as lutas dos trabalhadores” e acrescenta que não foi por mero acaso que se tornou, como ele, professora de História, formada pela Universidade de São Paulo (USP) em plena ditadura militar, colando grau sozinha, sem a sua turma.

Depois de resenhar tão importante obra, o que posso dizer?

Só me resta acrescentar que a melhor homenagem que posso prestar ao Maurício Tragtenberg – que conheci no mestrado, na FGV/SP, quando tínhamos saborosas conversas – é divulgar o seu pensamento e honrar o seu lugar. Para mim, ter resenhado um texto tão belo e tão justo, historicamente falando, é motivo de alegria, apreensão e orgulho concomitantemente. Espero poder corresponder – nem que seja um pouco – , em minha carreira acadêmica, à imagem de um mestre que, para mim, foi mais do que isso: tornou-se um verdadeiro pai intelectual.

Digo isso, pois, em 1994, quando essa maravilhosa pessoa aposentou-se da Unicamp e da FGV/SP, eu, mediante concurso público, vim a ocupar a vaga outrora pertencente a este grande intelectual e educador. Não sei se mereço tal honra e se tenho competência para essa “démarche“. Contudo, espero não tê-lo decepcionado muito.

Roberto Heloani – Faculdade de Educação e Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Campinas (SP) – Brasil. Contato com o autor: <[email protected]>

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Os arquitetos da política externa norte-americana | Reginaldo Mattar

Como entender o papel dos EUA no sistema internacional? A política externa do país seria expressão da busca de poder? Em que medida os operadores da política externa determinam a inserção internacional do país? Essas são questões sempre importantes, ainda mais em momentos de alternância na presidência, como no caso de Bush e Obama. Como avaliar e o que esperar da política externa dos EUA? O livro de Reginaldo Nasser aborda essas questões em um momento especialmente relevante: os anos entre a guerra contra a Espanha, em 1898 e o estabelecimento da Liga das Nações, em 1919. Esse é um período riquíssimo da história norte-americana, em que o país desponta como grande potência e passa a participar de forma decisiva dos assuntos relativos à ordem internacional. Muitas das raízes da política externa dos EUA encontram-se nesse intervalo e seu exame demonstra que análises que desprezem ideias e percepções de seus principais atores em troca de modelos teóricos mais abstratos podem ficar seriamente limitadas. Leia Mais

A política à meia luz: ética, retórica e ação no pensamento de Maquiavel – NUNES (RFA)

NUNES, Edison. A política à meia luz: ética, retórica e ação no pensamento de Maquiavel. São Paulo: EDUC, 2008. Resenha de: VALVERDE, Antonio José Romera. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.22, n.30, p.299-302, jan./jun, 2010.

Se, como escreveu Otto Maria Carpeaux, “a bibliografia moderna sobre Maquiavel é imensa; menos em língua portuguesa”, com a publicação de A política à meia luz: ética, retórica e ação no pensamento de Maquiavel, de Edison Nunes, há que se rever a métrica de tal constatação, sobremaneira pela excelência da reflexão expressa acerca da densa obra do Secretário Florentino.

A originalidade é percebida desde a dedicatória, in memoriam, a Lorenzo di Piero de’ Medici, Clemente Settimo, Zanobi Buondelmonti e Cosimo Rucellai – respectivamente, ao príncipe ao qual Maquiavel dedicou Il Principe, ao papa que encomendou as Istorie Fiorentine, e aos amigos do Orti Oricellari, locus dos debates filosóficos políticos, que animaram a escrita dos sumarentos Discorsi sopra la prima Deca di Tito Lívio.

Objeto de tese doutoral, o livro de Nunes é resultante do trabalho árduo de fino pesquisador e de hábil escritor a suplantar conhecidos truísmos acerca da escrita e do estilo linguístico do Cidadão Florentino. O autor exerce o duro ofício de estudar Maquiavel e perspectivá-lo – desde a retórica e a ética até a ação política. O que não é tarefa para neófito, pois implica parcimônia e destreza metodológicas para vencer o ardil da construção maquiaveliana, que se movimenta de forma ora disjuntiva ora dilemática, às margens do contraditório, sob uma forma de raciocínio distinta da lógica estreita das deduções previsíveis, além de acertar contas filosóficas com o passado e a projetar o futuro da ciência política moderna, no movimento de acompanhar a teoria e a prática do dinamismo próprio do objeto de pesquisa: a política num tempo de criação, o tempo instaurador do Renascimento, sob o arco do Humanismo Cívico.

