O protagonismo da Mulher Negra na Escrita da História das Áfricas e Améfricas Ladinas / Revista Transversos / 2021

“Nwanyi buaku” (a mulher é riqueza)

A mulher é riqueza, diz o provérbio Igbo. A maior riqueza, pois é a mulher que dá a vida, que planta os alimentos, que nutre a sociedade. A “unidade matricêntrica” é um traço que une todas as sociedades africanas, um legado civilizatório deste continente, concluiu Amadiume ao examinar os papéis sociais desempenhados pelas mulheres Nnobi, subgrupo Igbo. No dia-a-dia das comunidades, são as mulheres que garantem a existência da população e isso é amplamente reconhecido e venerado, como indica o ditado acima.

A grande importância que as mulheres africanas tiveram desde a Antiguidade é alvo de estudos há décadas. Desde a década de 1970, Cheikh Anta Diop apontou evidências de que as sociedades africanas pré-coloniais foram governadas por mulheres, o que ele enxergou ser o traço que unia toda a África Negra. Diop nomeou “matriarcado africano” o modelo caracterizado pela preponderância da agricultura, em que a mulher ocupa o centro enquanto detentora dos segredos da natureza e dos ritos de fertilização da terra. Mas o polímata senegalês chamou atenção que o matriarcado não pode ser entendido como o oposto do patriarcado branco Ocidental, o qual estabelece uma dicotomia entre feminino e masculino, oprimindo as mulheres e todos os valores/comportamentos relacionados ao feminino em benefício de um padrão masculinista-opressor da diversidade da existência, da vida. Não há essa matriz de poder dicotômica no matriarcado africano e sim uma complementariedade cosmogônica entre masculino e feminino, com efeitos diretos nas organizações sócio-hitóricas.

A História da África é repleta de exemplos de mulheres que assumiram a liderança política, militar, espiritual de suas sociedades. São elas as mais aptas a se comunicarem com as forças da natureza, a mandarem as chuvas descerem dos céus, a transmitirem conselhos dos antepassados. A espiritualidade africana, de forma geral, ancora-se em divindades femininas que trazem a fertilidade, a prosperidade, o equilíbrio: Auset, Mut, Maat (em Kemet, Egito Antigo), Oxum (Yorubá), Idemili (Igbo). Estas concepções cosmogônicas dão grande peso ao feminino, diferente das religiões monoteístas que exaltam UM Deus único, pai criador, associado ao masculino.

Assim, nas sociedades africanas pré-coloniais, as mulheres exerciam papéis sociais relevantes, não apenas nas altas esferas do poder político e espiritual, mas também na base, na estrutura de cada família, clã ou linhagem, eram as mulheres as responsáveis por transmitir os valores, as regras morais, princípios estéticos, técnicas de artesanatos como cerâmica, tecelagem, pinturas corporais, tranças etc.

Essa complementariedade entre masculino e feminino possibilitou diferentes atuações, organizações e expressões de poder relacionadas às mulheres. Na verdade, esse conceito de “mulher” enquanto determinismo biológico não pertence às sociedades africanas, como vem argumentando Oyèwùmí. O que quer dizer que a compreensão física do corpo pela modernidade Ocidental, seu dimorfismo sexual e seu padrão cis-heteronormativo, que formam “o que se entende por sexo biológico é socialmente construído” (LUGONES, 2008: 84). Inclusive a “ideologia de gênero” para as sociedades africanas tradicionais é bem mais fluída do que nas concepções ocidentais.

Na sociedade indígena, o princípio do sexo duplo subjacente à organização social foi arbitrado por um sistema flexível de gênero na cultura tradicional. O fato de o sexo biológico nem sempre corresponder ao gênero ideológico significava que as mulheres podiam desempenhar papéis geralmente monopolizados pelos homens ou serem classificados como homens em termos de poder e autoridade sobre os outros. Elas não eram rigidamente masculinizadas ou feminizadas, o colapso das regras de gênero não era estigmatizado. (AMADIUME: 1987, p. 8)

Contudo, séculos de escravidão, colonialismos, imperialismos transformaram os lugares sociais ocupados pelas mulheres africanas e suas descendentes em diáspora. Vamos observar na contemporaneidade: quais espaços e funções as mulheres negras ocupam nas sociedades atuais? Uma breve análise de dados sobre escolaridade, remuneração e violência doméstica, nos indica que, atualmente, as mulheres africanas e afro-diaspóricas estão nas bases das pirâmides sociais. Ou seja, com a imposição da civilização moderna-Ocidental como única possibilidade de organização social legítima, sua matriz de opressão (COLLINS, 2019) colonial, patriarcal, racista e cis-heterosexista, deixaram como legado a interseccionalidade de opressões que posicionou e continua posicionando as mulheres negras na base da subalternidade moderna-colonial.

A imagem da capa traz as mulheres Sam-sam, grupo de mulheres do vilarejo de Kabadio, Casamance, Senegal. Sam-sam reúne mulheres que já perderam pelo menos um filho – por aborto natural, no parto ou por doença- que performam ritos para garantir a fertilidade do grupo, a cura uterina e a cura de forma coletiva; configurando força, vitalidade e capacidade reprodutiva. Ao centro da imagem está Khadi Diabang, liderança que conduzia o banho de ervas Tiossane – que restitui o poder criador dos úteros.[1] Ela fez sua passagem em 2014. Ao lado esquerdo da imagem há uma criança, uma alusão à perda dos filhos. Esta fotografia é de autoria de Daniel Leite, que gentilmente nos cedeu para este dossiê, e integra o projeto humanitário em PermaKabadio. Daniel Leite reverte todos os lucros resultantes da venda de fotografias para a realização de projetos de permacultura no vilarejo, visando gerar renda para a comunidade e evitar a migração dos jovens.[2]

Este dossiê é mais uma contribuição ao movimento de de(s)colonização do saber ao visibilizar e legitimar, academicamente, as mulheres negras na História. Assim, assumimos o compromisso ético-político e acadêmico-científico de transgredir a tradicional monocultura do saber moderno-ocidental (SANTOS, 2002), apresentando diferentes protagonismos de mulheres negras da História da África e da Améfrica Ladina (GONZALEZ, 1988).

