Senhores do orvalho | Jacques Roumain

A obra “Senhores do Orvalho” foi publicada pela primeira vez em 1944, com o título original de “Gouverneurs de la Rosée”. Esse romance é considerado a obra de maior importância do escritor haitiano Jacques Roumain e um símbolo do movimento literário indigenista haitiano. Roumain nasceu em Porto Príncipe, capital haitiana, no ano de 1907 e é descendente da elite mulata do Haiti que concentrou poderes políticos e econômicos após a guerra que derrubou o rei Chistophe em 1820, substituindo os espaços ocupados pelos negros após a Revolução de 1804. Em consequência disso, o autor usufruiu de boas condições de estudos, que realizou quase que exclusivamente em países da Europa.

Roumain foi um importante personagem na militância política e na intelectualidade haitiana. Foi um grande personagem da resistência contra a ocupação e o controle estadunidense no país, entre 1915 e 1934. No mesmo ano do fim da ocupação, ele fundou o partido comunista haitiano, uma das primeiras organizações políticas deste viés no país. No âmbito intelectual, Roumain é reconhecido por participar de grupos literários como o indigenismo, que objetivava, através de sua literatura, libertar o país das estruturas que o tornavam politicamente frágil e criar uma visão favorável sobre o Haiti, rompendo com as escritas literárias realizadas pelos colonizadores ou controladas por seus paradigmas culturais e de visão de mundo. Por fim, o escritor também atuou em estudos na área da Etnologia, com objetivos de compreender melhor a situação da população negra e de seu país. Leia Mais

El Negocio del Terrorismo de Estado: los cómplices económicos de la dictadura uruguay | Juan Pablo Bohoslavsky

A temática da atuação dos empresários nas ditaduras latino-americanas tem avançado na historiografia nos últimos anos e consta em ações judiciais que tramitam em diferentes países do continente. A obra “El negocio del terrorismo de Estado: los cómplices económicos de la dictadura”, organizada por Juan Pablo Bohoslavsky, se soma a estudos publicados recentemente e que avançam no conhecimento sobre a questão, dando subsídios para processos de reparação. Bohoslavsky é autor de vasta obra acerca da cumplicidade empresarial nas ditaduras do Cone Sul e o livro faz parte de um esforço internacional com sucessivas publicações de corte nacional. O trabalho primordial foi sobre a Argentina (2013), onde a questão parece mais avançada, tanto em termos de pesquisa como nos tribunais. Foi lançado no ano seguinte um dossiê na revista de Anistia, no Brasil, tratando da questão neste país (Bohoslavsky; Torelly, 2014) e, depois do livro sobre o Uruguai, foi publicada em 2019 uma obra congênere sobre esse processo no Chile (SMART; BOHOSLAVSKY; FERNÁNDEZ, 2019).

No Brasil a temática já foi trabalhada por diversos autores. Além do estudo pioneiro de Dreifuss (1981), há significativa produção acadêmica dedicada ao tema. Em 2020 foi lançada coletânea reunindo vários estudos recentes sobre a atuação do empresariado na ditadura brasileira. Essa obra traz uma perspectiva distinta de Bohoslavsky, não tratando a questão na forma de uma cumplicidade, o que sugere uma relação de exterioridade na relação entre empresários e regime ditatorial. Os autores assumem uma orientação que aponta para uma inserção e participação direta dos empresários no pacto político durante o regime de exceção, a partir de uma concepção gramsciana do Estado (CAMPOS; BRANDÃO; LEMOS, 2020). Leia Mais

Como será o passado? História, historiadores e Comissão Nacional da Verdade / Caroline S. Bauer

Uma linha do tempo em sentido crescente percorre a quarta capa em direção à capa, com início no ano do golpe, 1964, e fim no ano da publicação, 2017. Acima, a questão: Como será o passado? A pergunta incomoda pelo óbvio: como empregar um verbo no futuro para refletir sobre o que já foi? Interessa à autora, Caroline Silveira Bauer, investigar como um órgão de Estado, no caso a Comissão Nacional da Verdade (CNV), lançou uma narrativa capaz (ou não) de pacificar interpretações a respeito do complexo passado da ditadura, alvo de concepções opostas. Trata-se de um passado vivido, mas também relatado – o que, no futuro, entender-se-á sobre este passado? É dessa maneira que o debate proposto pela professora de História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) chega a um considerável número de acadêmicos dedicados a estudar o momento pós-ditadura no Brasil. A publicação é fruto do projeto “Um estudo sobre os usos políticos do passado através dos debates em torno da Comissão Nacional da Verdade (Brasil 2008-2014)”, que esteve em atividade entre 2014 – ano da publicação do relatório da CNV – e 2017.

A obra localiza-se em um contexto de notório interesse da academia sobre a recente experiência brasileira de uma comissão da verdade e, assim como em outras obras, questiona as potencialidades e os limites desse recurso como política de Estado que visava a superação de um passado de exceção. Trata-se, nesse caso, de uma incursão profunda nas teorias que se dedicam a pensar o lugar da memória, da verdade e da narrativa em relação a eventos traumáticos, ao mesmo tempo em que localiza o caso brasileiro – suas disputas, imprecisões e críticas à CNV – em diálogo com a literatura nacional e estrangeira. Acima de tudo, o livro é um olhar a partir da historiografia, que mira para uma narrativa que mobiliza temporalidades e noções de história, mesmo sem se inscrever no campo da disciplina em questão. Desde essa perspepctiva, Bauer oferece uma análise sobre a CNV, que demonstra como o órgão se comprometeu a alicerçar em solo movediço, uma interpretação de caráter incontestável sobre o passado. Movediço, pois despreza a possibilidade de reinterpretação de fenômenos históricos, compreendendo tempo como categoria fixa (o que passou, passou e há uma verdade sobre o que ocorreu, da mesma maneira como o futuro parece ser controlável – nele seria possível imprimir uma narrativa socialmente aceita, pacificada, sobre o passado). No decorrer da obra, a autora adiciona elementos que complexificam as posições aparentemente ingênuas da Comissão em relação à maneira como percebe a história: volta-se às disputas de projetos, ao negacionismo, à continuidade do Estado violento e à múltipla dimensão temporal de um passado que não se sabe se passou e como se inscreverá no futuro.

Para defesa dessa tese, o livro divide-se em uma introdução e três capítulos e se inicia com a discussão sobre como a historiografia brasileira sobre a `ditadura civilmilitar` tem perdido sua “inocência epistêmica”, e, assim, promovido trabalhos com criticidade no que compete à dimensão ética e política da análise historiográfica.

Prepara-se, com isso, solo para pousar as questões principais do livro, centradas em indagar como será o passado, nas omissões e silêncios prováveis de serem encontrados na ideia da CNV sobre a ditadura, bem como nas percepções sobre história que emergem do relatório produzido pela Comissão. Ao tratar questões presentes, a historiadora visita acontecimentos fundantes da ótica política sobre o tema, com destaque à lei de anistia (1979) e à ideia de cordialidade e esquecimento que tangenciam o marco legal. Essas características são tratadas pela autora como fenômenos que não se encerraram, que se dirigem para o futuro e demarcam fundamentalmente o contexto em que a CNV se originou.

Analisar a atuação da CNV como marco inicial de um processo desde o olhar de uma historiadora significou, neste livro, pensar também sobre o envolvimento de profissionais da área no interior desta Comissão, com atenção ao aprofundamento de reflexões oriundas das tensões história versus justiça, apredizado versus pena, historiadores versus juízes e tempo da história versus tempo do direito. Em uma imersão no debate teórico, o primeiro capítulo, “História, historiadores e Comissão Nacional da Verdade”, percorre os últimos anos do Cone Sul, marcados pelas crescentes iniciativas no campo das políticas públicas de memória ensejadas em governos progressistas. O texto adentra também à esfera teórica e metodológica, passa pelo papel da história em relação a passados traumáticos – considerando as variadas concepções sobre o que se entende por história -, e questiona o papel da história dentro da lógica da necessidade de reparação da experiência-limite. Dessa forma, o capítulo inicial da obra é composto por uma carga de reflexão assentada na teoria da história, marcado pela mobilização de referências que vão desde clássicos dedicados a temas fundantes nas Humanidades, como Paul Ricoeur e Theodor Adorno, até expoentes da nova geração na literatura sobre memória, a exemplo de Berber Bevernage.

Na segunda parte do livro, são abordadas as noções de tempo, passado-presentefuturo, e de suas durabilidades para tratar o caráter plural das experiências brasileiras em relação ao seu passado traumático. “As múltiplas temporalidades nos debates sobre a criação da Comissão Nacional da Verdade” trabalha com a diferenciação entre o tempo do violador e o tempo da vítima (Bevernage), tensão na qual residiria, de um lado, um passado que passou e que deve ficar inerte e fechado e, de outro, um passado que não passa e que prescinde de ruptura. Sob a polaridade, coloca-se a “ideologia da reconciliação” e os obstáculos do silêncio e do esquecimento, presentes no caso brasileiro, frente a uma transição pactuada e limitante em relação às expectativas para o futuro.

Assim, quando o Estado assume a posição de mediar a reconciliação visa-se o futuro por meio de ações institucionais do presente. O caso da CNV é tratado a partir da ideia de “políticas de memória”, de onde nasce a reflexão sobre a vítima, seu sofrimento e seu direito, e sobre a instrumentalização do sofrimento e os eventuais abusos de memória.

É apenas no final do capítulo que se inicia, de fato, a análise de fontes relacionadas à Comissão, a partir dos discursos parlamentares durante as discussões para adoção de sua lei. Os debates são exibidos ancorados na ideia de disputa pela memória e suas nuances temporais: algumas olham para o futuro, enquanto outras, para o passado. Ao encarar o tom de oficialidade da CNV e sua expectativa em consagrar um relato e deslegitimar outros, aborda-se, ainda, “O que (não) pode ser dito”, momento em que se evidencia valores pacificados no âmbito do discurso – como a defesa da democracia – e valores em disputa – como a denúncia sobre práticas violentas no tempo presente.

O livro é finalizado com análise sobre “O relatório da CNV e o futuro da memória”, indagando o teor da narrativa oficial e sua expectativa de se fixar na memória futura sobre o tema. Para isso, Bauer voltou-se primeiramente para as grandes questões que atribuem identidade ao relatório: a narrativa que estabelceria a verdade ao tom ‘história como mestra da vida’, exemplar, mas sem confrontos, apaziguadora com base em critérios jurídicos, sobretudo, na lei de anistia. A expectativa é quebrada, no entanto, quando se mostra que o projeto de apaziguar não foi bem sucedido, já que tanto as Forças Armadas criticaram o relatório por seu perfil `revanchista` quanto familiares de desaparecidos o consideraram insuficiente. Com uso do artifício de réquiem, a autora finaliza o livro sem conclusão, com espaço para evidenciar que toda trajetória da CNV se comprometia principalmente com o futuro e com a pós-memória em seu potencial de transmissão geracional.

Como será o passado?, tal qual expresso inicialmente, volta-se justamente para intersecção passado-futuro e sobre as expectativas frustradas de um órgão que partia da premissa de irreversibilidade histórica. O livro possibilita, assim, que se questione em que medida essa expectativa restringiu-se ao Estado (ou, ao menos a um órgão estatal) ou foi compartilhada por um setor da academia dedicado à pesquisa sobre esse tema. A opção por não oferecer uma conclusão fechada a respeito do fenômeno e sim evidenciar fragilidades e características do processo, abre espaço para a necessidade de complementações e revisões das teses apresentadas no livro e, assim, pacifica-se com a crítica dirigida à CNV: nenhuma interpretação sobre nenhum fenômeno é irreversível, principalmente considerando as tensões políticas que o permeia. Eis a grande contribuição da historiografia nesta análise.

Notas

O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil.

Paula Franco – Doutoranda em História na UnB. E-mail: [email protected].


BAUER, Caroline Silveira. Como será o passado? História, historiadores e Comissão Nacional da Verdade. Jundiaí: Paco Editorial, 2017. Resenha de: FRANCO, Paula. A contribuição da História para o passado ou para o futuro. Em Tempo de História, Brasília, v.1, n.36, p.586-588, jan./jun., 2020. Acessar publicação original. [IF].

 

 

COWLLING Camillia (Aut), Concebendo a liberdade: mulheres de cor/ gênero e abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro (T), GEREMIAS Patrícia Ramos (Trad), PENNA Clemente Penna (Trad), Editora da Unicamp (E), REIS Laura Junqueira de Mello (Res), Gênero, Agência escrava, Negociação Abolição da escravidão, Cidade de Havana, Cidade do Rio de Janeiro, Brasil, Cuba, Século 19, Em Tempo de História (ETH), Século 19, América

Camillia Cowlling é uma historiadora inglesa formada na Universidade de Oxford, realizou seu doutorado no Instituto de Estudos Sobre Escravidão, na Universidade de Nottingham. Atualmente é professora de história latino-americana na Universidade de Warwick. O foco de sua pesquisa é a escravidão e abolição na América latina, especialmente em Cuba e no Brasil. Fruto de suas investigações, lançou em 2013 o livro Concebendo a liberdade: mulheres de cor, gênero e abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro, sua obra foi traduzida para o português e publicado pela editora da Unicamp, em 2018.

A primazia do livro Concebendo a liberdade está, além de conferir um agenciamento social às mulheres escravizadas em Havana e no Rio de Janeiro, em realizar uma pesquisa partindo de uma perspectiva transnacional – ou podemos chamar também de transatlântica – entre duas das grandes cidades que, por meio da escravidão, cresceram e se desenvolveram ao longo do século XIX. Diante disso, apesar da autora utilizar fontes que já haviam sido investigadas, propõe uma obra pautada em um novo sentido. Dessa forma, o livro foi baseado a partir desses diversos aspectos referenciais que são explorados em sua narrativa.

O trabalho nos remete à perspectiva adotada por Sidney Chalhoub na obra Visões da Liberdade. Ambos os autores tomaram como aporte teórico a histórica social e buscaram resgatar a agência dos sujeitos e entendê-la a partir de suas experiências. A historiadora fez uso das mesmas fontes que Chalhoub, trabalhou em sentido próximo a este, no entanto, pensando a condição feminina. (CHALHOUB, 1990). Nesse sentido, a obra de Cowlling trabalha com diversos aspectos referentes à escravidão e a condição das mulheres negras nesse período, como: agência escrava, ação dos sujeitos, maternidade, feminilidade, gênero, entre outros.

O conceito de transnacionalidade, atualmente em pauta na historiografia é explorado pela historiadora inglesa, uma vez que ela pensa a emancipação gradual repensando o conceito de maternidade no Brasil e em Cuba. Ao analisar os dois países de forma comparativa, [1] investiga como a mesma situação ocasionou respostas parecidas em lugares diferentes.

Destacamos que a escolha por esses dois países não foi arbitrária. Cuba e Brasil foram os dois últimos países a abolir a escravidão e agiram de modo semelhante nos processos que resultaram na abolição, [2] a exemplo da Lei Moret, em Cuba, sancionada em 1870, e a chamada Lei Rio Branco, mais conhecida como Lei do Ventre Livre, no Brasil, em 1871. Ambas as leis determinavam a liberdade do ventre, ou seja, a partir dessas leis os filhos das escravas nasceriam livres; mas as mães permaneceriam escravas.

Nessas condições, Camillia Cowlling indica que tanto as escravas brasileiras como as cubanas se utilizavam de estratégias previstas no sistema legislativo para conseguirem a liberdade de seus filhos, portanto, sabiam usar as leis a seu favor. Além disso, a autora percebeu que as mães escravas passavam a agenciar sua própria liberdade utilizando-se da retórica da maternidade [3], a fim de que tivessem suas vozes escutadas, contando dessa forma com a piedade e a caridade dos que as ouviam. Tal retórica era uma estratégia de discurso. Assim, a partir da promulgação de tais leis, as mulheres negras passaram ao centro da discussão a respeito da abolição. A gestação tornou-se então um campo de disputas, e as mulheres souberam utilizar dos argumentos expostos em tais processos com o intuito de conseguirem a almejada liberdade.

Logo, podemos compreender que o processo de abolição não pode ser encarado como um projeto desenvolvido a partir de uma concessão dos Senhores, mas sim como uma consequência de diversas reivindicações elaboradas por mulheres escravizadas que, buscando argumentos e meios legais, fizeram uso de algumas alternativas cabíveis, estabelecendo assim, novas formas de alcançar a liberdade. No mais, a autora evidencia ainda que as disputas legais enfrentadas pelas mulheres negras eram travadas na dimensão cotidiana da vida e que não eram ações apenas individuais, ou seja, tais movimentos de luta pela liberdade eram fruto de redes de apoio e comunicação entre essas mulheres.

Para chegar a essa conclusão, Cowlling empreendeu uma série de buscas em muitos arquivos, principalmente, brasileiros e cubanos a fim de identificar a ação, experiência e agência dessas mulheres. Com o domínio do idioma espanhol e da língua portuguesa, a autora analisou várias fontes, como: jornais, inventários, relatórios consulares, poemas, novelas, registros de sociedades abolicionistas, relatos de viajantes, censos populacionais e ações criminais.

Na análise da documentação oficial relacionados a processos judiciais, as então chamadas “ações de liberdade”, Cowlling percebeu que a maioria das requerentes que buscavam justiça no processo de emancipação gradual eram as mulheres. Constatou também que estas sabiam utilizar de preceitos estabelecidos em lei e, além de usarem estrategicamente dos mesmos, negociavam suas liberdades com seus Senhores.

Portanto, segundo a autora, o movimento de algumas mulheres escravizadas em Cuba e no Brasil foi fundamental para o processo final da abolição, que ocorreu em 1886 e 1888, respectivamente.

Outra característica do livro é o uso das narrativas dos próprios atores históricos. Por exemplo, elaborando um texto mais fluído, já no início da obra, Cowlling traz a história de duas mulheres: Ramona Oliva e Josepha Gonçalves de Moraes. As trajetórias delas se assemelham no que se refere a tipos de iniciativas, objetivos e circunstâncias experimentadas por ambas, apesar de viverem em lugares diferentes – uma em Havana e a outra no Rio de Janeiro. Ao longo do livro, a autora vai descrevendo o caminho percorrido por essas mulheres e, ao final, apresenta a conclusão dos processos judiciais: as duas mulheres não conseguiram vitória na justiça, mas representam a dinâmica e ação das mulheres negras no Brasil e em Cuba, ao final do século XIX, e a relação das mesmas com o processo de abolição.

A diferença entre a feminilidade branca e a feminilidade negra também é um ponto fundamental destacado na obra. Às mulheres oitocentistas caberia o papel de mãe, mas até que ponto esse papel também se encaixava na condição das mulheres negras? Josepha de Moraes, por exemplo, ao solicitar a liberdade para sua filha, nascida após a Lei do Ventre Livre – mas ainda servindo ao antigo dono de sua mãe, conforme explicitado na lei, – teve seu pedido negado em prol do fazendeiro. Nesse caso, a justiça alegou que o Senhor teria mais condições de sustentar e dar educação à filha de Josepha do que a mãe, considerando a pouca instrução que as escravas normalmente recebiam. Assim, para as mulheres negras, nem sempre a função concernente à maternidade era permitida. Portanto, como destaca a autora, as mulheres negras pertenciam a um lugar de não-mulher construído pela sociedade paternalista vigente no Oitocentos.

Na última parte da obra, a historiadora explorou o tema da cidadania e escravidão. Cowlling levantou o questionamento: os escravos, uma vez livres, poderiam usufruir de direitos de cidadania e participar da vida política? Sabemos que, enquanto livres, a condição de vida desses sujeitos foi modificada, no entanto, mesmo após o processo de abolição, os “ex-escravos” não adquiriram cidadania plena no Brasil, uma incorporação foi mais formal do que real.” (CARVALHO, 2001, 13). Ou seja, mesmo usufruindo de uma liberdade formal, não lhes era garantido uma participação efetiva em situações cujo o direito à cidadania era capital.

Ainda sobre o último capítulo, apresentando pontos referentes ao pós abolição, a autora deixa evidente que as ações elaboradas por essas mulheres eram fundamentais para que elas se sentissem cidadãs: “apesar das mulheres estarem excluídas de outros atributos da cidadania, como o direito ao voto ou ao serviço militar, o direito de peticionar ganharia uma importância política relevante em suas mãos.” (COWLLING, 2018, n.p). Tal discussão concernente a cidadania e escravidão, presente no último trecho do livro, da margem para que novas pesquisas sejam elaboradas tomando como base essa perspectiva de análise.

O que Cowlling conclui com esse livro, para além da agência escrava feminina no século XIX, é que a escravidão como conceito foi, assim como diversos acontecimentos, atravessado pelas relações de gênero: “a escravidão ajudou a moldar ativamente as relações de poder e gênero tanto na sociedade escravista como na sociedade livre.” (COWLLING, 2018, n.p).

Isto foi evidenciado nas teorias tomadas a partir dessa temática, assim como na prática, na vida cotidiana analisada por meio da documentação. Logo, a obra nos permite perceber que é possível (e é preciso) levar o gênero e as mulheres em consideração ao fazer análise das mais diversas fontes históricas, uma vez que a escravidão também foi atravessada por relações de poder determinadas pelo gênero.

Notas

  1. Apesar de analisá-los de forma comparativa, a autora firma que não faz uso de uma metodologia comparativa.
  2. Os dois países, juntamente com o Sul dos Estados Unidos, integraram aquilo que foi chamado de Segunda Escravidão, teoria que afirma que após uma série de abolições, a escravidão foi tomando um novo formato e poucos países ainda eram escravistas, apenas: Brasil, Cuba e Estados Unidos. (TOMICH, 2011).
  3. O texto de José Murilo de Carvalho sobre retórica nos auxilia a compreender esse termo. Se encaramos a retórica a partir do exposto no artigo de Carvalho, conseguimos compreender uma certa autoridade que esse conceito buscava transmitir, logo, as mulheres se utilizavam de tais noções para se mostrarem aptas a criarem seus filhos. No entanto, na sociedade patriarcal Oitocentista, por vezes, apenas a retórica da maternidade e as brechas nas leis, não eram suficientes. (CARVALHO, 2000).

Referências

CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

CARVALHO, José Murilo de. História intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura. Revista Topoi. Rio de Janeiro, nº01, p.123-152, jan-dez. 2000.

CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: Uma história das últimas décadas de escravidão na Corte. São Paulo, Cia. das Letras, 1990.

COWLING, Camillia. Concebendo a liberdade: mulheres de cor, gênero e a abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro. Trad. Patrícia Ramos Geremias e Clemente Penna. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2018.

TOMICH, Dale. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial.

Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Edusp, 2011.

Laura Junqueira de Mello Reis – Doutoranda em História na UERJ. E-mail: [email protected].


COWLLING, Camillia. Concebendo a liberdade: mulheres de cor, gênero e abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro. Trad. Patrícia Ramos Geremias e Clemente Penna. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2018. Resenha de: REIS, Laura Junqueira de Mello. Gênero, agência escrava e estratégias de negociação: processos de abolição em Havana e Rio de Janeiro, século XIX. Em Tempo de História, Brasília, v.1, n.36, p.582-585, 2020. Acessar publicação original. [IF].

 

 

 

 

NOGUEIRA Natania Aparecida da Silva (Aut), As histórias em quadrinhos e a escola: práticas que ultrapassam fronteiras (T), ASPAS (E), MENEZES NETO, Geraldo Magella de (Res), Em Tempo de História (ETH), História em Quadrinhos, Escola, França, Japão, Estados Unidos, Canadá, Brasil, Ensino de História

Século 20, Século 21, América, Ásia, Europa

As histórias em quadrinhos (HQs), surgidas no final do século XIX com a publicação de The Yellow Kid nos jornais norte-americanos, teve inicialmente grande rejeição por parte de pais e educadores ao longo do século XX. Um marco importante dessa rejeição foi a publicação, em 1954, de A sedução dos inocentes, do psiquiatra alemão radicado nos Estados Unidos, Fredric Wertham, que denunciava os quadrinhos como uma grande ameaça à juventude norte-americana tentando provar “como as crianças que recebiam influências dos quadrinhos apresentavam as mais variadas anomalias de comportamento, tornando-se cidadãos desajustados na sociedade. Essa rejeição felizmente foi diminuindo com tempo. Os quadrinhos passaram a ser vistos com grande potencial pedagógico nas escolas, contribuindo, por exemplo, na formação de novos leitores. No Brasil, várias obras foram publicadas a partir da virada do século XXI, discutindo formas de utilização dos quadrinhos na escola e também no ensino de História.2 “As histórias em quadrinhos e a escola: práticas que ultrapassam fronteiras”, de Natania Aparecida da Silva Nogueira, é mais uma obra que vem somar nessa discussão sobre as potencialidades das HQ’s no ensino. A autora possui Mestrado em História pela Universidade Salgado de Oliveira (2015), sendo atualmente doutoranda em História pela mesma instituição. É professora do Ensino Fundamental no município de Leopoldina, Minas Gerais; sócia fundadora da Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial (ASPAS), onde atualmente ocupa o cargo de Coordenadora; e membro da Academia Leopoldinense de Letras e Artes (ALLA).3 O livro possui cinco capítulos. Segundo Nogueira, a obra é voltada para o professor e “prioriza a prática da educação, a partir da experiência docente”, refletindo sobre a capacidade criativa dos professores que podem “transformar uma HQ num instrumento de ensino capaz de mudar alguns antigos paradigmas da educação.” (NOGUEIRA, 2017, 15). A autora dialoga com vários pesquisadores dos quadrinhos como Valéria Bari, Waldomiro Vergueiro, Flávio Calazans, Gonçalo Júnior, Edgar Franco, Nobu Chinen, etc.

Os dois primeiros capítulos são uma revisão do panorama das pesquisas e dos usos dos quadrinhos no contexto internacional e brasileiro. No contexto internacional, a autora dialoga com os casos da França, Japão, Estados Unidos e Canadá. No caso brasileiro, a autora aponta que, apesar de haver publicações que remontam ao início do século XX, como Tico-Tico, e da coleção produzida pela Editora Brasil-América (EBAL), fundada em 1945, que foi pioneira na produção e edição das HQs dedicadas a temas educacionais, só foram “nos últimos dez anos que as HQs conquistaram um espaço expressivo nos debates acadêmicos e na prática escolar.” (NOGUEIRA, 2017, 50). As HQs foram introduzidas na lista de obras do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) do Ministério da Educação (MEC) a partir de 2006.

No terceiro capítulo, “Usando quadrinhos na sala de aula”, a autora observa que é equivocada a visão que considera a leitura das HQs como uma “leitura fácil”. Ao contrário, segundo Nogueira, “é um leitura que envolve uma série de processos mentais e exige domínio de códigos complexos”, sendo “aconselhável que o leitor de quadrinhos comece a ser formado ainda bem jovem.” (NOGUEIRA, 2017, 63-64). Outro equívoco mencionado é o estereótipo que taxa os quadrinhos como “coisa de criança”. Nogueira indica que “existem quadrinhos para todas as idades, sobre todos os assuntos, de gêneros tão variados quanto qualquer outra forma de leitura”, sendo possível, assim, trabalhar com HQs desde “uma classe de educação infantil quanto uma turma de estudantes universitários.” (NOGUEIRA, 2017, 69).

Ainda neste terceiro capítulo, a autora faz cinco sugestões para utilizar os quadrinhos em sala de aula. A primeira sugestão que a autora faz é trabalhar a linguagem dos quadrinhos, conhecendo alguns elementos básicos das HQs, tais como: requadro ou vinheta4; calha ou sarjeta5; recordatório6; balões de fala7; metáforas visuais8; linhas cinéticas ou de movimento9; e onomatopeias10. A segunda sugestão é usar quadrinhos para introduzir temas que serão trabalhados em sala de aula. A autora dá o seguinte exemplo: assim, numa aula de ciências, sobre doenças, por exemplo, o professor pode desejar enfatizar a dengue, por estar presente no cotidiano dos alunos ou por ser um problema grave local. Ele tem em mente selecionar determinada HQ que trata do tema. Se o professor possui quadrinhos suficientes para toda a turma, ele pode promover uma leitura coletiva ou individual. Se ele tem apenas um exemplar, pode selecionar algumas partes, montar uma apostila ou um texto simplificado e trabalhar com os alunos (NOGUEIRA, 2017, 76).

A terceira sugestão é utilizar quadrinhos em atividades (exercícios). Nesta proposta, a autora aconselha o uso de fragmentos de HQs devidamente contextualizados com o enunciado da questão, além do uso de tirinhas. O interessante nesta parte é que a autora comenta casos em que, segundo ela, há mal-uso dos quadrinhos na elaboração de questões, a exemplo de uma questão sobre totalitarismo e Segunda Guerra Mundial na prova de História do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) de 2012, que utilizava a capa da revista do Capitão América de março de 1941. Nogueira questiona o uso da imagem, pois a questão não explora a leitura visual da capa da revista, ignorando seus elementos semânticos. (NOGUEIRA, 2017: 80).

A quarta sugestão é propor a criação de HQs pelos estudantes. Essa atividade é o “coroamento de todo um processo de preparação que começa com a introdução do gênero, o incentivo da leitura e o domínio dos códigos dos quadrinhos pelos alunos” (NOGUEIRA, 2017, 87). A autora chama a atenção que o trabalho deve ser essencialmente realizado sob a supervisão do professor, que deve participar por meio de sugestões e demonstrando interesse pela produção. Por fim, a quinta sugestão de atividade é trabalhar com os alunos o gênero jornalismo em quadrinhos, mais recomendada para alunos do ensino médio e superior. Os professores podem desafiar os alunos a produzirem blogs onde eles desenvolvam matérias no formato de jornal em quadrinhos com temas como política, economia, meio ambiente, violência, etc. Outra proposta dentro do jornal em quadrinhos é a criação de fanzines, um tipo de publicação de caráter amador, sem intenção de lucro, feito pelo simples desejo de fazer circular uma determinada produção literária e/ou artística (NOGUEIRA, 2017, 95).

Nos dois últimos capítulos, “As gibitecas no Brasil” e “Relato de experiência: projeto Gibiteca Escolar”, a autora aborda a iniciativa de criação de gibitecas pelo Brasil, dando ênfase a sua própria experiência como uma das responsáveis pela gibiteca escolar da Escola Municipal Judith Lintz Guedes Machado, em Leopoldina, Minas Gerais. O projeto ganhou do MEC o 3º Prêmio Professores do Brasil no ano de 2008.

Nogueira faz um relato das dificuldades iniciais da formação da gibiteca, mas que com o tempo foi ganhando apoio dos alunos e professores, além da secretaria de educação. A gibiteca também é levada para eventos de rua no sentido de envolver a comunidade, além de realizar eventos acadêmicos com pesquisadores e professores, contribuindo para uma formação continuada. A autora cita depoimentos de professores da escola que veem o projeto da gibiteca escolar como sendo uma experiência positiva no processo de ensino-aprendizagem e envolvimento dos alunos.

Como ressalva em “As histórias em quadrinhos e a escola: práticas que ultrapassam fronteiras”, podemos apontar a falta de propostas especificando HQs que podem ser trabalhadas em sala de aula. Durante os capítulos do livro, a autora aborda as HQs de forma geral, não citando exemplos. Uma comparação que podemos fazer é com o livro, bastante conhecido, “Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula”, organizado por Angela Rama e Waldomiro Vergueiro. Neste livro, os autores dos capítulos trazem vários quadrinhos e dizem como o professor pode utilizá-los. Por exemplo, no capítulo “Os quadrinhos nas aulas de História”, Túlio Vilela cita, dentre outras, as HQs de Asterix e Obelix, que podem ser lidas “como um registro da época em que foram criadas, porque, para efeito de humor, são atribuídos aos povos e lugares do passado as características que eles têm nos dias de hoje” (VILELA, 2012, 111). Já Nogueira, embora faça referência à vários estudos e experiências com HQs, não direciona aos professores os quadrinhos que podem servir para determinados conteúdos.

Na sugestão de trabalhar as linguagens dos quadrinhos, ficaria mais claro ao leitor se o livro trouxesse ilustrações de HQs indicando o que é um requadro, um recordatório, os balões de fala, etc. O livro apenas traz as definições de cada um, criando dificuldades de entendimento e visualização de cada um desses elementos básicos dos quadrinhos que, afinal, são essencialmente visuais.

Outra ressalva diz respeito às referências bibliográficas. A maioria dos sites consultados pela autora não estão disponíveis, quando digitamos da forma como o livro indica somos direcionados ao site zipmail. Entendemos que houve um equívoco na forma de referenciar os sites, pois na maioria aparecem como zip.net, não com a sua referência original.

Entretanto, nada disso desabona a obra, que é mais uma contribuição importante para o campo que estuda as relações entre quadrinhos e educação. O grande mérito da obra é o fato da autora trazer a experiência concreta de formação de uma gibiteca em escola pública, demonstrando o papel social de um espaço que estimula a formação de novos leitores. A maioria dos trabalhos publicados sobre quadrinhos na educação, por paradoxal que seja, abordam a questão de forma teórica e não prática, haja vista que em sua maioria são produzidas por professores universitários que não tem a vivência na educação básica. Dessa forma, o leitor, seja professor, aluno, pesquisador ou simplesmente um admirador das histórias em quadrinhos será recompensado com a leitura de uma obra importante que representa o engajamento da autora pelo seu objeto de estudo.

Notas

  1. Doutorando em História pela Universidade Federal do Pará. [email protected]
  2. Ver por exemplo: CALAZANS, Flávio Márcio de Alcântara. História em quadrinhos na escola. São Paulo: Paulus, 2004; RAMA, Angela; VERGUEIRO, Waldomiro. (Orgs.). Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2004; VERGUEIRO, Waldomiro; RAMOS, Paulo. (Orgs.). Quadrinhos na educação: da rejeição à prática. São Paulo: Contexto, 2009; SANTOS NETO, Elydio dos; SILVA, Marta Regina Paulo da. Histórias em quadrinhos e práticas educativas, volume I: o trabalho com universos ficcionais e fanzines. São Paulo: Criativo, 2013; SANTOS NETO, Elydio dos; SILVA, Marta Regina Paulo da. (Orgs.) Histórias em quadrinhos e práticas educativas, volume II: os gibis estão na escola, e agora? São Paulo: Criativo, 2015.
  3. Informações sobre a trajetória acadêmica e profissional de Natania Aparecida da Silva Nogueira consultadas na Plataforma Lattes. Disponível em: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4509802D6 Acesso em: 31 out. 2018.
  4. É a moldura que envolve a cena retratada em cada quadrinho. (NOGUEIRA, 2017: 72).
  5. É o espaço que existe entre dois quadrinhos e que muitas vezes precisa ser preenchido pelo leitor por meio do raciocínio. (NOGUEIRA, 2017: 73).
  6. É o pequeno painel, algumas vezes de tamanho retangular que aparece no canto do requadro e que faz uma breve narrativa como forma de introduzir ou complementar a cena. (NOGUEIRA, 2017: 73).
  7. Simbolizam o ato da fala dos personagens. (NOGUEIRA, 2017: 73).
  8. São uma espécie de figuras de linguagem que funcionam como palavras, sintetizando conceitos epnas por meio de uma simples imagem. (NOGUEIRA, 2017: 74).
  9. São aqueles riscos que indicam movimento. (NOGUEIRA, 2017: 74).
  10. São palavras que representam sons. (NOGUEIRA, 2017: 74).

Referências

VERGUEIRO, Waldomiro. Uso das HQs no ensino. In: RAMA, Angela; VERGUEIRO, Waldomiro. (Orgs.). Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula. 4 ed. São Paulo: Contexto, 2012.

VILELA, Túlio. Os quadrinhos na aula de História. In: RAMA, Angela; VERGUEIRO, Waldomiro. (Orgs.). Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula. 4 ed. São Paulo: Contexto, 2012.

Geraldo Magella de Menezes Neto –Doutorando em História pela Universidade Federal do Pará. [email protected].

NOGUEIRA, Natania Aparecida da Silva. As histórias em quadrinhos e a escola: práticas que ultrapassam fronteiras. Leopoldina: ASPAS, 2017. 148p. Resenha de: Em Tempo de História, Brasília, v.1, n.34, p.122-127, jan./jul., 2019. Acessar publicação original. [IF].

SILVA Pedro Ferreira da (Aut), Cooperativa sem lucros: uma experiência anarquista dentro da sociedade capitalista (T), Editora Entremares (E), FELIPE Cláudia Tolentino Gonçalves (Res), Em Tempo de Histórias (ETH), Cooperativa, Anarquismo, Sociedade capitalista, Pedro Ferreira da Silva, Portugal, França, Brasil, Século 20 Século 20, América, Europa

O título do livro de Pedro Ferreira da Silva pode parecer equivocado: como conceber a existência de uma cooperativa sem finalidades lucrativas? O subtítulo, no entanto, desfaz o equívoco ao precisar o conteúdo da obra: uma experiência anarquista no interior da sociedade capitalista. É no mínimo intrigante a possibilidade de coexistência entre capitalismo e anarquismo, especialmente para quem encara a experiência libertária de forma banal e preconceituosa. Resenhar Cooperativa sem lucros, portanto, mostra-se uma tarefa necessária por duas razões: poderia apontar os nexos entre cooperativismo e anarquia e ajudar-nos a entender o que motivou a republicação de um livro anarquista de 1958 quase sessenta anos depois.

Perseguido pelo governo salazarista, o anarco-sindicalista português Pedro Ferreira da Silva refugiou-se na França em 1926 e, logo em seguida, mudou-se para o Brasil. Em Portugal, ele foi um dos responsáveis pela publicação do semanário A Comuna, editado na cidade do Porto. Convém mencionar que é o mesmo periódico do qual participava o militante anarquista português Roberto das Neves, antes de sua vinda para o Brasil no início dos anos 1940. No Brasil, Pedro Ferreira associou-se aos anarquistas cariocas e paulistas e, ao final da ditadura varguista, começou a participar efetivamente do periódico Ação Direta (1946-1959), publicado no Rio de Janeiro. Aproveitou o espaço que lhe foi destinado para escrever textos críticos sobre o salazarismo, o sindicalismo e o cooperativismo.

Apesar de desempenhar a função de contador, Pedro Ferreira dedicou-se ao jornalismo e escreveu poemas e livros nas áreas de literatura, crítica social e economia. Dentre suas principais obras, destacam-se: Eu creio na Humanidade (1949); Três enganos sociais: férias, previdência e lucro (1953); Cooperativa sem lucros: uma experiência anarquista dentro da sociedade capitalista (1958). Interessa-nos, particularmente, a última obra mencionada, que edifica um projeto revolucionário cujo veículo seria a cooperativa, entendida como uma arma de luta contra a exploração capitalista e como um caminho para a construção de uma sociedade libertária. Para tanto, o autor reuniu uma série de discussões realizadas no Ação Direta entre os anos de 1947 a 1958.

A linguagem adotada no livro é acessível, abrindo mão das figuras de linguagem desfiladas em outros textos de sua autoria, como em Eu creio na humanidade. A disposição de seus artigos assume claramente ares de “projeto”, uma vez que instrui sobre o funcionamento do que seria uma sociedade libertária estruturada por cooperativas sem lucros. Convém mencionar que o autor acredita que a anarquia não se desenvolveria de imediato, carecendo de estratégias intermediárias que pudessem educar os homens, tornando os princípios libertários atrativos e cativantes. A questão a se perguntar é: de que maneira a cooperativa atenderia esse propósito?

Não nos parece conveniente retomar minuciosamente as particularidades de cada um dos 32 artigos do livro escritos pelo autor, mas esboçar a ideia geral que confere ares de unidade ao conjunto. O cooperativismo pensado por Pedro Ferreira remete a uma experiência anárquica dentro da sociedade capitalista e dependeria da iniciativa do indivíduo e de seu esforço associativo. No entanto, o sistema cooperativo corrente deveria passar por mudanças significativas, para se ver livre dos vícios capitalistas. A princípio, o autor declara que não acredita na violência e retoma o conceito de ação direta, definido como ato de perseguir uma finalidade trilhando “caminhos iluminados, pelos meios limpos, isentos de colaboração suspeita” (p. 17). As cooperativas seriam uma alternativa intermediária, contanto que se livrasse do lucro e se baseasse em preços justos e acessíveis.

Pedro Ferreira insiste na necessidade de uma cooperação ampliada, multiplicada, que eliminaria a especulação, os salários e concentrar-se-ia no benefício dos consumidores. Note-se que, sem se confundir com a anarquia, o cooperativismo reproduz alguns de seus postulados, já que efetua “a melhoria econômica da classe proletária, a assimilação social e o enfraquecimento dos preconceitos de classe” (p. 27). O autor ressalta a necessidade de a sociedade se livrar dos “intermediários”, dos comerciantes que lucram às custas do consumidor: são eles que, “na indústria como no comércio, o cooperativismo combate, dispensa e destrói” (p. 31). Parece-nos que uma das lutas mais recorrentes nos escritos de Pedro Ferreira é direcionada contra a ideia de o salário ser a finalidade última do trabalhador, e não a produção. Afinal, ele “é um elemento econômico decorrente do trabalho e não um objetivo a conquistar por meio do trabalho” (p. 35). Por outras palavras, se a intenção do trabalho industrializado é o lucro, no caso do trabalho cooperativista, o intuito é a produção. O problema, portanto, é associado à sociedade, pensada como “edifício formado de material ruim”. Uma vez que “matéria ruim não pode fazer edifício bom”, é preciso transformá-la, mas de forma não abrupta, já que a retirada do homem de um edifício ruim e sua introdução num edifício bom não mudaria, de imediato, o próprio homem.

