Nossa América: A Utopia de um Novo Mundo | Eugênio R. Carvalho

Com o titulo Nossa América: a utopia de um Novo Mundo, o historiador Eugênio Rezende de Carvalho nos apresenta o pensamento de José Martí, grande poeta, escritor de uma obra bastante densa e também revolucionário cubano. Sem dúvidas, uma das figuras substantivas do pensamento americanista do século XIX. Eugênio Carvalho há alguns anos vem trilhando pelos caminhos tortuosos do estudo da História das idéias e do pensamento latino-americano, tendo como foco central de sua atenção a produção intelectual de José Martí. Este livro é sua primeira obra, permitindo identificar um escritor refinado com uma linguagem densa mas sumamente acessível ao público universitário e geral. Trata-se de uma obra síntese em que o autor se propõe a nos apresentar as premissas básicas que estruturaram o pensamento de José Martí sobre o mundo latino-americano; principalmente no que concerne ao seu projeto identitário de construção de uma América que fosse ‘Nossa’. Seu livro merece destaque por introduzir a obra de José Martí no mercado editorial nacional; vindo desta forma, suprir uma carência de estudos desta figura importantíssima do pensamento latino-americano.

Pela leitura da obra, percebe-se que o projeto contido em Nossa América de José Martí é a proposta da construção de uma indentidade continental, expressão de um desejo de integração que se estrutura na convicção de que se possui um destino próprio, diferenciado porém comum. É um desejo que funciona como fator de identificação. É o nome de uma ‘comunidade imaginada’, e imaginada não por irreal e sim por ideológica, por ser sonhada, cobiçada. O discurso americanista de Martí representa uma ação a nível real e simbólico, contribui na produção de uma realidade e é a expressão de um imaginário social, um desejo e uma identidade, um desejo de identidade. E como todo produto social e cultural, o americanismo tem sua história, afinal, as condições de enunciação do discurso, que permitiram tanto sua gestação quanto sua difusão são de suma importância a qualquer estudo histórico. É o chamado contexto, tão caro a nós historiadores, e que nos permite penetrar no diálogo que o escritor estabelece com as demandas de seu tempo, com suas carências que são também as carências de sua sociedade, e, acima de tudo nos possibilita buscar quais são os interlocutores deste autor – qual o debate de idéias que está sendo travado, as visões e projetos que estão em combate. É exatamente por este caminho que nos conduz a leitura do livro de Eugênio Carvalho.

O autor busca e consegue proporcionar uma visão panorâmica do século XIX, século das independências dos países da América Latina, contexto social e político propiciador do surgimento de projetos utópicos.

Afinal, é o momento em que a identidade representa uma preocupação premente para a intelectualidade latinoamericana. Para a elaboração de um projeto é condição imprescindível o diálogo com os antecedentes históricos para se estabelecer a diagnose do período que se vive; uma espécie de inventário para identificar os erros e desvios tendo em vista apontar e legitimar o caminho a seguir para mudar o estado das coisas.

Estas são algumas das questões tratadas no capítulo primeiro de Nossa América. Eugênio Carvalho mostra qual foi o diagnóstico estabelecido por José Martí, e como seu discurso se estrutura no sentido de revelar os perigos que rondavam a América Latina.

José Martí, dono de uma narrativa permeada por um emaranhado abundante e complexo de figuras literárias e metafóricas de riqueza ímpar, faz uso destas últimas para nomear os perigos que assolavam o mundo latinoamericano. A estes ele nomeou de tigres, os de dentro e os de afuera, tigres que deveriam ser o objeto primeiro das preocupações dos homens de nossa América, pois, traiçoeiros, poderiam estar a espreita atrás de qualquer árvore. A segunda categoria de tigres, os de fora, é identificada pelos Estados Unidos (Martí é um dos primeiros a identificar o perigo que representava para a America Latina o espírito imperialista deste país). Já os primeiros, são os tigres internos, os fantasmas pessoais do mundo latinoamericano, ele aponta como sendo o produto da herança colonial, o localismo também chamado de espírito aldeão, a falta de raízes fruto de um sentimento de inferioridade, a importação cega de modelos e formas alienígenas, os falsos eruditos ou letrados artificiais, etc.

Eugênio Carvalho também procura trabalhar o processo da ‘evolução do pensamento’ de José Martí rumo a uma tomada de consciência maior sobre a realidade da América que ele propunha nossa.

Nos apresenta quais foram as experiências significativas para a configuração desta percepção consistente, assim como, exibe as teorias sociais e filosóficas em voga no período. Teorias que se propunham tanto a interpretar quanto a modernizar a América Latina, tirando-a do estado de bárbarie e levando a se constituir como civilização. Estas representavam o outro projeto de identidade com o qual Martí se bateu e debateu por considerá-lo incompatível com a realidade latinoamericana – um programa que era o fruto do desconhecimento dos reais problemas da América Latina.

No capítulo II, sob o título, A proposta, o autor mostra as figuras recorrentes no discurso martiano, a retórica construída para ilustrar a especificidade do mundo latinoamericano, que por sua vez demandava a busca de um caminho próprio e não a cópia de modelos oriundos de outra realidade histórica. A utopia martiana é considerada uma utopia realista por estar ancorada numa realidade concreta, em um profundo conhecimento das limitações e possibilidades efetivas existentes. O autor busca mostrar esta lucidez do pensamento de José Martí, clarea algumas questões que poderiam se apresentar contraditórias no pensamento de Martí, enfatizando assim possuir grande intimidade com seu objeto. Neste capítulo o autor demonstra a preocupação com os conceitos utilizados por Martí, como o de Nossa América, América Latina e modernidade.