Tathiana Cassiano, em História das áfricas e literatura: as mulheres igbos na escrita literária de Flora Nwapa, problematiza os papéis sociais das mulheres Igbo, um dos três grupos mais expressivos numericamente na Nigéria, por meio da escrita literária de Flora Nwapa. Desconhecida no Brasil devido ao epistemicídio cristalizado em nossa produção de conhecimento, Flora Nwapa é reconhecida internacionalmente como uma das pioneiras no reconhecimento literário das mulheres africanas. Neste artigo, Tathiana Cassiano analisa personagens de seu livro: Eufuru, nos apresentando a Nigéria em meados do século XX não pela tradicional escrita da história, mas por outras relações de espaço-tempo-ser provenientes da cosmogonia Igbo, nas quais os colonialismos, as ancestralidades, os laços de linhagem, a educação e as relações sociais são analisados a partir do pensamento pós-colonial e decolonial, com destaque para o protagonismo das mulheres igbos.

A senegalesa Fatim Samb em: A experiência ilusória e a existência difícil das mulheres, analisa o impacto da migração de homens e jovens para as mulheres do Senegal a partir do romance “Celles qui attendent”, de Fatou Diome. A autora utiliza fontes etnográficas, históricas e literárias para tecer reflexões sobre o problema da emigração na África Ocidental, trazendo as vozes das mulheres que sofrem com a angústia de ver seu marido ou filho, ou ambos, não retornarem para casa.

Thuila Ferreira em: Sujeitas da própria história: influência, organização e movimentos de mulheres africanas, analisa a inserção política das mulheres em algumas sociedades africanas subsaarianas entre 1940 e 1990, a partir de fontes produzidas pelas próprias mulheres africanas. Nudez, magia, e rebeliões mostram as formas de agir e resistir encontradas por essas protagonistas, as quais potencializaram verdadeiras transformações em suas sociedades.

Marilda de Santana Silva nos brinda com reflexões e análises acerca da cantora Elisete Cardoso, a qual completaria cem anos em julho de 2020, por meio de cinco de suas canções. A autora do artigo, que também é cantora, apresenta trajetórias de mulheres negras e suas escrevivências (EVARISTO, 2006) por meio da música, possibilitando o reconhecimento e conhecimento profissional, intelectual e artístico dessas mulheres.

Ao apresentar a história da Dr.ª Carolina Maria de Azevedo, Jonê Carla Baião mobiliza histórias familiares como centrais na ressignificação da mulher negra e pobre no Brasil. Sua tia, tia Calu, somente conhecida nos hospitais e universidades, posto ter recebido o título de Doutora Honoras Causis pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, construiu um legado ao afirmar que “Se eles fazem mil, temos que fazer mil e um”. Assim, a autora apresenta densa reflexão acerca da mulher intelectual preta no Brasil.

Solange Pereira Rocha, Valéria Gomes Costa, Joceneide Cunha Santos e Iraneide Soares Silva discutem a trajetória histórica de grandes mulheres do século XIX: Catharina Mina (Maranhão), Thereza de Jesus de Souza (Pernambuco), Luiza (Paraíba) e Rozarida Maria do Sacramento (Bahia) são apresentadas como exemplos de mulheres negras que foram muito bem-sucedidas, ainda que pese o contexto da escravidão. As autoras analisam estas experiências, refletindo sobre suas capacidades de elaborar estratégias de sobrevivência, suas redes de solidariedade horizontais e verticais no período oitocentista.

Em “O farol que ilumina caminhos da Revolução moçambicana”: a imagem de Josina Muthemba Machel como instrumento Político (1975-1986), Júlia Tainá Monticeli Rocha apresenta por meio de diferentes documentos a presença feminina no imaginário popular de Moçambique durante o governo de Samora Moisés Machel, primeiro presidente de Moçambique e dos significativos militantes que aturaram na Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) do período da luta anticolonial. Por meio de uma “política de memória” nos apresenta a presença feminina e de seu posicionamento político.

Ricardo Alexandre da Cruz traz a biografia de Eunice Prudente, a primeira professora da Faculdade de Direito da USP. Essa mulher de origem humilde enfrentou e resistiu a uma série de violências do entrecruzamento de opressões racistas e patriarcais da moderna-colonizada sociedade brasileira, conseguindo alcançar altas posições através de uma série de estratégias, analisadas pelo autor a partir dos conceitos proposto por Pierre Bourdieu.

Isadora Durgante Konzen, Karine de Souza Silva refletem sobre a participação das mulheres sul-africanas na luta contra o apartheid. As autoras apresentam uma análise de gênero das estruturas racistas e discutem o surgimento dos coletivos de mulheres e suas táticas de ativismo no processo de libertação nacional. Apresentam as características do “feminismo maternista” sul-africano e “maternidade combativa” como estratégia de luta.

Miléia Santos Almeida em “Mulheres negras sertanejas e suas relações afetivas sob a pena da lei” analisa processos criminais de defloramento, homicídio e lesões corporais protagonizados por mulheres pretas e pardas em Caetité, região do alto sertão da Bahia, nas primeiras décadas da República para refletir como essas experiências atravessam a existência feminina destoando-se dos padrões das classes dominantes.

Na seção “Experimentações”, Myriam Moise, em: Para uma nova genealogia da negritude, apresenta a participação das mulheres caribenhas na constituição do movimento: Negritude. Várias intelectuais da Martinica produziram escritos significativos, contudo seus nomes permanecem desconhecidos enquanto associamos automaticamente o movimento à Aimé Cessáire e Leopol Senghor. O texto traz o pensamento de Suzanne Roussi-Césaire e Paulette Nardal que refletiram sobre as questões da negritude na perspectiva de gênero, uma grande contribuição para se refletir sobre a invizibilização das mulheres nos diversos fóruns.

Na seção “Notas de Pesquisa” temos o texto Ocupando o terreno: revisitando “além dos significados de miranda: des/silenciando o ‘terreno demoníaco’ da mulher de calibã, Carole Boyce-Davies revisita o posfácio desta obra, publicada pela primeira vez em 1990, cujo texto em questão foi escrito por Sylvia Wynter. O livro figura como a primeira coletânea de textos voltados especificamente à pesquisas sobre escritoras afro-caribenhas. No artigo, a autora analisa o conceito de “terreno demoníaco” (demonic ground) do posfácio de Wynter, entendendo-o como uma ferramenta para pensar a presença/ausência da mulher negra e sua relação com a ontologia e episteme da modernidade-colonial; bem como as possibilidades de reconstrução de si por meio das outras formas de conhecer e ser abertas pelas práxis das mulheres que foram circunscritas no “terreno demoníaco”.

Agradecemos às p rofessoras Raissa Brescia dos Reis (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e Taciana Almeida Garrido de Resende (Instituto Federal de Minas Gerais) pela tradução destes dois últimos textos e professora Vanicléia Silva Santos pela mediação com as autoras, permitindo a melhor democratização do acesso ao pensamento destas duas intelectuais afro-caribenhas que são importantes referências internacionais.