Grande parte da originalidade do livro em pauta reside na explicitação crítica da incorporação da retórica de talhe aristotélico, e pela recomposição da trama e da urdidura da extensa obra maquiaveliana, nos nexos entre retórica e conhecimento. A retórica como eloquência, como queriam os humanistas cívicos florentinos, considerada uma das ideias-força a mobilizar, desde Petrarca, o reconhecimento de que tal instituição era necessária para dar expressão às novas concepções e ações políticas surgidas nas cidades ao norte da Itália, do século XII e seguintes, como registrou Otto de Freising. As cidades redivivas ansiavam por autonomia em relação ao Império e à Igreja, autogoverno, retomada do regime político republicano e liberdade cívica. Porém, se Petrarca, na aurora do Humanismo Cívico Florentino, como querem Hans Baron e Eugenio Garin, principiou por criticar a dureza da retórica de Aristóteles, pois este “falava” mal, o resgate dos antigos romanos pelo “falar” bem, contra a dureza técnica do Estagirita, significou retomar, exemplarmente, Cícero, filósofo e político, e, por conseguinte, o entrelaçar das concepções de vita contemplativa e de vita activa, sob nova conjugação política. E para os humanistas cívicos, a segunda sempre tendeu a ser mais relevante. Nunes destaca a antecedência dessa discussão política, no encontro dos tempos, pelas recorrências constantes a Dante. No mesmo passo em que a política é analisada sob o viés trágico.

Se o sugestivo título da obra alude a um conhecido tango, o ritmo da exposição dos argumentos, à contra luz do que se escreveu criticamente sobre Maquiavel – sem milongas –, nada deixa a desejar. Lançando mão de metáfora orgânica, o autor ilumina o que a primeira parte do título sugere, mesmo não tendo sido escrita para este fim: “A figura resultante é a de uma árvore que, a partir do tronco, desse a ver apenas a um de seus galhos e, deste, um ramo que se desdobra novamente apenas para fazer surgir o único fruto visado; o restante permanece lá, somente que encoberto, como fundo” (NUNES, 2008, p.139) – felicíssima imagem.

Dividido em três capítulos amalgamados entre si, “A política e a condição humana”, “Conhecimento e retórica: os modos da verdade” e “Ação, responsabilidade e ética”, a matizar os meandros sinuosos e caleidoscópicos do pensamento ético político do Florentino. Algumas concepções de tempo, fortuna, os conflitos de humores dos grandes e do povo, as fontes e os modos de conhecimento da política, o lugar da retórica, os fins éticos da ação política, os nexos e os estranhamentos entre lei natural e virtude de talhe civil, a ação política e o espelhamento da responsabilidade, são temas recorrentes analisados ao correr da refinada análise.

O anêmico pensamento político brasileiro – se deveras existe, como inquiriu Raymundo Faoro – aditou muito com a edição deste livro original, esclarecedor sob muitos aspectos e traspassado de erudição. Em especial, o universo acadêmico, quase sempre em compasso de espera dos modismos europeus e norte-americanos. Se os ideólogos da política brasileira do passado, como Tavares Bastos, com pretensões difusas a certa envergadura liberal, não enfrentaram nem assimilaram, no detalhe, o pensamento de Maquiavel, os pesquisadores acadêmicos, durante grande parte do século passado, andaram a reboque de tal pensamento político e só recentemente principiaram por encará-lo por sua altura intelectual e inventividade. Praticamente, só foi possível ler Maquiavel, sem as peias da fortuna crítica, a pendular entre maquiavelismo e antimaquiavelismo, desde o pós-Segunda Guerra Mundial. Não que não fosse possível lê-lo e assimilá-lo, anteriormente. Mas lê-lo pela obra em si, sem apropriações indébitas e incompreensões, fruto de prejulgamentos, é fenômeno acadêmico dos últimos 50 anos. Neste ponto, a obra de Nunes é modelar, sobremaneira pela correta assimilação da tradição crítica e síntese para além dela, a remeter o leitor aos escritos exemplares de Claude Lefort e de Gennaro Sasso. Sem descuidar das assertivas maquiavelianas compostas entre si “con una lunga sperienza delle cose moderne ed una continua lezione delle antiche avendo io con gran diligenzia lungamente excogitate et examinate, et ora in uno piccolo volume ridotte…”, recolhida de Il Principe (“Nicolaus Machiavellus magnifico Laurentio Medici iuniori salutem”. MACHIAVELLI, 1999, p.107-108), e ainda “perché in quello io ho espresso quanto io so e quanto io ho imparato per una lunga pratica e continua lezione, delle cose del mondo” (Nicolló Machiavelli a Zanobi Buondelmonti e Cosimo Rucellai Saluete. MACHIAVELLI, 1994, p.101), dos Discorsi.

