LGBTTQI. Histórias, Memórias e Resistências / Revista Transversos / 2018

Ao nos defrontarmos com a imagem da capa desta edição (ELIAS1, Coraticum, 2018), nosso olhar se impacta com um coração que vibra num agenciamento de multiplicação de cores. Tonalidades que se chocam e se interseccionam em suas artérias, oxigenando uma vida não monocromática e sim uma “vida artista” como proposta ético-política (Foucault, 2004), potencializada por uma constituição de si que tem na diversidade sua beleza criadora. É com a força libertadora do Coraticum, da existência como obra de arte, que a 14ª edição da Transversos apresenta seu dossiê LGBTTQI: histórias, memórias e resistências, da linha de pesquisa Vulnerabilidades: pluralidade e cidadania do Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades Sociais (LEDDES / UERJ).

Este dossiê é efeito de encontros e de esforços coletivos de pesquisadorxs que focalizam, estudam e exploram temas, experiências, histórias de vida, memórias, resistências e contracondutas do universo de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transgêneros, Queer e Intersexuais (LGBTTQI).

Diversas correntes teóricas e perspectivas metodológicas, balizas temporais e geográficas e áreas do saber possibilitam debate sobre as diferenças sexuais e as de gênero, interseccionando, muitas vezes, gênero, raça, sexualidade, geração, classe, nacionalidade e estilo corporal, complexificando, assim, históricos programas culturais e matrizes de gênero.

Para além da visibilidade aqui oferecida às pesquisas e às reflexões de uma rede internacional de pesquisadorxs e instituições, sobretudo entre o LabQueer (Laboratório de estudos das relações de gênero, masculinidades e transgêneros, da UFRuralRJ) e o INTIMATE (projeto de pesquisa desenvolvido no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES- UC), o objetivo foi o de ampliar e verticalizar o debate sobre históricas formas de nomear os sujeitos, seus desejos e afetos, de atribuir sentido a si e aos outros, de produzir conhecimento sobre os gêneros e as sexualidades, sobre as diversidades corporais, as agendas teóricas e políticas da construção da subjetividade, os processos e códigos de significação, os esquemas binários de vigilância / controle e a “produção transversal das diferenças” (PRECIADO, 2004, p. 48). Ao mesmo tempo, os artigos oferecem análises sobre os processos por meio dos quais identidades são afirmadas e cristalizadas, realidades são social e culturalmente forjadas, as exclusões, marginalizações e apagamentos são produzidos, bem como destacam as inúmeras contestações das normas cisheterocentradas, as resistências e as fraturas do universal e assimilacionista, muitas vezes conjugado no masculino cisheteronormatizado.

O desafio proposto por Michel Foucault (1984, p. 13), o de tentar saber de que maneira e até onde seria possível pensar diferentemente em vez de legitimar o que já se sabe, foi potencializado por debates que desnaturalizam e fraturam os pertencimentos, identidades, papéis e expressões de gênero, os privilégios de visibilidade e de hierarquias, as estruturas definidoras de opressão, os saberes e discursos que legitimam a(s) sexualidade(s). Ao mesmo tempo, a provocação do filósofo francês foi matizada por conexões políticas e teóricas, como os feminismos, a teoria queer, o movimento transgênero e as diferentes demandas relacionadas à orientação sexual.

A genealogia, como pensada por Foucault e Nietzsche, da teoria queer nos é apresentada por Pablo Pérez Navarro por meio de suas aproximações com as políticas e teorias feministas. No artigo que abre o dossiê, Pérez Navarro problematiza como a proliferação e fragmentação do sujeito do discurso feminista promove um ataque ao sujeito universal do iluminismo ao questionar interna e fronteiriçamente a naturalização a-histórica de categorias como a “diferença sexual”, a unidade do sujeito “mulher”, os gêneros binários e a heterossexualidade. Os feminismos lésbicos, chicanos, latinos, asiáticos e afro-americanos (em suas análises da interseccionalidade das opressões de gênero, raça, classe, etnia) são destacados no artigo como caminhos que potencializaram a teoria queer no final do século XX.

Ana Cristina Santos focaliza a memória coletiva do movimento social LGBTQ em Portugal. A autora analisa as transformações associadas aos campos da lei e da política partidária, o progresso verificado na cobertura noticiosa dada a temas LGBTQ e sugere o conceito de ativismo sincrético, demonstrando o seu potencial analítico no que se reporta a compreender duas décadas de histórias, memórias e resistências do movimento LGBTQ.

Fábio Henrique Lopes traz à cena narrativas autobiográficas e escritas de si de Aloma Divina, travesti que viveu na cidade do Rio de Janeiro ao longo da década de 1960, considerada da “primeira geração”. Sua proposta foi a de identificar e explorar a emergência histórica de novas subjetividades, como a de travesti, marcadas por múltiplos e históricos eixos de diferenciação, como o gênero, a sexualidade, a diversidade corporal e a raça.

A construção de redes de amizade como táticas de (re)existência de pessoas trans na ordem cisgênera e heteronormativa são problematizadas por Rafael França Gonçalves dos Santos e Marcio Nicolau. A partir dos estudos queer, dos feminismos transgênero e negro, Gonçalves e Nicolau destacam como tais redes de afeto foram acionadas por sujeitos trans que partiram de Campos dos Goytacazes / RJ para o sul da Europa para a criação de subjetividades que borram as fronteiras binárias do existir, perturbam o controle biopolítico dos corpos e possibilitam vidas menos “normalizadas” e mais criativamente diversas.