Uma vez no centro deste dossiê esperamos que a mulher negra no mundo, de modo geral, e, particularmente no Brasil, ocupe os lugares ainda negados econômica, social e politicamente. Na relação entre passado e presente podemos perceber a força da mulher negra no desafio cotidiano de sobreviver, viver… Saberes antepassados, ainda presentes, contribuem no processo de laços de solidariedade percebidos em pequenos gestos, nas comunidades, nas favelas, onde elas são a maioria a chefiar famílias.

Sendo riqueza, como afirma o provérbio Igbo que inicia essa apresentação, a mulher negra se ressignificou e se ressignifica na construção de identidades e na manutenção de memórias e histórias. E, nesse processo, contribuiu e contribui na construção de diferentes sociedades, entrelaçando suas ancestralidades africanas, apropriadas e reinventadas nas diásporas do continente americano. Mulheres, mães, filhas, esposas, trabalhadoras suportaram e suportam ainda muitas violências contra seus corpos e subjetividades.

Herdaram ofícios múltiplos, mas não entre os que detêm status social ou econômico. E ainda assim, subverteram a ordem construída e imposta desde o período colonial, no caso brasileiro. Mulheres como Lélia Gonzalez, filha de indígena doméstica e ferroviário negro, se tornou professora e intelectual de referência na luta contra o racismo. Assim como ela, muitas outras mulheres… Refletir a relação entre as antepassadas africanas e afro-brasileiras ou afro-americanas, nos permite conhecer a origem de tal riqueza que compõe as potencialidades sócio-históricas das mulheres negras. Potencialidades de lutas, de re-existências, de movimento, de reinvenção da história das Áfricas e das Améfricas Ladinas!

Notas

1. O banho Tiossane é uma tradição das mulheres Mandinga com poderes de cura para os úteros, restituindo a capacidade reprodutiva feminina.
2. Conheça mais sobre o projeto no Instagram @permakabadio. Para contribuir, visitem a @galeria_danielleite. Todo o valor arrecadado com a venda de fotografias é enviado integralmente ao vilarejo Kabadio, Casamance, Senegal.

Referências

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SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 63, 2002.

Editoras

Profª Drª Marina Vieira de Carvalho: Doutora em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, com período sanduíche em Université Paris VII (Paris- Diderot), fomentado pela CAPES. Possui mestrado em História pelo PPGH / UERJ; Pós-Graduação Lato Sensu em História do Brasil pela UFF; Licenciatura e Bacharelado em História pela UGF. É professora do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Acre (CFCH/UFAC), coordenadora de pesquisa do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (NEABI/UFAC), pesquisadora vinculada ao Laboratório de Estudos das Diferenças Desigualdades Sociais (LEDDES / UERJ) e ao Grupo de Pesquisa Descoloniais Carolina Maria de Jesus. Atualmente desenvolve pesquisas sobre de(s)colonialidades, com destaque para os femininos de(s)coloniais.

Profª Drª Iamara da Silva Viana: Professora do Departamento de Educação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Professora do Departamento de História da PUC-Rio. Doutora em História Política UERJ com estágio na EHESS/Paris (2016); Mestre em História Social UERJ/FFP (2009); Bacharel e Licenciada em História UFRJ (2004). Professora Colaboradora do PPGHC/IH/UFRJ; Coordenadora da Pós em África e Cultura afrodescente PUC-Rio, Pólo Duque de Caxias; Coordenadora do Laboratório de Ensino de História e Patrimônio Cultural (LEEHPAC/PUC-Rio); Pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Reflexão e Memória Afrodescendente (NIREMA/PUC-Rio); Pesquisadora do Laboratório de Estudos de História Atlântica das Sociedades coloniais e pós-coloniais (LEAH/IH/UFRJ). Desenvolve pesquisa sobre Escravidão no Brasil no século XIX e suas conexões Atlânticas, Caribe Francês, Corpos escravizados e pensamento médico, Ensino de História, Cultura Material, Patrimônio Cultural e Relações étnico raciais.


VIANA, Iamara da Silva; BRACKS, Mariana; CARVALHO, Marina Vieira de. O protagonismo da mulher negra na escrita da história das Áfricas e Améfricas Ladinas. Revista Transversos. Rio de Janeiro, n. 21, p. 6-13, abr. 2021. Acessar publicação original [IF]

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O protagonismo das mulheres negras na escrita da história dos brasis / Revista Transversos / 2020

Ao olhar a arte da capa desta edição (MARIELLE CHRIST, Laucas [1], 2020), não pela aceleração da vida moderna, que sacrifica o tempo presente em nome de um futuro unidirecional, e sim por um tempo Sankofa [2] , que traz as histórias de ancestralidades sócio-históricas negadas pela nossa neurose cultural brasileira: o racismo (GONZALEZ, 1984), podemos sentir-pensar sobre a miríade de significados e potências entorno da vida de Marielle Franco, uma grande protagonista da história recente do Brasil. Elementos ocidentais se conectam a afro-diaspóricos, de(s)colonizando as artes plásticas e os significados pré-determinados entorno das representações das mulheres negras na sociedade brasileira. Afinal, ruminar sobre essa imagem é se confrontar com as sensações entorno de uma complexidade heterogênea de identidades políticas, culturais, sociais, econômicas, espirituais, filosóficas, sexuais e de gênero que não se encaixam no nosso capitalismo racista e patriarcal de todos os dias. É com as potências transgressoras e re-existentes de MARIELLE CHRIST que a Revista TransVersos tem o prazer de apresentar sua 20ª edição.

Número cuja chamada recebeu a maior quantidade de artigos da história da revista, o que é mais um dado comprobatório da demanda e relevância social da temática. Fato que, junto às dificuldades e desafios do contexto pandêmico, nos levou a dividi-la em duas edições para manter nosso compromisso ético-político e acadêmico de combate ao epistemicídio, pois só convidamos pareceristas engajades na produção de conhecimento que possa combater o racismo científico. Racismo este praticado, por exemplo, em pareceres às cegas em que especialistas impõem a colonização do saber ao desqualificar teorias e metodologias que não se apresentam como neutras e universais – como as dos pensamentos feministas negros e de(s)coloniais -, justamente, porque essa suposta imparcialidade do fazer científico esconde um lugar de poder que é a imposição homogeneizadora do sujeito homem-branco-ocidental. Exagero? Até hoje para se tornar historiador(a) no Brasil, os cânones vão exigir a leitura da clássica interpretação marxista de um muito importante sujeito homem-branco de escrita moderna-ocidental, Caio Prado Júnior, que nega não só as epistemologias afro-brasileiras, como a própria condição de sujeito humano à população negra. “Definitivamente, Caio Prado Júnior ‘detesta’ nossa gente’ (GONZALEZ, 1984: 235); no entanto, impossibilita que a resposta da intelectual Lélia Gonzalez a tal especialista seja considerada também como um clássico da historiografia ao não incluí-la nas referências canônicas da disciplina.