O autor pensa o cooperativismo como estágio necessário para a reformulação do “processo mental” capaz de “fazer com que o homem crie, em volta de si, o ambiente anarquista” (p. 46). Através dele, seria possível desenvolver um “espírito associativo”, a solidariedade e a ajuda mútua. Trata-se de uma “arma revolucionária”, imunizada contra “o contágio da cobiça”, mas que, inicialmente, estaria associada ao capital: só com o tempo o cordão umbilical seria rompido. Para sua administração, seria necessário um “fundo social”, que reuniria um montante indispensável para garantir as instalações, móveis, imóveis etc. Quanto maior fosse a participação, mais eficaz se tornaria a cooperativa. Além do fundo social, haveria um fundo de manutenção e desenvolvimento, para ampliação das operações sociais através de materiais que permitissem sua administração. Não há lugar para os juros. O autor afirma que “o sonho pode estar dentro de nós, mas em torno de nós há a realidade e nela se movem nossas vidas, nela se animam os nossos gestos e se realizam as nossas obras” (p. 73). É por essa razão que seria preciso reter um excedente quando da definição dos preços dos produtos e de sua distribuição, para “cobrir possíveis erros de cálculo, desgastes ou perecimentos imprevistos de mercadorias” (p. 74). Pedro Ferreira afirma que a cooperativa não pretende conferir lucro a seus associados, pois não alimenta finalidades mercantilistas. Isso não exclui, no entanto, “a margem necessária ao funcionamento da organização e convenientes reservas” (p. 75).

De um lado, o autor pensa as cooperativas de produção, que tentam conferir aos operários a possibilidade de “trabalhar por sua conta”, sem submeter-se à exploração patronal. As cooperativas de consumo, por sua vez, tendem à universalidade, já que buscam contemplar os consumidores de forma geral. Sendo assim, elas têm o mérito não apenas de eliminar o “intermediário no comércio improdutivo” (p. 100), mas também de aproximar os consumidores de diversas classes, “num movimento comum de defesa econômica, que por sua vez lhes há de inspirar outras formas de cooperação social” (p. 100). Há, portanto, um efeito pedagógico a subsidiar as cooperativas, como o autor admite na passagem abaixo:

O cooperativismo é, pois, um sistema econômico-social de função altamente educativa, e como tal merece maior atenção dos anarquistas, que não o sejam apenas de modo passivamente platônico ou furiosamente arrasador. A ação das cooperativas sem lucros, no terreno industrial ou nas redes distribuidoras dos produtos, leva à emancipação do trabalhador e ao fim do parasitismo comercial; faz converter maior número de braços às tarefas produtivas e semeia o espírito de ajuda, a união e o entendimento comum. Na sua prática, isenta de egoísmo, pode alimentar-se largamente o ideal anarquista e exercitar-se com progressivo êxito mais de um preceito da sociedade livre (pp. 100-101).

Interessa-nos, por agora, retomar a noção de intercooperativismo, que ajuda a compreender a diferença entre liberdade e arbítrio. A liberdade das cooperativas não implica ausência de obrigações que elas devem manter entre si. O homem é livre, mas seu arbítrio “tem de obedecer ao interesse comum” (p. 107). Para Pedro Ferreira, o homem apresenta tendências e impulsos naturais que o levam à sociabilidade, ou seja, há uma “necessidade de cooperação”:

Firmada a mentalidade cooperativista, cada sociedade incorporará esse espírito e passará a representa-lo em relação às sociedades congêneres. Então se estabelecerá o ponto de partida para o intercooperativismo, ou seja, a cooperação entre as sociedades, segundo sua natureza, espécie de atividade ou região onde se desenvolve a influência de seu funcionamento (p. 108).

Criar-se-á, portanto, “federações de cooperativas”, não para circunscrever a liberdade de cada uma delas, mas para atribuir-lhes a mesma liberdade conferida aos indivíduos. Eis porque a cooperativa pode ser encarada como um instrumento de preparo psicológico e prático e como uma etapa que conduziria à sociedade libertária. No terreno econômico, ela possibilitaria preços mais baixos; no âmbito educacional, ensinaria normas de respeito ao interesse coletivo e combateria a guerra dos preços e a concorrência capitalista; no domínio da moral, incitaria o respeito pelo semelhante; em termos sociais, incentivaria troca de ideias e projetos de aperfeiçoamento comuns, alimentando as relações humanas; já no que se refere ao âmbito profissional, estimularia a técnica e o aperfeiçoamento pessoal, e não a intensificação do volume de trabalho.

Não poderia faltar o incentivo à arte: uma vez vencido o sistema do patronato, a arte poderia ser valorizada não a partir de seus rendimentos financeiros, mas como veículo de estudo e de promoção da cultura. Poder-se-ia estruturar uma cooperativa artística, com programas independentes dos quais participariam artistas e o público.

Por fim, Pedro Ferreira trata da família, uma “comuna dentro da sociedade que condena o comunismo” (p. 123). Ele a encara como um “núcleo social”, como “ponto de partida da associação humana” (p. 127). A família, portanto, seria uma “cooperativa isolada”, que poderia deixar de sê-lo caso se unisse a outras famílias em associações cooperativas. É o que, posteriormente, daria ensejo à “policooperativa”:

A policooperativa é o organismo social completo. É o indivíduo na constituição da sociedade. Dentro dela estão as peças todas indispensáveis à satisfação das necessidades sociais. Se a cooperativa geral compreender seções de todas as atividades humanas, ou pelo menos de todas as atividades necessárias aos indivíduos que a compõem, é naturalmente muito mais fácil a federação das cooperativas e o intercâmbio de suas ações, conforme as conveniências não nacionais, mas regionais (p. 134).

Como se pode ver, o livro de Pedro Ferreira apresenta um encadeamento lógico ao sugerir a cooperativa como uma ferramenta eficaz no combate ao lucro e ao comércio, como estágio necessário à consecução da anarquia. No entanto, é preciso problematizar o lugar que essa obra poderia ocupar no atual cenário histórico a ponto de ter sido reeditada em julho de 2017. Seria uma indicação da fragilidade das cooperativas do século XXI? Uma forma de sugerir a necessidade de cooperação e apoio mútuo na atualidade? Uma tentativa de inspirar o leitor, convencendo-o da necessidade de se pensar alternativas que contrariem a modernidade líquida? A tomar pelo critério da verossimilhança, essas hipóteses parecem válidas, o que torna louvável a iniciativa da editora Entremares e imperativa a leitura o livro, que combate o individualismo pós-moderno com palavras libertárias de um autor que, há mais de 50 anos, fez da escrita um instrumento contra o egoísmo. Será possível que continua eficaz? Há somente um meio de descobrir: boa leitura!

Cláudia Tolentino Gonçalves Felipe – Doutoranda em História pela Universidade Estadual de Campinas. E-mail: [email protected].

SILVA, Pedro Ferreira da. Cooperativa sem lucros: uma experiência anarquista dentro da sociedade capitalista. São Paulo: Editora Entremares, 2017. Resenha de: FELIPE, Cláudia Tolentino Gonçalves. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.33, p.295-300, ago./dez., 2018. Acessar publicação original. [IF].

NAVARRO-SWAIN Tania (Aut), O que é lesbianismo (T), Brasiliense (E), LESSA Patrícia (Res), Em Tempo de Histórias (ETH), Lesbianidade, Estudos feministas, História das Mulheres Século 19, Século 20 O livro, O que é lesbianismo, editado pela Brasiliense em 2000, é uma edição de bolso da coleção ‘primeiros passos’, por isso, demonstra uma visão muito particular da autora com um posicionamento intelectual específico ao tema em pauta.

A autora inicia seu livro fazendo uma pequena advertência aos possíveis leitores: “quem estiver vestido no cimento de suas certezas não mergulhe nestas águas” (p. 9), pois a “arrogância dos paradigmas” e o “totalitarismo do senso comum” já tentaram petrificar o tema aqui em debate. O Discurso da autora transita pelas teorizações feministas e foucaultianas fazendo uma divisão do livro em três capítulos. O primeiro capítulo discute os indícios e interpretações da historiografia recuperando as discussões da epistemologia feminista para demonstrar a ‘desordem’ que o sujeito lesbiano causa ao conhecimento comum e científico, por isso, sua ocultação na historiografia tradicional. Com o título: ‘Nosso nome é legião: o espaço vivido’ o segundo capítulo demonstra a presença do sujeito lesbiano na literatura, nas teorizações e nas representações diversas. O último capítulo trata dos ‘Perfis Identitários’, ou seja, trata das atuais discussões sobre identidade empreendidas pelas teorias feministas e foucaultianas, discussões que não aceitam a identidade presa ao sexo e sexualidade e, propositivamente, a autora sugere o nomadismo identitário como contrapartida.

O que a história não diz não existiu é o título que inicia a discussão dos indícios e interpretações em história no primeiro capítulo, onde é problematizado o estatuto histórico, que apegado em modelos fixos, anulou a aparição das lesbianas por representarem uma contradição à “ordem natural da heterossexualidade dominada pelo masculino” (p.13). Cabe ao atual fazer histórico questionar, problematizar, na tentativa de buscar os significados e os valores das condutas humanas esquecidas pelas certezas da história-ciência do século XIX: “a história, dona do tempo, esqueceu que tempo significa transformação, esqueceu a própria história para traçar um só perfil das relações humanas” (p.14). Daí decorre que os indícios da história podem apontar outras culturas e civilizações onde as mulheres amavam-se umas às outras, pois masculino e feminino nem sempre tiveram a mesma conotação (p.16), embora o imaginário ocidental esteja marcado por Adão e Eva, representantes de dois pólos: a imagem de deus e a submissão, a sexualidade naturalizada, binária, formada por relações assimétricas, é também histórica (p.17).

Trabalha com uma concepção de História não-linear onde o papel de historiador é importante, pois seus olhos estão impregnados de valores e crenças atuais, seu papel não é desvendar algo que estava oculto, mas, interpretar os indícios, nos quais os fragmentos do passado atestam o real, segundo interpretações possíveis e as representações que constroem o mundo. A História é, então, mais um discurso, dentre tantos outros, onde os historiadores são mediadores entre o passado e a construção do conhecimento histórico atual. O papel da História é o de questionar, tentar apreender os significados e valores que orientam atos e gestos (p.14).

A heterossexualidade compulsória como regra universal determina os papéis sexuais do verdadeiro masculino e feminino, assim a tolerância quanto às práticas sexuais diversas depende do grau de hegemonia da heterossexualidade (p.17). Os filósofos da Antiguidade Grega são citados como marco entre razão e mito, mas, as práticas sexuais dos mesmos nem sempre são incorporadas aos seus discursos, ocultando-se os sentimentos elevados entre homens. E quanto às mulheres na antiguidade? O silêncio paira sobre a vida das mulheres atenienses, embora o confinamento delas em casa não signifique sua inexistência. A vida das mulheres em Atenas diferencia-se de Esparta, lugar onde elas viviam separadas dos homens.

Em Esparta, Tebas e Siracusa, sabe-se indiretamente, pelos atenienses, que as mulheres tinham maior liberdade, porém, no ocidente cristão a homossexualidade feminina “desaparece da ordem do discurso”, “não se fala, logo não existe” (p.19), pois ao nomeá-las cria-se uma imagem, cria-se uma personagem no imaginário social. Durante o período da Inquisição criase o termo “Sodomitas” para definir as mulheres que viviam ou estabeleciam algum tipo de relação afetiva ou sexual com o mesmo sexo, não possuem um nome nem mesmo direito à existência.

Serão os indícios da História capazes de recuperar essas vidas ocultadas? A oposição entre a representação normativa do feminino e as guerreiras, vistas como mito, por alguns dos grandes nomes da Historiografia, são tomadas como exemplo do apagamento daquilo que é tido como incomum (p. 21-22). O discurso transforma a mulher guerreira em ilusão, embora descreva eventos, datas e em alguns casos até nomes. Florestan Fernandes e Sérgio Buarque de Holanda descrevem as amazonas como paródias do homem e o homem como referente da força, do combate, do ataque, da independência. A historiografia como memória social pode naturalizar comportamentos? E quanto à homossexualidade feminina? Porque a história oculta povos matriarcais e comunidades de mulheres guerreiras relegando-as a paródias do masculino? A história colabora na construção de um modelo de feminino, tipo frágil e submisso, naturalizando os comportamentos e criando representações sociais regidas pela ordem patriarcal, como o discurso ideológico dos museus que colabora no ideário da evolução histórica na passagem do primitivo para o civilizado, do matriarcado para o patriarcado. A poeta Safo de Lesbos serve como exemplo das regras da heteronormatividade, ou seja, é necessário enquadrá-la nos parâmetros do binário homem/mulher para caracterizá-la, mesmo sabendo da beleza de sua poesia, é necessário discursar sobre sua sexualidade: Horácio dirá que Safo era máscula, Ovídio relata seu suicídio após ter sido abandonada por um homem (p.30-32).

Na discussão da identidade atrelada ao sexo Foucault mostra como a taxionomia imprime-se às coisas e modela os seres conforme a divisão binária e hierárquica da sociedade.

Mas a autora pergunta: a reprodução sempre ordenou o mundo? Sempre ordenou as relações? (p.35). Para lembrar que os discursos são construídos em suas “condições de saber”, Navarro- Swain cita Hadcliff Hall, que escreveu sobre o amor trágico entre mulheres (p.40) e Nathalie Clifford Barney, escritora norte-americana, que viveu na França, amou exclusivamente inúmeras mulheres e morreu aos 95 anos, publicou muitos livros, organizou a Academi dês Femmes.

Para Navarro-Swain a história das mulheres está por ser desvendada: “o que a realidade social não retêm perde a espessura da realidade” (p.50). Simone De Beauvoir mostra-se indecisa quanto ao lesbianismo, mas por fim toma-o como escolha existencial. Para a autora ela é arauto do feminismo, fundadora das teorizações e ainda assim cai em contradição quanto ao tema do lesbianismo. Algumas falas de Beauvoir demonstram o poder da representação social no discurso e no imaginário quando a autora reafirma a natureza feminina em oposição à virilidade lésbica e recai no modelo binário.

Mas enfim, se na idade média a sexualidade está associada ao silêncio, a repressão e a procriação na modernidade a homossexualidade será tratada como doença ou crime. A ciência e a jurisdição irão separar a boa da má sexualidade. E para tal a psicanálise torna-se um dos mecanismos para elucidar a evolução sexual e demonstrar que o sexo natural é a heterossexualidade.

Mathieu, Monique Wittig, Nicholson, Gayle Rubin são algumas das teóricas feministas citadas que discutem o lesbianismo na tentativa de ancorá-lo para além do binário. As representações do mundo são duplas: vida/morte, bela/feia, assim “a verdadeira mulher é diferente da prostituta e da lésbica”, a segunda é preservada na ordem do sistema e a última apagada dos discursos. Para a autora: “a inversão da ordem não representa revolução dos costumes” (p.66), hoje as revistas, o cinema, os direitos demonstram uma maior proximidade entre os homossexuais, mas, o homem ainda quer manter o lugar dominante. Por isso o livro O que é Lesbianismo vem abrir um caminho para pensarmos o tão temido tema da homossexualidade feminina, quem sabe sacudindo as evidências e modificando as representações, sem emitir uma resposta uniformizante ao que seja uma lesbiana.

Patrícia Lessa – * Patrícia Lessa – Mestrado em Filosofia da Educação (UNICAMP/SP), doutoranda em Estudos Feministas (UnB/DF). Professora na Universidade Estadual de Maringá/UEM – PR.

NAVARRO-SWAIN, Tania. O que é lesbianismo. São Paulo: Brasiliense, 2000. 101p. Resenha de: LESSA, Patrícia. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.9, p.150-153, 2005. Acessar publicação original. [IF].

SAFFIOTI Heleieth I B (Aut), Gênero/ patriarcado/ violência (T), Fundação Perseu Abramo (E), PIMENTA Fabrícia F (Res), Em Tempo de Histórias (ETH), Gênero, Patriarcado, Violência, Mulheres Publicado recentemente, em 2004, Gênero, Patriarcado, Violência parece ter sido concebido para ser uma espécie de “manual didático” que busca conceituar, sob a perspectiva de uma socióloga estudiosa das temáticas feministas, conceitos imbricados de paradoxos tais como gênero, patriarcado, poder, raça, etnia e a relação exploração-dominação.

A partir da utilização de conceitos formulados pela autora no correr de sua vida acadêmica, já que os temas em pauta fazem parte do universo de pesquisas de Saffioti desde os anos oitenta, a obra em análise se propõe a abrir novas perspectivas para o entendimento da violência contra as mulheres. Este tipo de violência, segundo a autora, consiste em um problema social cujo exame encontra-se entrelaçado aos estudos de gênero, raça/etnia, classes sociais e patriarcado.

Dividido em quatro seções de análises, a obra de Saffioti “destina-se a todos(as) aqueles(as) que desejam conhecer fenômenos sociais relativamente ocultos”(p.9), dentre os quais está a violência contra as mulheres, questão que perpassa todos os eixos de reflexão do livro em pauta.

As áreas da Saúde, Jurídicas, Ciências Sociais e Humanas têm se dedicado, mesmo que de forma tímida ou isolada, à compreensão dos mais diversos mecanismos de opressão das mulheres. Dada à diversidade e a multiplicidade de pesquisas que vem sendo realizadas em relação aos temas abarcados nesta obra, é possível observar que as articulações dos pensamentos da autora são perpassadas pela transversalidade de saberes. Assim, por meio de uma perspectiva reconhecidamente feminista e a partir do instrumental teórico do campo disciplinar no qual está inscrita é que partem suas pontuações. Com títulos de abertura dos capítulos considerados pouco comuns, tais como “a realidade nua e crua” e “descoberta da área das perfumarias”, a socióloga versa sobre temas específicos de forma a conceituar, em termos jurídicos e sociológicos, sobre os diversos tipos de violências (doméstica, de gênero, contra as mulheres, intra-familiar, urbana) existentes no caso brasileiro sob uma espécie de permissividade social.

Com essa profusão de novos conceitos, a releitura e a reinterpretação de teorias já existentes, acrescentando-se a instabilidade característica do fazer feminista, talvez não seja possível encontrarmos termos consensuais no contexto dos embates das correntes feministas.

A autora faz uma breve análise do cenário político-econômico brasileiro e constata que estes terrenos são, “certamente, a maior e mais importante fonte da instabilidade social no mundo globalizado”(p.14). Para ela, é sob a ordem patriarcal de gênero que devem ser feitas as análises sobre a violência contra as mulheres.

Recorrendo a referências obrigatórias no campo dos Estudos Feministas e de Gênero, tais como Carole Pateman, Gayle Rubin, Joan Scott, entre outras, Saffioti empreende uma escrita que varia entre pontuações extremamente coloquiais e outras passagens com reflexões importantes e densas para uma obra que pretende ser didática. Para o/a leitor/a desavisado/a, essas passagens requerem especial atenção, já que as análises da autora requerem uma leitura prévia dos conceitos discutidos. Exemplo disso é a utilização do conceito de poder formulado por Foucault que a socióloga utiliza sem maiores esclarecimentos acerca da perspectiva pósmoderna.

Influenciado pelas correntes do pensamento pós-moderno no qual estava inserido (construindo e desconstruindo suas perspectivas), ao refletir sobre outras maneiras de pensar, Foucault defende um amplo questionamento de conceitos caros a seu campo como a finalidade, a natureza, a verdade, os procedimentos tradicionais de produção do conhecimento histórico, as representações do passado com que operamos e os usos que fazemos de sua construção.

Outra questão que merece zelo na leitura são as discussões teóricas que Saffioti estabelece sobre diferentes perspectivas sobre os conceitos de gênero existentes. Vale destacar que, de natureza cultural e ideológica, os Estudos de Gênero introduziram a questão de gênero como categoria analítica e demonstraram como é ilusória a neutralidade dos valores ditos “universais”. Em sua prática interdisciplinar, articula – a partir de uma perspectiva “gendrada” – questões de raça, classe, etnia, bem como contribuições de vários eixos epistemológicos como a psicanálise, marxismo, antropologia, etc, buscando compreender a representação (histórico-cultural, literária) das mulheres, bem como sua contribuição neste processo.

Um ponto bastante interessante a ser ressaltado nesta obra, como se pode depreender da sua leitura, é que esta consiste no fruto de reflexões embasadas em dados empíricos e sobre pontos de referências a respeito das sobreposições parciais, as especificidades e diferenças entre as várias modalidades de violências existentes, fenômenos estes, demonstrados pela autora, que não são tão raros quanto o senso comum indica.

Consiste alvo de crítica da autora, em diversas passagens da obra, o uso político de uma diferença fundada nos argumentos do determinismo biológico e em normatizações feitas a partir de uma marca genital. Para ela, as pessoas são socializadas para manter o pensamento andrógino, machista, classista e sexista estabelecido pelo patriarcado como poder político organizado e legitimado pelo aparato estatal por meio da naturalização das diferenças sexuais.

Em relação à violência, tema que perpassa a maioria das reflexões da autora há que se considerar as sobreposições feitas por Saffioti sobre os conceitos e as especificidades de cada “fenômeno”, sua expressão para designar a violência. Ao mostrar os fatos em suas peculiaridades, a autora trabalha quadros teóricos de referência com vistas a orientar seu leitor. Assim, ela diferencia e explicita as características e os contextos em que ocorrem principalmente os seguintes tipos de violência: contra a mulher, de gênero, doméstica, intrafamiliar, entre outras. Nesse sentido, faz parte também das análises de Saffioti a ocorrência do “femicídio”, que, segundo ela, consiste na feminização da palavra homicídio e é um fenômeno infelizmente bastante recorrente, principalmente nos tempos atuais (p. 72-73).

No que tange ao significado da violência e todas as conseqüências que surgem da ocorrência deste fenômeno, a autora lembra que na sociedade patriarcal em que vivemos, existe uma forte banalização da violência de forma que há uma tolerância e até um certo incentivo da sociedade para que os homens possam exercer sua virilidade baseada na força/dominação com fulcro na organização social de gênero. Dessa forma, é “normal e natural que os homens maltratem suas mulheres, assim como que pais e mães maltratem seus filhos, ratificando, deste modo, a pedagogia da violência.” (p.74) Para Saffioti, a ruptura dos diferentes tipos de integridade, quais sejam, a física, a sexual, a emocional, a moral, faz com que se estabeleça a “ordem social das bicadas”, na qual o consentimento social para a conversão da agressividade masculina em agressão contra as mulheres, não é um fator que prejudica apenas as vítimas, mas também seus agressores e toda a teia social que convive ou é forçada, por inúmeros motivos, a suportar tal sujeição. como critério de avaliação de um ato como violento situa-se no terreno da individualidade e, dessa forma, cada mulher interpreta de forma singular esse mecanismo de sujeição aos homens. Segundo Saffioti, somente uma política de combate à violência (especialmente a doméstica) que se articule e opere em rede, de forma a englobar diferentes áreas (Ministério Público, juizes, polícia, hospitais, defensoria pública) pode ser capaz de ter eficácia no combate à violência.

As experiências da autora e a liberdade com que trata dos temas de forma a informar e/ou atualizar o leitor merecem atenção. Ao desvelar parte do processo de diferenciação sexuada, nas múltiplas configurações espaços-temporais, a autora expõe o caráter produtor e reiterador de imagens naturalizadas de mulheres e homens. Dessa forma, a obra pode ser considerada referência de leitura para as pessoas que se interessam pelas temáticas ligadas às questões de gênero, violência, patriarcado, e afins.

Uma vez que a literatura científica feminista tem sido constantemente obscurecida ou ignorada, este livro ressalta a importância no questionamento dos paradigmas científicos e da naturalização das formas de relações sociais que instituem o feminino e o masculino em uma escala de valores hierarquizada com vistas à desnaturalizar construções cristalizadas no imaginário e nas representações sociais sobre as desigualdades existentes nas relações entre homens e mulheres.

Trata-se de uma obra instigante, cuja leitura deve ser cuidadosa, que funda suas interpretações a partir do enfoque que entende o gênero como uma representação que produz e reproduz diferenças por meio da classificação dos indivíduos pelo sexo, os quais exigem abordagens e epistemologias específicas para suas análises.

Longe de ser um “manual didático” Gênero, Patriarcado, Violência apresenta conceitos já trabalhados pela autora em outros estudos, mas pode ser considerada uma referência bibliográfica atualizada para os/as interessados/as em estudos de Gênero e violências, já que apresenta importantes distinções das considerações anteriormente feitas aos deslocar o olhar do leitor para além do senso comum e das generalizações

Fabrícia F. PimentaGraduada em Direito, Mestre em Ciência Política pela UnB e doutoranda na UnB em História na linha de pesquisa “Estudos Feministas e de Gênero”. Apoio financeiro para a pesquisa: CNPq. E-mail: [email protected] / [email protected].

SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004, 151p. Resenha de: PIMENTA, Fabrícia F. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.10, p.190193, 2006. Acessar publicação original. [IF].

DOLHNIKOFF Miriam (Aut), O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil do século XIX (T), Globo (E), IAMSHITA Léa Maria Carrer (Res), Em Tempo de Histórias (ETH), Império, Brasil, Federalismo Século 19, América, Professora de História e Relações Internacionais da USP e pesquisadora do CEBRAP, Miriam Dolnikoff publica livro que contraria interpretações consagradas sobre a história política do Brasil imperial.

Inserida na questão maior da organização política do Brasil Imperial, a obra busca entender a longevidade da influência das elites no Brasil, investigando a maneira pela qual estas estiveram presentes no processo de construção do Estado brasileiro, de modo a contribuir na determinação de seu perfil.

Podemos melhor avaliar a pesquisa da autora e sua posição de embate frontal à historiografia estabelecida, por breve análise da idéia cristalizada da “história da construção do Estado brasileiro na primeira metade do XIX como a história da tensão entre unidade e autonomia”.

Sabemos que a interpretação do Período Regencial como a fase do jogo político entre centralização e descentralização de poder surgiu ainda no século XIX. A pesquisa de Augustin Wernet rastreou o início desta interpretação e o localiza na obra de H. G.

Handelmann, de 1860.1 Nesta visão assiste-se ao revezamento de homens no cenário político nacional, sem as profundas mudanças (revolução) das estruturas herdadas do período colonial, tendo a primeira metade das Regências sido caracterizada pelo avanço liberal (descentralização), e a segunda pelo regresso conservador (centralização). A historiografia a seguir vai articulando a descentralização às forças provinciais e à desordem, e o Regresso, ao retorno da ordem.

Por exemplo, Sérgio Buarque de Holanda considerou as forças provinciais, defensoras de um projeto federalista, expressão das forças localistas arcaicas, apegadas aos privilégios coloniais, enquanto a centralização seria o projeto que trazia no seu bojo a possibilidade de modernização, já que ela seria a condição de construir o Estado e a unidade nacional. A defesa dos interesses regionais se limitaria, deste ponto de vista, à tentativa de preservar a herança colonial. Para Buarque, o federalismo não passava de um lema para sustentar o estado das coisas vindas da vida colonial.

Outros autores como Maria Odila Dias e Ilmar de Mattos, também atribuem a vitória sobre as forças centrífugas herdadas do período colonial à capacidade da elite articulada em torno do aparato estatal do Rio de Janeiro de se impor a todo o território nacional. Para eles, o acordo pela unidade, pela centralização política e direção administrativa nas mãos do Rio de Janeiro, teria sido resultado do movimento conservador de 1840, conhecido como “Regresso”, indicando o abandono da experiência de descentralização da Regência.

Entre as interpretações mais consagradas está a de Jose Murilo de Carvalho, segundo a qual, a unidade sob um único governo, teria sido obra de uma elite da Corte, cuja perspectiva ideológica a diferenciava das elites provinciais, comprometidas com seus interesses materiais e locais. A vitória da primeira teria significado a submissão dos grupos provinciais, que ficavam desta forma, isolados em suas províncias. Essa vitória se materializou na imposição de um regime centralizado que neutralizava as demandas localistas das elites provinciais.

Discordando desses autores, e particularmente, de José Murilo, para Míriam Dolhnikoff, a unidade sob hegemonia do Rio de Janeiro foi possível não pela neutralização das elites provinciais e centralização, mas sim à implementação de um arranjo institucional por meio do qual as elites se acomodaram, ao contar com autonomia significativa para administrar suas províncias e, ao mesmo tempo, obter garantias de participação no governo central por meio dos seus representantes na Câmara dos Deputados. Através do parlamento, as elites nele representadas participavam não só do orçamento, mas também das questões relevantes para a definição dos rumos do país como a escravidão, a propriedade de terras e para organização do Estado, como a legislação eleitoral. (p.14) A autora discorda da idéia de que foi o retorno à centralização – “projeto vencedor” do Regresso- o responsável pela unidade do Império e pela definição do modelo de estabilidade deste; ou seja, para ela, o projeto federalista não morreu em 1824, nem em 1840, ele foi o vencedor, embora tenha feito, no bojo da negociação política, algumas concessões.

Dolnikoff entende que o “Regresso” foi uma revisão centralizadora que se restringiu ao aparelho judiciário, sem alterar pontos centrais do arranjo liberal, que tinham caráter descentralizador. (p.130) Ao invés de destacar a atuação da elite da Corte, a autora conclui que foi a participação das elites provinciais a propiciadora das condições para inserção de toda a América Lusitana no novo Estado, atuação decisiva, que inclusive marcou a dinâmica do Estado brasileiro.

Para a defesa desta posição, a autora recorta para pesquisa três unidades da federação: as províncias de Pernambuco, Rio Grande do Sul e São Paulo. Examina o exercício da autonomia dos governos provinciais inclusive em fase posterior ao Regresso. Justifica sua seleção por serem essas províncias diversas entre si, nos aspectos regionais, nos distintos passados, e nas diferentes demandas e interesses. Busca demonstrar que os diferentes conflitos encontravam espaço de negociação dentro da organização institucional organizada.

Desse modo, as elites provinciais tiveram papel decisivo na construção do novo Estado e na definição da sua natureza. Participaram ativamente das decisões políticas, fosse na sua província, fosse no governo central. E, ao fazê-lo, constituíram-se como elites políticas.

O que a autora quer mostrar mais especificamente é que as elites provinciais (com raízes no período colonial, que defendiam a ordem escravista, a exclusão social e as franquias provinciais) estavam também atreladas ao projeto de construção do Estado nacional e não excluídas. Justamente porque conseguiram articular-se a um arranjo institucional consagrado nas reformas de 1830 e na revisão de 1840 é que a fragmentação da nação foi evitada.

O “preço pago” por esta unidade conseguida teria sido o fortalecimento dos grupos provinciais no interior do próprio aparato estatal, com o conseqüente estabelecimento das poderosas forças oligárquicas, que ao final do século XIX, reivindicaram mais autonomia.

A autora conclui que foi a participação destas elites no interior do Estado, com fortes vínculos com os interesses de sua região de origem e ao mesmo tempo comprometidas com uma determinada política nacional, pautada pela negociação destes interesses e pela manutenção da exclusão social, que marcou o século XIX e também o XX. (p. 285) Mesmo considerando o levantamento feito pela autora entre o número de medidas centralizadoras e descentralizadoras, concluindo pelo predomínio das segundas, ainda pensamos que o fundamental foi a direção e a finalidade da acomodação centro/províncias no momento considerado: – que foi justamente o sentido da centralização, da negociação em torno de “um sentido”, que garantisse a permanência da sociedade escravocrata e excludente.

Notas 1 Historiador alemão, H G Handelmann, Geschicht von Brasilien. Berlim: Springer, 1860, p. 935, conforme Augustin Wernet, Sociedades políticas (1831-1832). São Paulo: Cultrix, 1978, p 15.

Léa Maria Carrer Iamashita – Doutoranda em História Social-UnB.

DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil do século XIX. São Paulo: Globo, 2005. Resenha de: IAMSHITA, Léa Maria Carrer. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.11, p.177-180, 2007. Acessar publicação original. [IF].

BRITO Eleonora Zicari Costa de (Aut), Justiça e gênero: uma história da Justiça de menores em Brasília (1960-1990) (T), Editora da UnB, Finatec (E), PACHECO Mateus de Andrade (Res), Em Tempo de Histórias (ETH), Justiça, Gênero, Menor de idade, Distrito Federal (Brasília), Século 20 Século 20, América

Nos anos 60 e 70, Michel Foucault abriu uma perspectiva para a leitura das relações de poder, demonstrando que, a partir do século XVIII, uma rede de dispositivos disciplinares objetivou não apenas atuar sobre o sexo, colocando-o “em discurso”, mas também inventou novas formas de apropriação de sentido.

O trabalho de Brito articula a noção de poder do pensador francês não somente pela via da negação de poder como simples repressão; a essa via a autora contrapõe a afirmação de que o poder positiva, diz sim, induz formas de saber e produz discurso. Trata-se, portanto, de um conceito de poder que produz verdades, mais do que as oculta, que constitui regras para o verdadeiro, regras, entre outras, de produção de enunciados e de reconhecimento de seus sujeitos-autores.

Justiça e gênero tem como tônica central o modo como a categoria “menor de idade”, em especial “a menor de idade”, fora lida pela Justiça de Menores no Distrito Federal entre 1960 e 1996 (embora o título estabeleça 1990, a autora nos traz dados atualizados até os meados da década seguinte). Uma leitura que adotou de uma série de estratégias que refletem questões ligadas às relações de poder e gênero, evidenciadas e criticadas pela autora. O trabalho inscreve-se no grupo de estudos de gênero que possuem como ambição desnaturalizar as relações entre homens e mulheres, mostrando-as como construções sociais, históricas e culturais.

Ao analisar os casos indicados nos arquivos do antigo Juizado de Menores de Brasília – um total de cinco mil processos de um universo de cerca de trinta e dois mil –, a autora nos apresenta a história da constituição da justiça voltada ao “menor” infrator, por meio da configuração do Código de Menores, numa clivagem entre Direito e Ciências Médicas, além das teorias assistenciais em voga desde o final do século XIX. Dessa forma, o livro localiza o leitor pelas histórias normativas que procuraram regular a relação entre a infância, a juventude e a Justiça.

Nesse aspecto, Brito indica o caráter ambíguo do Código de Menores de 1927, na medida em que, para esse instrumento legal, o “menor” foi uma criação da tensão entre um sujeito ligado ao perigo, a ser detectado e disciplinado, e o sujeito cuja inocência deveria ser resguardada ou recuperada. A autora apresenta-nos esse “leitmotiv”, intimamente ligado à dimensão punitiva – marca do Direito Penal –, que matizou a questão até 1990, ano da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e mostra-nos como esse sujeito “menor” é destituído de sexo e sofre o apagamento regulador das tensões de gênero.

Enquanto a lei desconsidera o sexo do menor, anulando-o, na prática, por meio das aplicações do Juizado, recupera-se esse sexo “anulado” hierarquizando-o. Para a autora, “antes de ser ‘menor’, a menina é seu corpo, seu sexo de mulher”, como demonstra já de início, a partir da análise do caso de estupro avaliado pelo ministro do Supremo, em que a transgressão não está no ato, mas naquele que transgride – máxima da Escola Positiva de Direito Penal.

Os casos vão surgindo de modo a configurar ora a constituição de uma vítima, ora uma delinqüência, sempre julgada a partir do sexo. Nas questões em que a “menina/mulher” é vítima de crimes sexuais, o que importa é verificar sua índole e não o caso em si. Nesse aspecto, o que os discursos proferidos pelos curadores e juízes instauram é a justificativa da violência como punição social para a “má-conduta” da mulher “devassa”. Impressiona a recorrência de preconceitos tradicionais impostos às menores; constata-se, por exemplo, que, em relação à “menina/mulher”, o crime se associava irremediavelmente à prostituição ainda no final dos anos 80. Sua sexualidade era o foco para onde convergiam essas explicações.

O trabalho nos lembra de que, na lógica das fábulas processuais, não cabia à mulher um papel ativo. Sua defesa só poderia ser constituída diante da evidência de que seu papel de agente passivo do ato estava garantido, de tal modo – mostram-nos os casos narrados –, que, protegida e vigiada pela insígnia do perigo, o respeito à mulher e o crédito de seu relato passavam pelo testemunho do homem adulto. Não são raros, por exemplo, os pareceres que culpam as mães pelas “distrações” das filhas, enquanto ao pai nada cabia senão a vergonha.

O desvio infanto-juvenil, ou seja, sua punibilidade perante a lei, insere-se, portanto, no contexto de certa “estratégia de “governamentalidade” que, por um lado, buscava disciplinar os corpos, e, por outro, objetivava a regulação da população” (p.119). Sobre as questões dos corpos, Brito narra todo um jogo de poder na constituição de uma Medicina Legal, cara às determinações hierárquicas entre homem/mulher, adulto/criança e normal/anormal. Teorias como as divulgadas por Afrânio Peixoto e Nina Rodrigues foram as que deram os contornos do debate sobre a delinqüência no Brasil e, conseqüentemente, sobre a infância e a juventude a serem “protegidas”, objetos preferenciais do saber criminológico.

Tal saber é evidenciado pela autora por meio do estudo de dois laudos solicitados pela Justiça. Um proferido para uma menina e outro, para um menino (os casos de Alice e Mário, independentes, estão entre as comparações mais impressionantes do livro). Os laudos naturalizam os comportamentos, “fixando os que são normais num e noutro sexo e classificando-os no discurso médico” (p.190). O saber médico (legal) respaldava a criação do desvio – ação fora da norma qualificada na patologia clínica –, migrando-o da ordem moral para a clínica. A perícia médica funcionava como uma guardiã da higiene sexual, medicalizando e criminalizando o sexo desviado de sua função procriativa, saudável.

Brito nos mostra como a própria pré-seleção do delito era imposta pelas relações de gênero, na medida em que certas práticas desviantes, na verdade, eram cometidas por meninos e meninas, mas classificadas de modo diverso. O que os pareceres e as sentenças não estavam preparados a permitir eram meninas em situações tidas como preferencialmente masculinas.

Um exemplo é a modalidade “perturbação da ordem”, instituída como um domínio reservado ao masculino, uma vez que corriqueiramente a rua – o espaço público – estava “estabelecida” como tal, enquanto na modalidade “inadaptação familiar” o número de transgressões femininas está “naturalizado”, pois passa-se para a esfera privada. Enfim, analisados e delimitados por critérios específicos a cada época, crianças e adolescentes têm a complexidade de seu “ser no mundo” reduzida a traçados lineares.

Contudo, as regras a que tal linearidade obedecia sofreram mudanças entre os anos 60 e o início dos 90. A autora não comete o erro de planificar os valores nas décadas estudadas.

Está, antes, interessada em como, em momentos distintos, embora próximos, o aparato regulador da “infância” lida com o paradoxo entre uma Justiça que institui para si o peso da modernização moral, ao passo que continua a reconduzir valores tradicionais instituídos às mulheres.

É certo que Brito salienta que as mutações, em muitos aspectos, só renovam alguns padrões de conduta historicamente defendidos. Ignorar que as relações de gênero impõem hierarquizações que estão para além daquelas “admitidas” pela lei – essa mesma viciada em dissimular tais hierarquias, mesmo nos dias atuais – é um alerta premente desse livro. De tal monta que a polêmica que mesmo hoje divide grupos feministas em torno do uso do sistema penal na luta pela defesa e pelo reconhecimento de direitos às mulheres deve ser evidenciada à luz das questões tratadas aqui. A autora põe em questão a eficácia de se acionar o sistema legal em favor da defesa dos direitos das mulheres, discutindo se esta prática, ao contrário, não seria promovedora de um quadro de aprofundamento das relações hierarquizadas de gênero. Pela conduta de sua pesquisa, a autora parece não crer que tal sistema – como ele se apresenta atualmente – seja capaz de garantir equidade.

Em muitos casos, como os próprios processos indicavam, eram famílias interessadas em desvincular-se daquela menor que não mais se adequava ao regime de menina da casa.

Jovens, algumas vezes crianças, trazidas do interior do país para trabalhar como domésticas sem receber salário, num dúbio jogo de exploração e tutela que, em determinado momento, era considerado indesejável. Tal questão mostra que o livro não se presta a maniqueísmos, pois aqui a autora indica como foi importante o papel do Juizado para desvelar esse jogo.

Às mulheres se perdoava, ironia discriminatória que atingia também as jovens de classe média que furtavam no comércio local. Elas eram, geralmente, enquadradas no chamado ‘descuido’, ou seja, na capacidade de pegar e não pagar por mera falta de atenção.

Ao examinar extensa documentação, a autora tomou o cuidado de questionar as determinações de produção, enquadrando-as num contexto histórico localizado, e evidenciou os procedimentos representados pela instituição. Exemplo: nos anos 60 e 70, o juizado de Menores de Brasília não possuía o aparato interdisciplinar de profissionais, previsto em lei, os quais deveriam apoiar as decisões tomadas; nem mesmo contava com instituições “corretivas”. Fatos que influenciavam as decisões e que fizeram muitos processos percorrerem uma cansativa rede burocrática, na esperança de que os problemas externos à demanda judicial fossem resolvidos antes de uma possível sentença.

São todas questões cruciais para quem quer compreender, a partir dos exemplos de Brasília, as determinações legais frente às relações de gênero. A autora não se furta a contextualizar o ambiente em que os documentos são gerados: “Profusão de imagens, Brasília era representada, ao mesmo tempo, como o espaço propício para a manifestação de uma sociabilidade que a fazia mais humana que a maioria das outras cidades (…) e lócus de manifestação do ‘perigo’ representado pela infância e pela juventude ‘desviantes’.”(p.154).

