Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva / Beatriz Sarlo

O passado, ao contrário do sentido mais generalizado ao qual a expressão induz, de modo algum está limitado a fatos que se perderiam prisioneiros de um tempo ido e finito. Isto porque o passado, pelo menos enquanto construção de significado, só existe enquanto tal porque há um presente que lhe serve de lugar de produção e contraste: uma lembrança a qual se recorre, uma comparação entre o que foi e já não é. Passado que, para a crítica literária argentina Beatriz Sarlo, de certa forma continuaria sempre ali, presente e emergente nos momentos em que menos se espera, fugindo muitas vezes ao controle da própria vontade, manifestando-se fora das amarras de uma operação da inteligência, quando “o retorno do passado nem sempre é um momento libertador da lembrança, mas um advento, uma captura do presente” (p.9).

Para além de uma mera categoria relacionada à observação e posicionamento diante da passagem do tempo, Sarlo, no livro Tempo Passado: cultura da memória e guinada subjetiva, problematiza o passado enquanto representação a partir de uma perspectiva que, segundo ela, tem predominado nas últimas décadas: uma espécie de valorização demasiada do testemunho, dos discursos produzidos por sujeitos que teriam vivenciado in loco e diretamente os fatos dos quais se propõem serem divulgadores.

Narração da experiência ligada à materialidade do corpo e da voz, à presença efetiva do sujeito naquele passado por ele recontado. Se por um lado isso nos levaria a afirmar que não existe testemunho sem experiência, por outro também poderíamos pensar que não há experiência sem narração, pois a linguagem realiza a libertação do aspecto mudo da experiência, redimindo-a de seu caráter imediato e do esquecimento ao qual estaria destinada, transformando-a no comunicável – na acepção de uma vivência compartilhada por meio do relato.

A narração inscreve a experiência numa temporalidade que não é a de seu acontecer (ameaçado desde seu próprio começo pela passagem do tempo e pelo irrepetível), mas a de sua lembrança. A narração também funda uma temporalidade, que a cada repetição e a cada variante torna a se atualizar (p.24).

Sarlo argumenta que, ao contrário do que possa parecer, quando nas últimas décadas houve certa impressão de que o “império do passado se enfraquecia diante do instante”, anunciada principalmente pela chamada pós-modernidade, presenciou-se de fato à erupção de inúmeras formas de representar o passado: lembranças, comemorações, lamentos, tentativas de reconstituição. Uma época que viu nascer, ou ao menos disseminar-se, a museificação, a produção intensa de romances e filmes com temáticas históricas, a realização das histórias da vida privada.

O objetivo declarado da autora é discutir as relações entre passado e memória nas últimas décadas, reagindo não aos usos jurídicos e morais do testemunho, mas a seus outros usos públicos. O que propõe é analisar a transformação do testemunho em um ícone da Verdade ou no recurso mais importante para a reconstituição do passado; discute a primeira pessoa como forma privilegiada diante de discursos dos quais ela está ausente ou deslocada. A confiança no imediatismo da voz e do corpo favorece o testemunho. O que proponho é examinar as razões dessa confiança (p.19).

Muito da análise de Sarlo está ligada ao passado recente de seu país. Principalmente ao fato de que, após sete anos de ditadura militar (1976-1983), iniciouse, e ganhou mais força, uma espécie de acerto de contas entre os argentinos – principalmente entre as vítimas diretas das arbitrariedades do regime e seus agentes. O conhecimento dos atentados contra a liberdade e a vida teriam sido possíveis, em grande parte, aos relatos daqueles que sofreram diretamente com tais medidas. A memória teria sido, na Argentina posterior à ditadura militar, mas também em outros países latinoamericanos, uma espécie de dever ao qual não se podia, e não se queria, fugir. O testemunho tornou-se uma das principais estratégias para a condenação do terrorismo de Estado.

Entretanto, argumenta Sarlo, para além de configurar-se na base probatória dos julgamentos e condenações ao terrorismo de Estado na Argentina, o testemunho se transformou num relato de grande força e penetração que não se restringiu ao âmbito do judiciário, mas que se disseminou para outras instâncias da sociedade, operando “cultural e ideologicamente” (p.24).

E esses testemunhos, em virtude das circunstâncias as quais se reportavam, geraram uma espécie de suspensão das desconfianças, sendo raramente submetidos a algum tipo de crítica. Não se desconfiava por uma série de motivos: jurídicos, com a necessidade de servirem de provas, às vezes as únicas, dos crimes cometidos pelo Estado; políticas, como demonstração do que significou a interdição da democracia; e morais, em que se considera o direito das vítimas em se manifestarem e o dever de seus interlocutores em saber o que aconteceu. Em detrimento da análise criteriosa, a tomada dos relatos como signos da verdade, facilitada pelo fato de que aquelas pessoas “estiveram lá”. Como salienta Beatriz Sarlo, o que importava “não era compreender o mundo das vítimas, mas conseguir a condenação dos culpados” (p.67).