À página final de A Política à meia luz, há uma passagem acerca do primeiro epitáfio ensaiado pelos amigos de Maquiavel: “movido pelo amor, sujou muita neve”. Cumpre lembrar o epitáfio da lápide de seu túmulo na Igreja Santa Croce, escrito a pedido da esposa, ao lado de outros homens ilustres de Florença: “Tanto nomini nullum par elogium”.

Referência

MACHIAVELLI, n.Il Principe e altre opere politiche. Milano: Garzanti, 1994.

————-. Opere. Tomo I. A cura de Rinaldo Rinaldi. Torino: UTET, 1999.

Antonio José Romera Valverde – Professor do Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), do Departamento de Fundamentos Sociais e Jurídicos da EAESP-FGV, São Paulo, SP – Brasil. E–mail: [email protected]

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Modos de ver a produção no Brasil | José Ricardo Figueiredo

Modos de ver a produção do Brasil, de José Ricardo Figueiredo, mostra ao longo de suas mais de 600 páginas um panorama abrangente da historiografia feita sobre o país, desde quando América Portuguesa, até a época contemporânea.

Apesar de Figueiredo não atuar na área da História, ou ainda das Ciências Sociais, buscou apresentar a produção historiográfica sobre o país, desde o século XVI até o século XX, indo além da simples consolidação de textos para também compará-los à luz do conceito de modo de produção, ou seja, de que somente através do conhecimento de como uma sociedade organiza a sua produção que se pode estudar sua vida social e política, o que evidência influência claramente marxista do trabalho realizado. Leia Mais

Gênero em debate. Trajetórias e perspectivas na historiografia contemporânea – SAMARA et al (RBH)

SAMARA, Eni de Mesquita; SOHIET, Raquel e MATOS, M. Izilda S. de. Gênero em debate. Trajetórias e perspectivas na historiografia contemporânea. São Paulo, EDUC, 1997. Resenha de: MOREIRA, Maria de Fátima Salum. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.20 n.39, 2000.

Eni de Mesquita Samara, Rachel Sohiet e Maria Izilda S. de Matos são professoras universitárias, vinculadas aos Departamentos de História da USP, PUC-SP e UFF -RJ, respectivamente, cujas trajetórias junto à pesquisa em História têm sido marcadas pela preocupação com as investigações sobre as mulheres e, mais recentemente, também pelos estudos de gênero. Enquanto as análises de Samara e Sohiet denotam as suas preocupações mais marcadamente influenciadas pelos estudos e práticas feministas, Matos tem indicado em seus últimos trabalhos a necessidade de também se valorizar, em enfoques de gênero, as perspectivas de análise relacionadas às experiências vividas pelos homens e a construção das significações sociais relativas ao “ser masculino”. Autoras dos três textos que compõem o livro Gênero em Debate, Sohiet, Samara e Matos apresentam as suas abordagens teóricas particulares e também demarcam os temas e problemáticas aos quais têm dado primazia em seus trabalhos de pesquisadoras.

O que as reúne é o objetivo de discutir os referenciais teóricos de gênero que se fazem presentes na historiografia contemporânea e que têm nas mulheres o seu principal objeto de estudo. Para isto, discutem o contexto nos quais as pesquisas sobre a mulher e sobre gênero surgiram e foram originalmente pensadas, assim como a questão das influências recíprocas entre a produção historiográfica e o movimento feminista. Abordam a crise dos paradigmas e premissas conceituais da ciência moderna, bem como as diversas tendências e correntes teóricas presentes no campo da disciplina histórica contemporânea, situando, a partir daí, os seus pontos de vista quanto aos aspectos teóricos e metodológicos que priorizam na produção historiográfica.

As autoras ressaltam as análises que enfatizam a necessidade de crítica às noções abstratas e universais de homem e de mulher, apontando para a importância em se produzir interpretações que considerem a “diferença dentro da diferença”, isto é, a pluralidadade de masculinos e femininos que se constituem em cada situação histórica particular. Enquanto em seu texto “Outras Histórias: as Mulheres e Estudos dos Gêneros”, Matos ressalta a importância de se entrecruzar elementos como cultura, classe, etnia, geração e ocupação para se acompanhar a diversidade na construção social dos gêneros, em “O Discurso e a Construção da Identidade de Gênero na América Latina”, Mesquita aponta para a necessidade de atenção para as variáveis raça e classe, visando a “realizar estudos comparativos que vão nuançar as diferenças mas, ao mesmo tempo, realçar e permitir o entendimento dos pontos em comum das “identidades femininas”1.