Tal abordagem confere ao livro mais esse atrativo. Além de interessar a estudiosos em gênero, ligados à história ou ao direito, há na pesquisa de Brito uma sutil, mas determinante, consciência do papel que essa “urbe”, tão exótica por sua constituição e história, ocupa na problemática. Brasília e os brasileiros vindos de todas as partes serviram a Brito para o elementar exercício de compreensão daqueles “poderes” que Foucault nos apresentou.

Mateus de Andrade Pacheco – Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília, com apoio do CNPq.

BRITO, Eleonora Zicari Costa de. Justiça e gênero: uma história da Justiça de menores em Brasília (1960-1990). Brasília: Editora Universidade de Brasília: Finatec, 2007. Resenha de: PACHECO, Mateus de Andrade. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.11, p.172-176, 2007. Acessar publicação original. [IF].

MARTINS Estevão C de Rezende (Aut), Cultura e poder (T), Saraiva (E), SALES Eric de (Res), Em Tempo de Histórias (ETH), Conceito de Cultura, Conceito de Ideia, Conceito de Poder, Conceito de Ideologia, Identidades, Organizações sociais, Estado Professor de teoria da história e de história contemporânea na Universidade de Brasília – UnB, Estevão C. de Rezende Martins dedica-se aos estudos nos campos da teoria, filosofia e metodologia da história, história cultural moderna e contemporânea, e das relações internacionais, em particular da Europa ocidental. Publica em 2007, Cultura e poder, livro que busca situar o leitor em questões referentes à formação e organização dos Estados modernos e de suas relações externas. Nas palavras do autor, o livro segue uma “perspectiva teórico analítica em que são coordenados a preocupação filosófica com a engenharia conceitual e o prisma historiográfico, penhor de inserção empírica dos temas tratados” (p. 01).

O livro está dividido em sete capítulos que buscam apresentar ao leitor, inicialmente, os conceitos que o autor utiliza (como poder, idéias, cultura e ideologia), para em seguida, demonstrar como estes são utilizados para a construção das identidades e, conseqüentemente, das organizações sociais que originam os Estados. Durante a leitura da obra capítulos, nota-se que há quatro seções de análise que direcionam o livro. Essas podem ser divididas em: seção de conceituação (capítulos 1, 2 e 3), nos quais são apresentados os conceitos usados em todo o livro; análise da União Européia (capítulos 4 e 5), onde as idéias apresentadas pelo autor já foram trabalhadas e postas em prática, com relativo sucesso; e análise da América Latina (capítulo 6), utilizando-se de todo o escorço conceitual apresentando. O capítulo 7 tratará das perspectivas sobre o uso das idéias e o poder que exercerão no contexto da “mundialização”.1 Diversos são os campos de estudos e pesquisas que se dedicam à formação dos Estados e sua relação com as identidades sócio-culturais. Dentre esses, há de se destacar o campo da ciência Jurídica, da Ciência Política e das Relações Internacionais. E é por meio dos conceitos fornecidos por estas áreas do saber que Martins articula seus pensamentos utilizando uma perspectiva que se afasta da ciência da história e se aproxima da filosofia, do direito e das relações internacionais. Por meio de tais perspectivas e com base no instrumental teórico dos campos citados é que o autor inicia suas pontuações.

O que são idéias e como são capazes de mover sociedades, isto é, sua concepção e sua função, são as bases para os debates do primeiro capítulo. O autor trata as idéias com uma perspectiva do papel que desempenham no “contexto de redes culturais cuja resultante são as formas de poder na sociedade e no Estado que interferem na formulação e na prática de condutas individuais e sociais”. (p. 7) As idéias são apresentadas como uma forma de orientação do agir, destacando-se em três dimensões distintas: passado (interpretação), presente (explicação) e futuro (projeção). Tais dimensões orientam o pensar humano e a formação não apenas de idéias, mas de identidades – outro discussão que perspassa o livro todo. O debate sobre as idéias de poder é o que conclui o primeiro capítulo. Neste ponto, Martins apresenta diversos posicionamentos sobre as idéias de poder – Foucault, Carl Schmitt, Jean Bodin, etc. – mas deixa claro seu alinhamento com a concepção de Niklas Luhmann, que concebe o poder “como um jogo social de ações, que causam a partir de pressupostos não causais, que efetuam trocas com base em fundamentos não permutáveis, que jogam utilizando regras não colocáveis em jogo”. (p. 25) O poder da cultura e a cultura do poder são o mote do segundo capítulo. O autor emprega o termo cultura, no livro, de forma ampla, “diretamente vinculada à ação racional do homem” (p. 2), um fator dinâmico de ação, formação e transformação. O fundamento da cultura está no fato de que o homem precisa agir para poder viver.

Utilizando-se das concepções de Gordon Mathews, para Martins, a cultura está mergulhada em um “sistema de circulação de idéias e de produtos chamado mercado” (p. 30), e segue três vertentes: a individual, a coletiva (família, colegas de trabalho, torcedores de um time, etc.) e a pública ou estatal (sistemas de educação e de comunicação em massa). Por estas vertentes, o autor explicita a importância do conhecimento histórico, ou “cultura histórica”, pois esse é formador de identidades e está inserido em um mundo de signos, elementos distintivos pertencentes a uma “cultura”. “A cultura histórica é, então, a articulação de percepção, interpretação, orientação e teleologia, na qual o tempo é um fator determinante da vida humana”. (p. 33) Ao nascer, qualquer pessoa já está inserida em um mundo pleno de histórias, de signos e conceitos pré-concebidos, mas isso não significa precisar aceitá-los passivamente; ao contrário, ao adquirir consciência, conquista a capacidade de transformar estas idéias dadas em idéias e conceitos próprios. O indivíduo, grupo ou nação demonstram, desta forma, o poder da cultura. A construção e formação das identidades tomam boa parte desse segundo capítulo, pois para Martins, é o entendimento de si e de quem é o outro que propiciará a criação de laços entre os países, superando questões seculares, como ocorreu com a União Européia (UE). Ponto interessante, pois o autor toma a UE como um exemplo, guardadas as devidas proporções, que a América Latina deve seguir para superar desavenças e se impor de forma organizada.

O terceiro capítulo trata da ideologia. Neste ponto, o autor explicita que o entendimento de ideologia como “receita pronta” para uso rápido, simples e imediato, independente do conteúdo ou dos fins – colocadas de forma maniqueísta muitas vezes – deve ser superado. Atualmente deve-se observar a amplitude e abrangência das idéias, que escapam do simplismo das ideologias clássicas. É algo que pode estar em qualquer contexto, desde que nele haja a questão de ser, pensar e agir, que pode ser entendida como ideologia. Martins expressa que ideologia “é um instrumento prático polivalente, socialmente relevante e particularmente eficaz – embora de contornos difusos, quando ‘vivida’ de forma concreta pelas pessoas”. (p. 67) Após apresentar suas impressões sobre os conceitos elencados Martins passa a questionar essas concepções, o autor vai se lançar a questionar o poder da cultura na história européia e, conseqüentemente, como se pode buscar um fio condutor para a formação das identidades da Europa ocidental, o que facilitaria a convivência e formação de um bloco de países.

O capítulo quatro é dedicado a apresentar a história da Europa ocidental e como a formação das identidades foi diferente em relação aos europeus orientais. Para tal, lança mão das idéias sobre a expansão da fronteira na formação das identidades e do conceito de “grande fronteira” – teorias de Frederick Tuner e Walter Prescott Webb, respectivamente. Para Martins, “A percepção ou ‘estranhamento’ cultural entre diversos ‘outros’ que conviveram – e convivem – no espaço da(s) Europa(s) é um elemento importante na organização extrínseca (…) e intrínseca da identidade cultural européia…” (p. 83).

As questões do multiculturalismo e das identidades nacionais no conjunto Europeu é o tema do capítulo cinco. Nesse momento da obra é debatido o conceito de “linguagem da nação”, isto é, o discurso político nacional que integra três grandes dimensões: a razão modernizadora, a vontade mobilizadora e a justiça igualitária. Por meio desta “linguagem da nação”, deste discurso político nacional é que as nações modernas se organizaram. Para Martins a nação não é uma ideologia, mas um “produto, dentro de um território particular, das relações entre uma economia, uma cultura e um Estado dominados pelo princípio da racionalidade instrumental”. (p. 99) Por essa linguagem é que uma sociedade pode construir o passado como tempo ultrapassado (dimensão interpretativa), de modo a se distanciar e poder explicar o passado e ter perspectivas de futuro (projeção). Contudo, no decorrer da leitura, nota-se que essa linguagem, com bases muito mais históricas, perdeu sua força. A busca de uma nova linguagem deverá, segundo Martins, passar por uma (re)construção das consciências nacionais (no âmbito europeu), devendo se reorientar em busca de uma síntese democrática, o que evitaria os elementos contraditórios de nossa modernidade.

O sexto capítulo do livro volta-se para os debates sobre a formação de uma identidade cultural latino-americana. São expostas quais são as dificuldades para se fomentar uma identidade comum na América Latina. O primeiro passo é compreender que as sociedades européias são “sociedades originárias”, ou seja, foram criadas, originadas da vontade mobilizadora de um grupo, enquanto as sociedades americanas são “sociedades implantadas”, isto é, não foram originadas de uma vontade de um grupo, mas sim impostas por um grupo sobre outro. A partir desse pressuposto, Martins vai discorrer sobre a situação na América Latina e das dificuldades de uma articulação histórica, que contribua para uma identidade comum.

A parte final da obra é dedicada a uma discussão de possíveis perspectivas sobre os movimentos de “mundialização”, o uso e poder das idéias nesse contexto “A multipolaridade política e cultural apresenta-se como contraponto consolidável para viabilizar uma alternativa à unipolaridade econômica norte-americana ainda remanescente”. (p. 137) Com tal perspectiva, propõe que o mundo social deve se voltar para um entendimento da diversificação cultural interna, encarceradas nos Estados nacionais, pois a cultura serve como referência do agir humano, podendo influenciar na modificação das estruturas sociais vigentes.

O historiador convencional ao ler, Cultura e poder não encontrará uma obra nos moldes da ciência da história. Mesmo hoje, onde as fronteiras entre as disciplinas como filosofia, história, sociologia e relações internacionais, não possuem um limite claro – pois todas se utilizam de conceitos comuns, mas com usos específicos – pode-se dizer que o livro é direcionado para o campo das relações internacionais, como o próprio nome da coleção, Coleção Relações Internacionais, já mostra – e dos estudos que debatem a formação dos Estados nacionais e das relações de poder que emergem no interior dessas sociedades, através de uma perspectiva cultura.

Centra-se no contexto europeu, mas segue esse caminho para demonstrar como as idéias e os conceitos apresentados foram aplicados na Europa, suas conseqüências e os possíveis que a América Latina pode seguir para formar uma macro-identidade regional, respeitando as diferenças culturais – o que não ocorreu no velho continente, segundo Martins, pois os Estados foram criados, como que ignorando tais diferenças culturais, criando situações de conflito nos dias atuais, como nos Bálcãs ou na região basca. Contudo, sem se aprofundar no debate, o livro pode introduzir e situar o leitor no debate sobre cultura e poder.

A obra de Martins é extremamente interessante, já que ao introduzir e situar o leitor no debate sobre cultura e poder, centra-se no contexto europeu e segue essa trilha para demonstrar como as idéias e os conceitos apresentados foram aplicados na Europa, suas conseqüências e os possíveis caminhos que a América Latina pode seguir para formar uma macro-identidade regional, desde que respeitadas as diferenças culturais.

Notas 1 O autor usa o termo “mundialização”, expressão do universo da língua francesa, no sentido de “globalização”, mas com ênfase aos aspectos mentais, ideais e culturais.

Eric de Sales – Graduado em História pela Universidade de Brasília – UnB e mestrando pela UnB em História na Área de Concentração História Social. E-mail para contato: [email protected].

MARTINS, Estevão C. de Rezende. Cultura e poder. 2 ed. Revisada e ampliada. São Paulo: Saraiva, 2007. Resenha de: SALES, Eric de. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.11, p.167-171, 2007. Acessar publicação original. [IF].

MORAES Letícia Nunes de (Aut), Leituras da revista Realidade (1966-1968) (T), Alameda Editora (E), OLVEIRA Emerson Dionisio Gomes de (Res), Em Tempo de Histórias (ETH), Revista Realidade, New journalism, História do jornalismo, Brasil Século 20, América Retrospectivamente, tem-se a impressão de que a revista Realidade nasceu para causar polêmica. No seu primeiro número (abril de 1966), a revista abordava o tema da sexualidade entre os jovens; dois meses depois, a principal matéria questionava o divórcio (dez anos antes de sua legalização). Nos números seguintes, temas como o celibato entre sacerdotes católicos ou a controvertida capa de dezembro de 1966 “Deus está morrendo?” causaram discussões em todo o País. Apesar de todas as controvérsias geradas nos primeiros meses da revista, a história desse veículo guardou para janeiro de 1967, com “A mulher brasileira, hoje”, o momento em que segmentos censores da sociedade passaram a agir contra a sua publicação de modo agressivo. Contudo, uma leitura atenta da seção de cartas da revista desmistifica qualquer possível surpresa em relação aos eventos daquele janeiro.

Na análise de Letícia Nunes Moraes, a revista pertencente ao grupo empresarial Abril de São Paulo resistiu em seus dois primeiros anos porque matinha uma relação amistosa com os governos militares, que, desde 1964, controlavam o País. Isso graças a matérias “simpáticas” e perfis de ministros e presidentes publicados com freqüência, embora tal relacionamento tenha lenta e gradativamente se deteriorado a partir de 1968, algo que pode ser verificado com o número de leitores que passaram a “atacar” a publicação.

Realidade foi um marco na história do jornalismo brasileiro ao abordar temas pouco costumeiros nos periódicos voltados à classe média urbana e por incentivar uma linguagem jornalística próxima aos efeitos estilísticos da literatura, naquilo que se denominou genericamente como “new journalism”. A revista foi publicada entre 1966 e 1976, e Moraes debruça-se sobre os três primeiros anos (1966-1968), cerca de 36 números, em especial sobre as cartas enviadas aos editores, numa forma consciente de compreender como o periódico decodificava as opiniões de seus leitores. Nesse aspecto a revista também inovou ao produzir as primeiras pesquisas para definir seu público leitor.

Ao definir seu objetivo, Moraes produz o primeiro ruído quando identifica, no confronto entre os missivistas e as matérias publicadas, uma possibilidade de entender “como a revista queria ser lida e como de fato era lida”, sem lembrar-se , contudo, de que sua fonte única é a própria revista e que mesmo aquelas cartas eram passíveis de seleção e edição.

Enfim, o que a autora nos oferece é um detalhado estudo de duas “esferas” editorias de uma publicação: aquela preocupada com os “fatos” e outra, dedicada a selecionar as interpretações dos “fatos” pelos leitores. É nesse ponto que a sagacidade da autora traz elementos novos, desvios que necessitaram de elementos comparativos para expor certas nuances expressas nas cartas que podem não ter chamado a atenção dos editores naqueles anos, mas que, aos olhos dos estudiosos, hoje não apenas denotam as estratégias dos meios de comunicação da época – imersos num regime hostil à liberdade de expressão – como também nos dão pistas sobre os assuntos debatidos.

Em outro aspecto, a autora adverte que a seção de cartas naquele universo midiático controlado é muitas vezes utilizada para expressar aquilo que não se permite mais nos editoriais, utilizando as opiniões de “leitores” como forma de “desviar” o sentido de autoria.

Infelizmente o trabalho não levou adiante a desconfiança de que cartas podem ter sido criadas pelos editores, como ela mesma conjectura, apresentando-nos como contra-argumento o fato de que não havia tal necessidade mediante a quantidade de cartas recebidas pela revista.

Argumento que em si não está necessariamente ligado ao problema.

Num outro hemisfério, uma prática chamou sua atenção: o fato de que algumas cartas eram respondidas, e as respostas publicadas, quando os editores (Paulo Patarra e Woile Guimarães) percebiam que as questões apresentadas poderiam interessar a outros leitores.

Essas respostas foram bem exploradas pela autora e nelas podemos ver um certo “diálogo” na seção de cartas com “alguns” leitores selecionados. O exemplo que nos parece atual é o número recorrente de leitores que reclamavam da elevada quantidade de anúncios publicados e de uma das respostas ofertadas: “Sem publicidade, imprensa não vive. O importante não é quantos anúncios uma revista contém, mas sim qual a qualidade e a quantidade das matérias que oferece ao leitor” (p.86).

Muitas respostas da revista continham a idéia de que a sugestão para uma nova matéria já havia sido considerada dentro da própria redação. Havia uma preocupação dos jornalistas em explicitar que estavam à frente dos leitores, que suas sugestões apenas reforçavam pautas. Essa tática discursiva era importante na construção da identidade de Realidade, que deveria ser lida como um veículo de comunicação que antecipava discussões e tendências críticas. Apesar desse expediente, a autora mostra que, com o passar dos anos, as respostas tornaram-se cada vez mais raras e eram destinadas a cartas contrárias às opiniões da revista.

Por meio de um banco de dados construído a partir da análise de 686 cartas publicadas, Moraes tenta configurar o perfil dos leitores que escreviam para Realidade. Mas o esforço é decepcionante; a maioria era formada por homens (73%) e oriundos da região sudeste (70%); as únicas informações possíveis, pois raramente aqueles que escreviam identificavam-se de modo preciso. As conjecturas quanto à idade, à profissão, à escolaridade ou a quaisquer índices, mesmo ofertados pela autora, parecem estatisticamente irrelevantes.

Em depoimentos à autora, os editores explicitaram que, nos primeiros números de Realidade, os leitores enviavam cartas cujo teor era mais genérico e as referências às reportagens da revista eram secundárias. Raramente essas cartas eram publicadas; optava-se por relatos diretos ligados à publicação anterior. Com o tempo, as cartas já seguiam essa receita, ou seja, ensinava-se ao leitor que desejava ter sua carta publicada como ela deveria ser escrita. Essa pedagogia da acessibilidade era conscientemente seguida e coloca em suspense qualquer ilusão de uma interatividade irrestrita, tão advogada na época.

Outro aspecto era o incansável desejo de uniformizar as leituras de matérias da revista propostas pelas cartas, numa clara manipulação daquilo que era entendido – publicado – como opinião pública. Nesse tocante, Moraes explora o que Patarra chamou de “jogar um leitor contra o outro” (p.112), uma forma de legitimar a opinião da revista diante de cartas desfavoráveis por meio da publicação cartas de leitores oportunos, conferindo à publicação uma falsa imparcialidade. Um procedimento ainda muito em voga nas publicações atuais.

As cartas mostram que a revista também foi considerada perigosa quando um número considerável de missivistas acusou a revista de defender uma nova organização familiar representativa de uma “revolução moral”. Alguns leitores escreveram à Realidade afirmando que seus filhos estavam proibidos de ler a publicação. Na contrapartida, a revista utiliza cartas de pais que se manifestaram de modo oposto: elogiavam a publicação por criar um ambiente mais confortável entre eles e seus filhos em relação a questões sobre sexualidade e drogas.

Os temas mais comentados eram os de comportamento. Três publicações de 1967 merecem destaque: “A mulher brasileira hoje”, de janeiro; “A juventude brasileira hoje”, de setembro; e “Existe preconceito de cor no Brasil”, de outubro. Temas explosivos que fizeram com que todas essas abordagens sofressem com proibições, ataques e debates acalorados dentro e fora da seção de cartas da revista. Mas nenhum tema foi mais combatido pelos leitores que o “Homossexualismo”, matéria publicada em maio de 1968 (uma data nada neutra), cuja repercussão negativa a revista ratificou, “talvez por ter o mesmo ponto de vista desses leitores” (p.116). Mas há reveses.

Estudiosos acostumados com os vieses da história da recepção sabem que leitores são freqüentemente praticantes de táticas que enviesam sentidos “programados”. Um exemplo ressaltado pela autora diz respeito à surpresa dos editores ao descobrirem que “prováveis” jovens estavam menos preocupados com a “revolução sexual” e as novas posturas comportamentais que com questões mais práticas como o acesso à educação de qualidade e desemprego. Essa conclusão nasceu dos resultados de questionários enviados aos leitores em julho de 1967 com perguntas sobre o divórcio, virgindade da mulher, cabelo comprido dos rapazes, mini-saia das moças etc. O resultado, publicado na edição de setembro (“A juventude brasileira hoje”), mesmo que longo, merece ser reproduzido: “Os jovens acreditam ao mesmo tempo em Deus e no socialismo, não pensam em revolução, acham que há alguma coisa errada no Brasil, mas a maioria prefere não protestar contra os abusos e erros. Julgam que seu papel é estudar, trabalhar e preparar-se para o futuro. Estão mais a favor do que contra o governo, embora muitos nem se preocupem com isso. Pregam a fidelidade para marido e mulher, os rapazes exigem a virgindade feminina, e muitas moças a masculina. Muitos defendem o controle da natalidade e se inclinam pela separação quando o casamento fracassa” (p.187, grifo da autora). Num mundo às vésperas de 1968, cada trecho desse pequeno resumo rendeu diferentes conclusões, exploradas no livro.

O debate político não está ausente do trabalho de Moraes; o número de cartas dedicadas ao assunto é menor que aquele direcionado aos costumes. Mas lidas de modo mais cuidadoso pela autora, mostram que temas como sexo ou matrimônio eram álibis para acusar a revista de ser “francamente antiamericana”, de “usar disfarces esquerdistas” ou para culpá-la de traição à pátria ou de ser “a favor de uma nação estrangeira” (p.140). O que, por efeito, alerta aos historiadores para o fato de que certas categorias estanques, tão arduamente elaboradas para nossas pesquisas, raramente resistem à complexidade dos “problemas” analisados.

Leituras da revista Realidade tem o mérito inegável de apresentar uma visão criativa daquela que foi a revista com maior credibilidade dentro da classe média brasileira no final dos anos 60, superando ícones do jornalismo como O Cruzeiro e Manchete. A autora ensina- nos a perquirir os detalhes de um “documento” que parece, a principio, demasiado óbvio ou já muito explorado. Seu trabalho confirma a suspeita, há anos difundida, de que novas fontes não são apenas encontradas, também podem ser construídas onde muitos já passaram.

Emerson Dionisio Gomes de Oliveira – * Doutorando do Programa de Pós-graduação em História da Universidade de Brasília, sob orientação da Profa. Dra. Eleonora Zicari Costa de Brito, com apoio do CNPq.

MORAES, Letícia Nunes de. Leituras da revista Realidade (1966-1968). São Paulo: Alameda Editora, 2007, 253p. Resenha de: OLVEIRA, Emerson Dionisio Gomes de. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.12, p.115-119, 2008. Acessar publicação original. [IF].

Teoria social: um guia para entender a sociedade contemporânea / William Outhwaite

Willian Outwaite atuou, por 34 anos, como professor de sociologia, coordenador do Programa de Pensamento Político e diretor do Centro de Teoria e Crítica Social na Universidade de Sussex. Autor de extensa obra sobre teoria social, é professor emérito de sociologia na Universidade de Newcastle, desde 2015.

Com o intuito de apresentar uma síntese da teoria social e o quanto essa ciência pode contribuir para a compreensão das grandes questões do mundo contemporâneo, a obra resenhada divide-se em oito capítulos. No primeiro, intitulado Origens, o autor promove uma reflexão sobre as origens das desigualdades sociais e os ideais, tão presentes hoje, que levaram às revoluções. Em Capitalismo, retoma o pensamento de Marx e Engels para analisar essa controversa forma social e econômica que, na atualidade, molda a vida da maior parte dos seres humanos. Em Sociedade, Outhwaite, objetivando examinar o desenvolvimento das sociedades – das formas simples às modernas – recorre a Herbert Spencer e Émile Durkheim. No quarto capítulo, Origens do capitalismo e teorias da ação social, o autor focaliza as precondições e consequências culturais do capitalismo.

Para introduzir o quinto capítulo e responder à pergunta “Como a sociedade é possível?”, o autor recupera o pensamento de Georg Simmel, cujo interesse por fenômenos culturais inspirou e inspira trabalhos em sociologia sobre a teoria “pós-moderna”. Em A descoberta do inconsciente, Outhwaite discorre sobre como a análise da psique de Freud moldou a compreensão da realidade, delineando as implicações desses estudos na cultura contemporânea. No capítulo Teoria social e política, a maneira pela qual alguns teóricos sociais tentaram explicar a política moderna recebe destaque. Por fim, em Questão pendente, temas relevantes na contemporaneidade que, até pouco tempo, eram negligenciados na teoria social são abordados, tais como gênero, relações internacionais e guerra, raça, colonialismo e crise ambiental.

O primeiro capítulo, concentra-se nas questões propostas por Rousseau e Montesquieu, no século XVIII, sobre a origem das desigualdades nas sociedades e a distinção entre moral e crítica social. Recorrendo a exemplos, o autor ilustra como esses temas permearam debates posteriores. Estabelece, desse modo, um paralelo entre as relações de poder, a histórica e crescente desigualdade social e, em se tratando de desigualdade natural, como nas sociedades capitalistas os olhares se voltaram à equidade. Nesse sentido, ressalta-se como as críticas de Rousseau ao excesso e ao luxo ou, nas palavras desse filósofo do iluminismo, a distinção entre a vontade conectada ao bem público e a vontade relacionada aos interesses individuais é extremamente relevante para a compreensão da política moderna.

Ainda sobre a política moderna, o autor retoma o pensamento de Montesquieu que, em O espírito das leis (1748), enfatiza a necessidade de um legislador, tanto quanto um arquiteto, conhecer bem o terreno antes de elaborar projetos, visto que o terreno pode não suportar o peso do que foi planejado. Em outras palavras, regimes políticos encontrarão solo seguro quando adequados à sociedade, não impostos. A aguda percepção de Montesquieu acerca da interação entre eventos acidentais e causas estruturais de longo prazo é, portanto, um bom ponto de partida para estudos que tem por fim compreender a relação entre o papel dos indivíduos e as estruturas mais amplas da história.

O autor finaliza este capítulo retomando a ideia de Montesquieu acerca do “espírito geral” e sinalizando como a mesma, além de encontrar eco no que Durkheim chamou de “consciência coletiva”, se mostra nuclear nos dias atuais para analisar-se as desigualdades, a democracia e os perigos do conformismo ou, numa expressão de Tocqueville, da tirania de uma maioria.

No segundo capítulo, Outhwaite, promove uma incursão na obra de Marx e Engels. De acordo com esse professor de sociologia, as análises realizadas por esses dois teóricos germânicos sobre os antagonismos das classes e as formas de produção são, até hoje, a forma mais consiste para pensar-se a estrutura social e econômica vigente na maior parte do globo terrestre: o capitalismo.

Começando com conceitos presentes em O capital (1867), é-se apresentado ao que Marx chamou de “valor de uso”, valor de troca”, “fator sensação”, “equivalente universal” e “mais valia”. Outhwaite assinala que a exploração do trabalho assalariado é tão intrínseca ao processo capitalista quanto os conflitos entre os que detêm os meios de produção e os que dispõe da força de trabalho. Lembrando que o lucro decorre do fato dos trabalhadores receberem em seus salários um valor bem distante do equivalente à produção por eles realizada, e os conflitos, por sua vez, resultam desse valor recebido mal suprir as necessidades de sobrevivência de quem detém a força de trabalho.

Ainda na atualidade, a ideia de receber o “valor total de seu trabalho” permanece tão incompatível com a manutenção do sistema capitalista que, em 1995, Tony Blair retirou do verso das carteiras dos trabalhadores a famosa clausula quatro do estatuto do Partido Trabalhista, que reconhecia como justo “Assegurar aos trabalhadores braçais ou intelectuais os plenos frutos de sua indústria e a mais equitativa distribuição possível deles, com base na propriedade comum dos meios de produção, distribuição e troca” (OUTHWAITE, 2017, p. 31).

Outra questão que merece destaque é a crítica de Marx à religião, por promover reflexões sobre a estreita relação entre os antagonismos de classes nas sociedades modernas e as ideologias. Para Marx, a insatisfação com as condições políticas e sociais levava o povo a refugiar-se nas ilusões da religião. Sob esse prisma, ao puxar o fio da religião, desmancham-se as bases que legitimam ideologicamente as desigualdades e a exploração.

Antes de encerrar o segundo capítulo, a autor ressalta como pode-se observar, no pensamento de Marx e Engels, a importância de uma relação harmônica entre seres humanos e, indubitavelmente, como essa necessidade de harmonia deve ser estendida a toda a natureza. Esses elementos abrem espaço para argumentar-se que a obra desses dois teóricos da filosofia e da sociologia, implicitamente, oferece bases para reflexões sobre desenvolvimento sustentável nas sociedades humanas. Tanto que, perto do final do século XX, na esteira do pensamento desses revolucionários socialistas, emergem movimentos anticapitalistas combinados a novos movimentos sociais, abordando temas como a desigualdade de gênero, a exploração baseada na etnicidade e a crise ambiental.

Em Sociedade, ao analisar o pensamento de Herbert Spencer – pioneiro da teoria social evolucionista –, o autor ilustra a problemática presente na ideia de “sobrevivência dos mais aptos”. Desta forma, sugere que para realizar-se um exame, por exemplo, do esgotamento do comunismo, tem-se que considerar um feixe de elementos que perpassam por questões econômicas, ideológicas e culturais.

Ao avaliar o contraste entre o que os teóricos marxistas chamam de ideologia e o que Durkheim nomeia como sistemas de valores compartilhados, Outhwaite lembra que Durkheim, no final do século XIX, em sua obra O suicídio (1897), analisou as diferentes taxas de suicídio e promoveu reflexões sobre o valor das crenças compartilhadas, bem como sugeriu a importância dos laços sociais. Esses estudos instigam questionamentos sobre o modelo globalizado e fragmentado da sociedade em que vivemos.

No quarto capítulo, é apresentado o pensamento contido na obra de Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo (1904-05). Destaca-se a análise sobre o modelo da ética econômica protestante e os quatro tipos principais de ação identificadas por Weber: a ação tradicional, a ação guiada pela emoção, a ação irracional em relação aos fins e a ação racional em relação aos valores.

O autor finaliza o quarto capítulo focalizando no trabalho de Georg Lukács, Theodor Adorno e Habermas as conexões entre as formas de ação social, no nível mais básico, e os processos mais amplos de desenvolvimento social e histórico.

Em como a sociedade é possível, Outhwaite descreve ligações entre comportamentos cotidianos e processos estruturais mais amplos, tendo como base o pensamento de Georg Simmel, Erving Goffman, Harold Garfinkel, e a obra de Norbert Elias, O processo civilizador (1939). Nas palavras do autor, em razão do extenso exame que Simmel realiza das precondições e das consequências intelectuais, culturais e psicológicas da economia monetária em A filosofia do dinheiro (1900), essa obra poderia, sem dúvida, ter por título “sociologia do dinheiro”. Para esse sociólogo alemão, individualismo, nervosismo e economia monetária se relacionam estreitamente com a vida urbana, sendo o desgaste compensado pela atitude blasé.

A obra de Goffman, por sua vez, tem como foco a dimensão da representação no desempenho de papeis sociais, ou seja, de acordo com esse sociólogo norte americano, as pessoas se adequam aos papeis prescritos pela sociedade para não serem excluídas. O pensamento de Harold Garfinkel se aproxima da abordagem de Goffman, já que para o primeiro a manutenção da ordem é produto do trabalho interpretativo dos atores sociais.

Após destacar o paralelo estabelecido por Norbert Elias entre as transformações, nos primórdios da Europa moderna, das estruturas de personalidade e dos comportamentos individuais e a origem do Estado moderno, Outhwaite, recorre a Zygmunt Bauman e Luc Boltanski para expor a magnitude dos desafios da sociedade contemporânea.

Partindo da premissa de que a análise que Sigmund Freud fez da psique moldou totalmente a compreensão que tem-se da humanidade e, consequentemente, da cultura e da sociedade, Outhwaite inicia o sexto capítulo ponderando acerca do papel do recalcamento de pulsões conscientes e inconscientes na construção da cultura humana. Para defender sua tese, recorre às teorias de Freud, Erich Fromm, Herbert Marcuse, Theodor Adorno e Louis Althusser.

Ainda nesse capítulo, o autor estabelece associações entre e as ideias de Freud e as de Marx; entre o modelo de autoridade carismática de Weber e os sentimentos inconscientes – estudados por Freud – de quem segue essa espécie de liderança; e, por fim, entre a ênfase de Freud na regulação e o que Durkheim denominou ausência de normas na sociedade moderna. Destaca-se o impacto da psicanálise na interpretação de textos literários e na análise de produções cinematográficas, em especial, as análises de Hanns Sachs, Gilles Deleuze e Slavoj Žižek.

No capítulo intitulado Teoria social e política, Werner Sombart, Robert Michels e Norbert Elias são referências para o debate sobre o quanto uma concepção do social ou de sociedade pode ter potencial para promover a compreensão de problemas que a abordagem política não consegue alcançar. Outhwaite lembra que esses teóricos sociais propuseram análises significativas da política e, para ilustrar, retoma suas ideias sobre a permanente oposição entre a teoria das elites e a teoria da sociedade de massas; a exposição das massas urbanas às elites demagógicas; a abertura da teoria crítica às questões culturais e à teoria freudiana; a oposição entre as explicações centradas no Estado e centradas na sociedade; bem como sobre as teorias da globalização e suas dimensões econômica, social e cultural.

Sobre as teorias da globalização, finaliza esse capítulo lembrando que essas não podem se deter aos aspectos econômicos, pois envolvem dimensões sociais e culturais mais amplas. Nesse sentido, o autor propõe a reflexão sobre as formas atuais de política democrática em meio a relativa imobilidade das estruturas políticas e os avanços das técnicas de manipulação das massas, destacando o controle exercido pela televisão e ascensão de partidos populistas.

Outhwaite, em Questão pendente, avalia que, apesar da relevância da teoria social, algumas áreas foram tardiamente tratadas pela sociologia, como, por exemplo, as relações internacionais e a guerra. De acordo com pesquisas realizadas por esse autor, a palavra conflito – relacionada à conflito internacional e guerra – pouco aparece nas produções acadêmicas do final do século XX. Além disso, pouca atenção foi dada às noções grosseiras de competição evolutiva aplicadas ao social e aos movimentos “verdes” que, nas palavras do autor, não podem continuar sendo negligenciados pela sociologia.

A teoria pós-colonial tem se mostrado mais forte nos estudos literários que nas ciências sociais e, sobre essa sociologia que emergiu de uma cultura imperialista e desconsiderou o mundo colonizado, o autor afirma ser urgente sua revisão. Considera, também, que os debates em torno da modernidade e pós-modernidade não podem mais ignorar os modos como a democracia foi transformada em algo próximo a um teatro, no qual a política é protagonizada pelos que controlam as finanças e os meios de comunicação.

Para além de proporcionar uma viagem panorâmica pelos tópicos que interessam à teoria social e uma breve abordagem das análises realizadas pelos seus principais pensadores, nesse livro, pode-se avaliar o papel da teoria social e sua possibilidade de iluminar, em conjunto com as ciências sociais e a filosofia, questões latentes no século XXI.

Considera-se que, em um cenário contraditório, de aumento de pobreza, desemprego e exclusão, de violência urbana e de inquestionável expectativa de pertencimento ao mundo, tem-se como escolha a negação de acondicionamento ao existente. Nesse sentido, o conhecimento que advém desse livro pode ser uma excelente contribuição para instigar reflexões sobre e ações direcionadas às possibilidades de construção de, como coloca Gohn e Hamel (2003, p. 118), um “(…) novo modelo civilizatório, em que a cidadania, a ética, a justiça e a igualdade social sejam imperativos, prioritários e inegociáveis”.

Referências

GOHN, Maria da Glória; HAMEL, Pierre. Movimentos sociais e mudanças na democracia. In: ROMÃO, José Eustáquio; SANTOS, José Eduardo de O. Questões do Século XXI, tomo I. São Paulo: Cortez, 2003.

Régia Vidal Santos – Doutoranda em Educação na Universidade Nove de Julho (UNINOVE).


OUTHWAITE, William. Teoria social: um guia para entender a sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar, 2017. 142p. Resenha de: SANTOS, Régia Vidal. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.32, p.126-131, jan./jul., 2018. Acessar publicação original. [IF].

El Cercano Oriente Antiguo: nuevas miradas sobre viejos problemas / Cristina de Bernardi e Jorge S. Castillo

Lejos del estereotipo que los asocia a un saber inmóvil, los estudios históricos sobre las sociedades del Cercano Oriente antiguo constituyen un ámbito que asiste a una permanente renovación, tanto desde el punto de vista de las temáticas como de las fuentes y los principios teórico-metodológicos puestos en juego para una comprensión más profunda de la historia y la cultura de aquellas sociedades. El libro El Cercano Oriente Antiguo: nuevas miradas sobre viejos problemas, una compilación organizada por Cristina De Bernardi y Jorge Silva Castillo –dos distinguidos historiadores de la antigüedad oriental de Argentina y México respectivamente–, constituye un fiel retrato de esta renovación de los intereses de los historiadores dedicados a esta subdisciplina, preocupados por desligarse del paradigma marcadamente eurocéntrico, colonialista y racista que animó el surgimiento de la disciplina y sigue aún vigente a pesar de haber sido fuertemente discutido en el contexto de las ciencias sociales, así como también por aportar nuevos planteos sobre aspectos territoriales, sociales económicos, culturales y simbólicos y dar cuenta de manera global y holística quiénes eran y cómo vivieron los antiguos habitantes de esas regiones. Se trata de una obra destinada a reunir las ponencias discutidas en una mesa dedicada a la historia antigua del Próximo Oriente en el marco del XI Congreso Internacional de la Asociación Latinoamericana de Estudios de Asia y África (ALADAA), llevado a cabo en la Universidad Nacional Autónoma de México a finales del año 2003, así como sumar los aportes de otros investigadores iberoamericanos también especializados en la temática que, a pesar de su activa trayectoria de participación en los distintos encuentros internacionales organizados por la Asociación, no pudieron presentar sus avances en aquel congreso por diversos motivos coyunturales. Como resultado final de la convocatoria, disponemos de una nueva compilación de trabajos que cubren una variedad de problemáticas acerca de las características y modos de funcionamiento de las diversas sociedades del Cercano Oriente antiguo, resultado a su vez de un conjunto muy heterogéneo de proyectos de investigación. Por tanto, el futuro lector no deberá esperar hallar en esta novedosa propuesta editorial un libro en el que las contribuciones de los autores respondan a una sola pregunta de investigación, ni mucho menos que cubran el mismo horizonte temático, espacial, temporal y cultural.

Sin embargo, una rápida mirada de conjunto obliga a plantear que los diversos trabajos que aquí se publican comparten dos características que, desde nuestra perspectiva, otorgan consistencia interna –si no homogeneidad– a la presente compilación. Por un lado, la presencia de modos historiográficos de aproximación al pasado que, además de obedecer a enfoques y metodologías particulares, cargan con el “sesgo local de los problemas epistemológicos”1, en la medida que las condiciones locales de producción y transmisión de las investigaciones sobre el antiguo Cercano Oriente dentro del ámbito latinoamericano no sólo influyen decisivamente en las posibilidades y límites para abordar ciertos problemas de la trayectoria histórica de esos antiguos pueblos, sino también en la mirada que indefectiblemente se imprime sobre tales empresas del conocimiento histórico. En efecto, cada uno de los artículos comprueba el camino de investigadores que, armados con todo el protocolo del rigor científico del campo, pero trascendiendo el peso arrogante de las tradiciones académicas centrales, han insistido en la necesidad epistemológica de construir progresivamente una labor investigativa autónoma, reflexiva y crítica desde los márgenes, capaz de sustanciarse en estudios tanto empíricos como teóricos, rebosantes de aportes y conclusiones claramente señeras y en dialogo con la producción académica internacional. En esa dirección, la obra refleja el estado en que se encuentran las diversas líneas de estudio e investigación sobre las sociedades antiguas del Próximo Oriente que existen en España y América Latina, pero particularmente en Argentina, país del cual proceden la mayoría de los autores que escriben aquí y que –huelga decirlo– son dignos representantes de un grupo de académicos universitarios bien afianzado en el ámbito argentino y con amplio reconocimiento y proyección en varios centros de investigación de prestigio mundial.

Y por otro lado, una insatisfacción respecto de las posiciones predominantes dentro de la historiografía antiguo-oriental sobre ciertos temas ya clásicos, como el surgimiento de centros urbanos y estatales, los vínculos entre Estados y comunidades aldeanas y grupos nómadas, los fenómenos de expansión territorial y contacto intercultural, las experiencias religiosas y modos de representación del mundo, el funcionamiento de los primeros mecanismos de control social, etc. Esos viejos problemas necesitan replantearse, por cuanto urge apartarse del pesado legado historiográfico que, al traducir esas realidades pretéritas en un pasado exótico, glorioso y monumental, reproduce el estereotipo de que tal área de investigación conforma una “historia de anticuarios”, sin conexiones con el presente o las realidades locales. De esa forma, los trabajos exploran viejos terrenos de debate y polémica –relacionados con las instituciones políticas y jurídicas, las economía políticas y campesinas, las relaciones interculturales, las formas de dominación y control social, las creencias religiosas y las representaciones simbólicas– desde enfoques novedosos –asociados con la historia social y política, los estudios étnicos, la antropología política y económica, los estudios subalternos, la perspectiva de género, la arqueología histórica y las investigaciones sobre la memoria social–, proveyendo resultados y sugerencias importantes para poner en jaque muchos de los supuestos en que se basaba la caracterización socio-antropológica e histórica de los modos de vida y pensamiento existentes en las sociedades del Cercano Oriente antiguo.