É por Lélia Gonzalez, é por Marilene Rosa Nogueira da Silva, mulher negra fundadora desta revista, e por inúmeras mulheres negras que sempre protagonizaram e protagonizam outras histórias dos Brasis, silenciadas pela historiografia hegemônica, que a Revista TransVersos apresenta a sua atual edição.

Autodefinções, oralidades, ancestralidades e de(s)colonialidades de corpos e epistêmicas entram para a história da construção da cidade de Florianópolis no artigo de Carol Lima de Carvalho. A autora nos apresenta os desdobramentos do racismo estrutural, tão invisibilizado pela tradicional historiografia brasileira, por meio de uma análise interseccional da vida de mulheres que atuaram na ocupação e construção de espaços culturais negros na cidade. Resistências ao entrecruzamento das opressões de raça, gênero e classe nos são apresentadas por meio das histórias dessas sujeitas protagonistas da história de Florianópolis.

Como seria a história do cotidiano do Rio de Janeiro por meio das narrativas de uma mulher negra líder de comunidade da zona norte da cidade? Esta é a proposta do artigo de Maria Angélica Zubaran e Denise Bock de Andrade, no qual o conceito de escrevivências de Conceição Evaristo se transforma em operador metodológico na (re)construção da história do Morro do Andaraí, por meio das narrativas autobiográficas de Jurema Batista. As autoras nos apresentam alguns dos efeitos das ressignificações de identidades sócio-históricas de “raça” e “gênero” tecidas por mulheres negras desta comunidade em suas buscas por constituições de si positivas, relacionadas diretamente com a luta por conquista de direitos à comunidade.

Cláudia Gomes Cruz, Ana Lúcia da Silva Raia e Mônica Regina Ferreira Lins contribuem para as análises e discussões sobre as escritas de Maria Carolina de Jesus como decoloniais ao romper com a colonização do saber em sua vida e escrita. Por meio das obras: Quarto de Despejo: diário de uma favelada e Casa de Alvenaria: diário de uma ex-favelada, problematizam a intelectualidade de Maria Carolina de Jesus, entrecruzando perspectivas dos feminismos negros e feminismos decoloniais.

Beatriz do Nascimento Preche, em: O imoral escândalo da prostituição de escravas: pensando a prostituição a partir das mulheres negras no Rio de Janeiro (1871), apresenta uma significativa renovação historiográfica sobre o tema ao romper com o tradicional destaque dado a prostituição de europeias no período em destaque. O artigo problematiza a tensão não apenas de gênero, como também de raça que entrecruzam as tecnologias da moderna colonialidade de gênero (LUGONES, 2008). As autoras analisam transformações e continuidades efetivadas pela interferência do público em uma relação até então de domínio privado.

O apagamento de intelectuais negras – epistemicídio- é constante no Brasil, bem perceptível na vida de Virgínia Bicudo, que Rosa Coutinho Schechter e Paulo Eduardo Viana Vidal aqui retiram do silenciamento. Na década de 1950, Virgínia Bicudo, socióloga e psicanalista negra conduziu profundas pesquisas sobre racismo no Brasil, nas quais afirma a cor da pele como obstáculo para a ascensão social, pois apenas a ascensão econômica não era suficiente para demover os preconceitos em relação aos negros. Divergindo assim da “democracia racial”, amplamente aceita pela intelectualidade da época.

Clécia Aquino Queiroz e Vítor Aquino Queiroz apresentam a trajetória de vida de cinco sambadeiras, as quais atuaram para dar continuidade à tradição transmitida por seus antepassados. Os autores mostram como o samba proporciona conexão com ancestralidades africanas, significado, para estas mulheres, como um “lugar de alento, onde as dimensões corporais e espirituais se complementam”, tomado, assim, como elemento vital para os seus enfrentamentos diários. O texto contribuiu para os estudos sobre rito e performance, problematizando o Samba de Roda como potencializador de empoderamentos a estas “donas”, as quais exercem importantes papéis na produção de realidades nas comunidades negras do Recôncavo baiano, com atenção especial ao papel fundamental das mulheres na organização do ritual. Luciana Falcão Lessa discute os efeitos da colonização, da escravidão e do racismo na subjetividade de mulheres negras. A pesquisa multidisciplinar traz os principais conceitos e teorias a respeito dos sentimentos partilhados pelas integrantes da Rede de Mulheres Negras da Bahia, a partir de suas experiências cotidianas, familiares, afetivas e políticas. A autora apresenta os efeitos que a memória da escravidão e o racismo produziram nas experiências subjetivas destas mulheres e busca entender esse processo a fim de discutir se sua reversão é possível, visibilizando estratégias para o enfrentamento do racismo e fortalecimento da identidade e autoestima dessas sujeitas racializadas. O texto valoriza a subjetividade e afetividade, trazendo as experiências vividas e as emoções como objeto de estudo da História, a partir dos principais referenciais teóricos dos feminismos negros e estudos decoloniais.

Lucymara da Silva Carvalho, Maria Aparecida Prazeres Sanches, em diálogo com estudos historiográficos, sociológicos, filosóficos e do pensamento feminista negro, analisam as inquietações, angústias e alegrias sentidas por mulheres negras retintas. A partir dos conceitos de “escrevivências” e “corpo-território”, entendem que a escrita de si para as mulheres negras se constitui como um ato de desobediência e insubordinação, proporcionando um movimento de encontro, reconhecimento e superação. O texto mostra como o entrecruzamento das opressões de gênero e raça impõem limites na vivência afetiva e sexual das mulheres negras e traz o autoamor como uma fonte de cura, bem como analisam a escrita negra e feminina como ferramentas de empoderamento.

Sirlene Ribeiro Alves Correio nos apresenta Cacilda Francioni de Souza, mulher preta que viveu dois tempos: o da escravidão e o do pós-abolição. Por meio de suas reflexões, a autora nos convida a refletir sobre o apagamento sofrido por esta mulher pela historiografia. Sua trajetória inclui ações abolicionistas, produção de livros didáticos, literários e docência, demarcando o lugar de Cacilda como intelectual negra numa sociedade marcada pelo patriarcado racista.

A autora Juçara Mello nos brinda com o protagonismo de mulheres negras no contexto da cultura fabril nos anos 1950-1960, em Santo Aleixo, distrito de Magé, no Rio de Janeiro. Refletindo acerca da invisibilidade legada pela historiografia à mulher negra operária, a autora apresenta olhar peculiar revisitando histórias marcadas pela interseccionalidade. O encontro entre duas mulheres negras – Lúcia de Souza, operária e Ruth Telles, professora – assinala, “a projeção de uma representatividade determinante na construção da identidade étnico racial”.