As relações de amizade também se destacam no artigo de Beatrice Gusmano. Através de um olhar sociológico, mostra como pessoas LGB estabelecem relações de amizade e de cuidado, compartilhando o cotidiano. Um dos principais resultados apresentados é como as redes de amizade se tornam um meio não apenas necessário, mas escolhido, para construir relacionamentos íntimos resilientes, sublinhando, dessa maneira, o potencial transformador e subversivo da amizade entre pessoas LGB.

Desnaturalizar os dispositivos de poder que levam à desumanização de pessoas trans e intersexuais é o que Renata Santos Maia propõe em seu artigo Corpos dissidentes: as identidades que “intertransitam” no cinema argentino contemporâneo. Com esse fim, três produções cinematográficas (XXY [2007], El último verano de la Boyita [2009] e Mía [2011]) são as fontes escolhidas para focalizar os dilemas, dores e violências que vidas não binárias carregam em sociedades heterocentradas e masculinistas, com destaque para as latino-americanas, especialmente, a Argentina. Maia destaca como as vidas trans e intersexuais apresentadas nos filmes são atravessadas pelo determinismo dicotômico de ter que escolher um verdadeiro sexo / corpo / gênero / desejo.

Erica de Aquino Paes e Luciane da Costa Moas oferecem importantes chaves para o exame dos conflitos entre a normatividade cisgênera e a atuação transgressora da transgeneridade. A abjeção de pessoas trans produzidas pelas relações de saber-poder do discurso médico e jurídico é problematizada por meio de um estudo de caso: o da jogadora de vôlei Tiffany Abreu, mulher trans cuja atuação profissional é atravessada por tensões e negações em torno do exercício de seus direitos civis. Jogo que se desdobra na luta pela equidade de gênero em um domínio esportivo normatizado pela cis-heteronormatividade.

Ana Lúcia Santos analisa o potencial crítico e transformador de corpos protésicos e intersexo no regime capacitista e cisgénero. A partir do conceito de glitch, do feminismo digital, e das teorias crip e arte do fracasso, Santos apresenta essas vidas transviados e falhadas no desporto como resistências às classificações binárias do existir e como possibilidade de criação de identificações híbridas que transgridem positivamente a normalidade hegemônica.

A construção de certa identidade homossexual produzida pelo jornal Lampião da Esquina, durante os anos 1978-1981, é problematizada no artigo de Natanael de Freitas Silva & Natam Felipe de Assis Rubio. A partir da noção de contra-conduta, Silva e Rubio destacam os jogos de poder em torno dos diferentes significados sobre a homossexualidade presentes na sociedade brasileira de então. Aqui, mais uma vez, as existências silenciadas pela heteronorma ganham destaque nessa reescrita da história que tem nas demandas da atualidade seu ponto de partida.

Na seção de artigos livres, Santiago Arboleda Quiñonez examina a étnico-educação como meio de crítica e de transformação da colonialidade do poder (Quijano, 2002) presente nas sociedades latino-americanas. O ensino das relações étnico-raciais se destaca como forma de desnaturalizar o paradigma monocultural (masculino, branco, cristão, colonizador) e promover ações propositalmente decoloniais por meio do destaque e valorização das culturas, histórias e pensamentos das populações indígenas e afrocolombianas. A étnico-educação como ação decolonial, proposta no artigo de Quiñonez, é mais uma possibilidade de crítica e (re)existência ao “sistema-mundo patriarcal / capitalista / colonial / moderno europeu” (Grosfoguel, 2009) apresentada pela 14ª edição da Transversos

Para concluir, histórias e memórias, instituições, saberes e discursos, micro e macropolíticas, normas sexuais, programas culturais de gênero, autodeterminação e autoexpressão, demandas e direitos, opressões e hierarquias, vetores de normatização, dotações e cristalizações de sentido, possibilidades epistêmicas, intervenções corporais, potencialidades, afetos e encontros, negociações, jogos, subversões, fraturas, desestabilizações e contracondutas compõem o quadro de desafios e de objetivos desse dossiê sobre o colorido, plural e potente universo LGBTTQI, que ousa expandir e intensificar a vida.

Nota

  1. Páginas @raphaelelias @arterio.arteiro

Referências

FOUCAULT, Michel. “A ética do cuidado de si como prática de liberdade.” In: MOTTA, Manoel Barros da (Org.) Ditos e escritos: ética, sexualidade, política. Tradução de Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.

______________. História da Sexualidade 2; o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.

GROSFOGUEL, Ramón. “Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global.” In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENEZES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina, 2009.

PRECIADO, Beatriz. Entrevista com Beatriz Preciado, por Jesús Carrillo. 2004. Disponível em: http: / / www.poiesis.uff.br / PDF / poiesis15 / Poiesis_15_EntrevistaBeatriz.pdf. Acesso em 05 de setembro de 2017.

QUIJANO, Aníbal. “Colonialidade, poder, globalização e democracia.” Novos Rumos, 37, 2002, p. 4-28.

Fábio Henrique Lopes

Marina Vieira de Carvalho

Ana Cristina Santos

Rio de Janeiro, 02 de dezembro de 2018.


LOPES, Fábio Henrique; CARVALHO, Marina Vieira de; SANTOS, Ana Cristina. Revista Transversos, Rio de Janeiro, n.14, set. / dez., 2018. Acessar publicação original [DR]

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