Conforme a estos ejes y criterios, un primer núcleo de trabajos se centra, indudablemente, en los diversos procesos sociohistóricos de cambio que condujeron al urbanismo y a la concomitantemente aparición y afianzamiento del Estado en las sociedades del Próximo Oriente Antiguo, aportando elementos significativos –tanto a nivel empírico como conceptual– para discutir el modo con que tradicionalmente han sido retratados tales fenómenos y ofrecer una reconstrucción alternativa. En su artículo, el historiador Marcelo Campagno (UBA-CONICET, Argentina) plantea que lejos de lo que propone la imagen tradicional acerca de la instauración de dinámicas estatales en el antiguo Egipto, ésta experiencia parece haber sido menos monolítica y menos distante del patrón policéntrico y fragmentario que caracterizó la formación estatal en la Baja Mesopotamia. Amparándose en los recientes avances arqueológicos y discutiendo críticamente la categoría proto-Estado, esa suerte de “significante vacío” por su indefinición teórica y paradójica referencia histórica dentro de la egiptología, el autor demuestra la existencia de tres entidades sociopolíticas en el valle del Nilo del último tercio del IV milenio a. C. y repropone el lugar que les cupo en la formación de un único centro de poder en el Alto Egipto que, en su progresiva consolidación y expansión, terminaría definiendo el Estado faraónico. En una línea compatible con el capítulo anterior, la contribución de la arqueóloga Walburga Ma. Wiesheu (ENAH, México) busca desconstruir la vieja y arraigada tesis en las investigaciones sobre el contexto urbano de la Mesopotamia del Dinástico Temprano que indican la presencia de Estados teocráticos altamente centralizados, cuyas instituciones más representativas –el palacio y el templo- no sólo controlaban virtualmente cada una de las dimensiones de la vida de las ciudades-Estados, sino que además tenían una amplia capacidad y fuerza para concentrar prácticamente todos los recursos económicos de las comunidades locales para luego, idealmente, redistribuirlos. A partir de una relectura del material arqueológico y epigráfico disponible y confrontación de distintas posiciones historiográficas, la autora restituye un retrato histórico de la Mesopotamia protodinástica con un paisaje social sumamente heterogéneo y complejo, en el que además de comprobar la supervivencia de varios e importantes grupos de parentesco en las zonas urbanas y rurales, emergen indicios de la estructuración de intrincadas redes de dependencia que, a partir del afianzamiento del dispositivo estatal, incidieron negativamente en la trama de solidaridades de los grupos familiares locales y provocaron su lastimoso desmembramiento, lo que a su vez se tradujo en la configuración de nuevos vínculos de patronazgo en torno a aquellas instituciones urbanas que caracterizaron a las diversas sociedades mesopotámicas del Dinástico Temprano.

Un segundo núcleo de trabajos se ocupa del análisis de las diferentes modalidades que adquirieron las relaciones entre las sociedades del Cercano Oriente antiguo, tanto en sus dimensiones sociales como simbólicas. En esta senda, Cristina De Bernardi (UNR, Argentina) y Jorge Silva Castillo (El Colegio de México, México) contribuyen con un artículo cuyo objetivo principal es recuperar la indagación de las relaciones interétnicas entre sumerios, acadios y amorreos en la Mesopotamia del III milenio a. C., problemática que había permanecido largamente desatendida en la agenda investigativa de los estudios antiguo- orientales, al punto de que numerosos abordajes tradicionales sobre estas antiguas poblaciones o bien reproducían los estereotipos culturales acuñados por los propios actores, o bien los presentaban como mundos sociales totalmente al margen unos de otros, sin intercomunicación y en permanente conflicto. Los autores matizan las perspectivas vigentes y revelan la existencia de múltiples dinámicas de contacto e interrelación entre grupos con identidades étnicas distintas, pero siempre conviviendo en el marco de centros urbanos multiculturales y pluriétnicos desde el protodinástico al período neosumerio, puntualizando que las fricciones interétnicas habrían sido inducidas por los fenómenos de centralización del poder estatal que significaron la preeminencia sociopolítica de una etnia por sobre las demás, los consecuentes procesos de victimización y la profundización de las tensiones intersocietales. En su sucinto capítulo, el arqueólogo Ianir Milevski (Israel Antiquities Authority, Israel) se ocupa de los vínculos sociopolíticos que se configuraron en el Levante durante el Bronce Medio desde un registro de análisis centrado en la iconografía. Partiendo de la tesis de que en general la glíptica expresa los discursos de las clases dominantes a partir de una serie de artefactos ideológico-manipulativos elaborados por especialistas, este autor presenta un detallado análisis, descripción y comparación de las evidencias que proporciona un grupo de cilindros sello palestinenses, apuntando que a diferencia de los escarabajos que indican una expresión política influenciada por Egipto, aquellos parecen más bien reflejar una iconografía de autoridades locales de no tal alto rango en la constelación de gobernantes cananeos que no sólo dejarían impresos ciertos rasgos de su particular identidad étnica sino también, en una probable actitud de rebeldía, su decisión de identificarse o permanecer bajo influencia de los grandes centros del norte mesopotámico.

El estudio de las ideologías religiosas, las prácticas rituales y su articulación con distintas expresiones políticas constituye otro núcleo seleccionado por los trabajos del volumen. El aporte de Ana Fund Patrón de Smith (UBA, Argentina), entraña la intención de exponer que las narrativas bíblicas fueron construidas de forma tal que, operación política mediante, la historia se adaptara al mito. Sin desechar las tesis que han comprobado la presencia de varios tropos vinculados a las tradiciones y mitologías mesopotámicas dentro del discurso bíblico, esta historiadora –verdadera pionera en las investigaciones antiguo-orientales de Argentina– argumenta que también es posible identificar algunas referencias de la cosmología egipcia que evocan y resinifican los compositores de los primeros textos del Antiguo Testamento. Asimismo, Fund Patrón apela a las variables de “legitimación” y “descalificación” para demostrar que los escribas, en su doble pertenencia e identificación – hacia las elites que los empleaban y hacia el conjunto social al cual pertenecían–, enfatizaron la autoctonía, pureza y singularidad tanto de pueblo como de un linaje con rasgos étnicos difícilmente distintivos y específicos en una región geográfica e históricamente multiétnica, como la de Cannán, para de este modo justificar posiciones políticas de aquel entonces, las cuales –recuerda la autora– continúan siendo evocadas en el presente para sustentar ciertas políticas y violencias contemporáneas. También en la línea de las pesquisas sobre las tradiciones histórico-míticas conservadas en el relato testamentario, el historiador Bernardo Gandulla (UBA/UNLu, Argentina) nos provee un importante análisis filológico y material de las peculiares figulinas denominadas terafim y sus diversos usos en diferentes acontecimientos narrados a lo largo del Génesis. Este autor pone de manifiesto que tales artefactos no pueden ser asociados en todos los casos a pequeños objetos de culto familiar a los antepasados, ya que su repetida mención en contextos diferentes no autorizan a plantear la unicidad del significado, y que en aquellos casos en que la presencia de los mismos ocurre en el trasfondo de disputas legales, es posible detectar semejanzas y paralelismos con prácticas jurídicas extrabíblicas procedentes de Emar y Nuzi. Con ello, Gandulla no sólo postula la existencia de un fondo cultural común hurro-amorreo sino también sugiere la posible estrategia político-ideológica empleada por los redactores tardíos del Antiguo Testamento de emplear tales costumbres para hacer inteligibles acontecimientos remotos transmitidos por la memoria colectiva. De la pluma de Susana B. Murphy (UBA/UNLu, Argentina) contamos con un trabajo sobre la ideología del poder real en Asiria y las diferentes prácticas y representaciones que rodeaban la figura del monarca. Recurriendo al concepto “tradición” provenientes la sociología weberiana y a la noción de “costumbre” del historiador inglés E. P. Thompson, devela que los gobernantes del imperio neoasirio supieron elaborar un complejo sistema simbólico en el que retomaron buena parte de los fundamentos introducidos por los gobernantes amorreos de la Mesopotamia del II milenio a. C., transformando a las genealogías, la evocación de la memoria de los ancestros y los rituales en los principales mecanismos a través de los cuales la autoridad suprema seguía en manos del dinasta reinante y garantizar la fidelidad de las distintas facciones que existían dentro del ámbito palatino.

Cierra la compilación un artículo del historiador José Carlos Castañeda Reyes (UAM, México), en el cual indaga el papel que jugaron las mujeres a lo largo de la historia social del Egipto antiguo desde una posición teórico-metodológica que parte de la influencia de la escuela historiográfica francesa contemporánea de los Annales, centrándose particularmente en los momentos que no han sido ampliamente estudiados en el campo de la egiptología, como los episodios de tensión, crisis y rebelión. Sin embargo, de todos los trabajos que integran el volumen, éste en especial se involucra en un problemática que, consideramos, el autor no logra resolver satisfactoriamente. Si bien este investigador plantea su oposición a las visiones estereotipadas y superficiales sobre la experiencia de las mujeres en la sociedad egipcia mediante un recorrido con cierto detenimiento por sus diferentes espacios de actuación, arriba a una conclusión tan o más controversial que la sostenida por las aproximaciones tradicionales, ya que señala de una manera poco convincente que las mujeres egipcias –a pesar de los numerosos condicionantes y limitaciones– se destacaron por una posición de mayor participación y trascendencia comparada con otros casos históricos de la antigüedad.

Después del recorrido de lectura que propusimos de esta compilación, queda en claro que se trata de una obra que congrega trabajos animados por opciones temáticas y teórico- metodológicas diferentes, pero que comparten los objetivos de identificar los límites de las concepciones vigentes en la historiografía del Cercano Oriente antiguo, desarmarlas a la luz de los nuevos planteos y poner al alcance del lector perspectivas actualizadas y rigurosas. Lejos de agotar los interrogantes sobre esa amplia diversidad de procesos históricos y formaciones sociales y culturales, los trabajos que se incluyen en esta colección deben considerarse como intentos que apuntan a una serie de objetos de análisis y enfoques que sería necesario continuar y profundizar. Importantes preguntas han sido respondidas, pero otras cuestiones seguramente permanecen sin resolver, ya que se trata de las experiencias históricas de múltiples sociedades que, desde el temprano poblamiento del espacio, enfrentaron los desafíos de un entorno a veces hostil, elaboraron respuestas originales, diversificaron sus modos de vida, reorganizaron muchas veces sus organizaciones políticas y económicas y produjeron complejos sistemas simbólicos. Menos explícito, pero no menos firme, es el otro objetivo que persiguen este libro y sus compiladores: despertar la curiosidad, interés y esfuerzo intelectual de otros investigadores latinoamericanos preocupados por generar nuevos debates, aportar sus propias perspectivas y alcanzar una mejor comprensión de esas antiguas sociedades, sus historias y sus culturas desde estas latitudes académicas.

Horacio Miguel Hernán Zapata – Docente-Investigador. Universidad Nacional del Nordeste (UNNE) / Universidad Nacional del Chaco Austral (UNCAus) / Instituto de Formación Docente “Profesor Agustín Gómez” (IFDPAG), Argentina. E-mail: [email protected].


DE BERNARDI, Cristina; SILVA CASTILLO, Jorge (Comp.) El Cercano Oriente Antiguo: nuevas miradas sobre viejos problemas. Rosario: Facultad de Humanidades y Artes – Universidad Nacional de Rosario / Centro de EStudios de Asia y África – El Colegio de México, 2005. 152p. Resenha de: ZAPATA, Horacio Miguel Hernán. Viejos problemas, nuevas miradas. Los estúdios sobre las sociedades del Cercano Oriente Antiguo desde una perspectiva historiográfica latino-americana. Em Tempo de Histórias, n.28, p.187-193, jan./jul, 2016.Brasília, Acessar publicação original. [IF].

 

Espaços fechados e cidades: insegurança urbana e fragmentação social / Maria Encarnação B. Sposito

O livro, “Espaços fechado e cidades: insegurança urbana e fragmentação socioespacial”, lançado no ano de 2013 é resultado de um trabalho interdisciplinar desenvolvido pelas professoras da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP/Presidente Prudente – SP, Maria Encarnação Beltrão Sposito (Geografia) e a Eda Maria Góes (História), em parceria com outras ciências como a Sociologia e a Antropologia. A partir da perspectiva de que o “espaço não é mero coadjuvante”, mas faz parte das construções sociais, as autoras buscaram analisar a segregação socioespacial por meio do estudo dos espaços residenciais fechados, ou seja, os condomínios particulares. Sob essa baliza, Sposito e Goés procuram compreender as matizes nas fragmentações estruturais do espaço urbano e as implicações enquanto segregação social.

Antes de adentrarmos nas abordagens metodológicas da obra, é importante frisar que o livro em questão no ano de 2015 recebeu o prêmio, “Ana Clara Torres Ribeiro”, laureado pela Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional – ANPUR, o que colocou em destaque acerca das mais recentes discussões sobre as problemáticas do espaço urbano. A obra foi resultado de um trabalho intenso e de fôlego que vem sendo desenvolvido através do conjunto de analises desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa Produção do Espaço e Redefinições Regionais (GAs-PEERR), o qual reúne amplo leque de perspectivas do olhar sobre o objeto urbano.

As autoras analisaram três cidades médias do interior paulista, Marília, Presidente Prudente e São Carlos. A escolha foi parte da metodologia, pois, assume a ideia de sair da seara das metrópoles como objetos centrais dos estudos do urbano no Brasil. Entretanto, a pesquisa se preocupou em compreender o contexto urbano brasileiro das grandes cidades e compor associações de contrastes e pontos em comum entre as escalas urbanas. Para o desenvolvimento da pesquisa, as autoras fizeram uso de entrevistas, tanto com moradores dos espaços residenciais fechados, meticulosamente escolhidos, em cada das três cidades abordadas, bem como realizaram entrevistas com os habitantes de diferentes localidades dos referidos municípios. Desse modo, as autoras enfatizam que por meio dessa lógica, puderam compreender a visão de dentro e de fora dos espaços privados.

O livro está organizado em três partes que se distribuindo em onze capítulos. Cada parte possui um tema central que se desmembra em capítulos, onde a pesquisa se aprofunda. Nessa resenha procuramos organizar as ideias do livro a partir de cada parte que se organiza a obra, para que possamos compreender um aspecto geral do trabalho das autoras e ao mesmo tempo apresenta-lo de modo mais dinâmico.

A parte inicial do livro recebe o título de “O tema e a pesquisa” e abrange os três primeiros capítulos. No capítulo 1 as autoras procuraram de modo enfático, apresentar os referencias teóricos que embasaram as abordagens que serão contempladas ao longo do trabalho, sobretudo, apontando alguns conceitos essências que deram forma à pesquisa.

Primeiramente, as autoras compreendem o espaço urbano como um elemento ativo nas relações de sociabilidades. Assim, o espaço não se resume a um “palco”, pelo contrário, a partir dos fundamentos de Ana Fani Alessandri Carlos, as relações sociais são entendidas como relações espaciais. Outro aspecto que cerca o em torno da pesquisa foi o fator violência e cidade. De acordo com autores como Zygmund Bauman e Yves Pedrazzini, a obra mergulha nessa estreita relação compreendida entre o espaço urbano e o medo/violência.

A partir de Pedrazzini, as autoras se fundamentam no termo da “estética do medo” e/ou “urbanismo do medo”, concepções elaboradas para análise de uma política urbana social para explicar as demarcações do espaço urbano de acordo com as valorizações e desvalorizações desses a partir de uma caracterização da violência. Desse modo, contrapontos como “periferia x centralidade”, são analisados no livro, levando o leitor a rever as naturalizações de tais conceitos de clivagens e compreender as novas concepções estruturais das cidades contemporâneas.

Com base nas análises de perfil de cidades internacionais, metrópoles nacionais, bem como, as cidades médias trabalhadas no livro, as autoras puderam traçar uma constante relacionada ao crescimento de espaços residenciais fechados. A partir da metodologia de compreender a visão dos moradores desses espaços, assim como o lugar desses espaços dentro do contexto social de cada cidade abordada, foi possível traçar considerável número de semelhanças, mesmo considerando, as particularidades de cada espaço residencial fechado e os municípios de Presidente Prudente, Marília e São Carlos.

Assim, as autoras compreenderam que esses espaços residenciais foram legitimados na concepção da oferta de segurança, por meio do fomento do discurso da violência urbana e a partir desse constructo, a construção de muros, sistemas de controle de acesso dos de fora para dentro, bem como monitoramento do espaço com câmeras e vigilância permanente, formulam empreendimentos imobiliários, que vendem a ideia de segurança, ao mesmo tempo em que alimentam um mercado de habitações particulares de luxo “longe” dos problemas urbanos. Ao se fundamentarem em autores como Guénola Capron, pode-se compreender os espaços fechados como formadores e legitimadores de clivagens, aonde as fronteiras vão sendo construídas e fragmentando os espaços dos ricos e dos pobres.

Na segunda parte, o livro se desdobra para questões relacionadas às diferentes estruturas urbanas, intitulada “O que é central, o que é periférico e suas múltiplas escalas”. Nesse sentido, o leitor passa a compreender o processo de desenvolvimento da malha urbana de cada município analisado, o modo com que as cidades foram tomando forma dentro dos enquadramentos de espaços residenciais para as diferentes classes, bem como, a construção – sob as particularidades dos residenciais e seus municípios – dos condomínios particulares.

Além disso, Sposito e Góes procuram justificar a escolha de cidades médias e o leitor é convidado a problematizar as questões de escalas pouco visitadas, considerando que as cidades metropolitanas acabam por tomar considerável espaço nas análises do urbano e pouco se estuda acerca de estruturas de cidades médias ou pequenas. Sob esse aspecto é que as autoras tomam esses enclaves como “habitats urbanos”. É por meio da aproximação das realidades de Presidente Prudente, Marília e São Carlos que as autoras puderam realizar um detalhamento criterioso sobre as novas redefinições espaciais, sobretudo, no que toca a dicotomia “centro x periferia”.

Em busca da ideia de segurança e exclusividade, as construtoras implantaram seus projetos em localidades mais afastadas do que as autoras entendem como centro, ou seja, regiões com espaços urbanos mais estruturados1. Assim, percebe-se o deslocamento de famílias com poderes aquisitivos mais elevados às residenciais fechados, localizados nas fimbrias dos perímetros urbanos dos municípios. Por meio de entrevistas com moradores desses locais, foi possível compreender mais do que as construções, no que compete às composições físicas desses espaços, há um engendramento de sociabilidades particulares, onde o discurso se alinha com base na busca pela segurança.

Para Sposito e Góes, tais empreendimentos extrapolam os muros desses espaços fechados, pois, fomentam a estruturação de uma realidade urbana de segregação, atingindo a população externa, colocando assim uma ordem, dos de dentro e os de fora. Especificamente no capítulo 5 as autoras destinam um espaço para as particularidades de implantação desses espaços residenciais fechados, considerando o quadro urbano de cada município. Posteriormente, o leitor é convidado a acompanhar o desenvolvimento de problematizações acerca das reconfigurações das espacialidades urbanas, a partir de novas perspectivas sobre as “periferizações seletivas”, ou seja, esses espaços residenciais fechados promovem o surgimento de “novos habitats” resultando em novas concepções de segregação espacial.

O capítulo 6 revela o cerne da pesquisa, sob o título “Novos habitats, novas formas de separação social”. Por meio de entrevistas com corretores imobiliários, foi possível perceber que os condomínios residenciais fechados, ao se instalarem nas regiões periférico-fronteiriças da cidade, acabam por se aproximar das periferias tradicionais, ou seja, daquelas regiões desestruturadas, como favelas e bairros com condições precárias.

Entretanto, é na estruturação física que esses espaços fechados, munidos de muros altos, portões de alta segurança, entre outros fatores já citados, reforçam as fronteiras socioespaciais, determinando o lugar de cada classe e sua posição urbana e social. No mesmo capítulo são aprofundadas questões como interesses privados de geração de capital proveniente às especulações imobiliárias, as implicações de distância desses espaços fechados de redes de serviços, bem como as especificidades de cada cidade média em relação aos empreendimentos residenciais fechados. É interessante destacar que houve um forte investimento, por parte das autoras em representar os espaços das cidades estudadas com uso de mapas, tabelas e fotos, o que deixa a leitura mais compreensiva e próxima à realidade do objeto estudado.

A terceira e última parte do livro, se concentra na temática da violência e insegurança na cidade, conceitos que foram ressaltados como importantes condutores nas reorganizações espaciais no meio urbano. Sposito e Góes buscaram com base nas entrevistas um viés da violência a partir do “olhar do outro”. Nesse sentido, as autoras compreendem a violência como um conceito polissêmico. Ao se fundamentarem em Michel Misse, para estudar a violência urbana, entendem que nesse contexto a “realidade, envolve uma pluralidade de eventos, circunstâncias e fatores que têm sido, por um lado, imaginariamente unificados num único conceito e, por outro, representados como um sujeito difuso que está em todas as partes” (SPOSITO & GÓES, 2013: 164).

Outro ponto abordado pelas atoras foi à representação da violência, assim como a violência da representação. Nesse ponto, a pesquisa procura analisar a fundo o modo com que a violência passa a adquirir um aspecto simbólico forte de modo a sustentar o discurso pela busca de segurança, sobretudo, por parte dos moradores dos espaços fechados, questão fomentada pela mídia e manipulações de interesses políticos balizam esse imaginário da violência.

Sposito e Góes, ao trazerem abordagens com diferentes olhares da ciência proporcionam compreender como cada vez mais os interesses particulares passaram a modificar as paisagens urbanas, sobretudo, no que tange ao fomento da fragmentação socioespacial. Os espaços residenciais fechados ao buscarem homogeneizar padrões de convívio, dinamizam as práticas de interesses econômicos no âmbito imobiliário, mas legitimam cada vez mais as heterogeneidades para os que estão do lado de fora dos muros.

A leitura dessa obra é importante porque nela as autoras revisitaram conceitos clássicos, como centralidade e periferia, criminalidade, violência e segurança urbana, espaços residenciais fechados, elementos muitos pautados em pesquisas, bem como fenômenos de moradia – como os residenciais habitacionais fechados – que nos leva a revisitar e refletir sobre as constantes mudanças no espaço da cidade. Além, da valiosa contribuição metodológica, utilizando entrevistas, respeitando os diferentes pontos de perspectiva e mapeando as novas formulações do espaço urbano enquanto um meio ativo é vívido na construção das sociabilidades.

Daniela Reis Moraes – Mestranda junto ao programa de História e Sociedades, pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Campus Assis-SP. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected].


SPOSITO, Maria Encarnação Beltrão; GÓES, Eda Maria. Espaços fechados e cidades: insegurança urbana e fragmentação social. São Paulo: Editora da Unesp, 2013. Resenha de: MORAES, Daniela Reis. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.27, p.160-164, ago./dez., 2015. Acessar publicação original. [IF].

A festa de N. S. do Carmo em Boa Vista/Roraima Vandeilton F. Silva

A obra resenhada é o resultado de uma tese de mestrado em História Social realizado por Vandeilton Francisco da SILVA, que é licenciado em História pela Universidade Federal da Paraíba (atual Universidade Federal de Campina Grande), especialista em Relações Fronteiriças pela Universidade Federal de Roraima, é também mestre em História Social pela Fundação Severino no Estado do Rio de Janeiro. Atualmente é professor concursado da Secretaria Estadual de Educação no Estado de Roraima, onde atua na Educação Básica com o componente curricular História no Ensino Médio. Como jovem pesquisador é dedicado aos estudos de questões regionais de Roraima especificamente temáticas relacionadas às relações de poder e ao catolicismo. Silva não faz parte de uma tradição de historiadores, mas se lança se como possibilidade e insere no movimento de produção e pesquisa histórica na área da história cultural. Suas publicações, ainda que incipientes, perfazem um roteiro promissor para a contribuição de uma história regional crítica.

O leitor poderá perceber que Silva, comedido nas palavras de cunho ideológico, é bastante cuidadoso para não direcionar seus escritos a uma concepção redundante dos fatos históricos. De modo bastante acadêmico deixa as fontes “falarem” por si só, no entanto, não deixa de tecer uma interpretação contextualizada e analítica, acrescentado sua criticidade em relação aos fatos narrados. É bastante equilibrado em termos de construção de sentidos na história.

O ponto de partida de Silva é a abordagem política da festa religiosa de Nossa Senhora do Carmo, em Boa Vista, Rio Branco, hoje Estado de Roraima, entre os anos de 1892 a 1927, frente aos vários interesses sociais, econômicos, políticos e também religiosos das classes dominantes da época pesquisada. Os objetivos do autor com relação ao seu objeto de pesquisa é compreender os porquês da festa tenha tornado alvo de conflitos e disputas entre os fazendeiros e os religiosos; analisar as relações políticas existentes e o jogo de interesses e também entender as motivações da introdução do culto a santa na região.

Para explicitar o objeto de pesquisa, Silva levanta uma hipótese que a festa em homenagem a Nossa Senhora do Carmo representava para os fazendeiros locais (Boa Vista-RR – séc.XIX e início do século XX), um instrumento de exibição e poder. Os meios políticos, econômicos, coerção física, cargos públicos por si só não legitimava o poder e a prepotência dos fazendeiros era necessária o elemento religioso, através da festa como status. Já para os monges Beneditinos a festa era uma forma de assegurar “a retomada das atividades eclesiásticas a viabilizariam desenvolver no Rio Branco, parte da reestruturação econômica pretendida pela Ordem no Brasil” (SILVA, 2012, p. 20).

Contexto histórico ao qual Silva concentra sua pesquisa é região do Rio Branco, onde o poder político foi marcada pelas organizações num sistema de hierarquia, subserviência, dependência, lealdade e proteção, além de muitos outros elementos se constituíram como parte de determinados pactos estabelecidos entre fazendeiros e seus aparentados e amigos, que ficou conhecido como coronelismo, que durante a primeira República “(…) o governo Central em troca do apoio das lideranças regionais, geralmente estruturadas nas organizações políticas lideradas por um grande proprietário (latifundiário, fazendeiro etc.), oferecia favores políticos, recurso públicos, além de outros interesses como poderes regionais, todos advindos do poder central”. (SILVA, 2012, p. 99).

Os fundamentos teóricos que orientam as suas afirmações sobre relações de poder fundamenta-se em Michel Foucault, afirmando que “Este defende que o exercício do poder não se legitima apenas pela repressão, pois do contrário dificilmente conseguiria alcançar ou obter o que há de produtor no poder, bem como dificilmente seria obedecido pela sociedade em que ele é exercido” (SILVA, 2012, p. 46). Acrescenta que poder pode ser definido como definido como algo múltiplo que se mantém. Assim, portanto, o poder “é reconhecido e aceito justamente por não se usufruído apenas como força negativa e repressiva, mas por permear, produzir coisas, induzir ao prazer, formar saber e produzir discurso”. (IDEM, IBIDEM).

Quanto a opção metodologia utilizado na pesquisa de Silva está diretamente vinculada ao aprofundamento da hipótese levantada sendo uma mescla de: documental, exploratória, bibliográficas e metodologia da história oral “Durante o ano de 2005, tive o privilégio de entrevistar um grupo de pessoas moradoras da parte velha da cidade de Boa Vista, hoje histórica” (SILVA, 2012, p. 21). Diz Melo que: “A opção teórica e a adoção de dados pressupostos argumentativos têm uma relevância fundamental na escolha do método”. Silva com muita habilidade consegue correlacionar opção teórica e hipótese com metodologia e método da pesquisa.

Apresentadas as questões iniciais quanto aos aspectos metodológicos, a hipótese, contexto do autor, opção teórica vamos ao que é essencial o resultado da pesquisa de Silva, isto é, as ideias centrais da obra, a tese defendida pelo autor. Primeiramente, apenas para situar o leitor, o livro está dividido em três capítulos.

No primeiro capítulo, que foi divido em seis tópicos, é apresentado o contexto histórico dos cultos devocionais, da origem da festa de Nossa Senhora do Carmo.. Silva descreve a presença dos missionários (monges) carmelitas na região da bacia do rio Branco responsáveis pela entronização do culto mariano a Nossa Senhora do Monte Carmelo, de origem do Oriente Médio, como também o contexto político. O autor aborda o culto a partir das relações políticas e religiosas acontecidas nos aldeamentos envolvendo os padres Carmelitas e os grupos de poder instalados na região. Silva faz uma longa discussão, talvez desnecessária, sobre a Ordem Carmelita e sua presença na Amazônia, descrevendo em detalhes as cronologias dos fatos envolvendo os missionários aos acontecimentos ligados ao dito “processo evangelizador”, que culminou com a expulsão dos mesmos. Também, nesse capítulo, recebe destaque especial à origem da formação dos grandes latifúndios roraimenses, com a introdução do gado, irá marcar a origem dos conflitos e as relações de poder e interesses na região. Silva finaliza o primeiro capítulo a criação da Paróquia de Nossa Senha do Carmo e o início das mudanças festivas, preparando o leitor para o segundo capítulo, já que deixa bem claro “quem é manda na região”.

O segundo capítulo talvez o mais importante, a meu ver, condensa o desdobramento da hipótese levantada por Silva de que a festa realizada em homenagem a Nossa Senhora do Carmo, no Rio Branco, foi objeto de manipulação utilizado como instrumento para beneficiar os grandes projetos políticos, econômicos e também religiosos, que envolveram fazendeiros de um lado e missionários do outro.

Afirma Silva que “(…) a organização do evento festivo foi aos poucos passando ao domínio de alguns fazendeiros locais, que a moldaram para fins de interesse políticos e econômicos, contribuindo para transformar a festa em um instrumento de legitimação da hegemonia política local” (2012, p. 76). Ao longo do capítulo é apresentado o principal foco de interesse dos grupos políticos pela festa da santa “(…), pois através dela os fazendeiros ligados ao partido Republicano Amazonense e à Loja Maçônica do Rio Branco procuravam condicionar a realização da festa à presença e importância dos mesmos na região” (p. 72). Silva considera nesse capítulo que o controle das festividades mariana pelos fazendeiros foi determinante para imposição de poderio na região pela classe política, que a partir de um pretexto, a organização da festa, colocava em prática a realização de projetos maiores como a expansão dos latifúndios, o avanço da pecuária e controle políticos na região, como forma de legitimação dos interesses em apenas os grupos de poder. Enfatiza Silva que:

“(…) os fazendeiros do Rio Branco estavam mais interessados em consolidar uma estrutura dominadora, bem como chamar para si a atenção das autoridades políticas estaduais como forma de garantir legitimidade política e conseguirem privilégios locais, bem como pressionar as lideranças do Partido Republicano Amazônico na distribuição de cargos, verbas e na regulamentação de terras públicas adquiridas de forma irregular” (2012, p. 83).

Assim o que é central no capítulo segundo compreender as formas de concentração de poder político no Rio Branco. O poder de mando constituído a partir de grupos reinantes buscava aumentar suas influências se utilizando dos eventos religiosos, ao que nos parece, na leitura de Silva, havia pouca determinação religiosa para a constituição de uma devoção festiva autônomo independe das lideranças políticas. O culto a santa passou a ser manipulável conforme os projetos disposto no tabuleiro do jogo de interesses.

O último capítulo o autor destaca a presença da Ordem de São Bento na região da bacia do rio Branco com pretensão não apenas religiosa, mas também empreendedora com projetos voltados ao desenvolvimento local. Os conflitos voltam à cena, pois os projetos dos religiosos e da elite política formada por fazendeiros são divergentes e distintos em suas naturezas. O coronelismo predominante na região confronta diretamente com os religiosos beneditinos. Impondo à força através de agressões físicas e ameaças os fazendeiros (coronéis) impõem medo a todos aqueles que não se integravam aos seus projetos. Conta Silva que certa vez por ocasião da recusa dos monges em celebrar o batizado de uma criança filho de um fazendeiro, membro da loja maçônica, levou o Coronel Bento Brasil durante a missa ameaçar de morte os religiosos além de proferir palavras furiosas no sentido de afirmar quem realmente detinha o poder de mando na Vila, acrescenta Silva:

“Poder este que credenciava a seu possuidor fazer aberrações contra qualquer pessoa e, caso os monges não entendessem, se recusando a contrariar os interesses dos fazendeiros locais, sentiriam as consequências, pois era inconcebível a qualquer um, que recém-chegado à região, se achasse no direito de recusar a atender a um pedido de alguém ligado ao grupo maçônico”. (2012, p. 129).

A Igreja também teve o seu poder de mando na região buscou alianças com a elite do Rio Branco com objetivos de assegurar os seus interesses de seus bens materiais na região. Diz Silva que a Igreja não possuía um empenho profundo na evangelização ou na dimensão espiritual. As fontes utilizadas por Silva nos levam a crer que a Igreja, marcada pela presença beneditina, mais do que “salvar almas” tinha como missão ampliar o poder terreno pela conquista material.

Conclusão

O ponto de partido da obra resenhada foi satisfazer uma curiosidade do autor em relação aos conflitos e disputa de poder no final do século XIX e início do XX. Como resultado de uma tese de mestrado a obra percorreu uma trilha científica com situação-problema, hipótese, tese, metodologias, fontes de pesquisa e conclusões chegadas pelo autor. A obra é coerente internamente todos os argumentos estão relacionados a hipótese e a tese, os capítulos e subtítulos então correlacionados em si. É uma obra relevante, muito embora outros autores já tenham abordado a temática da presença beneditina no Rio Branco, contudo Silva consegue desenvolver uma peculiaridade, que ainda não havia sido explorada, discutir relações de poder e disputas em torno da festa de Nossa Senhora do Carmo. Talvez, uma das fraquezas da obra, foi deixar à margem discussões presença dos indígenas, tão significativa na região estudada pelo autor.

Referências MELLO, Ricardo Marques de. Como escrever uma resenha historiográfica: considerações teórico-metodológicas. Revista Em Tempo em Histórias, Nº. 19 (2011) Brasília. Disponível em: http://seer.bce.unb.br/index.php/emtempos/article/view/6753. Acessado em: 11 out. 2012

Paulo Sérgio Rodrigues Silva – Mestrado na Universidade Federal de Roraima. E-mail: [email protected].


SILVA, Vandeilton Francisco da. A festa de N. S. do Carmo em Boa Vista/Roraima: conflitos e disputas de poder – 1892-1927. Campina Grande: Editora da UFCG, 2012. Resenha de: SILVA, Paulo Sérgio Rodrigues. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.27, p.165-170, ago./dez., 2015. Acessar publicação original. [IF].

 

Repressão e Resistência. Censura e Livros na Ditadura Militar / Sandra Reimão

Desde a década de 1980, em que ocorreu a abertura política no Brasil, não se assistia a tão grande empenho em desvelar fatos relacionados ao período da ditadura militar brasileira, empenho que se verifica tanto em atos políticos deliberados (como a criação de uma Comissão da Verdade ou o acesso a documentos considerados sigilosos) quanto em estudos, acadêmicos ou não, voltados à compreensão e elucidação daquele conturbado período de nossa história recente.

Em Repressão e Resistência. Censura e Livros na Ditadura Militar, Sandra Reimão lembra que uma das primeiras ações dos regimes autoritários é, justamente, a censura da liberdade de expressão, por meio da repressão à imprensa, aos livros, aos meios de comunicação etc. Nesse sentido, a autora se propõe estudar a censura de livros de ficção brasileira durante do regime autoritário de 1964 a 1985, em especial aqueles cujos processos (atualmente no Arquivo Nacional de Brasília) ficaram sob a responsabilidade do Departamento de Censura e Diversões Públicas (DCDP), órgão vinculado ao Serviço de Censura e Diversões Públicas e ao Ministério da Justiça. Em relação ao conceito de censura, define a autora: “concebemos a censura como parte de um aparelho de coerção e repressão que, muito mais do que afetar a circulação de alguns bens culturais, restringia a produção e a circulação da cultura, implicando uma profunda mudança no exercício da cidadania e da cultura em geral” (p. 14).

A autora lembra que, antes do golpe de 1964, consolidou-se no Brasil uma “reflexão social de ideário esquerdista” (p. 19), presente em parte da produção artística e intelectual, manifestações que, num primeiro momento, foram relativamente preservadas pelos militares, permitindo, por exemplo, a publicação da revista Pif-Paf (1964, por Millôr Fernandes), dos livros O ato e o fato (1964, de Carlos Heitor Cony), Quarup (1964, por Antônio Callado), Senhor Embaixador (1968, por Érico Veríssimo) etc., embora alguns outros livros tenham sido apreendidos já naquele momento, sobretudo os que tratavam do próprio golpe militar, como Primeiro de abril (de Mário Lago), O golpe de abril (de Edmundo Muniz), História Militar do Brasil (de Nelson Werneck Sodré) e outros. Ações mais intensas e direcionadas foram, igualmente, perpetradas pelo poder constituído, ainda nessa primeira fase do golpe, como a perseguição ao editor Ênio Silveira, o expurgo de bibliotecas pelo Ministro da Educação Flávio Lacerda, a perseguição das obras de Nelson Rodrigues pelo Ministro da Justiça Carlos Medeiros Silva, uma série de atentados a editoras e livrarias (Editora Tempo Brasileiro, Editora Civilização Brasileira, Livraria Forense) etc.

Com a edição do Ato Institucional n. 5 (AI-5) pelo Presidente Costa e Silva, em dezembro de 1968, a censura se adensa, espalhando-se por todo o país e atingindo todos os meios de comunicação, mas, ao mesmo tempo, dando ensejo ao aparecimento de uma imprensa alternativa e, às vezes, clandestina (O Pasquim, Opinião).

Apesar da diferença de números entre pesquisadores do assunto (Zuenir Ventura fala em 200 livros; Deonísio da Silva fala em 430 livros), a censura à produção editorial no período da ditatura foi intensa, atingindo inclusive a publicação de peças de teatro (Guilherme Figueiredo, Oduvaldo Vianna Filho, Nelson Rodrigues, Plínio Marcos etc.), filmes (Macunaíma, São Bernardo, Toda nudez será castigada etc.), livros teóricos (Caio Prado Júnior, Darcy Ribeiro, Guilhon Albuquerque, Rose Marie Muraro etc.) ou considerados pornográficos (Cassandra Rios, Adelaide Carraro, Márcia Fagundes Varella, Brigitte Bijou etc.).

Objeto de estudo da autora, os livros de ficção censurados, que constam nos arquivos do DCDP, são Quatro contos de pavor e alguns poemas desesperados (Álvaro Alves de Faria), Dez histórias imorais (Aguinaldo Silva), Meu companheiro querido (Alex Polari), Zero (Ignácio de Loyola Brandão), Em câmara lenta (Renato Tapajós), Aracelli, meu amor (José Louzeiro), Feliz ano novo (Rubem Fonseca), Diários de André (Brasigóis Felício) e os contos “Mister Curitiba” (Dalton Trevisan) e “O cobrador” (Rubem Fonseca), obras bastante diferentes, mas cujo tema comum a quase todas é a violência física e psicológica.

Tratando, em especial, do livro Feliz ano novo (1975, de Rubem Fonseca) e Zero (1976, de Ignácio de Loyola Brandão) – publicados num período (década de 1970) em que, segundo a autora, “a literatura tornou-se um centro de atenções” (p. 62) da ditadura militar -, Sandra Reimão afirma tratar-se de obras que têm no tema da violência um de seus assuntos principais. Sobre o livro de Aguinaldo Silva (Dez histórias imorais), afirma ter sido censurado quase dez anos após sua publicação, muito provavelmente em razão de sua militância contra o regime autoritário (trabalhou nos jornais Opinião e Movimento, ambos periódicos de resistência à ditadura) e em favor dos direitos dos homossexuais (foi, ao lado de outros escritores e intelectuais, fundador do jornal O Lampião, órgão da imprensa pioneiro nesse tema). Em relação ao livro Em câmara lenta (1977), de Renato Tapajós, a autora afirma ter sido um “caso único de autor preso durante a ditadura militar por causa do conteúdo de um livro” (p. 89), sendo, além disso, “o primeiro livro de memórias de ex-militantes políticos da década de 1960” (p. 91), a que se seguiram Os carbonários (Alfredo Sirkis) e O que é isso companheiro? (Fernando Gabeira). A autora trata, finalmente, dos dois contos censurados de, respectivamente, Dalton Trevisan e Rubem Fonseca (ambos publicados na revista erótica Status, em 1978), tendo sido, ambos, no ano seguinte à censura, publicados em livro, sem contudo sofrerem censura desta vez.

Como conclusão, a autora chega a três constatações gerais: primeiro, a de que toda coação é temporária e limitada; segundo, a de que o ato censório é uma violência à própria cidadania, ultrapassando os limites da circulação de bens culturais; terceiro, a de que há quase sempre um grande número de ações de resistência à censura aos livros, da parte de editores, escritores, leitores etc.

O livro traz ainda alguns anexos: leis e pareceres, lista de livros censurados etc., o que, no conjunto, faz dele uma referência para os estudos sobre o tema e uma leitura necessária aos pesquisadores da censura cultural no Brasil do século passado.

Maurício Silva –Doutor pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade Nove de Julho (SP).


REIMÃO, Sandra. Repressão e Resistência. Censura e Livros na Ditadura Militar. São Paulo, Editora da USP/FAPESP, 2011. Resenha de: SILVA, Maurício. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.24, p.195-197, jan./jul., 2014. Acessar publicação original. [IF].

Alemanes antinazis en la Argentina / Germán Friedmann

Os acontecimentos ocorridos a partir da década de 1930 marcariam de forma decisiva os rumos da população alemã. A chegada de Adolf Hitler ao poder em 1933 não significou apenas uma mudança no contexto político do país, mas também alterou o cotidiano das pessoas e suas concepções a respeito do que era ser alemão.