Roberta Santos Fumero e Veronica Cunha Correio, na sessão: Experimentações, refletem a partir de diferentes intelectuais negras – brasileiras e estrangeiras – a trajetória de mulheres negras moradoras da Baixada Fluminense no Estado do Rio de Janeiro. O modo como essas mulheres, por meio da escrita transformam seus mundos, suas realidades, suas perspectivas concretizaram-se por meio da mobilização política ao criarem um coletivo, o Mulheres do Ler.

Por último, mas não menos relevante, na seção: Artigos livres, Roberto Augusto A. Pereira Correio apresenta a “Companhia Brasiliana e a constituição do Teatro Folclórico no Brasil”, entre os anos de 1949 e 1951. O autor analisa o protagonismo do grupo que atuou entre intelectuais e jornalistas. Como tema central, tais grupos refletiam sobre a identidade nacional brasileira e sua relação dialógica com a chamada cultura negra e popular.

O presente número da Transversos vem, portanto, produzir visibilidade historiográfica as mulheres negras da nossa história, entendidas como sujeitas da transformação social e da produção de realidades e sentidos, capazes de possibilitar à luta contra a opressão e violência vivenciadas há séculos nestes Brasis. Os artigos aqui reunidos não apenas denunciam epistemicídios e silenciamentos operados sobre as práxis das mulheres negras, mas trazem também, em seu conjunto, novas perspectivas teórico-metodológicas, que reconhecem os sentimentos e aflições da(os)s sujeita(o)s histórica(o)s.

As leitoras e leitores encontrarão aqui outras formas de produzir historiografia, de construir ciências humanas, em que as experiências interseccionais (CRENSHAW, 2002) das mulheres negras atravessam e significam as realidades sócio-históricas. As protagonistas negras emocionam e encantam com suas dores e conquistas e, através de suas trajetórias, podemos identificar diversas possibilidades de re-existências ao longo da história deste país. Apresentamo-las em suas potências de ação e transformação, as quais, individual ou coletivamente, carregam a possibilidade de alterar as subalternizações que as tecnologias de poder do patriarcado branco colonial insistem em condicioná-las. Esperançamos que as escritas aqui presentes reguem as sementes plantadas pela agora ancestral Marielle Franco, em seus ensinamentos potencializadores da necessária esperança. Não a que se prende na imobilização da espera e sim como pensada por Paulo Freire (2002), a qual permite compreender a história não como pré-determinada, mas sim como contingencial porque aberta a transformação construída por diferentes sujeita(os). Neste dossiê, destacamos as possibilidades de construção de uma sociedade contrária a colonialidade do capitalismo racista e patriarcal, esperançando o florescer de temporalidades mais justas e humanas para todes.

Notas

  1. Contato: @daniellaucas
  2. “O ideograma Sankofa pertence a um conjunto de símbolos gráficos de origem akan chamado adinkra […] significa ‘voltar e apanhar de novo aquilo que ficou para trás’” (NASCIMENTO, 2008: 31).

Referências

CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171- 188, jan. 2002.

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NASCIMENTO, Elisa Larkin. A matriz africana no mundo. São Paulo: Selo Negro, 2008.

Marina Vieira de Carvalho – Doutora em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, com período sanduíche em Université Paris VII (Paris- Diderot), fomentado pela CAPES. Possui mestrado em História pelo PPGH / UERJ; Pós-Graduação Lato Sensu em História do Brasil pela UFF; Licenciatura e Bacharelado em História pela UGF. É professora do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Acre (CFCH / UFAC), coordenadora de pesquisa do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas (NEABI / UFAC), pesquisadora vinculada ao Laboratório de Estudos das Diferenças Desigualdades Sociais (LEDDES / UERJ) e ao Grupo de Pesquisa Descoloniais Carolina Maria de Jesus. Atualmente desenvolve pesquisas sobre de(s)colonialidades, com destaque para os femininos de(s)coloniais.

Iamara da Silva Viana – Professora do Departamento de História da PUC-Rio. Doutora em História Política UERJ com estágio na EHESS / Paris (2016); Mestre em História Social UERJ / FFP (2009); Bacharel e Licenciada em História UFRJ (2004). Professora Colaboradora do PPGHC / IH / UFRJ; Coordenadora da Pós em África e Cultura afrodescente PUC-Rio, Pólo Duque de Caxias; Coordenadora do Laboratório de Ensino de História e Patrimônio Cultural (LEEHPAC / PUC-Rio); Pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Reflexão e Memória Afrodescendente (NIREMA / PUC-Rio); Pesquisadora do Laboratório de Estudos de História Atlântica das Sociedades coloniais e pós-coloniais (LEAH / IH / UFRJ). Desenvolve pesquisa sobre Escravidão no Brasil no século XIX e suas conexões Atlânticas, Caribe Francês, Corpos escravizados e pensamento médico, Ensino de História, Cultura Material, Patrimônio Cultural e Relações étnico raciais.

Mariana Bracks – Mestre e doutora em história pela USP, com estágio pós-doutoral na UFMG. (Futura) Professora de história da África na Universidade Federal de Sergipe. Autora dos livros Nzinga Mbandi e as guerras de resistência em Angola (Mazza, 2015), Ginga de Angola: memórias e representações da Rainha guerreira na diáspora (Brazil Publishing, 2019) e do livro em quadrinhos Rainha Ginga guerreira de Angola (Ancestre, 2016).


CARVALHO, Marina Vieira de; VIANA, Iamara da Silva; BRACKS, Mariana; MBANDI, Nzinga. Apresentação. Revista Transversos, Rio de Janeiro, n.20, set. / dez., 2020. Acessar publicação original [DR]

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LGBTTQI. Histórias, Memórias e Resistências / Revista Transversos / 2018

Ao nos defrontarmos com a imagem da capa desta edição (ELIAS1, Coraticum, 2018), nosso olhar se impacta com um coração que vibra num agenciamento de multiplicação de cores. Tonalidades que se chocam e se interseccionam em suas artérias, oxigenando uma vida não monocromática e sim uma “vida artista” como proposta ético-política (Foucault, 2004), potencializada por uma constituição de si que tem na diversidade sua beleza criadora. É com a força libertadora do Coraticum, da existência como obra de arte, que a 14ª edição da Transversos apresenta seu dossiê LGBTTQI: histórias, memórias e resistências, da linha de pesquisa Vulnerabilidades: pluralidade e cidadania do Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades Sociais (LEDDES / UERJ).