Embora Sohiet, em “Enfoques Feministas e a História: desafios e perspectivas” também indique a crítica historiográfica que opôs as categorias históricas universais às idéias de diferença e de múltiplas identidades para as mulheres, a sua reflexão propõe um debate mais voltado para os pressupostos da história social que têm como eixo a investigação das relações de poder travadas nas lutas do viver cotidiano, com ênfase na análise das práticas e representações que constituem a experiência social e cultural dos sujeitos. Deste modo, a autora destaca a importância do trabalho com a categoria gênero nos estudos referentes aos interesses e jogos de poder relativos às políticas de Estado e demais instituições sociais. Porém, a sua ênfase é para a necessidade de um trabalho voltado para a história do cotidiano e das mulheres, de forma a garantir maior visibilidade aos processos sociais em que estas viveram “papéis informais, situações inéditas e atípicas”. Insistindo, portanto, no estudo das lutas e poderes das mulheres, inscritos em uma “experiência feminina”, a autora apresenta as suas ressalvas a uma historiografia sobre as mulheres que seja construída dentro dos mesmos pressupostos metodológicos e mesmos marcos políticos e cronológicos de uma história escrita pelos setores dominantes e do ponto de vista masculino.

Analisando a produção bibliográfica, principalmente a brasileira e européia ocidental, as discussões de Matos levantam questões em torno dos novos desafios colocados para o trabalho do historiador, a partir da “politização do privado e da privatização do público”, considerando-se a “pluralidade de possíveis vivências e interpretações em relação às diferentes dimensões da experiência social, inclusive, a da trama das relações cotidianas”2. Indica, ainda, para o campo de controvérsias que se encontra aberto e que requer a continuidade dos debates sobre o trabalho com o conceito de gênero em torno de problemas tais como os de “definição, fontes, método e explicação”. A sua crítica, entretanto, ressalta o quanto a produção historiográfica tem privilegiado “o enfoque das experiências femininas em detrimento de seu universo de relações com o mundo masculino”, sendo poucos os estudos que tratam da masculinidade ou da homossexualidade, “deixando de revelar a pluralidade dos masculinos e femininos”3.

Mesquita propõe uma discussão em torno da utilização das categorias gênero e identidade nos estudos sobre as mulheres na América Latina. A sua preocupação é discutir como a historiografia tem abordado a “condição feminina e as relações entre os sexos na América Latina” e para isto apresenta aos seus leitores uma discussão da ampla e variada produção bibliográfica mais recentemente publicada nos Estados Unidos e em vários países da América Latina. Conclui que, “apesar das tradições culturais comuns, é impossível traçar um perfil único para a mulher da América Latina”, sendo que a complexidade da vida destas mulheres deve ser remetida a uma reflexão sobre a diferença “nas práticas cotidianas, no discurso, no processo de socialização e na construção da identidade social de gênero”4. A autora realiza, ainda, uma discussão sobre o significado do “marianismo” e do “machismo” na construção dessas identidades de gênero.

Os textos indicam tanto para os impasses e tensões que permeiam a discussão do conceito de gênero diante da impossibilidade em se trabalhar com categorias definitivas ou precisas no campo da ciência atual, como para a carência de um aprofundamento da discussão teórica e interpretativa que fundamenta estudos sobre gênero, sugerindo a necessidade de adensar a bagagem conceitual e intelectual que envolve tal categoria. Sem dúvida, no campo geral dos estudos históricos, é necessário que se realizem e concretizem trabalhos que permitam avançar para além de meras descrições ou apresentações de determinados temas ou matérias. Ao invés disto, é preciso que se venha a propor novas configurações interpretativas e conceituais, as quais possam servir de suporte e de ferramentas para a descoberta de outras realidades históricas.

Constituindo-se em um importante referencial para a ampliação das reflexões propostas atualmente pelos estudos de gênero, este livro pode corresponder a um duplo interesse do leitor, tanto pela discussão teórica e bibliográfica proposta, como pelo diálogo com autores que são agentes do próprio processo de produção de conhecimento que se propuseram analisar e discutir. Em uma linguagem didática e acessível àqueles que se pretendem iniciar os estudos neste campo historiográfico, e sem incidir na simplicação dos conceitos, tal obra visa a situá-los nos debates teóricos e colocá-los a par da diversificada bibliografia recentemente publicada sobre o assunto.

Notas

1 SAMARA, Eni de Mesquita; SOHIET, Raquel e MATOS M. Izilda S. de. Gênero em DebateTrajetórias e Perspectivas na Historiografia Contemporânea. São Paulo, EDUC, 1997,
pp. 45-46.

2 Idem, p. 105.

3 Idem. p. 106.

4 Idem, p. 13.

Maria de Fátima Salum Moreira – UNESP/Pres. Prudente.

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