O surgimento do nazismo colocava a sociedade germânica no centro dos debates a respeito da parcela de contribuição exercida por esta sociedade para o estabelecimento e consolidação do regime nazista. O mal-estar provocado pelas truculentas intervenções nazistas em relação aos países vizinhos da Alemanha além de não deixarem dúvidas sobre as pretensões expansionistas de Adolf Hitler parecia, aos olhos da comunidade internacional, aproximar a sociedade alemã cada vez mais à figura do Führer.

Neste contexto, irá surgir na Argentina em 1937 a organização Das Andere Deutschland (a outra Alemanha, posteriormente conhecida por DAD). Esta organização e suas ações contra o regime nazista são o tema central do livro Alemanes antinazis en la Argentina escrito por Germán Friedmann – professor doutor em História pela Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires. Atualmente Friedmann é professor de História da América Latina na Universidade Nacional de San Martín.

Integrada por um grupo de exilados políticos alemães e austríacos opositores do regime nacional-socialista (FRIEDMANN, 2010: 13), a DAD, de acordo com Friedmann, se configurou como uma das principais forças antinazistas da América Latina nas décadas de 1930 e 1940. A partir desse momento, se constituía uma série de medidas incentivadas por esta organização para tornar público as atrocidades cometidas pelo nazismo na Europa e suas possíveis investidas nos países Sul-americanos através

Os acontecimentos ocorridos a partir da década de 1930 marcariam de forma decisiva os rumos da população alemã. A chegada de Adolf Hitler ao poder em 1933 não significou apenas uma mudança no contexto político do país, mas também alterou o cotidiano das pessoas e suas concepções a respeito do que era ser alemão.

O surgimento do nazismo colocava a sociedade germânica no centro dos debates a respeito da parcela de contribuição exercida por esta sociedade para o estabelecimento e consolidação do regime nazista. O mal-estar provocado pelas truculentas intervenções nazistas em relação aos países vizinhos da Alemanha além de não deixarem dúvidas sobre as pretensões expansionistas de Adolf Hitler parecia, aos olhos da comunidade internacional, aproximar a sociedade alemã cada vez mais à figura do Führer.

Neste contexto, irá surgir na Argentina em 1937 a organização Das Andere Deutschland (a outra Alemanha, posteriormente conhecida por DAD). Esta organização e suas ações contra o regime nazista são o tema central do livro Alemanes antinazis en la Argentina escrito por Germán Friedmann – professor doutor em História pela Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires. Atualmente Friedmann é professor de História da América Latina na Universidade Nacional de San Martín.

Integrada por um grupo de exilados políticos alemães e austríacos opositores do regime nacional-socialista (FRIEDMANN, 2010: 13), a DAD, de acordo com Friedmann, se configurou como uma das principais forças antinazistas da América Latina nas décadas de 1930 e 1940. A partir desse momento, se constituía uma série de medidas incentivadas por esta organização para tornar público as atrocidades cometidas pelo nazismo na Europa e suas possíveis investidas nos países Sul-americanos através de grupos simpatizantes desse regime. Além das atividades de caráter político a DAD também atuou de forma intensa no âmbito cultural da Argentina.

É importante perceber, como aponta o autor, que a atuação dos membros da Das Andere Deutschland não pode ser vista como um acontecimento à parte da sociedade argentina, visto que seus integrantes estavam inseridos nesta sociedade mesmo que na condição de estrangeiros. Deste modo, as atividades desenvolvidas pela DAD também se constituiu como uma forma de participação desses alemães na sociedade argentina seja no âmbito político, social ou cultural.

De acordo com Germán Friedmann, na medida em que os nazistas se consolidavam no poder a quantidade de opositores a este regime que migravam para países da América aumentava de forma significativa. Ainda segundo este autor, a Argentina recebeu cerca de 50.000 pessoas durante as primeiras décadas do regime (FRIEDMANN, 2010: 22). Ao chegarem a Argentina estas pessoas encontraram um contexto político instável devido ao recente golpe militar que, em 06 de setembro de 1930, depôs o presidente Hipólito Yrigoyen e deixou em seu lugar o general José Uriburu.

Apesar da instabilidade pela qual passava a Argentina, a organização não encontrou grandes dificuldades para realizar suas atividades neste país. Por meio do periódico Argentinisches Tageblatt, outro importante centro de combate ao nazismo dirigido por Ernesto Alemann, a DAD difundia suas ideias políticas através de um espaço reservado neste periódico. Esta manobra foi necessária devido as leis argentinas restringirem as atividades políticas de estrangeiros no país. Assim, a Das Andere Deutschland apresentava ao público suas atividades de combate não só a atuação de grupos nazistas na Argentina, como também opiniões a respeito das ações realizadas pelo regime nacional-socialista instalado na Alemanha.

Outro importante veículo de combate ao nazismo foi o boletim informativo criado pela DAD (que levava o mesmo nome da organização) e publicado através do Argentinisches Tageblatt. Este boletim alcançou relevante sucesso entre os emigrantes alemães da América Latina se transformando em um dos principais canais de informação sobre a Alemanha deste período.

Assim, sob a direção de August Siemsen e contando com a importante participação do pintor e caricaturista Clément Moreau, o boletim informativo da DAD alcançou grande visibilidade e um respeitável número de leitores, atingindo, conforme Friedmann, nos anos de 1944 e 1945, entre 4.000 e 5.000 exemplares publicados.

Um dos principais objetivos da DAD era demarcar a diferença entre a Alemanha do Terceiro Reich e o que se denominou como “Das Adere Deutschland” (a outra Alemanha) tendo como tema central o debate a respeito da diferenciação entre Hitler e o povo alemão, numa incansável busca pela desvinculação das atividades realizadas pelos nazistas da população alemã. Segundo os membros da DAD, estas atividades não representavam em sua totalidade a Alemanha e, desta maneira, as responsabilidades pelas ações do regime nazista não poderiam ser atribuídas de forma aleatória à população deste país.

A expressão “outra Alemanha” foi apropriada por diversas pessoas, cada uma delas levando em consideração suas experiências a respeito do regime nacional-socialista. Os membros da DAD a tomaram para si por considerarem-se representantes dos verdadeiros valores alemães. De acordo com eles, era preciso mostrar ao mundo que os princípios apresentados pelos nazistas nos campos de guerra e no tratamento aos prisioneiros dos campos de concentração não eram compartilhados por toda população alemã.

O livro de Germán Friedmann mostra os esforços de um grupo antinazista na tentativa de construir uma nova identidade com seu país. No entanto, as diferentes concepções de como construir esta identidade leva a impasses no interior deste movimento antinazista e a guerra vem trazer consequências importantes para esse grupo, uma delas relacionada com o apoio aos Aliados. Como apoiar uma ação militar contra seu próprio país? Esta pergunta entrou de maneira crucial nos debates que envolviam os membros da DAD e outros combatentes do regime nacional-socialista.

Retirar o Terceiro Reich do poder significava naquele momento uma dura intervenção militar à Alemanha, mesmo que isso custasse a destruição do país. Esta era a principal fala de muitos antinazistas da época. Para outros, ela significava um claro gesto de traição empreendido por aqueles que se diziam os verdadeiros guardiões dos valores alemães. Esses impasses iriam causar alguns atritos tanto entre os próprios membros da DAD quanto entre eles e os germano-argentinos (expressão utilizada por Friedmann para se referir aos descendentes de alemães da Argentina).

A DAD insistia em sua causa antinazista, com apoio aos Aliados, nas atividades desenvolvidas através de seu boletim, no teatro e no sistema de ensino (apoiando a escola Pestalozzi, instituição de ensino dirigida por Ernest Alemann). Esta organização esteve sempre presente em movimentos culturais, sociais e políticos não somente na Argentina, como também em outros países latino americanos, tais como Brasil, Uruguai, Bolívia, Chile, entre outros.

A Das Adere Deutschland foi um braço forte no combate ao nazismo. Sua influência e suas ideias sobre a reconstrução da Alemanha após a queda do Terceiro Reich são importantes componentes que devem ser levados em conta quando se discute o tema. A luta pela identidade alemã não nazista nos ajuda a entender um pouco mais sobre este período e nos abre novas possibilidades de análise a respeito da atuação dos alemães durante os anos em que os nazistas estiveram no poder.

Germán Friedmann trás importantes informações sobre diferentes grupos opositores ao nazismo. O autor apresenta uma obra bem detalhada sobre as atividades desenvolvidas pela DAD e a participação de seus membros no contexto político e social da Argentina. No entanto, mesmo tendo o cuidado de apresentar ao final da obra uma breve biografia dos membros da DAD e ter escrito um livro bem fundamentado em termos de fontes o autor não informa onde estas fontes estão arquivadas. O material utilizado por ele é, em sua grande maioria, os boletins da Das Adere Deutschland e do periódico Argentinisches Tageblatt, porém não há nenhuma indicação feita por Friedman se este material pode ser encontrado nos arquivos do periódico Argentinisches Tageblatt ou em outra instituição, sendo este um dos principais cuidados que a profissão de historiador exige ter.

Apesar disso, a obra de Germán Friedmann é recomendada para os que têm interesse na temática sobre o anti-nazismo. Os debates desenvolvidos ao longo da obra oferecem boas reflexões a respeito do posicionamento adotado pelos alemães refugiados por motivos políticos ou raciais e como cada grupo se comporta diante da construção de uma nova identidade alemã em combate a Alemanha do Terceiro Reich.

Os crimes cometidos pelos nazistas além de provocarem estarrecimento à comunidade internacional também causaram um grande mal-estar entre os países no qual este regime esteve no poder ou obteve algum tipo de colaboração. As brutalidades do campo de guerra e o genocídio de milhares de pessoas é um tema que ainda causa desconforto entre os alemães. O peso sobre a responsabilidade do que aconteceu se transformou em um trauma que o tempo somente ajudou a intensificar. Talvez, a melhor maneira de superar esse trauma seja através do esclarecimento e da compreensão do que era o sistema político denominado de nacional-socialismo, assim como o contexto no qual ele foi implantado.

Desta forma, poderemos entender os diferentes posicionamentos dessa população diante do que estava acontecendo em seu país e não apenas focar a discussão naqueles que apoiaram direta ou indiretamente o regime nazista. E, sem dúvida a obra Alemanes antinazis en la argentina oferece uma discussão interessante sobre esta temática, assim como também permite-nos pensar a respeito do complexo conjunto de pessoas, grupos e movimentos que atuaram neste contexto.

Monica da Costa Santana – Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Comparada Universidade Federal do Rio de Janeiro Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: [email protected].


FRIEDMANN, Germán. Alemanes antinazis en la Argentina. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores Argentina, 2010. Resenha de: SANTANA, Monica da Costa. Alemanes antinazis en la Argentina. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.23, p.195-199, ago./dez., 2013. Acessar publicação original. [IF].

Multiculturalismo Crítico / Peter McLaren

A partir da obra Multiculturalismo Crítico do autor Peter McLaren, destacamos nesta resenha os conceitos centrais e principais influências teóricas trazidas pelo autor. Tendo sua primeira edição publicada na América do Norte no ano de 1994, o livro é considerado ainda hoje uma das grandes obras de referência mundial em relação ao ensino multicultural. Destaca as possibilidades que o multiculturalismo crítico exerce numa pedagogia de resistência, interrogando os sistemas culturais estabelecidos em uma lógica fixa e unitária. Neste sentido, o que seria o multiculturalismo crítico? O que vem a ser uma pedagogia de resistência? Na tentativa de responder estas e demais perguntas desmembramos o trabalho de acordo com a sequência de capítulos abordada pelo autor. Analisamos dessa forma, o contexto global em que o multiculturalismo esta inserido; os diferentes tipos de multiculturalismo existentes, bem como as diversas correntes e influências das teorias pós-modernas e, por fim, tecemos nossas considerações sobre alguns pontos de sua teoria.

Introdução

Quando vasculhamos dentro dos estudos históricos, ainda nas primeiras décadas do século passado, podemos observar que somente a partir dos anos 70 com o interesse sobre a chamada “História dos Vencidos” 2, a história dos povos colonizados, como a dos povos africanos, sociedades ameríndias entre outros foram ganhando novos espaços no meio acadêmico.

Seguindo esta abertura, o multiculturalismo “nasce” imbricado nas lutas sociais3 dos anos 60, 70 e aos poucos vai se constituindo em uma proposta pedagógica no campo do Currículo. Neste momento, Peter McLaren já reconhecido como um dos principais autores da teoria da resistência4 lança em 1994 o livro ‘Multiculturalismo Crítico’ nos Estados Unidos e no ano de 1997 o publica no Brasil.

Peter McLaren é um canadense radicado nos Estados Unidos, que segundo Moacir Gadotti (2000), antes de ser professor universitário lecionou nas escolas da periferia de Toronto no Canadá, aprendendo com os filhos dos imigrantes de diferentes nacionalidades as fronteiras de um ensino multicultural.

Neste sentido, o livro teve grande repercussão marcando um mapeamento das correntes multiculturais. Mas, o que seria o multiculturalismo crítico? E, sobretudo, o que caracteriza as possibilidades de uma educação de resistência, é uma das tantas questões que o autor busca responder.

1.1 Pedagogia Crítica na idade do Capitalismo Global alguns desafios para uma educação de esquerda

Entrando no primeiro capítulo, a questão dos desafios para se vivenciar uma pedagogia crítica em contexto global é logo apresentada. Compartilhando do pensamento de David Harvey (1989), afirma que a relação capitalista expandiu seu alcance para todas as coordenadas do tempo e espaço geográfico, se transformando num espaço sem limites, onde passado e futuro encontram-se em um “relógio timex” ou em outras inúmeras possibilidades dos shoppings centers.

Mas, neste sentido, qual seria o papel da escola neste contexto de economia globalizada marcada pela sociedade de consumo? Qual sua função para uma educação crítica e de resistência?

Por pedagogia crítica ou de resistência entende-se o conceito e “chave mestra” utilizada pelo autor para designar uma práxis transformadora na sociedade e uma educação não harmônica. Em suas palavras “na medida em que o objetivo da pedagogia crítica é o de capacitar seus praticantes a falar com autoridade, enquanto perturbam a naturalização de convenções fixas(McLaren, 2000:50). Em outras palavras, é a pedagogia mais condizente com um possível multiculturalismo crítico, conceito que abordaremos mais adiante.

1.2 Multiculturalismo e a crítica Pós Moderna: por uma pedagogia de resistência e transformação

Já no segundo capítulo, o foco concentra-se em torno da crítica pós – moderna. Por teoria pós – moderna, o autor considera uma teoria com distinções entre duas tendências fortemente expressas, a primeira classifica-a como pós-modernismo lúdico e a segunda como pós-modernismo crítico ou de resistência.

Posicionando-se como um teórico de forte influência marxista, logo nas primeiras páginas do livro, o autor expõe seu desconforto a partir do que compreende como “pós-modernismo lúdico”, define-os como uma teoria que privilegia o cultural, o discursivo em detrimento da materialidade dos modos de produção levando a um relativismo epistemológico que demanda uma tolerância por uma gama de significados sem defender nenhum deles” (McLaren, 2000:51).

Por conseguinte, apresenta a “teoria pós-moderna da resistência”, mas não como forma de uma alternativa à corrente que descreve como lúdica, mas como um meio de extensões de suas críticas. Para ele o pós-modernismo de resistência “traz à crítica lúdica uma forma de intervenção materialista uma vez que não está somente embasado em uma teoria social da diferença, mas em vez disso, em uma teoria que é social e histórica” (Idem, p.68). A corrente pós – moderna de resistência, seria uma crítica intervencionista, onde as “textualidades” tornam-se práticas materiais.

Mas, em que sentido as correntes pós-modernas se relacionam com o multiculturalismo? Em que aspecto a teoria pós-moderna da resistência difere das demais concepções de diferença proposta pelas teorias liberais?

Segundo o autor, para os liberais, o conceito diversidade estaria associado à noção de um “balsamo calmante”, isto é, uma solução para “administração da crise” imposta pelas questões raciais. Mas já para os membros da teoria pós-moderna de resistência, a diferença difere do conceito de diversidade. Isto porque o conceito não é tomado superficialmente – afirma a “diferença” ser sempre incerta e polivocal, nem sempre servindo ao consenso, e, portanto um conceito não determinado por limites claramente demarcados, servindo assim, ao que chama de “multiculturalismo crítico”.

1.2 O terror Branco e Agência de Oposição: por um multiculturalismo crítico Por conseguinte, na terceira parte o eixo concentra-se na discussão sobre as diferentes concepções de multiculturalismo diferenciando-os em (1) multiculturalismo conservador ou empresarial; (2) multiculturalismo liberal humanista; (3) multiculturalismo liberal de esquerda e (4) multiculturalismo crítico. Assumindo a preocupação com o risco de uma representação monolítica, o autor adverte que seu objetivo não se estende além de uma tentativa inicial de mapear um esquema teórico.

Dessa forma, por multiculturalismo conservador é apresentado o projeto de universalização da cultura branca, respaldado nas teorias evolucionistas do século XIX. Sob este contexto, a representação da África como um “grande” e “misterioso” continente selvagem expressa uma dessas conotações imperialistas das primeiras vertentes desse tipo de multiculturalismo. Como forma de ilustrar a extenuação do racismo, o autor conta que na virada do século XIX, Joseph Moller, um menino negro de 10 anos chegou a ser exibido em um zoológico na Europa como um legítimo descendente “homoluncus africano”.

Sob outra perspectiva, já na versão de um multiculturalismo humanista liberal descreve como sua principal característica certa apropriação humanística, respaldada na crença do princípio de igualdade independentemente de questões de etnia, gênero ou sexualidade.

Diferentemente da corrente conservadora, o multiculturalismo humanista acusa o sistema capitalista de prover restrições econômicas. Defendendo assim, a mudança dessas condições, mas embasados no discurso da equivalência intelectual ente as raças, afirmando que todas podem competir “igualmente” em uma sociedade capitalista. No entanto, McLaren adverte que o fato desse caráter universal ser dotado de aspectos predominantemente brancos, eurocêntricos e referentes à cultura ocidental não é em nenhum momento colocado em questão.

De forma contrária, apresenta o multiculturalismo liberal de esquerda (uma terceira versão), que enfatiza a diferença cultural acusando a ênfase na igualdade universal de “esconder” as diferenças entre raça, gênero, classe e sexualidade.

Entretanto, critica a tendência que esta terceira corrente teria de “essencializar” a diferença como se fosse algo suspensa do processo histórico. E no mais, o fato deste multiculturalismo de esquerda privilegiar a fala de uma pessoa que possua a marca de uma identidade local, é igualmente criticado pelo autor como “um populismo elitista que se constrói na medida em que professores de bairros pobres estabelecem um pedigree de voz baseado na experiência.” (McLaren, 2000:120). Deste modo, acusa o político de estar sempre reduzido ao pessoal.

Por último, como uma alternativa apresenta o Multiculturalismo Crítico a partir de uma abordagem pós-moderna de resistência. Em suas palavras: a perspectiva que chamo de multiculturalismo crítico compreende a representação da raça, classe e gênero como resultado de lutas sociais sobre signos e significações e, enfatiza não apenas o jogo textual, mas a tarefa de transformar as relações sociais” (Idem, p.123).

Dessa forma, enfatiza que o pensamento ocidental é construído como um sistema de diferenças organizado por lógicas binárias – branco /preto, bom /ruim, e, neste sentido quando os binarismos tornam-se racial e culturamente identificados, o branco acaba por assumir a posição do ele ou do tu, onde a “branquidade” é percebida como neutra. Os signos são assim, compreendidos como parte de uma luta ideológica.

Portanto, para um currículo multiculturalista crítico, Peter sugere que os educadores levantem questões da diferença de maneira que superem o essencialismo monocultural dos “centrismos” – anglocentrismos, afrocentrismo e assim por diante, pois um multiculturalismo de resistência entende a cultura como não harmoniosa e consensual.

Considerações Finais

Considerando a tentativa de apresentar nesse breve texto, os elementos centrais referentes à obra Multiculturalismo Crítico, terminamos afirmando sua relevância. O texto da forma como conduzido, torna-se uma espécie de bússola que nos permite visibilizar as diferentes tendências multiculturalistas.

A partir desta perspectiva, o multiculturalismo crítico é definido como aquele que se recusa a ver cultura como não conflitiva, harmoniosa ou consensual. Ao longo de todo o livro, é notável sua preocupação em afirmar a influência do pensamento marxista. Portanto, defende que é necessário “não ver a diferença como simples textualidade” (Idem, p.69).

Do contrário, cabe ressaltar que já para o filósofo Jacques Derrida5, o próprio conceito de identidade traz consigo suas problemáticas, pois ao atribuir ao outro uma identidade, nós limitamos os campos de possibilidade desse outro. Contudo, a nosso ver, a concepção derridiana não reduz a idéia de diferença a “mera textualidade”. A proposta suplementa6 a busca por uma pedagogia de resistência, quando nos instiga a procurar deslocamentos e desvios possibilitando novas formas de pensar.

Assim, encerramos o artigo, consonantes com Peter McLaren quando diz que entre os muitos aspectos de sua teoria concordantes com o pós-estruturalismo está, o fato, de que a língua não é apenas um reflexo passivo da cultura e, portanto, no caminho para uma pedagogia crítica cabe buscar uma educação que interrogue os discursos racistas, xenófobos e machistas.

Notas

  1. OLIVEIRA, João Pacheco de. Ensaios em Antropologia Histórica. Rio de Janeiro: Ed. Museu Histórico Nacional. UFRJ, 1999.
  2. De acordo com Vera Candau (2002) as “raízes” do multiculturalismo podem ser encontradas nos movimentos sociais, mais especificamente nos movimentos étnicos que ocorreram nos Estados Unidos durante a década de 60 quando estudantes, líderes religiosos e negros do sul resolveram levar adiante a luta por igualdade de exercício dos direitos civis.
  3. Segundo Lopes e Macedo (2011) as teorias da resistência são desenvolvidas por diferentes autores nos Estados Unidos e na Inglaterra entre os fins dos anos 1970 e início dos anos 80. No Brasil, as teorias da resistência ocupam debate crítico no campo do currículo nos anos 80.
  4. Jacques Derrida é descrito por Peter McLaren como um dos autores pertencentes à corrente que intitula como “pós-modernismo lúdico”. Contudo, para alguns campos da Filosofia o pertencimento do Derrida é algo ainda muito polemizado, considerado por alguns como pós-estruturalista, e, por outros somente como filósofo da diferença.
  5. Para Derrida, por suplemento entende-se um “algo a mais”, isto é, um suplemento, mas que não se constituirá jamais em outro centro ou em mero complemento, de vez que sua função é a de suprir, transitoriamente. Afinal, a suplementaridade vai marcar-se por um mesmo diferido e, por isso, é incapaz de complementar.

 

Referências Bibliográficas

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LOPES, Alice Casimiro; MACEDO, E (Orgs.). Teorias de Currículo. São Paulo: Cortez, 2011.

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OLIVEIRA, João Pacheco de. Ensaios em Antropologia Histórica. Rio de Janeiro: Ed. Museu Histórico Nacional. UFRJ, 1999, Jun. 2006.

Danielle Bastos Lopes – Doutoranda em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro PROPED- UERJ e mestre em História Social PPGHS-UERJ.


MCLAREN, Peter. Multiculturalismo Crítico. São Paulo: Cortez, 2000. Resenha de: LOPES, Danielle Bastos. Multiculturalismo crítico: uma aproximação. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.21, 205-210, ago./dez., 2012. Acessar publicação original. [IF].

The Nation and its Ruins: Antiquity, Archaeology, and National Imagination in Greece / Yannis Hamilakis

Eu vos saúdo, ruínas solitárias, túmulos santos, muros silenciosos! É a vós que invoco; é a vós que dirijo minhas preces. Sim! Enquanto vossa aparência afasta com pavor secreto os olhares do vulgo, meu coração encontra, ao vos contemplar, o encanto de sentimentos profundos e altos pensamentos. Quantas úteis lições, reflexões tocantes ou fortes não ofereceis ao espírito que sabe vos interrogar! (Volney, Les ruines, ou Méditations sur les révolutions des empires, 1791)

Volney, no famoso livro Les ruines, ou Méditations sur les révolutions des empires, mostra-nos seu fascínio pela imagem das ruínas. Para este historiador e filósofo francês, as ruínas significam os escombros de um mundo que não existe mais; são testemunhas mudas de um passado, esfinges que merecem a atenção do presente e que nos lembram do caráter efêmero de nossas conquistas.

As ruínas, principalmente as gregas, serviram de diferentes formas para representações na modernidade, foram inspiração para a arquitetura no período pós Revolução Francesa e tema para poetas românticos. Consciente desse poder estético das ruínas e preocupado com a identidade nacional da Grécia moderna, o autor grego Yannis Hamilakis escreveu seu livro The Nation and its Ruins: Antiquity, Archaeology, and National Imagination in Greece, publicado em 2007 pela Oxford University Press, ganhador do Edmund Keeley Book Prize, da Modern Greek Studies Association.

O livro é dividido em oito capítulos, nos quais Hamilakis estuda as relações entre Antigüidade clássica e imaginário nacional. O autor levanta uma série de questões que se interligam para formar a problemática da pesquisa: Por que o imaginário nacional precisa de vestígios do passado? Como esses vestígios se interligam no processo de formação imaginária de uma nação? Como a antigüidade pode contribuir para a formação do topos imaginário de uma nação? Como a arqueologia, um dispositivo da modernidade ocidental, auxilia na produção da materialidade de uma nação?

As perguntas ambiciosas que formam a problemática de Hamilakis se enquadram naquilo que François Hartog e Jacques Revel chamaram de “les usages politiques du passé.” Uma das maneiras de fazer uso político da história é a deformação da mesma por motivos nacionalistas, ou seja, a necessidade de formar uma imagem da nação coesa faz com que se excluam certos fatos e acontecimentos para favorecer a idéia de nação (Hartog; Revel, 2001: 08). O uso da história é tão importante para uma nação que Hobsbawm afirma que “nações sem um passado são uma contradição nos termos. O que faz uma nação é o passado, o que justifica uma nação contra outras é o passado, e os historiadores são as pessoas que o produzem.” (Hobsbawm, 1992: 03)

De acordo com Anne-Marie Thiesse (2001/02), existem elementos que permeiam um discurso nacionalista e podem ajudar a sustentar uma pseudo-unidade nacional como a idéia de ancestrais fundadores, uma história que tenha continuidade através de vicissitudes, podendo formar a saga de um povo, uma galeria de heróis que povoam essa história, uma língua e lugares de memória. No caso do livro The Nation and its Ruins, também são elementos importantes a paisagem e os monumentos culturais. No caso da nação grega, nada mais emblemático do que as ruínas arqueológicas como as do Parthenon ou a Acrópoles de Atenas.

O título do primeiro capitulo, “Memories cast in marble: introduction” (pp. 1-33), é uma referência ao clássico de David Sutton, Memories Cast in Stone: The Relevance of the Past in Everyday Life. Hamilakis começa a sua análise refletindo sobre os ícones referentes à Antigüidade presentes na abertura dos Jogos Olímpicos de Atenas no ano de 2004. Para o autor a abertura dos Jogos Olímpicos colocou em evidência para toda a comunidade internacional os símbolos do imaginário da nação grega, especialmente as ruínas arqueológicas da Antigüidade. Utilizando fotografias do evento, o autor nos mostra que reproduções vivas das ruínas, animadas por atores, desfilaram como emblemas nacionais gregos. O uso das ruínas também é comum como recurso da publicidade de empresas tanto nacionais como multinacionais. O autor discute também os avanços da relação entre a questão do nacional e a arqueologia, colocando as bases teóricas para seu livro na leitura das idéias de Eric Hobsbawm, Benedict Anderson, Ernest Gellner e arqueólogos como Nadia Abu El-Haj:

Neste estudo, valho-me de escritos que vêem o nacionalismo como um sistema cultural, uma ideologia e uma ontologia, como um conjunto de idéias que define o ser-no-mundo das pessoas, organiza a sua existência social corporal, a sua imaginação e mesmo os seus sonhos sociais (cf. Kapferer 1988, 1989; Anderson 1991[1983]; Herzfeld 1992; Gourgouris 1996). Eu vejo o nacionalismo como um quadro de referência organizatório, sempre em processo de construção de si mesmo, do seu objeto (a nação) e dos seus agentes sociais. As suas raízes históricas estão bem documentadas (cf. Gellner 1983; Hobsbawm 1992) e as suas ligações com as tecnologias da modernidade como a tipografia, o mapa, o censo e o museu, bem expostas (cf. Anderson 1991[1983]). A conhecida frase de Anderson sobre a nação como uma comunidade imaginada está agora nos lábios de todos, embora raramente haja qualquer reflexão sobre o que esta afirmação acarreta. (Pg. 15)

Depois de assim estabelecer as suas bases conceituais, no segundo capitulo, “The ‘Soldiers’, the ‘Priests’, and the ‘Hospitals for Contagious Diseases’: the Producers of Archaeological Matter-realities” (pg. 35-56), Hamilakis dedica-se a uma discussão crítica sobre as estruturas e as políticas das produções arqueológicas na Grécia, enfocando os órgãos oficiais que desenvolvem as principais escavações, sendo os principais o State Archaeological Service e o Athens Archaeological Society. Hamilakis defende a idéia de que a arqueologia em solo grego está ligada a uma idéia de “missão nacional”, colocando os museus dedicados à Antigüidade como templos nacionais de uma cultura que às vezes se associa à confusa idéia de uma idade de ouro.

Assim o autor desenvolve uma teoria da arqueologia grega, colocando-a em um cenário religioso, realizada dentro da religião secular da nação, ou seja, a Antigüidade. Os arqueólogos, na interpretação de Hamilakis, atuam como sacerdotes dessa religião, sendo mediadores entre o passado e o presente, enquanto as ruínas ou os monumentos são os seus ícones. A importância da arqueologia como religião secular da nação é atribuída ao seu papel como um provedor de argumentos para a defesa do que é considerado nacional.

No terceiro capítulo, “From Western to Indigenous Hellenism: Antiquity, Archaeology, and the Invention of Modern Greece” (pg. 57-123), há um exame genealógico de como surgiram as estreitas relações entre as antigüidades e a imaginação nacional helênica no século XIX. Hamilakis sustenta que antes da consolidação da idéia de nação, as antigüidades eram vistas pela maioria dos gregos como feitos admiráveis do passado, porém alheios a eles. Ao final do período, contudo, elas haviam tornado-se um recurso simbólico chave da imaginação nacional, essencial à construção do novo Estado-nação grego após a guerra da Ásia Menor. O autor também defende que a Antigüidade, apesar de ter seu uso e significado fomentados pela concepção ocidental do helenismo, foi reformulada por intelectuais gregos em uma nova síntese local, chamada por ele de “helenismo nativo” (Indigenous Hellenism), que envolvia a reabilitação de Bizâncio e o estabelecimento de uma continuidade histórica nacional, além da fusão do nacionalismo com a Ortodoxia Grega.

O capítulo seguinte (“The Archaeologist as Shaman: the Sensory National Archaeology of Manolis Andronikos” pp. 126-167) trata de Manolis Andronikos (1919-1992), considerado o arqueólogo nacional por excelência na Grécia, elevado ao status de grande “xamã” da nação. Andronikos defendia uma praxis arqueológica que enfatizava a ligação emocional com o passado e as propriedades sensoriais e mnemônicas dos artefatos e sítios arqueológicos. A sua filosofia combinava a modernidade da narrativa arqueológica nacional com as visões “pré-modernas” de encontros corpóreos com os ancestrais mortos, os quais eram vistos como tendo uma ligação genealógica direta com as pessoas de hoje. Para o autor, Andronikos é a expressão arqueológica do Helenismo nativo que constrói uma modernidade seletiva, muito diferente de algumas formas da modernidade ocidental.

Em “Spartan Visions: Antiquity and the Metaxas Dictatorship” (pp. 169-204), o autor examina os papéis e significados da Antigüidade durante a ditadura de Metaxas (1936-1941). Nela, buscou-se estabelecer uma nova narrativa nacional, aspirando a uma sociedade utópica chamada “A Terceira Civilização Helênica”, sendo a primeira a Antigüidade clássica e Bizâncio a segunda. Esta narrativa idealizava a Esparta clássica devido aos seus supostos militarismo e austeridade social. Algumas novidades introduzidas no período persistem até a atualidade, como o uso ideológico da antigüidade como ferramenta educacional e as evocações cerimoniais e performáticas do passado e da sua materialidade.

O sexto capítulo, “The Other Parthenon: Antiquity and National Memory at the Concentration Camp” (pp. 205-241), trata dos campos de concentração estabelecidos pelo governo na ilha de Makronisos, conhecida como o “Novo Parthenon”, para onde foram enviados os soldados e cidadãos de esquerda durante a Guerra Civil Grega, com o propósito de reabilitá-los pela doutrinação ideológica. A Antigüidade clássica era usada nessa doutrinação, havendo tentativas de convencer os presos de que o seu destino como descendentes dos gregos antigos era incompatível com ideologias “estrangeiras” como o comunismo. Os presos “redimidos” eram encorajados a construir réplicas de monumentos clássicos como o Parthenon, encenar peças e compor poesia evocando a Antigüidade clássica. O autor contrapõe esta tentativa com as memórias dos presos, que expõem a brutalidade do “experimento”, mas também invocam a Antigüidade clássica – ambos os lados retiram das ruínas o que lhes convêm ideologicamente. Hamilakis sustenta que uma vez estabelecido o mapa mítico nacional, ele se torna o quadro aceito, dotado de suprema autoridade moral, dentro do qual todos os nacionais operam, apesar das suas divergências.

No sétimo capítulo, “Nostalgia for the Whole: the Parthenon (or Elgin) Marbles” (pp. 243-286), a questão dos mármores do Parthenon, atualmente no Museu Britânico de Londres, é analisada tendo em vista superar algumas idéias sobre a restituição cultural e discutir a produção e reprodução da imaginação nacional, as ligações entre os nacionalismos e o colonialismo e as noções de alienabilidade e inalienabilidade.1 O autor sustenta que atualmente os mármores são como os membros exilados e aprisionados do corpo nacional e personificam um elemento chave para a imaginação nacional: a nostalgia pela totalidade. Os mármores são como uma manifestação material do desmembramento e da fragmentação, processos que ameaçam a completude do nacional, cujo discurso baseia-se na unidade e na coesão.

Por fim, no oitavo e último capítulo, “The Nation in Ruins? Conclusions” (pp. 287-301), o autor resume e reitera as questões discutidas previamente sobre as relações entre as antigüidades e a imaginação nacional. Então, Hamilakis parte para uma análise sobre as perspectivas futuras da nação, debate em que freqüentemente se prevê um enfraquecimento ou mesmo fim da nação em conseqüência do fenômeno da globalização. O autor, ao contrário, acredita que esta possa levar ao fortalecimento da nação, pois a incerteza gerada requer a ilusão de permanência e o sentimento de enraizamento proporcionados pela idéia de nação e singularmente presentes na materialidade das ruínas incorporadas à imaginação nacional.

O livro de Hamilakis é uma importante contribuição para os estudos de recepção e apropriação da Antigüidade, da arqueologia e das suas utilizações, assim como para os estudos sobre os usos políticos do passado e sobre a nação, o nacionalismo e a identidade nacional. Por lidar com o caso específico da Grécia moderna de forma tão profunda e variada, The Nation and Its Ruins é esclarecedor para a discussão sobre a construção da nação e dos seus símbolos e sobre os papéis e significados do passado no imaginário nacional. As ruínas acabaram sendo protagonistas na construção da identidade nacional grega – como Volney, permanecemos deslumbrados diante desses restos de pedra.

Referências

HARTOG, François; REVEL, Jacques (Orgs.). Les usages politiques du passé. Paris: Éditions de l’EHESS, 2001.

HOBSBAWM, Eric. Ethnicity and Nationalism in Europe Today. In: Anthropology Today, v.8, n. 1, Feb. 1992

THIESSE, Anne-Marie. Ficções criadoras: as identidades nacionais. In: Anos 90. Porto Alegre: UFRGS, n. 15, 2001/2002.

VOLNEY, Constantin-François. Les ruines, ou Méditations sur les révolutions des empires. Paris: Bossanges Frères, 1821 [1791].

Notas

1 Os conceitos de “alienabilidade” e “inalienabilidade” são construídos em torno do caso do Friso do Párthenon, atualmente pertencente ao British Museum e reivindicado pela Grécia, com constantes protestos e processos internacionais. Hamilakis discute como certos artefatos arqueológicos ganham conotação de alienabilidade, dentro da idéia de trocas simbólicas de Pierre Bourdieu, assumindo valores nacionais e econômicos (Hamilakis, p. 275). Tanto a Alienabilidade e Inalienabilidade estão em uma “symbolic arena” (p. 274), em que são disputados na construção de sentidos nacionais. Tais sentidos não são dados, mas processos de significações.

Mateus Dagios – Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGHIS/UFRGS).


HAMILAKIS, Yannis. The Nation and its Ruins: Antiquity, Archaeology, and National Imagination in Greece. (Classical Presences). Oxford University Press, 2007. 352p. Reeditado em 2009. Resenha de: DAGIOS, Mateus. As ruínas e a modernidade. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.20, p.183-188, jan./jul., 2012. Acessar publicação original. [IF].

Guerra y democracia: los militares peruanos y la construcción nacional / Eduardo T. Medrano

“Guerra y Democracia” do historiador peruano Eduardo Toche Medrano, foi escrito após a conclusão dos trabalhos da Comissão da Verdade e Reconciliação (CVR) que investigou os crimes cometidos durante os vinte anos de combate às guerrilhas no Peru (1980-2000). A inquietação que moveu sua pesquisa foi compreender como se constituiu a relação entre as Forças Armadas e a sociedade civil peruana, que culminou na morte de milhares de camponeses indígenas que vivam em regiões onde atuavam grupos guerrilheiros.

Assim como o Brasil, o Peru contém uma população heterogênea, e há uma grande distância entre esta população e as instituições governamentais, incluindo as militares, o que, durante períodos de regimes autoritários, foi um dos fatores que influenciou o comportamento dos militares diante da população civil. Esta obra de Toche Medrano nos interessa especialmente por mostrar como foi construída dentro das instituições militares certa leitura da sociedade onde as figuras do “índio” e do “camponês” foram paulatinamente aproximadas a do “subversivo”, “terrorista” e finalmente do “narcoterrorista”.

O livro é dividido em três partes: “os inícios (a formação de critérios institucionais)”, “a sistematização da experiência” e a “ação no vazio (o esgotamento da doutrina militar peruana)”. Em cada uma das partes o autor, através de rica documentação, mostrou como as forças armadas se tornou o setor mais especializado e organizado do Estado e como se relacionou com outros setores da máquina estatal e da sociedade.

Na primeira parte, Toche Medrano valeu-se principalmente da Revista Militar Peruana, para mostrar que logo após o fim da ocupação do território peruano pelos militares chilenos (Guerra do Pacífico 1879-83), havia uma forte desconfiança entre elites civis e militares: culpavam-se mutuamente pela derrota e consequente perda de territórios para o vizinho do sul. Contudo, os dois grupos concordavam em responsabilizar pela derrota a falta de sentimento nacionalista dos indígenas, que eram a maioria da população, e não se engajaram contra os chilenos.

Deste modo, entre o final do século XIX e primeira metade do XX o discurso indigenista foi o grande mote nos meios intelectuais peruanos, fosse para criticar ou apoiar a ação do Estado oligárquico. Como a constituição de 1895 atribuiu às forças armadas o papel de: “defender o Estado das agressões externas, assegurar a integridade das fronteiras, a ordem interna e o cumprimento da Constituição” (TOCHE MEDRANO: 2008:37) os militares eram, nos rincões do país, muitas vezes a única manifestação da existência do Estado em meio a uma população indígena que em muitos casos sequer falava espanhol, o que fez com que se identificassem como a própria presença da “civilização”.

Toche Medrano mostra através da análise dos textos publicados pelos militares um amálgama entre o indigenismo e o positivismo que resultou na forma paternalista e autoritária como os militares, principalmente o exército, concebiam seu papel perante a população: deveriam educá-los, torná-los cidadãos, apesar de seus “vícios” típicos da “raça”. A função civilizatória das forças armadas era exercida através do cumprimento do serviço militar obrigatório, onde os recrutas além de marchar e cantar o hino nacional eram alfabetizados, além de aprenderem noções de trabalhos manuais. A ideia era que o recruta se tornasse um disseminador dos valores aprendidos no quartel entre sua comunidade.

Um dos objetivos do serviço militar obrigatório era promover a integração da população dentro dos valores que os militares acreditavam ser nacionais, porém, segundo o autor, o resultado foi que as condições de implementação acabaram reforçando preconceitos e dificultaram a almejada integração da população na “civilização”. Um exemplo interessante são as qualidades que os militares destacaram nos recrutas indígenas: “sua resistência a fadiga, sua adaptabilidade às condições rigorosas, o desprezo pela morte e sua docilidade ante às ordens” (TOCHE MEDRANO: 2008:68). O autor destacou também o movimento inverso: o governo estabeleceu entre 1943 e 1974 a instrução militar obrigatória nas escolas, demonstrando que uma parcela dirigente sociedade civil entendia que reforçar o nacionalismo era sinônimo de militarismo, pois as forças armadas eram portadoras por excelência do espírito da Nação.