Este dossiê é efeito de encontros e de esforços coletivos de pesquisadorxs que focalizam, estudam e exploram temas, experiências, histórias de vida, memórias, resistências e contracondutas do universo de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transgêneros, Queer e Intersexuais (LGBTTQI).

Diversas correntes teóricas e perspectivas metodológicas, balizas temporais e geográficas e áreas do saber possibilitam debate sobre as diferenças sexuais e as de gênero, interseccionando, muitas vezes, gênero, raça, sexualidade, geração, classe, nacionalidade e estilo corporal, complexificando, assim, históricos programas culturais e matrizes de gênero.

Para além da visibilidade aqui oferecida às pesquisas e às reflexões de uma rede internacional de pesquisadorxs e instituições, sobretudo entre o LabQueer (Laboratório de estudos das relações de gênero, masculinidades e transgêneros, da UFRuralRJ) e o INTIMATE (projeto de pesquisa desenvolvido no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES- UC), o objetivo foi o de ampliar e verticalizar o debate sobre históricas formas de nomear os sujeitos, seus desejos e afetos, de atribuir sentido a si e aos outros, de produzir conhecimento sobre os gêneros e as sexualidades, sobre as diversidades corporais, as agendas teóricas e políticas da construção da subjetividade, os processos e códigos de significação, os esquemas binários de vigilância / controle e a “produção transversal das diferenças” (PRECIADO, 2004, p. 48). Ao mesmo tempo, os artigos oferecem análises sobre os processos por meio dos quais identidades são afirmadas e cristalizadas, realidades são social e culturalmente forjadas, as exclusões, marginalizações e apagamentos são produzidos, bem como destacam as inúmeras contestações das normas cisheterocentradas, as resistências e as fraturas do universal e assimilacionista, muitas vezes conjugado no masculino cisheteronormatizado.

O desafio proposto por Michel Foucault (1984, p. 13), o de tentar saber de que maneira e até onde seria possível pensar diferentemente em vez de legitimar o que já se sabe, foi potencializado por debates que desnaturalizam e fraturam os pertencimentos, identidades, papéis e expressões de gênero, os privilégios de visibilidade e de hierarquias, as estruturas definidoras de opressão, os saberes e discursos que legitimam a(s) sexualidade(s). Ao mesmo tempo, a provocação do filósofo francês foi matizada por conexões políticas e teóricas, como os feminismos, a teoria queer, o movimento transgênero e as diferentes demandas relacionadas à orientação sexual.

A genealogia, como pensada por Foucault e Nietzsche, da teoria queer nos é apresentada por Pablo Pérez Navarro por meio de suas aproximações com as políticas e teorias feministas. No artigo que abre o dossiê, Pérez Navarro problematiza como a proliferação e fragmentação do sujeito do discurso feminista promove um ataque ao sujeito universal do iluminismo ao questionar interna e fronteiriçamente a naturalização a-histórica de categorias como a “diferença sexual”, a unidade do sujeito “mulher”, os gêneros binários e a heterossexualidade. Os feminismos lésbicos, chicanos, latinos, asiáticos e afro-americanos (em suas análises da interseccionalidade das opressões de gênero, raça, classe, etnia) são destacados no artigo como caminhos que potencializaram a teoria queer no final do século XX.

Ana Cristina Santos focaliza a memória coletiva do movimento social LGBTQ em Portugal. A autora analisa as transformações associadas aos campos da lei e da política partidária, o progresso verificado na cobertura noticiosa dada a temas LGBTQ e sugere o conceito de ativismo sincrético, demonstrando o seu potencial analítico no que se reporta a compreender duas décadas de histórias, memórias e resistências do movimento LGBTQ.

Fábio Henrique Lopes traz à cena narrativas autobiográficas e escritas de si de Aloma Divina, travesti que viveu na cidade do Rio de Janeiro ao longo da década de 1960, considerada da “primeira geração”. Sua proposta foi a de identificar e explorar a emergência histórica de novas subjetividades, como a de travesti, marcadas por múltiplos e históricos eixos de diferenciação, como o gênero, a sexualidade, a diversidade corporal e a raça.

A construção de redes de amizade como táticas de (re)existência de pessoas trans na ordem cisgênera e heteronormativa são problematizadas por Rafael França Gonçalves dos Santos e Marcio Nicolau. A partir dos estudos queer, dos feminismos transgênero e negro, Gonçalves e Nicolau destacam como tais redes de afeto foram acionadas por sujeitos trans que partiram de Campos dos Goytacazes / RJ para o sul da Europa para a criação de subjetividades que borram as fronteiras binárias do existir, perturbam o controle biopolítico dos corpos e possibilitam vidas menos “normalizadas” e mais criativamente diversas.

As relações de amizade também se destacam no artigo de Beatrice Gusmano. Através de um olhar sociológico, mostra como pessoas LGB estabelecem relações de amizade e de cuidado, compartilhando o cotidiano. Um dos principais resultados apresentados é como as redes de amizade se tornam um meio não apenas necessário, mas escolhido, para construir relacionamentos íntimos resilientes, sublinhando, dessa maneira, o potencial transformador e subversivo da amizade entre pessoas LGB.

Desnaturalizar os dispositivos de poder que levam à desumanização de pessoas trans e intersexuais é o que Renata Santos Maia propõe em seu artigo Corpos dissidentes: as identidades que “intertransitam” no cinema argentino contemporâneo. Com esse fim, três produções cinematográficas (XXY [2007], El último verano de la Boyita [2009] e Mía [2011]) são as fontes escolhidas para focalizar os dilemas, dores e violências que vidas não binárias carregam em sociedades heterocentradas e masculinistas, com destaque para as latino-americanas, especialmente, a Argentina. Maia destaca como as vidas trans e intersexuais apresentadas nos filmes são atravessadas pelo determinismo dicotômico de ter que escolher um verdadeiro sexo / corpo / gênero / desejo.

Erica de Aquino Paes e Luciane da Costa Moas oferecem importantes chaves para o exame dos conflitos entre a normatividade cisgênera e a atuação transgressora da transgeneridade. A abjeção de pessoas trans produzidas pelas relações de saber-poder do discurso médico e jurídico é problematizada por meio de um estudo de caso: o da jogadora de vôlei Tiffany Abreu, mulher trans cuja atuação profissional é atravessada por tensões e negações em torno do exercício de seus direitos civis. Jogo que se desdobra na luta pela equidade de gênero em um domínio esportivo normatizado pela cis-heteronormatividade.