Valendo-se muitas vezes da acumulação de detalhes, vivenciados por quem foi testemunha ocular dos fatos, tem-se a produção de um “modo realista-romântico”, quando o sujeito-narrador confere sentidos aos detalhes pelo próprio fato de que os incluiu em seus relatos. Assim procedendo, ele não se sente constrangido a atribuir significados ou explicar ausências, sendo o primado do detalhe “um modo realistaromântico de fortalecimento da credibilidade do narrador e da veracidade de sua narração” (p.51).

A partir da constatação de que o relacionamento que as pessoas mantêm com o passado é muitas vezes conflituoso, a autora pondera que nem sempre se mostra harmoniosa a relação entre história e memória: a primeira nem sempre acredita na segunda, sendo que esta freqüentemente nutre desconfianças em toda reconstituição que não a leve em conta – e mais que isso, que não a coloque em seu centro.

Diferença que de certa forma se desdobra na produção de dois tipos de fazer histórico, duas formas de lidar e produzir significados sobre o passado: uma história acadêmica, produzida segundo os cânones e estratégias de reconhecimento próprios da universidade; e uma qualificada, a partir de seus êxitos comerciais, como sendo “de grande circulação”.

A histórica acadêmica, com suas regras de métodos, que incluem as disputas por poder dentro do espaço institucional, monitora ou pelo menos serve como ponto de observância aos modos de construção de um discurso sobre o passado. Como escreveu Michel de Certeau, seu lugar de fala inclui o objetivo de reconhecimento entre os chamados pares, de legitimação perante um modo de fazer considerado adequado. Sarlo observa que toda esta preocupação não se converte necessariamente na construção de uma escrita histórica que tenha apelo ou que suscite a atenção de um público mais amplo, para além dos ditos circuitos especializados.

Característica que seria mais típica de uma história pensada como sendo de grande circulação, mais atenta não estritamente a demandas de mercado, pois não se trataria somente da produção de um artigo que se sabe de antemão que vai vender bem.

Para além do âmbito mercadológico, haveria a constatação de que este tipo de história mostrar-se-ia mais sensível aos mecanismos pelos quais “o presente torna funcional a investida do passado e considera totalmente legítimo pô-lo em evidência”. Uma história que deve encontrar suas respostas na própria esfera pública atual, atendendo às expectativas e crenças do público, orientando-se por elas. Algo que não a tornaria “pura e simplesmente falsa, mas ligada ao imaginário social contemporâneo, cujas pressões ela recebe e aceita mais como vantagem do que como limite” (p.13).

Mas como essa história, também designada por Sarlo como “de massa”, realizaria aqueles propósitos? Segundo ela, por meio da recorrência a um princípio explicativo que buscaria garantir origem e causalidade, a serem aplicados a quaisquer fragmentos de passado, demonstrando ou não uma pertinência com os mesmos. Haveria assim uma “redução do campo das hipóteses”, que acabaria por sustentar o interesse público e realizar uma “nitidez argumentativa e narrativa”, algo do qual a história acadêmica careceria. Desse modo a história de massas, de acordo com Sarlo, que reflete especialmente sobre a produção argentina sobre os anos da ditadura, não prescinde do relato pelo fato de que este acaba impondo uma “unidade sobre as descontinuidades, oferecendo uma ‘linha do tempo’ consolidada entre seus nós e desenlaces” (p.14).

Os textos não acadêmicos sobre o assunto investiriam sobre o passado de maneira bem menos regulada pelo método do que por necessidades, demandas ou expectativas políticas, intelectuais, morais e afetivas. A autora sustenta que muito do que foi escrito sobre as décadas de 1960 e 1970, não apenas na Argentina como em outros países da América Latina que tiveram experiências de regimes autoritários, principalmente as histórias baseadas em testemunhos, correspondem àquelas características.

E aqui temos o que mais parece incomodar a escritora argentina: o fato de que esses escritos oferecem antes certezas e verdades apresentadas como indiscutíveis, porque baseadas em experiências vividas, do que a possibilidade de hipóteses, de indagações, cuja confirmação ou refutação dependam substancialmente da crítica, algo de que o testemunho parece muitas vezes estar imune.

O que ela propõe é uma espécie de exercício da desconfiança, principalmente em relação à tendência que acredita ser possível “reconstituir a textura da vida e a verdade abrigadas na rememoração da experiência”. Sarlo identifica seu nascedouro com o fim, ou pelo menos o enfraquecimento, das concepções estruturalistas a partir dos anos 70, em que de certa forma houve um ressurgimento do sujeito, não mais limitado por determinismos, seja de que matizes fossem. A partir de então foi imposta o que ela chama de guinada subjetiva, quando, por exemplo, a história oral e o testemunho trouxeram à tona a confiança na primeira pessoa que “narra sua vida (privada, pública, afetiva, política) para conservar a lembrança ou para reparar uma identidade machucada” (p.19). Algo que não se limita ao campo específico da disciplina História.