Um segundo personagem importante cuja construção encerra primeira parte da obra é o “subversivo”. O surgimento do “personagem” está intimamente relacionado ao contexto internacional dos anos 1920–1930: o fortalecimento do movimento comunista internacional pós Revolução Russa. Especificamente no Peru, o Partido Comunista tinha pouca expressão, pois a maior parte dos trabalhadores estava na zona rural, portanto fora do apelo discursivo dirigido ao proletariado. O movimento que canalizou as reivindicações e a insatisfação da população com a exploração econômica e a falta de canais de participação política foi o indigenista foi o grande mote nos meios intelectuais peruanos, fosse para criticar ou apoiar a ação do Estado oligárquico. Como a constituição de 1895 atribuiu às forças armadas o papel de: “defender o Estado das agressões externas, assegurar a integridade das fronteiras, a ordem interna e o cumprimento da Constituição” (TOCHE MEDRANO: 2008:37) os militares eram, nos rincões do país, muitas vezes a única manifestação da existência do Estado em meio a uma população indígena que em muitos casos sequer falava espanhol, o que fez com que se identificassem como a própria presença da “civilização”.

Toche Medrano mostra através da análise dos textos publicados pelos militares um amálgama entre o indigenismo e o positivismo que resultou na forma paternalista e autoritária como os militares, principalmente o exército, concebiam seu papel perante a população: deveriam educá-los, torná-los cidadãos, apesar de seus “vícios” típicos da “raça”. A função civilizatória das forças armadas era exercida através do cumprimento do serviço militar obrigatório, onde os recrutas além de marchar e cantar o hino nacional eram alfabetizados, além de aprenderem noções de trabalhos manuais. A ideia era que o recruta se tornasse um disseminador dos valores aprendidos no quartel entre sua comunidade.

Um dos objetivos do serviço militar obrigatório era promover a integração da população dentro dos valores que os militares acreditavam ser nacionais, porém, segundo o autor, o resultado foi que as condições de implementação acabaram reforçando preconceitos e dificultaram a almejada integração da população na “civilização”. Um exemplo interessante são as qualidades que os militares destacaram nos recrutas indígenas: “sua resistência a fadiga, sua adaptabilidade às condições rigorosas, o desprezo pela morte e sua docilidade ante às ordens” (TOCHE MEDRANO: 2008:68). O autor destacou também o movimento inverso: o governo estabeleceu entre 1943 e 1974 a instrução militar obrigatória nas escolas, demonstrando que uma parcela dirigente sociedade civil entendia que reforçar o nacionalismo era sinônimo de militarismo, pois as forças armadas eram portadoras por excelência do espírito da Nação.

Um segundo personagem importante cuja construção encerra primeira parte da obra é o “subversivo”. O surgimento do “personagem” está intimamente relacionado ao contexto internacional dos anos 1920–1930: o fortalecimento do movimento comunista internacional pós Revolução Russa. Especificamente no Peru, o Partido Comunista tinha pouca expressão, pois a maior parte dos trabalhadores estava na zona rural, portanto fora do apelo discursivo dirigido ao proletariado. O movimento que canalizou as reivindicações e a insatisfação da população com a exploração econômica e a falta de canais de participação política foi o época, foi fundada a Escola Superior de Guerra (ESG), não nos moldes franceses, mas estadunidenses, curiosamente, desta instituição saíram quadros que nos anos 1970 se radicalizaram na proposta de que cabia ao Estado planejar a economia e desenvolver o país. O autor mostra que tais institutos foram fundamentais para a elaboração de um planejamento de desenvolvimento nacional, no entanto os critica porque na doutrina que elaboraram não reservaram espaço para a atuação política independente da sociedade civil.

Cabe aqui nos questionarmos se cabia às forças armadas, como defende o autor, delimitar em sua doutrina o espaço para a participação política dos civis, ou se, cabia a esta conquistar seu espaço. O fato dos militares ignorarem esta “concessão de espaço”, e do autor criticá-los por isso evidencia a fragmentação e a exclusão da sociedade civil peruana pela fraqueza da classe média, desprovida de um projeto político para o país, dirigido por uma oligarquia que impedia qualquer tipo de reforma e pelo alijamento da grande população indígena de qualquer participação.

Esta doutrina de segurança pautada pelo desenvolvimento foi experimentada logo no início dos anos 1960 durante o primeiro enfrentamento entre militares e as guerrilhas surgidas no Valle de la Convención, Cusco. Alí, ao exercerem a repressão contra a população se convenceram que o abandono desta pelo governo era a causa da guerrilha. Gradualmente, os militares entraram no jogo político, primeiro apoiando o candidato a presidência em 1963 Fernando Belaúnde, que defendia reformas. Logo, em 1968, em meio a uma forte crise, liderados pelo Gal. .Velasco Alvarado os militares tomaram as rédeas do país: nacionalizaram empresas estrangeiras, fizeram a reforma agrária, criaram estatais e tomaram outras medidas que visavam a industrialização e a criação de um mercado interno no Peru.

O governo reformista do Gal. Velasco foi apoiado por parte daqueles que militaram em movimentos de esquerda pelas suas propostas desenvolvimentistas e por sua política externa independente em plena Guerra Fria. Apesar de ter criado um órgão para canalizar a participação popular SINAMOS (Sistema Nacional de Mobilização Social), não conseguiu lidar com as manifestações de insatisfação, pois, apesar de suas medidas, o governo militar não conteve o aumento do custo de vida e, as importações requeridas pela indústria levou à falta de divisas e a uma grave crise. O projeto de desenvolvimento nacional militar aplicado entre 1968 e 1975 apesar de ter melhorado sensivelmente a distribuição de renda, foi insuficiente tamanho o era o abismo social, além disso não conseguiu integrar agricultura e indústria para o abastecimento interno.

A última parte do livro, “ação no vazio (o esgotamento da doutrina militar peruana)”, aborda desde a volta dos civis ao poder em 1980 até o final do regime fujimorista em 2000. Foi neste período em que, especialmente as regiões de Ayacucho e Junin, sofreram os efeitos perversos da guerra contra as guerrilhas especialmente o Sendero Luminoso. Nesta parte da obra o autor apoiou-se principalmente no relatório da Comissão de Verdade e Reconciliação e na imprensa.

Segundo Toche Medrano, ao mesmo tempo que se esgotaram as possibilidades do desenvolvimentismo militar, as teses neoliberais difundidas a partir do Consenso de Washington foram respaldadas pelas elites, confluíram de forma que a a violência foi a única resposta do Estado para os protestos sociais contra o desmonte do aparato de intervenção estatal e distribuição de renda montado durante o regime militar e contra a guerrilha. Assim guerrilha e oposição ao neoliberalismo foram tratados como se fossem um só fenômeno. Como agravante, um novo ator entrou em cena: os narcotraficantes interessados na tradicional produção cocaleira andina.

Toche Medrano mostra que os militares somente pacificaram o país quando separaram guerrilha, população camponesa e narcotraficantes: para combater os primeiros tiveram que superar a desconfiança dos segundos, e incorporar camponeses como recrutas em suas regiões de origem, organizá-los e armá-los, originando os comitês de autodefesa. Por esta atitude independente foram acusados pelos estadunidenses de apoiar as guerrilhas. Quanto ao narcotráfico, um dos motivos da queda do regime fujimorista foram denúncias de corrupção contra altas esferas militares que recebiam dinheiro para facilitar suas ações, comprovadas pela existência de bases militares próximas a pistas clandestinas de narcotraficantes.

O autor referiu-se à ausência de punição a muitos crimes denunciados pela Comissão da Verdade e Reconciliação, como os massacres de camponeses, e atos de corrupção, especialmente o envolvimento entre militares e narcotraficantes; tal impunidade foi explicada devido ao corporativismo das Forças Armadas. Toche Medrano conclui apontando a necessidade urgente na promoção de mudanças na relação de todo aparato estatal, com a população civil, porque muitos dos problemas sociais que levaram à explosão de violência continuam insolúveis como o acesso à justiça e a cidadania.

A pesquisa de Eduardo Toche Medrano contribui para elucidar uma relação complexa entre umas das instituições que fundam o conceito de Estado e seus habitantes, que no caso dos rincões do Peru e das barriadas (favelas) da capital, estão muitas desprovidos de qualquer garantia de cidadania. A Comissão da Verdade e Reconciliação que em nosso vizinho do noroeste investigou os crimes cometidos por agentes do Estado e por guerrilheiros contra a população civil, não resultou em punição para os primeiros, unicamente para segundos, apesar do parecer responsabilizar o Estado pelo clima de violência, deve-se salientar que, a apuração dos fatos consiste num primeiro passo, nada desprezível, rumo ao fortalecimento de instituições democráticas. Aqui no Brasil, o historiador José Murilo de Carvalho lançou em 2005 a coletânea de artigos que tocam, de alguma forma, as relações entre militares e civis, Forças Armadas e política no Brasil (Jorge Zahar, 2005) contudo ainda não são muitos aqueles que se aventuram pela história militar numa abordagem cronológica relativamente ampla (aproximadamente dois séculos) e levantando questões tão importantes.

Referências

CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e Política no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

Êça Pereira da Silva –Doutoranda do Programa de História Social, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Minha pesquisa consiste numa comparação entre as doutrinas militares brasileira e peruana nos anos 1950 e conta com o apoio CNPq. E-mail: [email protected].


TOCHE MEDRANO, Eduardo. Guerra y democracia: los militares peruanos y la construcción nacional. Lima: DESCO/ CLACSO, 2008. Resenha de: SILVA, Êça Pereira da. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.20, p.177-182, jan./jul., 2012. Acessar publicação original. [IF].

Canção popular brasileira e Ensino de História / Miriam Hermeto

Nas últimas décadas, o Ensino de História como objeto de pesquisa ganhou foros de amplitudes em todo o Brasil. As temáticas que o cercam também tem se diversificado. Em tempos assim em que, os saberes proporcionados por diferentes olhares, fontes e perspectivas dão asas a problematizações diversas sobre o ensino, mediando às relações entre a produção do conhecimento histórico o e conhecimento histórico escolar, a recente publicação “Canção popular brasileira e Ensino de História” de Miriam Hermeto, com invejável maestria, insere-se nesse debate.

O livro é rico em bibliografia e indicações de sites proporcionando acesso a arquivos diversos compostos por letras de músicas, capas de discos, jornais, entrevistas e vídeos, que cercam, dialogam e prestam informações sobre a canção popular brasileira. A primeira vista, por essa riqueza de detalhes e estratégias metodológicas crivados pelos diálogos de cores entre os textos, as diferentes cores de fundo numa mesma página, as múltiplas imagens em cores também diversas, temos a falsa impressão de estarmos manuseando um livro didático. Talvez, essa estética tenha sido criada para aguçar a imaginação do leitor a pensar sobre o objetivo maior do livro, canção popular brasileira como objeto e fonte de estudos históricos. Conteúdo, possibilidades didáticas e de pesquisa com documentos se mesclam de forma a indicar, que realmente, na educação histórica não se pode separar pesquisa de ensino.

A canção enquanto linguagem é confeccionada e consumida em larga escala por diferentes grupos socioculturais em todo o Brasil. É, portanto, amplamente acessível, presente na vida dos estudantes e atende bem aos anseios de professores pela busca de recursos pedagógicos que se aproximam do cotidiano dos alunos. Por possibilitar construir capacidades de leitura de mundo dos estudantes, enquanto sujeitos, cidadãos, trabalhadores, a canção “pode ser tomada como instrumento didático privilegiado no ensino de História” (HERMETO, p. 12 e 15) Isso é indiscutível. Talvez a grande questão resida nos problemas teórico-metodológicos de como tratar as canções. De antemão, ao problematizar a canção popular brasileira como objeto e fonte de estudos históricos para as práticas educacionais no Ensino Médio, a obra aqui analisada cumpre bem o objetivo a que se destina. O alvo do livro é o professor. A intenção é fazer com que ele vislumbre o interesse na realização dessas práticas, reflita sobre suas ações didáticas, e consequentemente que isso contribua para sua formação continuada.

Na discussão sobre a canção popular brasileira enquanto conceito historicamente construído, assunto abordado logo na introdução do livro, Miriam Hermeto, em consonância com Marcos Napolitano, justifica e escolha pelo século XX, ao afirmar ter sido nesse momento em que a historiografia concebeu o seu surgimento, a sua definição e a sua trajetória histórica. “Um produto do século XX,” relacionado à sua forma fonográfica: “registro sonoro em um suporte, (disco placa, filme, suporte digital ou outro formato) que lhe dá perenidade e, em última instância, ao desenvolvimento tecnológico industrial do mundo urbanizado.” Em termos gerais, “pode ser definida como um híbrido que se constrói ao colocar diferentes tipos musicais em diálogo.” Em termos mais específicos: “narrativa que se desenvolve num espaço de tempo curto (de 2 a 4 minutos) que constrói e veicula representações sociais, a partir da combinação entre melodia e texto” (HERMETO, p. 32).

Partindo da elaboração desse conceito para justificar o recorte temporal de estudo, a autora não se detém sobre diferentes formas de expressões e usos musicais que se reportam a outras temporalidades e até mesmo espacialidades das quais, pelo menos em parte, a canção popular brasileira deriva, mescla. Fato esse certamente passível de críticas. No entanto, além do trabalho em História requerer justificativas para seus recortes, cabe aos profissionais da aérea, inspirar-se ou aprimorar-se nos passos teórico-metodológicos sugeridos pela autora e construir seu próprio percurso e escolhas.

Tendo como pressuposto de que “ensinar História é ensinar teoria e metodologia,” Miriam Hermeto inspira-se teoricamente nas concepções de Marc Bloch sobre o objeto de estudo da ciência histórica: os homens e o tempo. Esse homem enquanto sujeito e objeto do conhecimento passeia sobre diferentes temporalidades: “o tempo da ação humana que se analisa” (passado) e “o tempo em que a análise é realizada” (presente). Esse homem – historiador – através de conceitos e métodos de pesquisa apropria-se do legado humano para a produção/ensino do conhecimento histórico. Essa produção humana configura-se em documentos.

Para discussão de documento, a autora apóias-se na definição de Jacques Le Goff, para quem “o documento é monumento,” pois sua produção está condicionada a diferentes fatores e haja vista informar sobre o modo de vida e a inserção social de quem os produziu e, ao padronizá-lo, “quis atribuir um estatuto de perenidade”. No entanto, para que a produção humana se transforme em documento para a História é necessário que se problematize e identifique “as diferentes camadas temporais”, os diferentes sujeitos e as relações existentes. Somente com esse olhar crítico se transforma os documentos “em fonte de informações sobre as relações dos homens no tempo” (HERMETO, p. 25 e 26) Assim, canção popular brasileira é entendida enquanto produção humana, documento e fonte para a história.

Para Miriam Hermeto, no uso pedagógico, esse documento/fonte, recurso didático não pode pretender apenas ilustrar historicamente os fatos narrados. Do contrário, espera-se que o professor seja capaz de trabalhar com os alunos “as especificidades de linguagem e a forma como elas se inserem na dinâmica social”, isto é, interrogar as canções a partir de seus aspectos históricos gerais, tentando perceber como ela coteja o problema, o tema que se pretende abordar e as representações que ela suscita.

A partir de Chartier e Pesavento, a autora define representação como “algo que dialoga com muitos sentidos.” Nas palavras da própria: “as representações se traduzem nos temas abordados” que podem ter “as mais diferentes abordagens melódicas ou poéticas” e isso faz com que o conceito de cação popular brasileira abarque diferentes gêneros musicais e poéticos.” Os gêneros, assim, seriam formas de definir esse produto cultural: “pelo conteúdo temático da mensagem (canção engajada, canção de amor, canção de protesto…)” ou pelo “estilo musical (bossa-nova, samba-canção, xote, rock, baião, etc.)” (HERMETO, p. 36)

De modo geral, é na busca de compreensão das representações que a canção popular brasileira proporciona que se delineiam grande parte dos estudos que a tem como objeto ou como fonte de estudos históricos. Nesse sentido, a partir de letras transcritas e indicações de sites de onde encontrá-las em viva voz, a autora propõe um exercício de percepção musical com vistas a auxiliar o professor a depurar seu entendimento no processo de construção de representações sociais da canção popular brasileira, bem como, compreender a adequação entre letra e melodia.

A canção popular brasileira no livro é abordada como “fato social.” A autora parte dos diferentes sujeitos envolvidos na produção, “a um só tempo cultural e comercial.” As analises recaem sobre as pessoas e instituições, os problemas históricos e sobre uma infinidade de documentos históricos que vinculam a canção e as impressões pelo público: “álbuns (LPs, CDs e DVDs), fonogramas, vestígios de interações nas redes sociais, fotografias, vídeos de performances, depoimentos, biografias, textos de críticos musicais, propagandas de álbuns e shows, reportagens sobre eventos, documentários”, etc. (HERMETO, p. 43) Por esse prisma, Hermeto dialoga com os princípios teórico-metodológico de Robert Darton. Em suas análises sobre o livro o autor insere-o na perspectiva do circuito das comunicações, envolvendo produção e consumo: do autor ao leitor, do editor ao livreiro, fornecedores e críticos.

Em grande parte esse “circuito de comunicações” imbrica as páginas da segunda parte do livro, embasando as análises e conclusões sobre a canção popular brasileira. A ênfase recai sobre os cancionistas (melodia e letra), os performers (arranjadores, instrumentalistas e cantores). Analisa um pouco da história da indústria fonográfica brasileira (primeiras gravadoras, regulamentação e crescimento da produção); capas de álbuns como fontes e acessibilidade; produtores musicais e jornalistas, como mediadores culturais e de mercado; os meios de comunicação de massa (rádio, TV) de circulação; e a apropriação da canção pelo público.

Como protagonista no assunto, isto é, na condição de professora e pesquisadora na área, Miriam Hermeto compreende que os problemas envolvendo o processo de ensino-aprendizagem em História a partir da música não são novos nem estão resolvidos. Para o professor que não tem formação na aérea, as questões mais comuns são: qual gênero ou tipo de música deve ser analisado em sala de aula? Como enfrentar a questão da linguagem musical? Como lidar com as diferenças entre as escolhas dos professores e o gosto musical dos alunos? Onde obter fonogramas antigos e fora do mercado, para não se prender ao que se ouve na mídia?

Mesmo que não se propunha a dar receitas prontas, com uma abordagem metodológica que dialoga questões teóricas, historiográficas e didáticas, ao longo dos textos-bases a autora intercala boxes com essa variedade de documentação acima descrita. Por essa lógica, objetiva possibilitar ao professor alternativas de trabalhos pedagógicos e sugere atividades que o permite “mediar, por meio de orientação de pesquisa, a construção de algumas capacidades de aprendizagem histórica específicas”, tais como: “lidar com documentos datados, buscando diferentes versões de canções” (HERMETO, p. 17).

Para Miriam Hermeto compreender a canção popular brasileira apenas como fato social a partir da perspectiva de circuito de comunicação não é suficiente para se entender as razões da hegemonia e de sua originalidade. Assim, a autora dedica a segunda parte do livro a “trajetória história do fenômeno e a forma como ela vem sendo interpretada.”

Mesmo que não pretenda fazer uma história da canção popular brasileira, apresenta um balanço dos estudos acadêmicos sobre o assunto. O destaque recai sobre o historiador Marcos Napolitano (autor das orelhas do livro), além de outros especialistas como a cientista social Santuza Cambraia Naves e o lingüista, músico e cancionista Luiz Tatit. A partir dessas referências, elencando para cada momento as produções, os vários sujeitos envolvidos a exemplo de cancionistas, compositores e cantores, bem como os vários gêneros, constrói uma narrativa sobre as mudanças e continuidades na canção popular brasileira, no início do século XX aos dias atuais. Inicia com a legitimação do samba, seguindo do samba-canção à bossa-nova, MPB e jovem Guarda, tropicalismo, canção romântica e pilantragem. Na ênfase sobre a diversidade cancional dos anos 1970, analisa o rock nacional, rap e funk. Por fim para as décadas de 1980 e 1990 mostra a diversificação do mercado cancional brasileiro com três gêneros em especifico: sertanejo, axé e pagode e conclui com argumentos sobre a questão: “o século XXI: para onde vai a canção popular brasileira?”

As propostas didáticas para esse ponto dão-se no sentido de ampliar as possibilidades do “leitor/professor – não especialista em música, mas em história” a desenvolver a percepção musical: desde a audiência, os diversos gêneros a elementos que compõem a “gramática musical,” a relação texto e melodia, arranjo, interpretação e ênfase temática.

Na última parte do texto, Miriam Hermeto propõe uma proposta didática com cinco dimensões do documento (canção): dimensão material (suporte em que se encontra a narrativa histórica com a qual se pretende trabalhar, bem como o tipo de linguagem), descritiva (o tema e o objeto), explicativa (abordagem do tema em uma narrativa), dialógica (referências de pesquisa e culturais com as quais o texto dialoga e a partir dos quais foi construída a narrativa) e dimensão sensível – sentimentos e afetos que mobilizam a produção e a recepção do texto – (HERMETO, p. 148 e 149).

Em seguida, elabora uma proposta de estudo temático embasada nas canções de Luiz Gonzaga com vistas a discutir, “as representações do nordeste: um regionalismo universal.” Chico Buarque e Ruy Guerra, em o projeto cultural o veto de Calabar, (texto lançado em livro, disco e espetáculo) é abordado na discussão sobre a censura e as diversões públicas durante a Ditadura Militar. Por último, a partir das musicas cérebro eletrônico e parabolicamará, avalia as contribuições de Gilberto Gil, para a temática “trabalho e tecnologias da informação”. Didaticamente, foram criadas sequências de ensino, baseadas em um quadro panorâmico que envolve problematização, desenvolvimento da narrativa, aplicação de conhecimentos e reflexão/síntese. Esses passos são mediados por oito atividades que auxiliadas por documentos como letras de músicas, capas de discos, trechos historiográficos e entrevistas oferecem possibilidades de construção de conhecimento.

A meu ver, pelo teor didático e denso da construção do texto, “Canção popular brasileira e Ensino de História”, vai muito além das fronteiras do ensino Médio. Deve ser leitura obrigatória para quem concebe a relação entre saber histórico e saber histórico escolar em qualquer nível do conhecimento, mesmo que não trabalhe em especifico com essa documentação.

Elisgardênia de Oliveira Chaves – Doutoranda em História em História Social da Cultura pela Universidade Federal de Minas Gerais. Apoio CAPES.


HERMETO, Miriam. Canção popular brasileira e Ensino de História: palavras, sons e tantos sentidos. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. (Coleção Práticas Docentes 2). Resenha de: CHAVES, Elisgardência de Oliveira. Em Tempo de Histórias, n.20, p.177-182, jan./jul., 2012. Brasília, Acessar publicação original. [IF].

Globalização e as consequências humanas / Zygmunt Bauman

O livro “Globalização e as consequências humanas” é um livro de perguntas e não de respostas. Não é intenção de Zygmunt Bauman dar respostas ou fazer previsões das condições contemporâneas de nossa civilização. Nas palavras do autor este livro é: “… antes e acima de tudo, um exercício de formulação de questões e estímulos ao questionamento…”.

Há no livro uma proposta de ir além da semântica que permeia o senso comum quando este se refere ao termo globalização. Percebe-se uma proposta de tratar com clareza a condição humana na atualidade. Para isso o autor procura revelar as raízes, bem como as consequências sociais do processo globalizador.

A legibilidade e a transparência do espaço tornaram-se o grande desafio do Estado moderno para a soberania de seus poderes. A reorganização do espaço foi decisiva para a subordinação do espaço social. A necessidade de medir o espaço objetivamente para a arrecadação de tributos fez surgir à imposição de padrões de medidas obrigatórias. Isso impediu a outras medidas locais.

A estrutura espacial ao fim da guerra pelo espaço deveria além de ser completamente legível para o poder estatal, deveria estar livre de toda a semântica por seus usuários ou vítimas.

Segundo Bauman, o modelo do panóptico construído por Michel Foucault, apoia-se numa suposição semelhante, ou seja, por ser um espaço construído de propósito, com assimetria visual, ele permitia manipular conscientemente e rearrumar intencionalmente a transparência do espaço como relação social. Mas em vez de se embrenhar nos ideais panópticos, os Estados modernos optaram pelo mapeamento do espaço, ou seja, despojaram os habitantes locais de suas referências e meios de orientação e empreenderam uma guerra pelo espaço.

A procura da objetividade levou a introdução da noção de perspectiva. A noção de perspectiva está a meio caminho entre a visão de espaço firmemente assentada em realidades coletivas e individuais e seu posterior desenraizamento moderno. O olho do observador era o ponto e partida tal qual anteriormente, mas agora o olho humano era um olho impessoal, que se colocava em um determinado ponto para a observação, retirava se a força as qualidades do observador de homem social e colocava-o numa localização quantificável, culturalmente indiferente e impessoal.

Segundo Bauman, a concepção de perspectiva realizou um duplo feito, atrelou a natureza praxeomórficas da distância às necessidades da nova homogeneidade promovida pelo Estado moderno. A perspectiva ao mesmo tempo em que reconheceu a relatividade subjetividade dos mapas de espaço, simultaneamente neutralizou o impacto dessa relatividade. A busca da transparência e da legibilidade do espaço propiciou o surgimento da objetividade. E a objetividade significava impessoalidade.

Os mapas anteriormente registravam as formas do território. Na tentativa e dar mais legibilidade ao espaço, os territórios é que passaram a refletir os mapas. Tornou-se necessário remodelar ou modelar o espaço.

A visão utópica moderna foi a que mais se adequou a essa exigência. As cidades planejadas eram meticulosamente traçadas, todas foram resultado de planejamentos prévios, estrito e detalhado do espaço. Na busca da transparência do espaço das cidades planejadas, os utopistas modernos permitiram o futuro invadir o presente, em que a disposição lógica das cidades e da arquitetura criou as condições de transparência estabelecidas pela razão impessoal.

Bauman diz que tanto para os teóricos como para os praticantes a cidade do futuro era uma encarnação espacial da liberdade. Do ponto de vista da administração, era muito difícil intervir em uma cidade cuja história já estivesse assentada. Constituída de camadas históricas, as cidades palimpsesto não eram espaços cuja intervenção dos arquitetos pudesse alcançar o monopólio da arquitetura. Para estes utopistas a cidade ideal devia surgir do traçado das pranchetas, as realidades urbanas não estariam à mercê da história, mas na elegância da cartografia impessoal. Cada malha, cada rede social ocuparia o lugar previamente definido pelos planejadores.

Essa condição ideal sonhada para o monopólio da arquitetura modernista teve como principal representante Le Corbusier. Este proferiu uma sentença de morte as cidades existentes, para ele elas não eram funcionais, eram insalubres e ofendiam o senso estético. Para Le Corbusier, tanto a lógica como a estética pede clareza funcional a todos os aspectos da cidade. O espaço é separado de acordo com esta lógica, separam-se os locais com funções domésticos, com funções de trabalho, de lazer.

Esses grandes sonhos arquitetônicos, segundo Richard Sennet, “mostrou que uma cidade para ser boa deve dar às pessoas condições de assumir responsabilidades por seus atos numa sociedade histórica e imprevisível e não em um mundo onírico de harmonia e ordem predeterminada”. É preciso estar atento ao fato de que, antes de operar com os princípios da estética e da razão, os homens não se tornam bons seguindo as boas ordens ou os bons planos de outro. A responsabilidade só é desenvolvida com a alteridade ela precisa do desconhecido e da incerteza da diferença e variedade.

Existe Vida depois do Panóptico? Com essa pergunta Bauman traça uma leitura da metáfora mais perfeita, segundo ele, da transformação moderna, a moderna redistribuição dos poderes de controle. O modelo do panóptico não permite um espaço privado livre de controle. As técnicas panópticas que desempenharam um papel crucial na passagem dos mecanismos de integração de base local, para a integração supralocal não são mais suficientes para explicar a percepção da natureza da mudança atual. Os desafios de hoje são diferentes, não se baseiam no propósito de instalar a disciplina, a igualdade, a fixação do espaço, ao contrário do panóptico, que tem essas premissas como objetivos a serem alcançados. O panóptico serviu ao poder moderno, pois o mesmo preferia a sombra e não o espetáculo, como na pré-modernidade.

Bauman faz uma diferenciação entre o poder panóptico e pós panóptico. Para isso ele faz uma diferenciação entre Banco e dados e o panóptico.

O banco de dados, que para alguns seria uma espécie de panóptico, é tratado por Bauman como uma versão diferenciada, na verdade as semelhanças entre panóptico e banco de dados são superficiais. Enquanto o panóptico laçava seus internos e exigia uma conduta monótona e rotineira, o banco de dados registra os consumidores dignos de crédito. O panóptico era uma arma contra a diferença, a opção e a variedade; o banco de dados trabalha com empresas de crédito que consulta seus arquivos para confirmar a credibilidade do cliente. A principal função do panóptico era garantir a permanência do indivíduo no espaço vigiado. Para o banco de dados, quanto mais informações sobre você, mais livremente você pode circular, ele é um veículo de mobilidade, desde que se seja aceito.

No mundo pós-panóptico, Bauman, a partir de Mathiesen identifica uma nova forma de poder, em que é invertida a relação de poucos vigiarem muito, denominado de Sinóptico.

Ao contrário do panóptico, um estabelecimento local, que com suas regras objetivava a imobilização e, a vigilância visava impedir movimentos autônomos e erráticos, o Sinóptico é global, transporta-se o tempo todo pelo ciberespaço. Os alvos do sinóptico deixam de ser os vigiados e passam a ser os vigilantes. Mesmo parados fisicamente, eles viajam pelo ciberespaço. Enquanto o panóptico usa a força para vigiar, o sinóptico usa a sedução para a vigilância.

O autor se propõe a compreender essas transformações da condição humana a partir do binômio tempo/espaço. Para Bauman, a compreensão da relação cambiante tempo/espaço evidencia as causas e as consequências da transgressão em que o tempo moderno se tornou, antes e qualquer coisa, uma arma na conquista do espaço. “Na moderna luta entre tempo e espaço, o espaço era o lado sólido e impassível, pesado e inerte, capaz apenas de uma guerra defensiva, o espaço era uma obstáculo ao avanço do tempo. O tempo era o lado dinâmico e ativo, a força invasora conquistadora e colonizadora.”

Na modernidade líquida as principais técnicas do poder são agora a fuga, a astúcia, enfim a rejeição a qualquer confinamento territorial. Mover se leve e não mais se aferrar às coisas por sua confiabilidade e solidez é hoje recurso de poder. Fixar se ao solo não é tão importante se o solo pode ser alcançado e abandonado a qualquer momento, à vontade. Assim, fixar-se muito fortemente, estabelecer vínculos pode ser prejudicial dada à possibilidade de oportunidades surgirem em outros lugares. Segundo o autor, é a velocidade atordoante da circulação, da reciclagem, do envelhecimento, do entulho o que traz o lucro hoje, e não a durabilidade e confiabilidade do produto como na modernidade pesada. O poder é cada vez mais móvel, leve e fluido, por isso ele precisa ter liberdade de fluir, o mundo deve estar livre de cercas, qualquer rede densa de laços sociais enraizada em um território é um obstáculo a ser eliminado.

Os capitalistas e os corretores da modernidade recente encontram poucos limites remanescentes para a circulação livre do capital. O capital não fixa raízes territoriais, ele não busca a alteridade. Ao contrário, o capital sendo flexível pode se locomover para uma estrutura mais suave. Na modernidade líquida, o capital não luta para minar resistências, ele se move em favor de uma necessidade menos dispendiosa e cansativa. Ele evita o confronto.

Sem determinação espacial, sem necessidade de localidade para investir, o capital não tem responsabilidade com as consequências sociais, há uma desconexão entre o poder e a localidade. Não há responsabilidade com as consequências sociais, há uma espécie de não obrigação do poder com as obrigações sociais. O capital é livre da obrigatoriedade de contribuir com a perpetuação da comunidade, e com a vida cotidiana da mesma. Sem amarras e sem obrigações o capital flutua livremente, “os custos de se arcar com as obrigações não precisam, agora, ser contabilizados”.

Segundo Bauman, a velocidade do movimento e o acesso a meios mais rápidos de mobilidade chegaram aos tempos modernos à posição de principal ferramenta do poder e da dominação. No mundo atual, denominado pelo autor como modernidade líquida, as condições sociais, sob as quais a política e a vida são levadas, pressupõem um arranjo no qual há uma mudança radical nas formas e convivência humana, pois o esforço para acelerar a velocidade do movimento chegou ao seu limite. O poder pode se mover com a velocidade de um sinal eletrônico. O tempo tornou se instantâneo. O poder é agora extraterritorial, não mais limitado e nem desacelerado pela resistência do espaço. As pessoas que operam as alavancas do poder podem se livrar do alcance a qualquer momento, elas são voláteis, elas vivem a experiência da não terrestrialidade, elas não precisam de nenhuma ligação com seu ambiente terrestre para formar ou fundamentar seu poder. O que elas precisam é isolar-se da localidade, que na modernidade líquida está despojada de significado social, a localidade é reduzida a mero espaço físico.

A desterritorialização do poder caminha lado a lado com a estruturação cada vez mais estrita do território. Assim a extraterritorialidade da elite supra-local se serve dos espaços proibidos para se isolar materialmente e corpórea em relação à localidade. Os espaços proibidos, espaços que não podem ser confortavelmente ocupados, não podem ser utilizados de forma despercebida, se tornam fisicamente inacessíveis para aqueles que não disponham de senhas de entrada. Desse modo a cidade vai se tornando um aglomerado de espaços proibidos, os espaços em que as pessoas se encontram face a face vão sendo desintegrados, as ágoras estão cada vez mais restritas. Os espaços públicos estão sendo suplantados por espaços de produção privada.

A elite paga pela sua segurança, os que não têm condições de pagar são guetoizados, e no processo de guetoização eles também erguem suas placas de “não ultrapasse”, seja ela pela vestimenta, atitudes e desafios à lei e a ordem. O espaço urbano torna-se um território semelhante a um campo de batalha de motins internos. A nova fragmentação do espaço da cidade, o encolhimento do espaço público, a desintegração da comunidade urbana, a segregação e a extraterritorialidade da nova elite são realidades na definição do espaço na modernidade líquida.

Ao contrário da extraterritorialidade da elite, há a territorialidade dos outros, segundo Bauman estas pessoas estão confinadas a uma espécie de prisão. A localidade, além de produzir a imobilidade, no mundo da alta velocidade imobiliza o indivíduo, despoja o território do espaço público, não permite a criação de normas, não há confrontação e nem negociação de valores. Os veredictos podem se tornar desligados da vida local. A vida local, confinada é invadida pelas determinações extraterritoriais, elas aparecem de forma caricatural expropriando os poderes éticos dos habitantes locais, despojando-os de todos os meios para limitar o dano. A localidade no mundo global significa amarras, significa sofrer consequências danosas de um processo de exclusão do espaço criado pelo ciberespaço. Não há espaço para opiniões locais.

A exemplo disso estão às redes da WEB, a elogiadíssima interatividade do novo veículo é um exagero. A rede de interatividade não é para qualquer um, e jamais virá a se abrir totalmente para qualquer um. Os que participam da rede são da elite internacional, sistematicamente das camadas sociais mais elevadas, com poder na vida política, na indústria privada e na burocracia estatal, além dos intelectuais. Porém, mesmo aqueles que têm acesso são obrigados a escolher entre um provedor e outro, entre um pacote e outro. Os que não têm acesso à rede são abandonados às redes de TV sem qualquer simetria na relação entre os dois lados da tela cabem a eles a observação da vida dos poucos vigiados do Sinóptico, as celebridades.

No sinóptico os locais observam os globais, os globais não pertencem ao mundo dos locais, mas eles se encontram pelas telas de TV, os globais são admirados e tem o estilo de vida cobiçado pelos locais. Os ecos do encontro abafam os sons locais que são refletidos pelos muros da localidade revelando e reforçando a impenetrável solidez.

Eloísa Pereira Barroso – Professora Adjunta do Departamento de História da UnB.


BAUMAN, Zygmunt. Globalização e as consequências humanas. [?] Resenha de: BARROSO, Eloísa Pereira. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.19, p.78-83, ago./dez., 2011. Acessar publicação original. [IF].

Raça como questão: história, ciência e identidades no Brasil / Marcos Maio

Raça como questão reúne um conjunto de textos que analisam a problemática racial no Brasil, desde o século XIX até os dias atuais. Como os próprios organizadores afirmam na apresentação do livro, “tratam de temas variados e contextos diversos desde os debates sobre as interrelações entre identidade nacional e raça no fim do século XIX até as presentes vinculações de raça com as tecnologias genômicas”.1 Isso nos permite entender o fio temático dos textos, não obstante possam ser lidos isoladamente.

Para Jean-François Véran, no prefácio à obra, “o conceito de raça [é colocado] na interface entre os três domínios nos quais ele vem sendo elaborado historicamente”,2 quer seja o domínio científico, a dimensão política e o plano social. Decerto, o grande valor de Raça como questão não é somente instigar o leitor a participar da discussão sobre o entendimento de “raça” na dinâmica histórica, mas também compreender como esse conceito é formulado nos âmbitos da ciência, da política e do social.

O primeiro capítulo, “Entre a Riqueza Natural, a Pobreza Humana e os Imperativos da Civilização, Inventa-se a Investigação do Povo Brasileiro”, de Jair de Sousa Ramos e Marcos Chor Maio, serve como uma espécie de introdução, pois contextualiza os primórdios da apropriação do conceito europeu de raça pelos intelectuais brasileiros, na segunda metade do século XIX e início do século XX. Esse fato não estava dissociado do que se entendia por civilização, cujo eixo central era a Europa em relação à periférica América Latina.

Nesse período do pensamento ocidental, em que a ideia bipolar do mundo era suficiente para explicar a realidade, havia um projeto de dominação no plano político, ao lado de certo desinteresse em desvendar cientificamente a origem do homem. Nesse sentido, criou-se por parte de escritores europeus a explicação a cerca do “povo” brasileiro, a partir da noção de “natureza exuberante versus raça deficiente”.3

Influenciados pelo pensamento europeu, intelectuais brasileiros tentaram, paradoxalmente, formular uma ideia positiva de civilização brasileira. É com esse ponto de vista que irá se desenvolver a argumentação do primeiro capítulo de Raça como questão. Foi no século XIX que essa ideia ganhou maior expressividade, tendo como apoio teórico “os determinismos climáticos e raciais”, bem como “a ideia de evolução”.4 Tanto o meio físico quanto a raça se tornaram elementos importantes para o cientificismo determinista, que defendia não somente as diferenças entre os povos, mas, sobretudo a hierarquia entre eles. Como informam os autores do texto em apreço:

Assim, a suposta hierarquia racial entre os homens era tomada como expressão de um movimento evolutivo da espécie humana, evolução essa definida pela sobrevivência dos mais aptos e que explicaria o porquê da expansão europeia em todo o globo terrestre e seu domínio sobre outros povos.5

Nesse sentido, Jear de Sousa Ramos e Marcos Chor compreendem que a noção de clima e raça migra do âmbito da ciência para as relações políticas, que, naquela época, reconfiguravam-se a partir do olhar que os europeus tinham, principalmente, sobre a América. A partir daí, criou-se uma imagem pejorativa do Brasil, cuja argumentação principal estava na “população atrasada em termos evolutivos”.6 Entretanto, o texto problematiza a questão, quando põe em evidência os motivos pelos quais as ideias evolucionistas europeias “tiveram ampla aceitação entre intelectuais e políticos latino-americanos”, cuja resposta a essa questão se encontra nas “relações entre centro e periferia desenvolvidas entre Europa e América Latina”.7

Foi durante a Independência do Brasil que “as teorias raciais vão ganhar importância”, devido ao objetivo do país de estabelecer-se como uma nação civilizada, com povo homogêneo. Com a República, encontra-se um espaço mais favorável às teorias deterministas, haja vista que ela “motivou o aparecimento de um novo conjunto de representações sobre a identidade brasileira”.8

Com objetivo de compreender melhor a maneira pela qual os intelectuais brasileiros lidavam com essa questão, os autores discutem o pensamento de três escritores da segunda metade do século XIX e início do século XX, quer seja Sílvio Romero, Raimundo Nina Rodrigues e Euclides da Cunha. Estes intelectuais, embora tenham dialogado com as teorias raciais europeias, interpretaram cada um a seu modo, o Brasil da época como um lócus onde seria possível um avanço social e político, no sentido de nação civilizada.

No segundo capítulo de Raça como questão, intitulado “Raça, Doença e Saúde Pública no Brasil”, propõe-se uma interpretação diferente da que Sidney Chalhoub desenvolve sobre o pensamento higienista do século XIX. Este no capítulo “Febre Amarela”, do livro Cidade febril (1996), defende o ponto de vista que, durante o combate à febre amarela nos séculos XIX e XX, havia uma postura racista e de classe social. Diferentemente, Marcos Chor Maio não concebe determinismo racial, mas uma “continuidade com o ideário neo-hipocrático do século XIX no Brasil”.9

Contextualizando os argumentos históricos de Chalhoub, Marcos Chor mostra-nos que, ao lado da defesa do branqueamento a favor de uma classe privilegiada, havia um conjunto diversificado de ideias que giravam em torno da questão social. Nem todos os intelectuais defendiam a mestiçagem como degenerescência e o branqueamento como a única solução para o progresso do Brasil. Para concluir seu ponto de vista, o autor cita Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freire, em que vê influência do neo-hipocratismo de Cruz Jobim.