Ana Lúcia Santos analisa o potencial crítico e transformador de corpos protésicos e intersexo no regime capacitista e cisgénero. A partir do conceito de glitch, do feminismo digital, e das teorias crip e arte do fracasso, Santos apresenta essas vidas transviados e falhadas no desporto como resistências às classificações binárias do existir e como possibilidade de criação de identificações híbridas que transgridem positivamente a normalidade hegemônica.

A construção de certa identidade homossexual produzida pelo jornal Lampião da Esquina, durante os anos 1978-1981, é problematizada no artigo de Natanael de Freitas Silva & Natam Felipe de Assis Rubio. A partir da noção de contra-conduta, Silva e Rubio destacam os jogos de poder em torno dos diferentes significados sobre a homossexualidade presentes na sociedade brasileira de então. Aqui, mais uma vez, as existências silenciadas pela heteronorma ganham destaque nessa reescrita da história que tem nas demandas da atualidade seu ponto de partida.

Na seção de artigos livres, Santiago Arboleda Quiñonez examina a étnico-educação como meio de crítica e de transformação da colonialidade do poder (Quijano, 2002) presente nas sociedades latino-americanas. O ensino das relações étnico-raciais se destaca como forma de desnaturalizar o paradigma monocultural (masculino, branco, cristão, colonizador) e promover ações propositalmente decoloniais por meio do destaque e valorização das culturas, histórias e pensamentos das populações indígenas e afrocolombianas. A étnico-educação como ação decolonial, proposta no artigo de Quiñonez, é mais uma possibilidade de crítica e (re)existência ao “sistema-mundo patriarcal / capitalista / colonial / moderno europeu” (Grosfoguel, 2009) apresentada pela 14ª edição da Transversos

Para concluir, histórias e memórias, instituições, saberes e discursos, micro e macropolíticas, normas sexuais, programas culturais de gênero, autodeterminação e autoexpressão, demandas e direitos, opressões e hierarquias, vetores de normatização, dotações e cristalizações de sentido, possibilidades epistêmicas, intervenções corporais, potencialidades, afetos e encontros, negociações, jogos, subversões, fraturas, desestabilizações e contracondutas compõem o quadro de desafios e de objetivos desse dossiê sobre o colorido, plural e potente universo LGBTTQI, que ousa expandir e intensificar a vida.

Nota

  1. Páginas @raphaelelias @arterio.arteiro

Referências

FOUCAULT, Michel. “A ética do cuidado de si como prática de liberdade.” In: MOTTA, Manoel Barros da (Org.) Ditos e escritos: ética, sexualidade, política. Tradução de Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.

______________. História da Sexualidade 2; o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.

GROSFOGUEL, Ramón. “Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global.” In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENEZES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina, 2009.

PRECIADO, Beatriz. Entrevista com Beatriz Preciado, por Jesús Carrillo. 2004. Disponível em: http: / / www.poiesis.uff.br / PDF / poiesis15 / Poiesis_15_EntrevistaBeatriz.pdf. Acesso em 05 de setembro de 2017.

QUIJANO, Aníbal. “Colonialidade, poder, globalização e democracia.” Novos Rumos, 37, 2002, p. 4-28.

Fábio Henrique Lopes

Marina Vieira de Carvalho

Ana Cristina Santos

Rio de Janeiro, 02 de dezembro de 2018.


LOPES, Fábio Henrique; CARVALHO, Marina Vieira de; SANTOS, Ana Cristina. Revista Transversos, Rio de Janeiro, n.14, set. / dez., 2018. Acessar publicação original [DR]

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O Corpo na História e a História do Corpo / Revista Transversos / 2015

CORPO ESPARGINDO

Captar a irregular existência que vem à luz no que se faz e diz.

Michel Foucault

A forma vibrante da nomeada maja tosca (Nery, 2013) figura feminina ou afeminada, estirada num canapé amarelo que emerge da sensualidade congelada de outros tempos, modos de ver e de transcrever ilumina as múltiplas representações ou reapresentação, ativa saberes / poderes nesse e desse dossiê. Assim, faz pensar o outro do corpo em suas problematizações como materialidade da natureza sensível, logo vulnerável. Um enigma que cada um enfrenta, constantemente, de maneira subjetiva e histórica. Como objeto de reflexão significa romper o dualismo entre a superioridade das ideias (espírito) contra a inferioridade do corpo (carne). Após a fratura provocada por Nietzsche, Freud, Foucault, Beauvoir e Butler entre outros / as como negar suas potencialidades de transgressão sociopolítica e de construção de subjetividade que transcendem a marca do sexo de modo a revisar a opressão, inclusive a da regulação sexual, questionando as dissonâncias entre identidades de gêneros e práticas sexuais que, como ponto de interlocução, abrem novas possibilidades epistemológicas

O Corpo na História e a História do Corpo foi tema de uma oficina do Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades Sociais (LEDDES) ligado ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). O experimento aconteceu no segundo semestre de 2014 como uma atividade da linha de pesquisa Vulnerabilidades e Controle Social. Pesquisadores / as de diferentes instituições se reuniram para compartilhar seus estudos sobre a emergência de um corpo / discurso que informa e conforma as complexas relações com a sociedade em sua invenção de si. O desafio era desnaturalizar o corpo / objeto para além da disciplina, procurando iluminar a violência dos regimes de verdade e suas obviedades que o aprisiona no biológico.

(…) o que é evidente é violento, mesmo se essa evidência é representada suavemente, liberalmente, democraticamente; o que é paradoxal, o que não cai sob o sentido, é menos violento, mesmo se for imposto arbitrariamente: um tirano que promulgasse leis extravagantes seria, finalmente, menos violento do que uma massa que se contentasse com enunciar o óbvio: o ‘natural’ é, em suma, o último dos ultrajes. (BARTHES, 1975: p. 92).

Está claro que existe uma bios neste corpo transformado em logos, em discursos da natureza e de natureza. O que se pretendeu foi inquirir para além do a priori de uma certa história natural que no século XVIII fundou as pesquisas e / ou debates sobre a existência dos gêneros, estabilidade das espécies, transmissão dos caracteres através das gerações e, que ainda define a sistematização de um certo corpo visível como domínio de saber.

A mutação da oficina ao dossiê e suas sistematizações só se justifica se não o reduzirmos ao procedimento pedagógico de um texto / produto mas, ao contrário, se ficarmos atentos às condições de possibilidades de saberes poderes que em seus discursos científicos ou ficcionais construíram enunciados sobre o corpo subjetivado como pornográfico, erótico, belo, escravizado, generificado, prostituído, violentado, encarcerado, clinicalizado ou matematizado. Como analisa Fábio Henrique Lopes, em Corpos trans! Visibilidade das violências e das mortes, a relação entre violência e transgêneros. Por meio de casos apresentados pela imprensa, o historiador problematiza os mecanismos de regulamentação, controle e naturalização da matriz heterossexual; bem como as diversas modalidades de agressão direcionadas aos “diferentes”: aqueles que desfronteralizam a divisão binária de gênero e sexualidade e que, por isso, são alvo do “ódio heterossexista, cissexista e transfóbico”.