Frente a uma realidade confessadamente fragmentada o exercício ordenador de Martí busca defender a América dos tigres tanto internos quanto externos. Defende a idéia da unidade latinoamericana por via de dois níveis interligados. O primeiro seria a necessidade de defesa frente a um inimigo comum, consubstanciado na ameaça de intervenção estrangeira (norteamericana); o outro ponto, foi o que José Martí designou como sendo a unidade de alma e espírito (acreditava que existia um espírito prórpio latinoamericano). Para ele, conseguir a sobrevivência de Nossa América só seria possível se hovesse a unidade destes dois níveis; uma vez que, estes representavam o componente sentimental essencial na consolidação de um projeto de “identidade-nós”. Um projeto que despertasse o sentimento de co-pertencimento numa realidade que se apresentava fragmentária, propugnando um passado e um futuro semelhantes.

Com relação ao conceito de identidade em Marti, este pregava a busca de equilíbrio entre a parte e o todo, entre a especificidade da cultura latinoamericana e sua integração a uma totalidade cultural a nível universal. Não é contra o diálogo com outras culturas (o que ele denomina de enxertos), mas defende a necessidade de preservação das raízes culturais próprias (o tronco). Considerava que o mundo latinoamericano muito teria a dar em contribuição às outras culturas, desde que despertasse do estado de inautenticidade e apatia em que se encontrava.

No capitulo terceiro, Eugênio Carvalho analisa a questão do sujeito que deveria encabeçar o projeto utópico elaborado por Martí, o chamado homem natural. Como nos capítulos anteriores o autor procura mostrar como foi ocorrendo a evolução do pensamento de José Martí até a definição final de homem natural. Para ele, este seria o mestiço, uma espécie de síntese superadora do europeu e do indígena autóctone, síntese esta que posteriormente englobaria os elementos de origem africana.

Todavia, como é apresentado pelo autor, quando Martí fala de mestiçagem, não está se referindo no sentido biológico, uma vez que ele é contra o conceito de raça. Quando ele usa tal conceito, está se referindo a uma comunidade cultural, a mestiçagem seria, portanto, uma mistura de culturas, fruto de um processo contínuo de enxertos e depurações.

Na época estava muito em voga a teoria da eugenia, como representante maior desta no continente temos a figura de Domingos Faustino Sarmiento (1811-1888), este considerava o elemento estrangeiro como sendo a figura responsável pela purificação do sangues do povo latino assim como alavancador da civilização moderna nos trópicos. Martí, ao contrário via com certa cautela esta migração, não que a ele fosse indesejada, mas considerava outro o protagonista da nova América. Para ele, o elemento indígena seria uma figura de suma importância para o futuro do continente, este mesmo elemento que na atualidade estava dormido, mas que uma vez desperto (livre dos vícios da escravidão e servidão) e instruído, assumiria o papel de verdadeiros sujeitos históricos do munto latinoamericano.

Como podemos observar, Eugênio Carvalho nos coloca algumas questões interessantes sobre o fenômeno das identidades. Perguntas bastante pertinentes a quem se aventura no campo da história das idéias e do fenômeno da constituição de identidades. Questiona sobre a produção dos discursos e os envolvidos em tal processo, sobre quem nomeia e quem é nomeado, porque silenciado (sem voz), assim como da autoridade e legitimidade de tal discurso. O realismo utópico de José Martí, baseado em um criterioso diagnóstico e em uma proposta/projeto de igual forma lucido muito tem a contribuir para uma reflexão maior sobre as especificidades/identidades das sociedade latinoamericanas. Martí buscou descobrir o homem latinoamericano a partir de uma visão própria, não com os olhos do outro, não com o pensamento impregnado de teorias (pré-conceitos) alienígenas, fruto de outras realidades sociais e históricas.

Constitui um truísmo o fato de que quando o historiador se volta para o passado esta viagem é levada a termo tendo em vista a busca de respostas às inquietações e carências do presente. Partindo desta premissa, a obra aqui resenhada mostra uma grande relevância por tratar de questões que são bastante caras à atualidade histórica. A identidade é uma questão central das sociedades modernas, a fragmentação do sujeito, o desaparecimento das fronteiras culturais devido aos meios de comunicação de massa, a sociedade de consumo e os avanços imperialistas reclamam uma reflexão maior sobre este fenômeno.

Constitui uma necessidade para que estas possam continuar existindo como unidades autônomas ainda que inter-dependentes.

Como José Martí pregava, “injértese en nuestras repúblicas el mundo; pero el tronco há de ser el de nuestras repúblicas”. Mas para que os enxertos realizem sua função de desenvolver/fortalecer a planta é necessário que se conheça bem o solo que esta habita. E, da mesma forma que é necessário distinguir as características daquela que irá acolher o enxerto também o é para a que será enxertada.

A obra aqui apresentada constitui material rico que muito estimula uma reflexão maior quanto às especificidades do mundo latinoamericano e seus projetos identitários. O diagnóstico feito por José Martí no século XIX pode facilmente ser transposto para o atual momento histórico sem incorrermos em muitos anacronismos. Afinal, os tigres, os de afuera e os de adentro estão nitidamente materializados e seus perigos apresentam-se cada vez mais reais e concretos. Quanto ao entorpecimento do homem latinoamericano, este ainda constitui um dado de nossa dura realidade que reclama por mudanças iminentes.

Márcio Antônio de Santana – Mestrando em História pela Universidade Federal de Goiás. Pesquisador do Centro de Estudos do Caribe no Brasil.


CARVALHO, Eugênio Rezende de. Nossa América: A Utopia de um Novo Mundo. São Paulo: Editora Garibaldi, sd. 106p. Resenha de: SANTANA, Márcio Antônio de. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.2, n.4, jan./jun., 2002. Acessar publicação original. [IF].