Em “Mestiçagem, Degeneração e a Viabilidade de uma Nação”, Ricardo Ventura Santos analisa as investigações feitas por Baptista Lacerda (final do século XIX) e Roquette-Pinto. Ambos, segundo Ventura, posicionam-se favoravelmente à noção de uma mestiçagem não degenerativa. O que importa no debate sobre a questão racial posta em evidência é, sobretudo, a ambientação, o contexto e as condições sociais. O texto de Ricardo Ventura é significativo, pois revela certos intelectuais brasileiros que, não obstante dialogarem com as ideias evolucionistas em voga na época, souberam impor sua autonomia intelectual, numa tentativa de interpretar melhor a nação brasileira. O autor, enfim, desloca a postura bipolar dos fatos para alcançar uma visão mais próxima da complexa realidade.

Continuando o assunto sobre Antropologia no Museu Nacional, o capítulo quatro, de Raça como questão, “Crânios, Corpos e Medidas”, trata de refletir sobre o impacto e a projeção que as pesquisas desenvolvidas no Setor de Antropologia Biológica tiveram no contexto social e histórico brasileiro. A partir de estudos de instrumentos de medição de crânios, percebe-se um conjunto de teorias postas em prática com a finalidade de compreender a moral humana, levando em consideração elementos físicos e biológicos das raças.

Desde a década de 1950, os equipamentos de medição foram transformados em peças do Museu Nacional, mas continuam a representar o pensamento de intelectuais brasileiros que buscaram uma explicação antropológica para a população brasileira, numa certa época e contexto. Decerto, o capítulo em apreço busca despertar o leitor para a dinâmica da interpretação e dos conceitos sobre a realidade histórica.

Outro interessante capítulo é o “Estoque Semita: a presença dos judeus em Casa-Grande & Senzala”, de Marcos Chor Maio. Trata-se de uma releitura da obra de Gilberto Freyre, focalizando a presença “positiva dos judeus ao processo de colonização do Brasil”, em contrapartida com a “ideia que concebe a existência de uma proposta antissemita na obra do sociólogo pernambucano”.10

Com essa interpretação acerca das ideias freyreanas, que relacionam raça e cultura, Marcos Chor redimensiona Casa-Grande & Senzala no debate sobre a questão racial no Brasil. Atribui à referida obra certa importância e novo significado para o pensamento brasileiro, cuja projeção vem se tornando internacional. Observando o diálogo com as ideias de Roquette-Pinto, com a vertente culturalista de Franz Boas e com a perspectiva neolamarckiana, Marcos Chor analisa o avanço de Casa-Grande & Senzala a respeito das questões raciais no Brasil. No cerne dessa análise, está o judeu que contribui para a miscigenação do povo brasileiro. Sem desconsiderar os elementos culturais e ambientais, Gilberto Freyre põe em evidência conceitos chaves para o entendimento sobre os portugueses em “incorporar características de outros povos: adaptação, plasticidade e mobilidade”.11

Em “Cientificismo e Antirracismo no Pós-2ª Guerra Mundial”, Marcos Chor e Ricardo Ventura analisam a Primeira Declaração sobre Raça da Unesco e seus impactos para a comunidade científica, em 1950. A Unesco, com a intenção de resolver a problemática ocasionada pelo genocídio nazista, defendeu uma postura antirracista em tal declaração. Procura, pois, resolver um problema político e social, através da ciência. Por conta dessa abordagem cientificista, a Unesco sofreu severas críticas de biólogos, geneticistas e antropólogos físicos, o que a forçou a organizar um segundo encontro com especialistas. A fragilidade maior do discurso da Unesco, segundo os autores deste artigo, estava na controvérsia sobre o conceito de raça. As considerações acerca da declaração da Unesco são importantes, porque revelam não somente uma tentativa política por intermédio da ciência, mas sobretudo nos mostra que a problemática racial é mais complexa do que se pensava naquele momento.

Em seguida, o sétimo capítulo, cujo título é “Antropologia, Raça e os Dilemas das Identidades na Era da Genômica”, traz a discussão sobre raça, identidade, ciência e política para o contexto do início do século XXI. Constatou-se que, a partir de críticas feitas por grupos diferentes às pesquisas geneticistas realizadas sobre a população de Queixadinha, localidade ao norte de Minas Gerais, a complexa relação entre o conhecimento biológico e as políticas sociais ainda não esta devidamente compreendida. Ricardo Ventura e Marcos Chor, por isso, lançam uma série de questionamentos a fim de problematizar o modo como à construção de identidades culturais é observada tanto pela ciência como por grupos sociais que objetivam um lugar na sociedade.

A construção argumentativa desse capítulo resguarda a mesma imparcialidade e clareza dos textos anteriores de Raça como questão. Apresentam e contextualizam a temática. Depois, relatam o fato e o seu impacto para a sociedade. Finalmente, analisam temas antropológicos numa relação conflituosa com a biologia e a política. No caso do presente capítulo, são aprofundadas as discussões sobre o papel da “nova genética” e as políticas sociais acerca das questões de raça, no contexto atual. Integram esse debate temas como essencialismo, racismo, racialismo e identidade.

“No Fio da Navalha: raça, genética e identidades”, continuam a discussão a respeito das identidades raciais no contexto contemporâneo. Entretanto, o corpus agora se trata de um comercial de testes genéticos na Internet. Compreender até que ponto a biotecnologia e a utilização de testes de DNA interferem nas novas descobertas e quais são os seus impactos sociais e políticos hoje é a preocupação da análise feita pelos autores.

Nesse capítulo, depreende-se da conclusão dos autores o importante papel mediador da biotecnologia em “situações [que] nos falam de encontros, tensões e distanciamentos de pessoas consigo mesmas e com outras de seu entorno”,12 ou seja, as pessoas buscam se entender a partir de certa identidade, que se evidencia não só pelas semelhanças, mas também pelas diferenças. Isso fica percebido tanto no apelo comercial do site da empresa como na procura significativa de pessoas pelo serviço oferecido: o teste de ancestralidade genômica. Os resultados desse exame são, segundo os autores, “racializados e etnicizados, tendo como pano de fundo dinâmicas identitárias particulares”,13 bem como culturais e políticas.

No capítulo nove, “A Cor dos Ossos”, Verlan Valle Gaspar Neto e Ricardo Ventura Santos apresentam um texto repleto de reflexões em torno de “Luzia”, crânio de uma mulher achado em Minas Gerais, com mais ou menos 11.500 anos. Os discursos e representações criados sobre essa peça pré-histórica revelam, a partir de apropriações das descobertas científicas, toda uma questão sócio-histórica e política. Os autores, para comprovar seu ponto de vista, lançam mão de quatro exemplos que veicularam na imprensa, em livros didáticos e na Internet. Analisando-os, observaram neles a tentativa de ressignificação do conceito de racialização, para uma nova configuração no plano social e político.

Em volta da reconstituição subjetiva da face de Luzia, feita com argila por cientistas ingleses, cria-se no Brasil um complexo simbólico, de acordo com o texto em apreço. Na verdade, Gaspar Neto e Ricardo Ventura nos chamam atenção para a relatividade e a apropriação dos conceitos, à medida que a dinâmica histórica nos descortina um novo contexto.

No capítulo “Política de Cotas Raciais, os ‘Olhos da Sociedade’ e os Usos da Antropologia”, Marcos Chor e Ricardo Ventura discutem e analisam o significado de um evento de expansão das políticas públicas de teor racial. Trata-se da vinculação do sistema de cotas raciais para o vestibular na Universidade de Brasília. Nesse evento, segundo os autores, há relação entre história, antropologia e problemas contemporâneos. Logo na introdução, o texto adverte sobre o modo como a UnB procedeu no processo de seleção para pessoas negras. O critério utilizado se assemelhou às práticas comuns entre o final do século XIX e o começo do século XX. As ferramentas podem ser outras, mas a essência é a mesma: a identificação de “negros com base em características físicas como a cor da pele, textura do cabelo e formato do nariz”.14

Justamente por ter o objetivo de retratar uma injustiça histórica e social com os afrodescendentes brasileiros, a maneira como foi conduzido o processo de cotas na UnB revela-se contraditório. Para fundamentar, portanto, a análise a esse respeito, Marcos Chor e Ricardo Ventura afirmam que “é necessário historiar a atuação dos diversos agentes e agências (…) envolvidos nesse processo”.15 Não se trata, entretanto, apenas de relatar a contradição abrupta entre o programa político-social e os procedimentos usados no processo seletivo. O importante, nesse sentido, é compreender de que forma a política de cotas raciais para o ingresso no ensino superior irá impactar na discussão mais ampla e na efetivação de políticas de ação afirmativa, no contexto atual do Brasil. Esse fato, concluem nossos autores, possibilitou uma forte tensão no seio da antropologia contemporânea.

Finalmente, no último capítulo de Raça como questão, “Política Social com Recorte Racial no Brasil”, Marcos Chor Maio e Simone Monteiro analisam a relação entre raça e saúde. Para tanto, abordam o modo como estão sendo implementadas as medidas do Sistema Único de Saúde (SUS) especificamente para pessoas consideradas “negras”. A partir da contextualização e discussão desse processo, que vem sendo colocado em prática desde o final de 1990, o texto mostra que raça representa tanto um mecanismo para evidenciar as desigualdades sociais, como também “um instrumento político de superação das iniquidades históricas existentes no Brasil”.16

Devidamente contextualizada, a temática se desenvolve de maneira a suscitar no leitor uma reflexão sobre o papel positivo dessas ações racializadas no setor da saúde pública no Brasil. Depois da leitura dos capítulos anteriores, compreende-se melhor que o significado da política de saúde para a população negra é apenas mais uma estratégia de política pública, cuja finalidade é a afirmação social. Entretanto, a forma como se operacionalizam as ações é equivocada. Isso se deve ao fato “da existência de concepções variadas sobre o passado e o presente da nação, assim como de distintas visões sobre a identidade cultural do país”.17 Apesar de os autores não negarem, na conclusão, que a reforma da Saúde significa um avanço importante para “segmentos com expressiva presença de negros”,18 advertem-nos que é preciso pensar sobre as consequências de um processo cujas categorias são conceitualizadas pelos próprios opressores.

Ao concluir os onze capítulos que integram o livro Raça como questão, o leitor atento depreende, entre outras coisas, a preocupação dos autores em refletir e compreender o processo histórico que envolve o entendimento de raça, sobretudo, por partes setoriais da sociedade brasileira, tais como intelectuais, mídia, ONGs, programas governamentais, desde o final do século XIX até a atualidade. Percebe-se, também, que há, no conjunto dos textos, o diálogo com as dimensões da realidade histórica: a economia, a política, o cotidiano, o cultural e o biológico, entre outros. Esses elementos fortalecem o argumento analítico que dá sustentação teórica ao livro, sem cair em abstrações universalistas.

Portanto, Raça como questão trata de trabalhar em torno de categorias históricas tais como identidade cultural, raça, mestiçagem, políticas públicas no Brasil, e seus impactos representativos para a sociedade. Os autores abordam essas categorias não de maneira isoladas ou estagnadas, mas buscam observá-las em suas historicidades e em suas temporalidades.

Notas

1 MAIO, Marcos Chor (org.). Raça como questão: história, ciência e identidades no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2010, p. 22.

2 Idem, p. 9.

3 Idem, p. 27.

4 Idem, p. 28.

5 Idem, p. 30.

6 Idem, p. 31.

7 Idem, p. 33.

8 Idem, p. 34.

9 Idem, p. 55.

10 Idem, p. 130.

11 Idem, p. 135.

12 Idem, p. 200.

13 Idem, p. 213.

14 Idem, p. 255.

15 Idem, p. 257.

16 Idem, p. 287.

17 Idem, p. 288.

18 Idem, p. 310.

José Wellington Dias Soares – Professor assistente do curso de letras da FECLESC/UECE e doutorando em história pela UFMG. [email protected]


MAIO, Marcos Chor (org.). Raça como questão: história, ciência e identidades no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2010. Resenha de: SOARES, José Wellington Dias. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.19, p.84-91, ago./dez., 2011. Acessar publicação original. [IF].

Artífices de sua própria história: a Guarda Negra da Redemptora como espaço de construção de identidades e exercício da cidadania / Augusto O. Mattos

É visível, nos últimos anos, um novo direcionamento na historiografia dedicada à escravidão e à abolição. Recusando análises que identifiquem homens e mulheres escravizados apenas como vítimas passivas do sistema escravista, muitos historiadores/as, influenciados, principalmente, mas não exclusivamente, pelos trabalhos de Edward Palmer Thompson e pela “história vista de baixo”, tem priorizado em suas pesquisas novos temas e problemas. Nessas análises, é de fundamental importância conceitos como o de “resistência” e de “autonomia escrava”, que permitem compreender os grupos escravos como agentes transformadores do sistema escravista.1 Nesse sentido, são trabalhos que ressaltam as estratégias, as lutas, as escolhas, enfim, a participação direta desses escravos/as na busca de sua liberdade e na construção de sua própria história.

É por tal caminho que trilha o trabalho do historiador Augusto Oliveira Mattos, Guarda Negra: a Redemptora e o ocaso do Império, publicado pela Hinterlândia Editorial. Resultado de sua dissertação de mestrado defendida na Universidade de Brasília, a pesquisa está centrada na atuação e na composição da Guarda Negra, criada em 1888 por ex-escravos e intelectuais negros que juraram lealdade e prometeram zelar pela vida da Redemptora, a Princesa Isabel.

Mais do que proteger a Princesa e provar a gratidão daqueles que foram libertos pela Lei Áurea de 1888, Mattos percebe a Guarda Negra enquanto uma via de acesso e exercício de cidadania para esses indivíduos, muitas vezes excluídos pela sociedade do século XIX. Tratava-se, portanto, para o autor, de uma forma de resistência e inserção em tal sociedade, mesmo que de maneira limitada, que possibilitava a criação de laços de solidariedade e amizade entre aqueles que se consideravam iguais. Enfim, um espaço fundamental para a construção de identidades.

Nesse esforço em desvelar a organização e o arranjo de tal grupo, o autor inicia sua análise pela própria Princesa Isabel, foco da proteção da Guarda Negra. Intitulado “Das camélias do Leblon à Rosa de Ouro: as representações de Isabel no contexto do abolicionismo”, o capítulo procura salientar as imagens construídas, no final do século XIX, principalmente pela imprensa, sobre a Regente e sua atuação política, inclusive em prol do abolicionismo. Embora tenha sido considerada por muitos como incapaz de assumir o trono e de lidar com a coisa pública, Mattos evidencia que entre alguns grupos era corrente a ideia de que a Princesa teria sido a principal responsável pelo fim da escravidão – e por isso o título de Redemptora. Nessa associação entre Isabel e a abolição, o autor percebe o projeto de criar um ambiente favorável e uma base de apoio para sua ascensão ao trono, ou seja, a possibilidade de estabelecer um Terceiro Reinado. Uma tentativa de aproximação entre os libertos e a monarquia, como pode ser percebido na própria Guarda Negra.

Em “A sociedade negregada: racismo à flor da pele e sectarismo social no fenecer do Império”, Augusto Mattos privilegia os protagonistas dessa história: os/as negros/as e suas formas de organização, suas manifestações culturais, suas maneiras de resistência em uma sociedade que os menosprezava, lhes era hostil e os considerava uma “classe perigosa”. Aqui tem destaque as irmandades e maltas de capoeiras, grupos que possibilitavam a esses indivíduos, segundo o autor, a manutenção de determinadas tradições culturais. Todavia, Mattos evidencia que, mesmo com a abolição da escravidão, os/as negros/as não tiveram acesso a uma série de oportunidades, o que criou a possibilidade de “articular uma série de mecanismos para a defesa de seus interesses”. Para ele, o mais importante foi a Guarda Negra.

Por fim, “Da espontaneidade à ação política: a Guarda Negra da Redemptora e a defesa do Terceiro Reinado”, Mattos faz a leitura da Guarda Negra enquanto uma “organização pronta para defender o continuísmo monárquico”, composta por alforriados, intelectuais negros, como José do Patrocínio, e também com apoio de alguns membros da elite branca. Questionando interpretações historiográficas que vêem a Guarda Negra enquanto um grupo de ex-escravos manipulados por monarquistas que pretendiam conter o avanço do republicanismo, o autor problematiza tal passividade e sugere entender a formação do grupo como resposta as necessidades de uma camada negra marginalizada. Um grupo politizado, um espaço de legitimação das aspirações negras, com ações diversificadas.

Utilizando-se de jornais de época, Anais do Senado e da Câmara, correspondências pessoais, coletânea de artigos de abolicionistas, coleção de leis do Império e uma vasta bibliografia sobre o tema, Augusto Oliveira Mattos consegue evidenciar que, mais do que dotada de sentimento de gratidão à Princesa Isabel e o compromisso em defender o Terceiro Reinado, a Guarda Negra foi um espaço que permitiu a um grupo de indivíduos serem sujeitos de sua própria história.

Notas

1 Para mais informações sobre o debate acerca destes conceitos e dos novos direcionamentos da historiografia da escravidão, ver o artigo: MACHADO, Maria Helena P.T. Em torno da autonomia escrava: uma nova direção para a história social da escravidão. Revista Brasileira de História. São Paulo: Marco Zero, v.08, n.16, p.143-160, mar./ago. 1988.

Fabiana Francisca Macena – Doutoranda em História Social do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília (PPGHIS/UnB). E-mail: [email protected].

MATTOS, Augusto Oliveira. Guarda Negra: a Redemptora e o ocaso do Império. Brasília: Hinterlândia Editorial, 2009. 123p. Resenha de:


MACENA, Fabiana Francisca. Artífices de sua própria história: a Guarda Negra da Redemptora como espaço de construção de identidades e exercício da cidadania. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.18, p.155-157, jan./jul., 2011. Acessar publicação original. [IF].

Partido político ou bode expiatório. Um estudo sobre a Aliança Renovadora Nacional (ARENA) / Lúcia Gringberg

O estudo de Lúcia Grinberg sobre a ARENA tem o mérito de valorizar duas funções essenciais da pesquisa histórica. Seu livro, primeiro, é uma história que estuda criticamente o passado, que vai às fontes, que, com seus métodos e descobertas, questiona a rigidez e a solidez de memórias sociais específicas. Segundo, toma a memória social como objeto de investigação. Quem as reproduz, as difunde, muitas vezes não possui consciência do processo pelo qual tal construção memorialística passou até chegar a sua forma final. A memória também é histórica. Ela também foi construída ao longo do tempo para legitimar práticas e propostas.

Afinal, pergunta-se Lúcia, qual ARENA ela encontrou ao iniciar suas pesquisas? O primeiro indício é a reação de seus colegas de pós-graduação. Riram. Perguntaram se ela não teria se enganado, se não pretendia pesquisar o Teatro de Arena. Além do seu círculo social, a autora identificou uma memória claramente estabelecida sobre o partido na década de 1990. Entre vários exemplos, cita o caso de membros do PFL que, em 1995, esforçavam-se para desvincular a imagem do partido criado em 1985 com a memória negativa sobre a ARENA. Em resumo, a ARENA seria o partido do adesismo irrestrito aos mandos militares e, também, um partido artificial, sem representatividade alguma, simples instrumento utilizado pelos militares para dar ares de legitimidade aos seus governos. O que Lúcia quer entender é: serão verdades todas as generalizações que atualmente se fazem sobre a ARENA? Como tais generalizações se construíram? A quais propósitos serviram? E qual a importância de criticá-las para uma nova visão sobre o período da ditadura militar?

É a partir do início da ARENA que podemos ver os primeiros problemas. Não foi formada apenas por antigos udenistas que apoiaram o movimento de 64. A diferença entre o número de parlamentares udenistas que foram para a ARENA e ex-membros do PSD é de apenas 08 membros. Ex-udenistas contribuíram com 86 parlamentares e ex-membros do PSD com 78. Estava certo o jornalista Villas-Boas-Corrêa ao brincar que a ARENA seria a filha da UDN que caiu na zona? Ou o partido foi inicialmente formado por setores políticos conservadores que não estavam apenas na UDN? Aliás, por políticos com grande experiência eleitoral, com nomes conhecidos pelos eleitores. A autora traz uma lista com o nome de todos os primeiros membros do diretório nacional da ARENA, sua filiação partidária antiga e os cargos públicos que tinham ocupado. Nenhum deles surgiu do nada. Lideranças nacionais como Benedito Valadares, Milton Campos, Gustavo Capanema e Magalhães Pinto tornaram-se arenistas. O que indica, para a autora, certo consenso entre as elites conservadoras brasileiras e, principalmente, que a ARENA tinha uma representação social historicamente associada aos nomes que congregou, representação esta que não pode ser negada. Cairia mais um mito: o da ARENA como um partido biônico, sem valor social, sem representação.

Afinal, Lúcia quer ver a ARENA não apenas como uma criação institucional artificial, mas como um sintoma de algo mais amplo, de características conservadoras da sociedade brasileira. Para reforçar seu argumento, traz cartas enviadas para o Diretório Nacional do partido de cidadãos comuns, não ligados diretamente à política. Cartas de apoio ao partido. De defesa dos abstratos princípios da Revolução de 64, contra o comunismo, contra os baderneiros, contra a anarquia que teria se instalado antes da retirada de Goulart do Poder.

Outro mito que Lúcia derruba é a da relação eternamente dócil entre ARENA e governos militares. Sua análise mais forte é sobre o chamado caso “Márcio Moreira Alves”. Por críticas feitas à invasão da Universidade de Brasília pelos militares, Márcio Moreira Alves tornou-se alvo de ódio por parte dos setores mais radicais das Forças Armadas. A pressão foi tão grande que o Executivo pediu licença ao Congresso para cassar o mandato do Deputado. Chega ao plenário o pedido e, ao contrário do que insinuaria a idéia do “sim, senhor”, da subserviência irrestrita, do total de 216 deputados que rejeitaram o pedido, 95 eram da ARENA.

Um dia depois, Costa e Silva baixa o AI-5. E o governo passa a tratar o “seu” partido de forma diferente. Lideranças “liberais” da ARENA se afastaram de posições de comando, como Daniel Krieger, Milton Campos e Carvalho Pinto. Mas Lúcia salienta a obscuridade do período imediatamente após o AI-5. Os arquivos da ARENA pouco dizem. O que lhe restou, diz, foi procurar na imprensa declarações de arenistas. Uma delas é exemplar de como o caso Márcio Moreira Alves é um marco para a história da relação entre ARENA e os militares. Geraldo Freire, líder da ARENA na Câmara dos Deputados, teria declarado a jornalistas que seria necessário a criação de um novo partido. A ARENA teria falhado. Era rebelde. O que o regime precisava era efetivamente de um partido do “sim, senhor”, da rendição incondicional aos mandos dos militares.

Outra solução seria a manutenção da ARENA, precedida por uma limpeza ideológica. Os elementos possivelmente rebeldes deveriam ser retirados do partido. E foi o que o governo fez. 27 parlamentares efetivos da ARENA foram cassados. Contando os 06 suplentes cassados, o total é de 31. Politicamente, a principal arma utilizada contra a ARENA foi a aprovação da Emenda Constitucional número 1. Ela previa a perda do mandato do parlamentar que por votos ou atitudes contrariasse as diretrizes estabelecidas pelas lideranças partidárias. Seria uma forma de controlar os arenistas sem recorrer a expedientes como o fechamento do Congresso. Como as lideranças eram escolhidas pelos governos militares, tornou-se realmente mais tranqüilo para o Executivo comandar o seu partido de sustentação. Percebe-se, portanto, como a história da relação entre ARENA e governo não foi estática. Teve seu dinamismo.

A autora traz outros episódios evidentemente menores que marcaram certas distâncias entre a ARENA e o governo até o período que considera o de liberalização do regime, 1974-1979. Nele, inicia-se a construção de um dos clichês solidificados na memória social atual sobre a ARENA: o partido do “sim, senhor”. Segundo a autora, com a maior liberalização do regime a partir de 1974, e com as vitórias eleitorais do MDB, os embates parlamentares tornaram-se mais ácidos, mais competitivos. E uma das formas dos parlamentares do MDB de ridicularizar a ARENA era acentuar sua subserviência. Ao estudar documentos internos do partido, Lúcia salienta como o “sim, senhor” incomodou os arenistas. Não eram discursos feitos para o público, para serem divulgados, eram discussões privadas que mostravam o grande incômodo que os parlamentares sentiam com as provocações do MDB.

Para continuar a historicização da memória solidificada atualmente sobre a ARENA, Lúcia sai do parlamento e vai para a imprensa. Analisa principalmente charges publicadas em jornais de grande circulação, como o Estado de São Paulo e o Correio da Manhã. A explicação para o estudo e análise das charges é simples: em momentos autoritários, a imprensa é obrigada a recorrer a estratégias alternativas para abrir o mínimo de espaço que seja para a crítica, e o humor é uma das principais.

A autora analisa diversas charges que repetem temas como a indecisão da ARENA, sua falta de identidade, mas as partes mais interessantes são sobre as charges que falam sobre a relação da ARENA com o governo. Nelas, a ARENA é quase sempre representada como uma mulher. Sempre em posição de subordinação, cozinhando para o marido “governo”, ou se pintando e arrumando para o amante “governo”. Charges mais críticas representavam a ARENA como uma prostituta ou uma boneca inflável, dois objetos de desejo que se venderiam fácil para os militares. Uma das charges, por exemplo, mostra uma mulher toda pintada e arrumada, usando uma saia com ARENA escrito e, suspirando, diz: “ele sorriu pra mim…ele sorriu pra mim…” E, ao longe, vemos as costas de um militar. Em outra charge, de Hilde Weber, publicada no ESP em 7/2/1969, a ARENA é representada como uma mulher pobre, usando roupas sujas e esburacadas, com lágrimas nos olhos ao ver que as portas de uma casa estão sendo abertas a ela. O nome da casa: governo. O título da charge: volta ao lar. Há, no entanto, uma importante ressalva feita pela autora: as charges feitas no período militar sobre a ARENA não seriam tão virulentas e ridicularizadoras como as feitas na década de 1990. Isso indicaria uma mudança ainda maior de atitude da sociedade brasileira da década de 1990 sobre o período militar, devedora, diz, do processo de redemocratização iniciado na década de 1980 que, para se legitimar, ridicularizou e repudiou fortemente os militares e a ditadura em geral.

Eis que Lúcia conclui, a partir de seu estudo: a ARENA atuou muitas vezes como partido político realmente, tendo representação social digna de ser considerada como parte importante da cultura política de determinados setores da sociedade brasileira, mas a ARENA também foi um bode expiatório. A partir da transição democrática, a ARENA e os militares foram inteiramente responsabilizados pelos tempos ditatoriais. Os militares seriam os gorilas, a força bruta, ignorante. E a ARENA, a parte fraca, covarde, que não só não resistiu como apoiou a ditadura e todos os seus feitos.

E aí está o maior mérito da pesquisa feita por Lúcia Grinberg. Ridicularizar a ARENA e os militares, diz, é ignorar que setores importantes e representativos da sociedade brasileira também apoiaram o regime militar. Lúcia se recusa a pensar a ARENA como uma entidade vazia. Não, suas atitudes, sua construção, os votos que recebeu mesmo quando havia a possibilidade do MDB, apesar de todas as restrições eleitorais, indicam, sim, representatividade. Indicam, sim, que a ditadura militar brasileira não se sustentou por tanto tempo apenas pela habilidade dos militares e dos políticos que teriam apoiado o regime. Indicam, finalmente, que é importante tirar a ditadura militar e a ARENA do campo da memória para melhor entendermos o período de 64-79. É a graça das piadas sobre a ARENA que nos impede de olhar além, criticamente. É verdade, por fim, que a autora desconstrói piadas e nos tira algumas boas risadas, mas nos propõe algo valioso em troca: um olhar crítico que traga de volta como objeto de pesquisa o grande elemento silencioso do período militar, a sociedade civil.

João Leonel da Rosa Pantoja – Mestrando em História Social pela Universidade de Brasília. Contato: [email protected].


GRINBERG, Lúcia. Partido político ou bode expiatório. Um estudo sobre a Aliança Renovadora Nacional (ARENA), 1965-1979. Rio de Janeiro: Mauad X, 2009, 301p. Resenha de: PANTOJA, João Leonel da Rosa. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.17, p.112-116, ago./dez., 2010. Acessar publicação original. [IF].

O Brasil e a URSS na Guerra Fria. A Política Externa Independente na imprensa gaúcha / Charles S. M. Domingos

As últimas décadas do século XX foram palco de grandes transformações estruturais vividas com intensidade pela humanidade. Último século do milênio que também findava, ele ficou marcado por diferentes interpretações historiográficas. Para alguns, constituiu-se num longo período (ARRIGHI, 1996), para outros em um tempo mais curto (HOBSBAWM, 1995). Em sua primeira metade, foi cenário das maiores guerras e atrocidades, já a sua segunda metade foi orientada pelas diretrizes de uma Guerra Fria que produziu fatos com conseqüências muito mais quentes.

O debate historiográfico sobre a demarcação temporal desta Guerra Fria também é extenso e ainda fértil. Boa parte desse material acessível a um público amplo apresenta o ponto de vista ocidental e norte-americano como preponderante. O professor Paulo Vizentini apresentou uma visão diferenciada ao abordar o tema a partir do desafio imposto pelo sistema socialista à ordem capitalista (VIZENTINI, 2004). O trabalho de Charles Sidarta Machado Domingos: “O Brasil e a URSS na Guerra Fria: a Política Externa Independente na imprensa gaúcha” apresenta um enfoque das relações brasileiras com a então URSS a partir da análise da visão da imprensa gaúcha do período sobre um ponto específico: a Política Externa Independente (PEI).

Este livro é produto da dissertação desenvolvida pelo autor no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e defendida em 2009. Esta obra se insere nos marcos da história política, que logrou se dissociar do estigma de execução de uma análise superficial, para galgar, com a terceira geração dos Annales, um status historiográfico mais respeitado. René Rémond destaca a impossibilidade de abordar o político como algo isolado, pois este fator não possui margens, comunicando-se com os outros domínios e campos historiográficos (RÉMOND, 2003: 444). Pensar estes diferentes domínios conectados ao político também implica pensar a atuação do historiador e suas implicações políticas dentro do seu lugar social.

É dentro deste marco da história política que o autor retorna aos anos em que o país estava “irreconhecivelmente inteligente” para mostrar como este novo vocabulário também podia ser percebido no âmbito da práxis. Na década de 1960, a PEI colocou-se sob uma nova orientação nos governos Jânio Quadros e João Goulart, sendo alvo de crítica dos setores conservadores e de defesa pelos progressistas. Este enfoque ainda é pouco explorado na historiografia do período, haja vista que o tema das Reformas de Base é o que ganha maior destaque. Em relação à PEI, e, mais especificamente, ao reatamento das relações diplomáticas com a URSS, o autor destaca que no âmbito da imprensa escrita, os jornais O Globo e O Estado de São Paulo se colocaram contra esta política. Já o Jornal do Brasil e o Correio da Manhã eram favoráveis. Para realizar uma análise diferenciada, o autor foca seu olhar para a imprensa gaúcha, deslocando o olhar do centro do país. Na esfera acadêmica, os trabalhos desenvolvidos até o momento sobre a PEI tiveram outro enfoque. José Honório Rodrigues abordou-a no tempo presente do acontecimento, publicando em formato de artigos em jornais e que foi, posteriormente, sistematizado no estudo intitulado Uma política externa própria e independente, editado em 1965 (RODRIGUES, 1965). Tânia Quinaneiro, no seu trabalho realizado na década de 1980, enfocou a questão cubana, dado seu papel catalisador para a realidade política latino-americana (QUINTANEIRO, 1988). Paulo Vizentini, no seu trabalho de doutorado, preferiu investigar a Operação Pan-americana, que se constituiu na gênese da PEI, inovando em sua abordagem ao inserir o estudo da PEI dentro do contexto do surgimento do Terceiro Mundo (VIZENTINI, 1995).

As fontes utilizadas por Charles Domingos constituem-se majoritariamente na imprensa escrita do período estudado. A principal fonte primária, o periódico Correio do Povo, um dos jornais de maior destaque do Estado do Rio Grande do Sul, teve sua história marcada por uma propagada neutralidade jornalística. O autor problematiza este fato correlacionando-o com a sua reflexão sobre o uso da imprensa escrita pelo historiador, bem como seu cuidado metodológico necessário na análise desta fonte. Na época estudada, este periódico possuía o formato Standard, e os assuntos relacionados à política internacional eram apresentados na capa do jornal. Na contracapa é que se concentravam os fatos referentes à política interna brasileira, e, neste lugar, eram noticiados os fatos relacionados à PEI. Charles Domingos também faz uso de outras seções produzidas pelo jornal, das matérias enviadas pelas agências de notícias e pelas interpretações assinadas. Também compõe o seu cabedal de fontes uma série de documentos diplomáticos pesquisados em arquivos do Rio de Janeiro (Arquivo San Tiago Dantas, Arquivo Nacional) e de Porto Alegre (Anais da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul e Centro Brasileiro de Documentação e Estudos da Bacia do Prata). Somado a tudo isso, há a utilização de uma vasta bibliografia (mais de 100 livros, teses, dissertações e artigos) que cobrem qualitativamente o período estudado.

O primeiro capítulo do livro, “Populismo e nacionalismo”, discute um tema polêmico e que ainda produz intensos debates: o conceito de populismo. Questionando a operacionalidade do conceito e destacando seu caráter polissêmico, o autor apresenta seu histórico como categoria explicativa, inserido dentro do marco temporal do período democrático de 1945 a 1964. Também destaca a construção do conceito conforme diversos interesses ao longo desse período, principalmente por aqueles que se opunham ao trabalhismo. Atrelado ao conceito de populismo está o estudo do nacionalismo, entendido pelo autor dentro de uma análise histórica, tal como proposta por Eric Hobsbawm, e que, portanto, apresenta transformações ao longo do tempo (HOBSBAWM, 2002). Para Charles Domingos, este constitui o conceito norteador e ideal para o estudo da PEI:

Entendemos ser a partir dele que melhor se explica a relevância da Política Externa Independente para o período estudado. Mesmo com graus variáveis, o nacionalismo – juntamente com a idéia do desenvolvimento – é a tônica dos governos Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart, estando presente inclusive nos momentos de transição entre a morte do presidente Vargas e a posse do presidente Kubitschek (DOMINGOS, 2010: 65).

Tendo sua gênese no século XVIII, com o início do capitalismo, o fenômeno do nacionalismo atravessou três séculos sofrendo adaptações e incorporações. Inicialmente, seu caráter estava atrelado ao pertencimento da cidadania. No século XIX, o nacionalismo veste as égides do liberalismo em voga. Entretanto, é no período entre-guerras que ele encontra seu apogeu, seja encarnado nos corpos da direita ou da esquerda. No contexto brasileiro, é a partir dos anos 1950 que seu emprego começa a ser feito por intelectuais e políticos. O IBESP (Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política), a publicação Cadernos de nosso tempo e o ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) são exemplos de instituições e publicações sobre o tema. Configura-se como uma primeira fase do nacionalismo brasileiro o período de 1952 a 1956. A segunda fase compreende o período do nacional-desenvolvimentismo.

Para tanto, trabalharemos, nesse momento, com o conceito de nacional-desenvolvimentismo. Buscaremos opiniões diversas das de Angela de Castro Gomes e Pedro Cezar Dutra Fonseca, por entendermos que se faz necessário aproximar-se da perspectiva que norteava a sociedade brasileira na segunda metade da década de 1950. A razão disso é que a Política Externa Independente foi gestada e desenvolvida por homens que tinham também no nacional-desenvolvimentismo um de seus horizontes (DOMINGOS, 2010: 77).

Por fim, a terceira fase constitui-se no nacional-reformismo, que se inicia do final dos anos 1950. Seu amadurecimento reordena seus fatos constitutivos, rompendo com a fase anterior destacada.

O segundo capítulo, intitulado “Antecedentes e expectativas”, realiza uma reconstrução histórica das relações do Brasil com a Rússia, recuando no século XVIII. Também apresenta uma importante contextualização da principal fonte utilizada na obra: o periódico Correio do Povo. A partir deste ponto o autor correlaciona a história do jornal com suas relações com os governos da União e do Estado do Rio Grande do Sul.

O terceiro capítulo, “O reatamento das relações diplomáticas”, transfere a visão macro para um aporte mais detalhado sobre o dia do reatamento das relações entre o Brasil e a URSS, bem como de suas repercussões políticas. Esta análise detalhada é realizada através das páginas do jornal Correio do Povo, onde o autor destaca o caráter pedagógico da atuação da imprensa. Neste ponto, Charles Domingos desenvolve um detalhado estudo e uma ampla análise da repercussão do discurso de San Tiago Dantas na Assembléia do Rio Grande do Sul, cotejando a fonte jornalística com os Anais da casa legislativa, apontando o porquê de supressões e ausências nas páginas do jornal. A percepção das posições políticas oficiais, bem como a repercussão em diversos setores da sociedade, como a Igreja Católica, e inclusive em outros países também aparecem através desta leitura.

O quarto capítulo, “De volta a Província”, restabelece o olhar macro para averiguar as repercussões do reatamento após a sua ocorrência. Neste ponto, são analisadas as posições e leituras dos colaboradores do jornal, além de políticos e do governador Leonel de Moura Brizola, que aproveitava o espaço para realizar uma crítica à oposição do seu governo.

Desse modo, o enfoque da obra recai sobre a percepção do posicionamento dos setores políticos, no que tange ao reatamento das relações com a URSS, a partir da imprensa escrita da época. A partir desta lente, o autor objetiva perceber como a política externa interferiu na política interna. Esta leitura é realizada alternando abordagens macros e escalas reduzidas, destacando através destes aspectos um rico olhar sobre um importante período brasileiro.

Referências

ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.

DOMINGOS, Charles Sidarta Machado. O Brasil e a URSS na Guerra Fria: a Política Externa Independente na imprensa gaucha. Porto Alegre: Suliani Letra & Vida.

HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos: o breve século XX. 1914-1991. São Paulo: Companhia das letras, 1995.

____________, Eric. Nações e nacionalismo desde 1780. 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

QUINTANEIRO, Tânia. Cuba e Brasil: da revolução ao golpe (1959-1964): uma interpretação sobre a política externa independente. Belo Horizonte: UFMG, 1988.

RÉMOND, René. Do político. In: RÉMOND, René. Por uma história política. 2ª ed. Rio de Janeiro: FGV, 2003, p. 444.

RODRIGUES, José Honório. Uma política externa própria e independente. In: Política Externa Independente. A Crise do pan-americanismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.

VIZENTINI, Paulo Fagundes. A Guerra Fria: o desafio socialista à ordem americana. Porto Alegre: Leitura XXI, 2004.

__________, Paulo Gilberto Fagundes. Relações internacionais e desenvolvimento: o nacionalismo e a Política Externa Independente. Petrópolis: Vozes, 1995

Rafael Hansen Quinsani – Mestre em História pela UFRGS. E-mail: [email protected].


DOMINGOS, Charles Sidarta Machado. O Brasil e a URSS na Guerra Fria. A Política Externa Independente na imprensa gaúcha. Porto Alegre: Letra & Vida, 2010, 223p. Resenha de: QUINSANI, Rafael Hansen. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.17, p.107-111, ago./dez., 2010. Acessar publicação original. [IF].

La Europa Cosmopolita: sociedad y política en la segunda modernidade / Ulrich Beck e Edgar Grande

A obra La Europa Cosmopolita, publicada em 2006 pela editora Paidós em países de língua espanhola, é a última parte da série de estudos dividida em três volumes e escrita por Ulrich Beck sobre o cosmopolitismo, tendo como co-autor Edgar Grande2. Originalmente, o estudo foi apresentado ao público em 2004, ainda em alemão, sob o título Das kosmopolitische Europa: Gesellschaft und Politik in der Zweiten Moderne.

Contando com uma elaborada reflexão, os autores abordam na obra a sociedade de risco global, a possibilidade de uma modernização reflexiva e de realismo cosmopolita; fundamentos estes sobre os quais Beck e Grande discorrem suas análises sobre a ideia de Europa. Desse modo, a relação de temas colocada logo nas primeiras páginas do livro fornece ao leitor uma aparente sensação de afinidade com questões tradicionalmente cultivadas pela teoria crítica da Escola de Frankfurt. Preferivelmente a analisar a Europa como um mecanismo de mercado, os autores a vêem como um projeto dinâmico de política aberta, recorrendo a autores como Benedic Anderson para sugerir que a Europa precisa ser ―inventada‖, o que leva à discussão dos autores sobre o fato de que, ao invés de Europa, o que realmente existe é um processo de europeização.

Ulrich Beck e Edgard Grande discutem neste livro a possibilidade da principal dificuldade da europeização poder estar radicada no fato de que o projeto político que os europeus têm em mente não corresponde ao esquema que determina sua realidade. Sendo assim, necessita-se, segundo os autores, de um relato de europeização que torne compreensível a vinculação de fracassos e iniciativas (pp.15-21). Nesta circunstância, seria relevante que se repensasse a Europa, que se reconhecesse e entendesse as contradições da europeização, fundamentando seus momentos comuns em um novo conceito político de integração e em uma nova visão política; possibilidade de coexistência esta conceitualizada pelos autores como Europa cosmopolita.

A importância cultural da europeização radicada em um cosmopolitismo é caracterizada pelos autores através da fertilização cruzada de identidades e discursos com a qual se poderia relacionar um novo modelo cultural sócio-cognitivo, em que a ideia de Europa se tornaria realidade. Para Beck e Grande, a Europa não existe, o que existe é uma europeização entendida como um processo institucionalizado em transformação, obedecendo à lógica das consequências indiretas. A Europa é, deste modo, um projeto politicamente alternante e em permanente processo de transformação, ilustrando um estado de coisas que, na teoria de conjuntos imprecisos, é conhecido como a ―lei de incompatibilidade‖, ou seja, caso cresça a complexidade de um sistema, os problemas enunciados com sentido perdem sua determinação; e os enunciados determinados, seu sentido (pp.21-31). Entretanto, tal definição não significa a impossibilidade de se formular enunciados com sentido, e o conceito de cosmopolitismo, discutido por Grande e Beck, procura oferecer a chave para esta questão.