A seguir em Corpos encarcerados em cena, Marilene Rosa Nogueira da Silva experimenta e se experimenta nos possíveis diálogos entre linguagem imagética e linguagem escrita. Estas criam novas identidades: a dos sujeitos dos documentários selecionados, as do Grupo de Informação sobre a prisão (GIP) e a do sujeito sobrevivente do diário / depoimento de um ex-presidiário do Carandiru. Um texto afetado que inquire a naturalização da carceralização e denuncia a banalização da violência e o descaso que a sociedade direciona aos indivíduos excluídos pela inclusão carcerária.

Problematizar a produção de jornais e contos considerados pornográficos no Rio de Janeiro, no momento da chamada Belle Époque é o que propõe Marina Vieira de Carvalho, em A ficcionalização do desejo: a pornografia e o erotismo como objetos de consumo na modernização da cidade do Rio de Janeiro. Com esse fim, traça os diferentes significados que os termos pornografia e erotismo tiveram na modernidade ocidental, para assim compreender o desenvolvimento do mercado editorial de temas lascivos na capital do país. A historiadora analisa os potenciais de transgressão e crítica que a pornografia de então tecia em suas relações com a sociedade carioca.

Antropologia criminal e prostituição: a matematização do corpo segundo Pauline Tarnowsky emerge das inquietações provocadas na sala de aula pelo filme L’Apollonide: Os amores da Casa de Tolerância ( 2011). A Professora Laura Nery e os graduandos José Roberto Silvestre Saiol e Beatriz do Nascimento Prechet discutem a normalização e controle moral na sociedade vitoriana, especificamente, a relação entre antropologia criminal e prostituição no final do século XIX. Em destaque o estudo da médica Pauline Tarnowsky, no Hospital de Kalinkine, em São Petersburgo, (1889) na classificação das prostitutas como degeneradas moral e fisicamente, identificação fundamentada na matematização dos seus corpos.

José Ricardo Ferraz em Ninguém nasce bela, torna-se bela. ‘Miss Brasil’: beleza e gênero (1950 – 1980), elege o concurso da Miss Brasil como possibilidade de análise da constituição do gênero feminino no Brasil, no período de 1950 a 1980 como modelo de beleza e seus efeitos de poder para além do estético. A partir de Beauvoir, com elaborações que transcendem a marca do sexo como por exemplo em Judith Butler, procura destacar o dualismo que matematizava o corpo feminino por meio de um olhar masculino. Logo, tornar-se bela emerge como um dispositivo que (con)formava o comportamento considerado adequado para as mulheres, reforçando os valores da chamada “boa sociedade”.

Maria Elizabeth Ribeiro Carneiro, literalmente, ilumina em Fotografia e história, a existência e o vestígio remanescente: corpos negros de mulheres no ‘teatro de enunciados’ do Brasil oitocentista. São corpos ressignificados como cativos, que podem ser adquiridos, comprados, consumidos, vendidos. Apresenta a ama de leite como corpo / monumento de famílias que desejavam demonstrar sua distinção social, demarcar e, ao mesmo tempo, suavizar, fronteiras hierárquicas entre as “mães pretas” e seus pequenos / grandes senhores brancos. Imagens que não ilustram, mas sim constituem essa realidade social e que, por isso, possibilitam as memórias / dizíveis de como a “sociedade de bem” gostaria de ser lembrada pela posteridade.

Para encerrar Corpos escravizados: que histórias contam?, Iamara da Silva Viana analisa os manuais médicos sobre os corpos dos escravos, com destaque para o médico francês JeanBaptiste Alban Imber que chegou ao Brasil em 1831, momento em que as leis contra o tráfico de escravos estavam em pauta. O discurso médico é pensado como estratégia biopolítica que orienta os senhores na hora de comprar e de preservar a produtividade do escravo como corpo / mercadoria. O estudo propõe investigar os efeitos desta normatividade no debate sobre o fim do tráfico de africanos que eleva o saber médico como um mecanismo de ampliação da vida útil do corpo escravizado.

Esses são apenas alguns fios de uma complexa trama do movimento contínuo da transgressão no sentido de um dos ditos de Foucault (1983) em homenagem a Bataille:

A transgressão é um gesto relativo ao limite; O jogo dos limites e da transgressão parece ser regido por uma obstinação simples: a transgressão transpõe e não cessa de recomeçar a transpor uma linha que, atrás dela, imediatamente, se fecha de novo em um movimento de tênue memória, recuando então novamente para o horizonte do intransponível. Mas esse jogo vai além de colocar em ação tais elementos: ele os situa em uma incerteza, em certezas logo invertidas nas quais o pensamento, rapidamente, se embaraça por querer apreendê-las (…) A transgressão não está, portanto, para o limite como o negro está para o branco, o proibido para o permitido, o exterior para o interior, o excluído para o espaço protegido da morada. Ela está mais ligada a ele por uma relação em espiral que nenhuma simples infração pode extinguir. Talvez alguma coisa como o relâmpago na noite que, desde tempos imemoriais, oferece um ser denso e negro ao que ela nega, o ilumina por dentro e de alto a baixo, deve-lhe entretanto sua viva claridade, sua singularidade dilacerante e ereta, perde-se no espaço que ela assinala com sua soberania e, por fim, se cala, tendo dado um nome ao obscuro. Nada é negativo na transgressão. Ela afirma o ser limitado, afirma o ilimitado no qual ela se lança, abrindo-o pela primeira vez à existência.

Desta feita o Dossiê se inscreve como um vestígio, uma caixa de ferramenta, propondo-se a desnudar o êxtase da naturalização. Enfim, um exercício que objetiva fazer aparecer o corpo como um sujeito histórico, mutável, insistente e visível como um lugar onde habita o poder. Compartilhem da transgressão positivada de pesquisadores / as que ousaram apresentar suas reflexões de forma problemática, sem as certezas e verdades acabadas, ainda em plena dinâmica e provocação como sua maja que se quer tosca.

Marina Vieira de Carvalho

Marilene Rosa Nogueira da Silva

Rio de Janeiro 30 de novembro de 2015


CARVALHO, Marina Vieira de; SILVA, Marilene Rosa Nogueira da. Apresentação. Revista Transversos, Rio de Janeiro, v. 5, n.5, dez., 2015. Acessar publicação original [DR]

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