A dimensão intensamente subjetiva caracteriza o presente. Isso acontece tanto no discurso cinematográfico e plástico como no literário e midiático. Todos os gêneros testemunhais parecem capazes de dar sentido à experiência (p.38).

Para Sarlo, não se trata apenas de uma questão sobre a forma do discurso, mas também das condições de sua produção, das configurações políticas e culturais que lhe conferem fidedignidade. Além disso, ela questiona o fato de que se configuram margens para algumas contradições teóricas, pois, se por um lado há o consenso de que inexiste uma dizibilidade da Verdade, com a reconstituição dos fatos em si, por outro se admite sem maiores discussões que os discursos de experiência têm uma verdade identitária.

Assim, quando ninguém se mostra favorável em defender “a verdade de uma história, todos parecem mais dispostos à crença nas verdades de histórias no plural” (p.40).

Partindo de uma reflexão de Hannah Arendt, a autora critica o fato de que as narrativas baseadas principalmente na memória e nos testemunhos, bem como uma escrita de forte inflexão autobiográfica, estão sempre passíveis de caírem numa armadilha, representada pelo “perigo de uma imaginação que se instale ‘em casa’ com firmeza demais”, sem um necessário distanciamento que proporcione e consolide uma observação mais atenta, acurada e reflexiva.

ao ofício do historiador, acabariam eclipsados por certo dever de memória, muito mais afeito a uma relação sentimental e moral com o passado. Sua inquietação, quando observa aquilo que se tem escrito e publicizado sobre a ditadura na Argentina, é que sobressaem posicionamentos muito mais “de deferência, de respeito congelado” frente alguns episódios, principalmente referentes aos sofrimentos das vítimas, em detrimento da compreensão e de um debate mais criterioso, em que não sejam privilegiadas determinadas vozes como fontes indiscutíveis – que trazem muito mais as certezas que todos esperam ouvir do que ensejam novas indagações. Para ela, na memória estaria muito mais fragilizada a “possibilidade de discussão e de confrontação crítica, traços que definiriam a tendência a impor uma visão do passado” (p.43).

O testemunho seria mais suscetível ainda a outro perigo: o anacronismo. Sarlo ilustra essa constatação com um exemplo claro. Ela recorda que nas décadas de 1960 e 1970 não havia nos movimentos revolucionários argentinos a idéia de direitos humanos, não sendo possível projetá-la incólume para o passado, ainda que tal observação provavelmente seja dificultada pelos valores e idealizações produzidas no presente – risco maior, seguindo sua linha de raciocínio, assumido pelo privilégio dado ao relato, que ressoa ainda que involuntariamente idéias de épocas distintas, apresentadas como típicas de um período específico.

Desse modo, ainda que se considere, como no caso específico das vítimas da ditadura argentina, a necessidade (pessoal, social, política e jurídica) dos testemunhos, essa “legitimidade moral e psicológica não é suficiente para fundamentar uma legitimidade intelectual igualmente indiscutível” (p.42).

Tempo Passado é escrito com erudição e nenhum pedantismo, muito pelo contrário. Com o que eu chamaria de “elegância objetiva”, traz idéias claras, bem articuladas e expostas em argumentos desenvolvidos com fluidez. Destaca-se pela proposta de elucidar, num contexto específico – mas sempre com um olhar abrangente – a construção de demandas por explicações históricas, por inteligibilidades e interpretações dos acontecimentos; os usos que podem ser feitos, do conhecimento histórico de modo geral e da memória em particular; as disputas pela versão “correta” dos fatos e como as noções de verdade em história devem sempre ser redimensionadas a partir dos artífices desta produção.

Não é um debate propriamente inovador. Mas ora, não é imprescindível que o seja. Nem sempre a maior relevância está na busca incessante por aquilo que nunca foi dito – e sim no debate contínuo sobre pontos que não devem ser esquecidos ou negligenciados por já parecer consenso. Neste caso, reitera-se o sempre oportuno cuidado em perceber e pôr em discussão a maleabilidade dos usos do conhecimento histórico.

Fabio Henrique Gonçalves –Mestrando em História Social pela Universidade de Brasília (UnB). Bolsista da Fundação de Amparo a Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (FAPEMA).


SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Tradução Rosa Freire d’Aguiar. – São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007. Resenha de: GONÇALVES, Fabio Henrique. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.14, p.212-219, jan./jun., 2009. Acessar publicação original. [IF].