Os autores empregam o cosmopolitismo como um conceito caracterizado pela superação de dualismos, principalmente em sua dimensão global/local, nacional/internacional. A compreensão da europeização de forma cosmopolita apresentada caracteriza a preocupação com a transformação da subjetividade cultural e política, procurando determinar o conceito de sociedade européia como um caso regional, especial e histórico de interdependência global e de relação reflexiva. Contrário a um sistema de subordinação verticalizada, o cosmopolitismo seria o princípio da superação das diferenças, sendo sua condição de possibilidade, alegam os autores, o reconhecimento e o desenvolvimento das normas universais que permitem institucionalizar e fundamentar a igualdade do modo com que se trata o diferente. O sentido atribuído ao cosmopolitismo converte, por conseguinte, o reconhecimento da diferença em pensamento, convivência e ação, que exige um conceito de integração e identidade o qual permita a convivência sem que isto implique sacrificar a particularidade e a diferença em benefício de uma suposta igualdade. Vista desta forma, uma Europa cosmopolita seria uma Europa da diferença, reconhecida, aceitada e significada por limitações e regulações desta diferença – diferença e integração, lugar de diversidade como fonte da auto-consciência cosmopolita (pp.31-34).

O cosmopolitismo requer a existência de normas universais que permitam regular a relação com o diferente, e equilibrar a luta por reconhecimento de uma forma socialmente aceitável. Se o cosmopolitismo quiser garantir identidades e direitos coletivos, ele necessitará de um mecanismo político que permita produzir e estabilizar institucionalmente a diferença coletiva. Sem estes estabilizadores de diferença, o cosmopolitismo corre o risco de converter-se em universalismo substancial (pp.35-36). Esta racionalidade – que trouxe uma forma específica e complexa de etnocentrismo: uma globalização do jeito racional dominante ocidental de viver, que tem se tornado uma ameaça à vida das pessoas na maioria dos países não ocidentais; uma ameaça à peculiaridade de suas culturas e de suas próprias tradicionalidades identitárias – é muitas vezes vista como uma globalização das formas ocidentais de vida que não permitem lugar para as culturas diferentes. Nesse sentido, a modernização é uma ameaça à diferença e à variedade, guiada pelo princípio do etnocentrismo. Deste modo, nos encontramos diante do problema de uma intransponível lacuna entre diferença cultural e discurso universalista.

Assim entendido, o conceito de universalidade exclui e suprime a alteridade. Para lidar com esta generalização, e equilibrar a luta por reconhecimento, pode-se pensar a proposta de Jörn Rüsen, que sugere que se critique perspectivas diferentes pela projeção entre elas, e isso colocaria em movimento ambas as perspectivas, enriquecendo umas as outras3. Deste modo, a crítica poderia levar à integração. Este enriquecimento mútuo seria possível sobre uma certa condição expressa pela categoria universalística de igualdade argumentativa para a plausibilidade narrativa. Entretanto, uma tal tipologia das diferenças culturais precisa evitar o engano de um conceito de cultura como unidade previamente dada. Nesta direção, o cosmopolitismo europeu discutido por Beck e Grande propõe um método de conceitualização que procura evitar etnocentrismos bem como qualquer pressuposição de comparação que excluiria as culturas uma das outras, apresentando a alteridade de diferentes culturas como um espelho que habilita uma melhor compreensão de si mesmo, constituindo a peculiaridade de nossas próprias características culturais, e ocasionando uma inter-relação de culturas que permite às pessoas usarem o poder cultural de reconhecimento.

Para Beck e Grande, na Europa, a cosmopolitização do Estado tem dado origem a uma estrutura política que se baseia em pressupostos compartilhados de qualidade normativa, o que configuraria a possibilidade de respeito e reconhecimento baseado no consenso. Entretanto, os autores advertem que esta cosmopolitização do Estado também deveria se fundamentar na delimitação nacional, na livre vontade, nas interdependências transnacionais e no valor político, organizado e posto em prática pela tolerância constitucional; pela diversidade e incrementalismo transnacional; pelo pluralismo ordenado; pelo decisionismo reflexivo; e pelas afiliações múltiplas. (p. 133-139) Nesta interdependência global, a realidade se torna cosmopolita – sem obedecer a uma intenção, sem publicidade, sem obedecer a uma determinação, a um programa político, de forma completamente deformada, afirmam os autores. O surgimento deste cosmopolitismo estaria centrado em um projeto político que aponta à transformação das lealdades e das identidades em um mundo de múltiplas modernidades. Sendo assim, a europeização é entendida como um caso especial, como uma forma regional e histórica da gestão de fronteiras de interdependência global (pp. 171-174).

Outra questão importante para que a dimensão social possa ser generalizada, pressupondo que todos compartilham características básicas e que se reconheçam reciprocamente, é referida como a transnacionalização dos direitos humanos contra a soberania jurídica dos Estados nacionais, determinante para a criação de uma sociedade civil européia. Deste modo, a europeização da sociedade civil poderia criar as condições adequadas para realizar o experimento de vincular entre si direitos humanos e direitos civis, estatuto jurídico e identidade, formas de vida transnacional e participação política. Trata-se de europeizar as sociedades nacionais, de abri-las, de fazê-las permeáveis e receptivas umas às outras sem eliminar suas peculiaridades, incluindo seus provincianismos e suas limitações. Esta europeização horizontal dos Estados nacionais necessita, segundo Beck e Grande, de um humanismo cosmopolita; de uma dimensão social identitária, que compartilhe características básicas de humanidade (pp. 181-180). Sendo assim, compartilha-se da mesma qualidade normativa de ser um ser humano que configuraria uma possibilidade de respeito e reconhecimento.

Outro fator relevante para que se compartilhem características básicas de humanidade diz respeito ao fato de que a transformação interna das sociedades nacionais não poderia renunciar à experiência das guerras e das ditaduras e de sua assimilação política. Deste modo, criaram-se conceitos jurídicos e um tribunal situados além da soberania dos Estados nacionais, onde se idealizou uma prática político-jurídica que articula em forma de conceitos e de procedimentos jurídicos a ruptura da civilização representada pelo extermínio dos judeus organizado pelo Estado alemão4 (p.190). Esta categoria de ―crimes contra a humanidade‖ introduz uma nova lógica jurídica que rompe com a lógica baseada no conceito de nação, substituindo-o pelo princípio jurídico da responsabilidade cosmopolita. Se as tradições que deram lugar ao horror do holocausto eram européias, também eram os valores e os conceitos jurídicos com os que estes fazeres se julgaram ante o mundo como crimes contra a humanidade (pp. 191-192).

A discussão destes conceitos pode ser compreendida como resultado de desilusões políticas, ou como conseqüência de um aumento da sensibilidade moral, que diz respeito ao fato de termos nos tornado consciente do fato de que o reconhecimento da dignidade humana condensa um princípio central de justiça social. Deste modo, todo sujeito seria dependente de um contexto de formas sociais de interação regulada por princípios normativos de reconhecimento mútuo. Sendo assim, a integração normativa das sociedades seria substituída por princípios de institucionalização de reconhecimento que regulam compreensivelmente as formas de reconhecimento mútuo através do qual seus membros possam se relacionar no contexto social da vida. Se corroborarmos estas premissas, a consequência é que uma política ética, ou uma moralidade social, deveria ser fundamentada para a qualidade de garantias sociais de relações de reconhecimento.

Contudo, o tipo de cosmopolitismo apresentado por Beck e Grande parece sugerir algo mais do que a coexistência da diferença. Por essa razão, a perspectiva abordada pelos autores implica ainda o reconhecimento da dimensão transformativa dos encontros sociais. A fertilização cruzada que se dá quando as sociedades entram em contato conduz a formas sociais mais fixas e a uma certa lógica de convergência, que transcende a superficialidade da ―unidade na diversidade‖. Trata-se, deste modo, do fato da integração das sociedades envolver diferenciação e integração reflexiva. A europeização é compreendida pelos autores mais em termos de autotransformação reflexiva do que de princípios normativos. Sendo assim, a ideia de uma Europa Cosmopolita se baseia no princípio de unidade e diversidade, indo mais além no problematizar reflexivamente a subjetividade política da Europa.

A tarefa proposta por Ulrich Beck e Edgar Grande de se compreender a europeização de forma cosmopolita exige um conceito de integração e identidade que permita uma convivência, sem que isto implique sacrificar a particularidade e a diferença em benefício de uma hipotética igualdade. Entretanto, este cosmopolitismo requer a existência de princípios que permitam regular a relação com o diferente, e equilibrar a luta por reconhecimento. Este tipo de pensamento transcenderia os limites do etnocentrismo, sendo um compromisso para refletir, historicisar e universalizar os princípios básicos e determinantes do pensamento histórico, além de poder servir de escopo para se pensar a existência de princípios universais, bem como para que possa haver a regulação da relação com o diferente. Aqui se configura uma possibilidade de respeito e reconhecimento que estabilizaria a diferença, não havendo o risco do cosmopolitismo proposto por Beck e Grande, converter-se em universalismo substancial.

Notas

2. Ulrich Beck é sociólogo, professor da universidade Ludwig-Maximilians, de Munique, e da Escola Londrina de Economia e Ciências Políticas. Desde 1992, tem sido professor de Sociologia e diretor do Instituto de Sociologia da Universidade de Munique. De 1995 a 1997 foi membro da Comissão para Questões Futuras do Estado da Bavária e Saxônia. É editor, desde 1980, do jornal de Sociologia Soziale Welt, e autor e editor de vários artigos e livros, além de ser um dos principais tradutores de idéias sociológicas contemporâneas do alemão para o inglês. Sua importância no campo da Sociologia, e das ciências sociais em geral, é incontestável, julgando sua extensa e ininterrupta evidência de publicações em alemão e inglês desde a publicação de seu determinante Risk Society, em meados de 1980. Edgar Grande é cientista político e ex-professor da Universidade de Konstanz . Desde de 2004 é professor de política comparada no Instituto de Ciências Políticas Geschwister-Scholl, da Universidade Ludiwig-Maximilians, de Munique.

3. Ver: RÜSEN, Jörn. Towards a new idea of humankind – unity and difference of cultures in the crossroads of our time. Working Papers n.2. Kulturwissenschaftliches Institut, Essen; University of Witten/Herdecke; University of Duisburg-Essen. Essen, 2006. _____ Comparing cultures in intercultural communication. In. FUCHS, Eckhardt; STUCHTEY, Benedikt. Across cultural borders: historiography in global perspective. p.335-348. Rowman&Littlefield, 2002.; _____. How to overcome ethnocentrism: approaches to a culture of recognition by history in the twenty-first century. In. History and Theory. Theme Issue 43. p.118-129. Wesleyan University, 2004.

4. Em toda a Europa existe uma disputa cada vez maior sobre a subjetividade política de novas formas de comemorações pós-nacional baseadas no perdão e no reconhecimento das vítimas. A recordação do Holocausto é paradigmática destas formas de comemorações. Deste modo, é característico que uma ética da memória se converta em um cenário para o discurso público sobre a natureza da identidade histórica.

Johnny Roberto Rosa – Mestrando em História Cultural pela Universidade de Brasília – UnB. Bolsista Capes. Contato com o autor: [email protected].


BECK, Ulrich; GRANDE, Edgar. La Europa Cosmopolita: sociedad y política en la segunda modernidad. Barcelona, Buenos Aires, Mexico: Paidós, 2006, 392p. Resenha de: ROSA, Johnny Roberto. Em Tempo de Histórias, n.16, p.191-195, jan./jul., 2010. Brasília, Acessar publicação original. [IF].

Leituras críticas sobre Evaldo Cabral de Mello / Lilia M. Schwarcz

A editora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em parceria com a Fundação Perseu Abramo, lançou, em 2008, a coleção „Intelectuais do Brasil‟, para abordar o conjunto da obra de certos autores, cuja “reflexão sobre o Brasil seja considerada relevante para a compreensão do país”. Foram editados quatro livros naquele ano, apresentando as obras de Evaldo Cabral de Mello, Boris Fausto, Silviano Santiago e Leonardo Boff. Cada livro ficou sob a responsabilidade de um organizador, cuja tarefa, além de articular a apresentação da obra e do respectivo autor selecionado, era reunir um grupo de pesquisadores para efetuarem análises aprofundadas. Lilia Moritz Schwarcz foi a responsável pela organização das leituras críticas que foram feitas sobre a obra de Evaldo Cabral de Mello.

Embora a coleção não apresente o que está entendendo por „intelectual‟, supõe que são indivíduos cuja obra e atuação diante do cenário nacional e internacional contribuíram diretamente para que questões políticas e culturais fossem pensadas e repensadas, quanto ao presente (ao passado e ao futuro) das sociedades. Tal definição, mesmo que indiretamente, aparece interligada entre cada um dos quatro livros até aqui lançados pela coleção. No caso de Evaldo Cabral de Mello, tal questão se apresenta em sua atuação como historiador e diplomata, cuja relação profissional não é recente no país. Em função da presença tardia de universidades no país, a formação do ofício de historiador permaneceu, durante muito tempo, em caráter „autodidata‟. A paixão pelo ofício, alicerçava-se nos Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e seus congêneres estaduais. Sem profissionalização, a atuação „autodidata‟ dos praticantes do ofício neste período tinha que, por razões óbvias, manter-se ligados a outras profissões. O exercício da diplomacia, ao lado da prática da pesquisa histórica, foi muito comum nos séculos XIX e XX, e mesmo após a criação das primeiras universidades, a partir da década de 1920, tal tradição não desapareceu. Evaldo Cabral de Mello, nesse sentido, esta enraizado nesta tradição de pesquisa, que media história e diplomacia: “fez uma carreira em tudo singular: seguiu a diplomacia e sempre alardeou um „horror‟ às instituições, as quais, segundo seu próprio depoimento, são sempre muito „conformistas‟” (p. 11), mas não se limitou a ela. Em suas obras, a “fonte documental permite perceber como a identidade é uma criação social, opositiva e circunstancial: uma resposta política a um contexto político [mesmo considerando sua relutância sobre o uso deste conceito]” (p. 9). Por outro lado, descortina a ideia “de que a vinda da Corte já levaria a prever uma independência conservadora e liderada pela monarquia”, cujo fundamento estava alicerçado numa interpretação finalista e parcial sobre a separação política, “condicionada pela história da Corte”, e por suas ações. Ao longo do livro, que conta com cinco ensaios, uma entrevista e um balanço dos ensaios efetuado pelo autor, apresenta-se esta questão e sua contribuição, para a produção da abra do autor.

No primeiro ensaio, Stuart Schwartz, faz um balanço da produção do autor, dando destaque as suas obras: Olinda restaurada (de 1975), Rubro veio (de 1986), O nome e o sangue (de 1989), A fronda dos mazombos (de 1995), O negócio do Brasil (de 1998) e A outra independência (de 2004). Para ele, esse conjunto formaria um sexteto de uma história regional do país, em que estudou parte do nordeste e a história de Pernambuco. Essas obras estariam articuladas num projeto historiográfico ambicioso e bem sucedido.

Em certo sentido, o sexteto de Evaldo Cabral de Mello é um exemplo brasileiro do ‘retorno à narrativa’ […]. O autor adotou este meio de exposição não porque desconhecesse a teoria nas ciências sociais, ou porque rejeitasse um modo analítico. De fato, seus livros demonstram familiaridade com um amplo espectro teórico; mas ele sempre concebeu a teoria e o método como ferramentas, não como propósitos da análise histórica. Além disso, criticou o que chama de ‘orgia’ nas ciências humanas e o abuso da interdisciplinaridade entre historiadores […] sempre se manteve de certa foram um positivista, e pensa ser possível à recuperação daquilo que realmente aconteceu no passado […] também acredita que a narrativa é a forma clássica do historiador, e o método mais adequado a sua tarefa: reconstruir os eventos do passado e explicá-los aos leitores do presente sem incorrer no pecado do anacronismo […] confia que a escrita da narrativa é o melhor método a partir do qual é possível começar a entender as estruturas subjacentes aos eventos e as conexões entre acontecimentos e estruturas. Ao mesmo tempo, sua abordagem também o tornou particularmente sensível a narrativas passadas, às maneiras através das quais atores históricos no passado representaram a si próprios e a sua realidade, explicaram eventos e usaram tais narrativas para criar uma mitologia que representa sua visão do mundo (p. 30-1).

No segundo ensaio, Luiz Felipe de Alencastro, prolonga essas análises, centrando-se na questão da narrativa contida nas obras do autor. Pauta-se na analise de: O norte agrário e o Império (de 1984), além de Rubro veio, O nome e o sangue e Olinda restaurada. Procura dimensionar a importância da narrativa histórica no encadeamento do enredo de cada um dos livros, fazendo também uma avaliação crítica do uso deste procedimento expositivo de dados. Para ele, o autor versa sobre um conflito luso-holandês, unindo a “metodologia histórica atual à erudição e à tradição regionalista”, numa reflexão que conforma três séculos de história, “conectando-a aos grandes debates historiográficos e tornando-a um dos capítulos centrais da historiografia das Américas” (p. 39).

Júnia Ferreira Furtado, em seu ensaio, analisa comparativamente O nome e o sangue com Grande sertão: veredas de Guimarães Rosa. Para ela, detendo-se na questão da mitologia política, enquanto Evaldo Cabral procurou demonstrar um segredo, ao expor a genealogia de uma família, Guimarães Rosa fez o inverso, no que diz respeito aos segredos do sertão, e as suas características políticas. De acordo com ela:

Ao revelar as vicissitudes e os percalços por que passou o personagem em sua tentativa de fraudar sua história familiar, criando o segredo que se oculta nas entrelinhas do processo [como cristão-novo], a narrativa [de Evaldo Cabral] desnuda o universo não só da sociedade do açúcar do Nordeste do Brasil, como também do mundo luso-brasileiro, suas formas de sociabilidade e seus conflitos. Um mundo em transformação, onde os negócios promoviam a inversão da ordem, mas onde o sangue, o nome, a honra, a linhagem e a nobreza continuavam a ser fatores estruturantes desta sociedade (p. 80).

A preocupação de Pedro Puntoni esteve mais em demonstrar as características metodológicas e as escolhas efetuadas pelo autor em sua obra. Para ele, o traço marcante da obra está em alcançar grandes sínteses sobre os processos analisados, investindo na questão narrativa, como forma de exposição dos dados, e na interpretação de uma massa documental impressionante. Por isso, a “prosa evaldiana nos conduz […] pelos desvãos desta sociedade conflituosa”, dando a “possibilidade de não apenas compreender a história, mas também de habitá-la” (p. 105).

Pautando-se na interpretação de A outra independência, Lilia Moritz Schwarcz no quinto ensaio do livro, voltou-se para o modo como Evaldo Cabral de Mello além de contraria as interpretações sobre a independência do país, não deixa de lado demonstrar que a história não é um processo teleológico no qual „os atores sociais‟ tem plena consciência de suas decisões e de suas atitudes. Para ela, as obras do autor “têm gerado movimento e feito a historiografia nacional passar por uma clara renovação e questionamento”, por que mostrou ângulos e aspectos do passado pouco percebidos, que teoria e método são importantes, mas apenas quando estão articuladas, a análise das fontes e a exposição dos dados, e que todo acontecimento impõem uma multiplicidade de olhares, não se limitando a uma única interpretação.

Na entrevista que concedeu a Lilia Schwarcz e Heloisa Starling, juntamente com seus comentários aos ensaios, o autor volta à questão da articulação de sua obra num projeto coerente e organizado, destacando que não haveria tal projeto. E que foi concebendo cada obra, uma após a outra, e não todas ou um conjunto ao mesmo tempo. Ressalta a importância da carreira diplomática, para a consecução de suas pesquisas. E que:

A conclusão que tirei a partir de outras leituras foi a de que a narrativa proporciona a técnica mais adaptada a realizar a integração dos saberes históricos; e que o preconceito vigente contra ela nos meios acadêmicos não leva em conta que a opção em seu favor decorre essencialmente da natureza da realidade histórica. A historia ideal de um dado acontecimento histórico seria a meu ver a que, por exemplo, tratando da Revolução de 1848 na França, combinasse o Marx do ‘18 de Brumário de Napoleão Bonaparte’ e o Tocqueville das Recordações. O historiador não pode aceitar ser posto contra a parede pela escolha entre historiar eventos ou historiar estruturas. Não há porque optar por uma em detrimento da outra. A história puramente factual é confusa e monótona; a história puramente estrutural não o é menos, mesmo quando escrita por um historiador de talento. […] Os eventos têm uma estrutura (como demonstra a história comparada das revoluções), mas a estrutura também compõe-se de ações, pois, nada tendo de metafísica, é apenas o produto de uma miríade de microeventos, e é ação cristalizada dos homens ao longo do tempo (p. 198).

A leitura desta obra dá, portanto, um belo exemplo de como uma obra é produzida, e ao longo de sua produção quais os questionamentos, dificuldades e dilemas que perpassam por seu autor. Nesse sentido, a coleção „Intelectuais do Brasil‟ constitui um empreendimento editorial inovador e didático, por permitir uma apresentação minuciosa a produção de importantes „intelectuais‟ brasileiros, que contribuíram para a produção e a renovação do conhecimento histórico nas últimas décadas. No caso das leituras aqui apresentadas sobre a obra de Evaldo Cabral de Mello não é diferente, mesmo por que os autores possibilitaram um acesso à obra viável tanto para o iniciante, quanto para o pesquisador da área. Além disso, destaque-se o intenso debate entre os comentadores e o autor, que demonstra a complexidade que sempre permeia a interpretação de qualquer obra ou autor. O que apenas torna a obra ainda mais rica e viável para consulta. A lamentar apenas o pouco espaço que foi dado a discussão da formação do autor (principalmente, em sua infância e juventude), que apenas se inseriu na entrevista.

Diogo da Silva Roiz – Doutorando em História pela UFPR, bolsista do CNPq. Mestre em História pelo programa de pós-graduação da UNESP, Campus de Franca. Professor do departamento de História da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Campus de Amambai, em afastamento integral para estudos. E-mail: [email protected].


SCHWARCZ, L. M. (org.) Leituras críticas sobre Evaldo Cabral de Mello. Belo Horizonte: Ed. UFMG; Fundação Perseu Abramo, 2008, 204p. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Historiografia e “intelectuais brasileiros”. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.15, p.122-125, jul./dez., 2009. Acessar publicação original. [IF].

Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva / Beatriz Sarlo

O passado, ao contrário do sentido mais generalizado ao qual a expressão induz, de modo algum está limitado a fatos que se perderiam prisioneiros de um tempo ido e finito. Isto porque o passado, pelo menos enquanto construção de significado, só existe enquanto tal porque há um presente que lhe serve de lugar de produção e contraste: uma lembrança a qual se recorre, uma comparação entre o que foi e já não é. Passado que, para a crítica literária argentina Beatriz Sarlo, de certa forma continuaria sempre ali, presente e emergente nos momentos em que menos se espera, fugindo muitas vezes ao controle da própria vontade, manifestando-se fora das amarras de uma operação da inteligência, quando “o retorno do passado nem sempre é um momento libertador da lembrança, mas um advento, uma captura do presente” (p.9).

Para além de uma mera categoria relacionada à observação e posicionamento diante da passagem do tempo, Sarlo, no livro Tempo Passado: cultura da memória e guinada subjetiva, problematiza o passado enquanto representação a partir de uma perspectiva que, segundo ela, tem predominado nas últimas décadas: uma espécie de valorização demasiada do testemunho, dos discursos produzidos por sujeitos que teriam vivenciado in loco e diretamente os fatos dos quais se propõem serem divulgadores.

Narração da experiência ligada à materialidade do corpo e da voz, à presença efetiva do sujeito naquele passado por ele recontado. Se por um lado isso nos levaria a afirmar que não existe testemunho sem experiência, por outro também poderíamos pensar que não há experiência sem narração, pois a linguagem realiza a libertação do aspecto mudo da experiência, redimindo-a de seu caráter imediato e do esquecimento ao qual estaria destinada, transformando-a no comunicável – na acepção de uma vivência compartilhada por meio do relato.

A narração inscreve a experiência numa temporalidade que não é a de seu acontecer (ameaçado desde seu próprio começo pela passagem do tempo e pelo irrepetível), mas a de sua lembrança. A narração também funda uma temporalidade, que a cada repetição e a cada variante torna a se atualizar (p.24).

Sarlo argumenta que, ao contrário do que possa parecer, quando nas últimas décadas houve certa impressão de que o “império do passado se enfraquecia diante do instante”, anunciada principalmente pela chamada pós-modernidade, presenciou-se de fato à erupção de inúmeras formas de representar o passado: lembranças, comemorações, lamentos, tentativas de reconstituição. Uma época que viu nascer, ou ao menos disseminar-se, a museificação, a produção intensa de romances e filmes com temáticas históricas, a realização das histórias da vida privada.

O objetivo declarado da autora é discutir as relações entre passado e memória nas últimas décadas, reagindo não aos usos jurídicos e morais do testemunho, mas a seus outros usos públicos. O que propõe é analisar a transformação do testemunho em um ícone da Verdade ou no recurso mais importante para a reconstituição do passado; discute a primeira pessoa como forma privilegiada diante de discursos dos quais ela está ausente ou deslocada. A confiança no imediatismo da voz e do corpo favorece o testemunho. O que proponho é examinar as razões dessa confiança (p.19).

Muito da análise de Sarlo está ligada ao passado recente de seu país. Principalmente ao fato de que, após sete anos de ditadura militar (1976-1983), iniciouse, e ganhou mais força, uma espécie de acerto de contas entre os argentinos – principalmente entre as vítimas diretas das arbitrariedades do regime e seus agentes. O conhecimento dos atentados contra a liberdade e a vida teriam sido possíveis, em grande parte, aos relatos daqueles que sofreram diretamente com tais medidas. A memória teria sido, na Argentina posterior à ditadura militar, mas também em outros países latinoamericanos, uma espécie de dever ao qual não se podia, e não se queria, fugir. O testemunho tornou-se uma das principais estratégias para a condenação do terrorismo de Estado.

Entretanto, argumenta Sarlo, para além de configurar-se na base probatória dos julgamentos e condenações ao terrorismo de Estado na Argentina, o testemunho se transformou num relato de grande força e penetração que não se restringiu ao âmbito do judiciário, mas que se disseminou para outras instâncias da sociedade, operando “cultural e ideologicamente” (p.24).

E esses testemunhos, em virtude das circunstâncias as quais se reportavam, geraram uma espécie de suspensão das desconfianças, sendo raramente submetidos a algum tipo de crítica. Não se desconfiava por uma série de motivos: jurídicos, com a necessidade de servirem de provas, às vezes as únicas, dos crimes cometidos pelo Estado; políticas, como demonstração do que significou a interdição da democracia; e morais, em que se considera o direito das vítimas em se manifestarem e o dever de seus interlocutores em saber o que aconteceu. Em detrimento da análise criteriosa, a tomada dos relatos como signos da verdade, facilitada pelo fato de que aquelas pessoas “estiveram lá”. Como salienta Beatriz Sarlo, o que importava “não era compreender o mundo das vítimas, mas conseguir a condenação dos culpados” (p.67).

Valendo-se muitas vezes da acumulação de detalhes, vivenciados por quem foi testemunha ocular dos fatos, tem-se a produção de um “modo realista-romântico”, quando o sujeito-narrador confere sentidos aos detalhes pelo próprio fato de que os incluiu em seus relatos. Assim procedendo, ele não se sente constrangido a atribuir significados ou explicar ausências, sendo o primado do detalhe “um modo realistaromântico de fortalecimento da credibilidade do narrador e da veracidade de sua narração” (p.51).

A partir da constatação de que o relacionamento que as pessoas mantêm com o passado é muitas vezes conflituoso, a autora pondera que nem sempre se mostra harmoniosa a relação entre história e memória: a primeira nem sempre acredita na segunda, sendo que esta freqüentemente nutre desconfianças em toda reconstituição que não a leve em conta – e mais que isso, que não a coloque em seu centro.

Diferença que de certa forma se desdobra na produção de dois tipos de fazer histórico, duas formas de lidar e produzir significados sobre o passado: uma história acadêmica, produzida segundo os cânones e estratégias de reconhecimento próprios da universidade; e uma qualificada, a partir de seus êxitos comerciais, como sendo “de grande circulação”.

A histórica acadêmica, com suas regras de métodos, que incluem as disputas por poder dentro do espaço institucional, monitora ou pelo menos serve como ponto de observância aos modos de construção de um discurso sobre o passado. Como escreveu Michel de Certeau, seu lugar de fala inclui o objetivo de reconhecimento entre os chamados pares, de legitimação perante um modo de fazer considerado adequado. Sarlo observa que toda esta preocupação não se converte necessariamente na construção de uma escrita histórica que tenha apelo ou que suscite a atenção de um público mais amplo, para além dos ditos circuitos especializados.

Característica que seria mais típica de uma história pensada como sendo de grande circulação, mais atenta não estritamente a demandas de mercado, pois não se trataria somente da produção de um artigo que se sabe de antemão que vai vender bem.

Para além do âmbito mercadológico, haveria a constatação de que este tipo de história mostrar-se-ia mais sensível aos mecanismos pelos quais “o presente torna funcional a investida do passado e considera totalmente legítimo pô-lo em evidência”. Uma história que deve encontrar suas respostas na própria esfera pública atual, atendendo às expectativas e crenças do público, orientando-se por elas. Algo que não a tornaria “pura e simplesmente falsa, mas ligada ao imaginário social contemporâneo, cujas pressões ela recebe e aceita mais como vantagem do que como limite” (p.13).

Mas como essa história, também designada por Sarlo como “de massa”, realizaria aqueles propósitos? Segundo ela, por meio da recorrência a um princípio explicativo que buscaria garantir origem e causalidade, a serem aplicados a quaisquer fragmentos de passado, demonstrando ou não uma pertinência com os mesmos. Haveria assim uma “redução do campo das hipóteses”, que acabaria por sustentar o interesse público e realizar uma “nitidez argumentativa e narrativa”, algo do qual a história acadêmica careceria. Desse modo a história de massas, de acordo com Sarlo, que reflete especialmente sobre a produção argentina sobre os anos da ditadura, não prescinde do relato pelo fato de que este acaba impondo uma “unidade sobre as descontinuidades, oferecendo uma ‘linha do tempo’ consolidada entre seus nós e desenlaces” (p.14).

Os textos não acadêmicos sobre o assunto investiriam sobre o passado de maneira bem menos regulada pelo método do que por necessidades, demandas ou expectativas políticas, intelectuais, morais e afetivas. A autora sustenta que muito do que foi escrito sobre as décadas de 1960 e 1970, não apenas na Argentina como em outros países da América Latina que tiveram experiências de regimes autoritários, principalmente as histórias baseadas em testemunhos, correspondem àquelas características.

E aqui temos o que mais parece incomodar a escritora argentina: o fato de que esses escritos oferecem antes certezas e verdades apresentadas como indiscutíveis, porque baseadas em experiências vividas, do que a possibilidade de hipóteses, de indagações, cuja confirmação ou refutação dependam substancialmente da crítica, algo de que o testemunho parece muitas vezes estar imune.

O que ela propõe é uma espécie de exercício da desconfiança, principalmente em relação à tendência que acredita ser possível “reconstituir a textura da vida e a verdade abrigadas na rememoração da experiência”. Sarlo identifica seu nascedouro com o fim, ou pelo menos o enfraquecimento, das concepções estruturalistas a partir dos anos 70, em que de certa forma houve um ressurgimento do sujeito, não mais limitado por determinismos, seja de que matizes fossem. A partir de então foi imposta o que ela chama de guinada subjetiva, quando, por exemplo, a história oral e o testemunho trouxeram à tona a confiança na primeira pessoa que “narra sua vida (privada, pública, afetiva, política) para conservar a lembrança ou para reparar uma identidade machucada” (p.19). Algo que não se limita ao campo específico da disciplina História.

A dimensão intensamente subjetiva caracteriza o presente. Isso acontece tanto no discurso cinematográfico e plástico como no literário e midiático. Todos os gêneros testemunhais parecem capazes de dar sentido à experiência (p.38).

Para Sarlo, não se trata apenas de uma questão sobre a forma do discurso, mas também das condições de sua produção, das configurações políticas e culturais que lhe conferem fidedignidade. Além disso, ela questiona o fato de que se configuram margens para algumas contradições teóricas, pois, se por um lado há o consenso de que inexiste uma dizibilidade da Verdade, com a reconstituição dos fatos em si, por outro se admite sem maiores discussões que os discursos de experiência têm uma verdade identitária.

Assim, quando ninguém se mostra favorável em defender “a verdade de uma história, todos parecem mais dispostos à crença nas verdades de histórias no plural” (p.40).

Partindo de uma reflexão de Hannah Arendt, a autora critica o fato de que as narrativas baseadas principalmente na memória e nos testemunhos, bem como uma escrita de forte inflexão autobiográfica, estão sempre passíveis de caírem numa armadilha, representada pelo “perigo de uma imaginação que se instale ‘em casa’ com firmeza demais”, sem um necessário distanciamento que proporcione e consolide uma observação mais atenta, acurada e reflexiva.

ao ofício do historiador, acabariam eclipsados por certo dever de memória, muito mais afeito a uma relação sentimental e moral com o passado. Sua inquietação, quando observa aquilo que se tem escrito e publicizado sobre a ditadura na Argentina, é que sobressaem posicionamentos muito mais “de deferência, de respeito congelado” frente alguns episódios, principalmente referentes aos sofrimentos das vítimas, em detrimento da compreensão e de um debate mais criterioso, em que não sejam privilegiadas determinadas vozes como fontes indiscutíveis – que trazem muito mais as certezas que todos esperam ouvir do que ensejam novas indagações. Para ela, na memória estaria muito mais fragilizada a “possibilidade de discussão e de confrontação crítica, traços que definiriam a tendência a impor uma visão do passado” (p.43).

O testemunho seria mais suscetível ainda a outro perigo: o anacronismo. Sarlo ilustra essa constatação com um exemplo claro. Ela recorda que nas décadas de 1960 e 1970 não havia nos movimentos revolucionários argentinos a idéia de direitos humanos, não sendo possível projetá-la incólume para o passado, ainda que tal observação provavelmente seja dificultada pelos valores e idealizações produzidas no presente – risco maior, seguindo sua linha de raciocínio, assumido pelo privilégio dado ao relato, que ressoa ainda que involuntariamente idéias de épocas distintas, apresentadas como típicas de um período específico.

Desse modo, ainda que se considere, como no caso específico das vítimas da ditadura argentina, a necessidade (pessoal, social, política e jurídica) dos testemunhos, essa “legitimidade moral e psicológica não é suficiente para fundamentar uma legitimidade intelectual igualmente indiscutível” (p.42).

Tempo Passado é escrito com erudição e nenhum pedantismo, muito pelo contrário. Com o que eu chamaria de “elegância objetiva”, traz idéias claras, bem articuladas e expostas em argumentos desenvolvidos com fluidez. Destaca-se pela proposta de elucidar, num contexto específico – mas sempre com um olhar abrangente – a construção de demandas por explicações históricas, por inteligibilidades e interpretações dos acontecimentos; os usos que podem ser feitos, do conhecimento histórico de modo geral e da memória em particular; as disputas pela versão “correta” dos fatos e como as noções de verdade em história devem sempre ser redimensionadas a partir dos artífices desta produção.

Não é um debate propriamente inovador. Mas ora, não é imprescindível que o seja. Nem sempre a maior relevância está na busca incessante por aquilo que nunca foi dito – e sim no debate contínuo sobre pontos que não devem ser esquecidos ou negligenciados por já parecer consenso. Neste caso, reitera-se o sempre oportuno cuidado em perceber e pôr em discussão a maleabilidade dos usos do conhecimento histórico.

Fabio Henrique Gonçalves –Mestrando em História Social pela Universidade de Brasília (UnB). Bolsista da Fundação de Amparo a Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (FAPEMA).


SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Tradução Rosa Freire d’Aguiar. – São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007. Resenha de: GONÇALVES, Fabio Henrique. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.14, p.212-219, jan./jun., 2009. Acessar publicação original. [IF].

História da imprensa no Brasil / Ana L. Martins e Tania R. de Luca

O livro “História da imprensa no Brasil”, lançado em 23 de julho de 2008, é organizado pelas doutoras em História Social Ana Luiza Martins e Tania Regina de Luca, ambas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Editado pela Contexto, a obra tem 304 páginas e reúne 11 pesquisas. Cada organizadora escreveu um texto, ao lado de mais nove convidados especialistas, entre eles, jornalistas, professores, sociólogos e historiadores. Os textos estão distribuídos em três grandes partes intitulados: “Primórdios da imprensa no Brasil”, “Tempos eufóricos da Imprensa Republicana” e “De 1950 aos nossos dias”. Todos fazem uma reflexão sobre “o singular e rico fazer histórico da imprensa brasileira2” e buscam “o elaborar uma história sistemática e abrangente do fazer jornalístico no Brasil3”, afirmam as historiadoras já na Introdução: pelos caminhos da imprensa no Brasil.

A diversidade do conteúdo prometida pelas organizadoras é cumprida à risca desde a primeira até a última página. A narrativa da obra cativa o leitor. As histórias relatadas são uma viagem ao longo dos 200 anos de imprensa no Brasil, começando lá nos idos de 1808, quando a corte portuguesa chegou ao Brasil. A partir deste fato histórico o primeiro jornal, o rádio, a televisão, as revistas e o surgimento das novas tecnologias como a internet são contextualizadas com os diferentes momentos políticos, sociais, econômicos e culturais ao quais os brasileiros vivenciaram.

O tempo não precisa estar explícito para se entender a narração. Cada página traz informações contadas de maneiras diferentes para quem já conhece alguns fatos ou para quem desconhece completamente. São detalhes de uma história observada por uma outra perspectiva. Trata-se de uma obra historiográfica para quem deseja conhecer a imprensa no Brasil.

A obra relata a história a partir de registros em documentos e de memórias dos bastidores da imprensa – escrita e falada –, dos personagens poderosos, da promiscuidade dos governos e do poder público com a imprensa, da censura e das relações ambíguas ou coniventes entre os meios de comunicação e os políticos. São muitas informações interessantes e curiosas, não reveladas naquela época e agora nesta obra divulgadas.

A Parte I que leva o título de “Primórdios da imprensa no Brasil” reúne dois textos. O doutor em História, professor do departamento de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e jornalista, Marco Morel, escreve “O surgimento da imprensa periódica: ordenar um espaço complexo”, onde relata sobre o surgimento da imprensa no Brasil em 1808 e a influência da Corte portuguesa para que ocorresse a instalação da tipografia da Impressão Régia. O que não significa que a imprensa tenha surgido de repente, já que redatores brasileiros conviviam, mesmo informalmente, “com a imprensa de outros países. Foi o caso dos estudantes brasileiros em Coimbra que circulavam pela Europa ou de emissários enviados pela Coroa portuguesa aos quatro cantos do mundo (…)4”. Já naquela época, ao lado da impressa, estavam a censura prévia e o oficialismo. Mas, ressalta ele, esse marco não significa que não existiram outras tipografias no país. Afinal, várias obras foram imprensas em diferentes regiões do país. Haviam prelos que faziam esse serviço. E as experiências pioneiras – “Correio Braziliense”, “O Patriota” – são reconstituídas por Morel.

A doutora em História Social Ana Luiza Martins traz o segundo texto “Imprensa em Tempos de Império”. Nele, o envolvimento da imprensa com a crise do Absolutismo, com o Segundo Reinado e com as ideologias políticas que predominavam nesse período. Tem informações sobre a Revolução Liberal, a Revolução Farroupilha, os movimentos entre liberais e conservadores e a história do Jornal do Commercio, considerado a principal voz oficial do Império (1826). Era um elo entre as províncias e o governo central e tinha uma função comercial clara perante seus leitores. Ela também menciona outros jornais que criaram novos padrões estéticos, como O Guarani, O Paulistano e A Província de São Paulo (atual O Estado de S. Paulo). Cita revistas femininas e folhetins, que conquistavam muitos leitores. “Coube à crônica, porém, exercer papéis múltiplos, ocupando o lugar do artigo de fundo, fazendo às vezes do que hoje se denomina editorial (…)5”. Veremos também descrições da imprensa propagandística, do jornalismo republicano, jornalismo abolicionista e como se comportava a imprensa que era oposição, até chegarmos ao fim do Império e entrarmos para a República, em 1889. A partir daí, o Brasil passa a viver sob um novo regime que se mantém até os dias de hoje.

A Parte II “Tempos Eufóricos da Imprensa Republicana” reúne o trabalho de quatro especialistas. Maria de Lourdes Eleutério, doutora em Sociologia, reconstitui na “Imprensa a serviço do progresso” o período da Primeira República (1889-1930) com diversos exemplos. Foi uma época de inovação tecnológica onde a ilustração com charges, caricaturas e fotografias foram incluídas na imprensa com força total. Um dos marcos é a revista Kosmos. Haviam jornais a favor do Império e outros da República, entre todos haviam jornalistas perseguidos, redações invadidas e a censura era permanente. Foi quando surgiu a Associação de Imprensa, garantindo assistência à classe e aos direitos dos profissionais da comunicação. Entre os diversos jornais que surgiram, permaneceu o Jornal do Brasil (1891). A imprensa também muda seu ritmo de trabalho e para se tornar ágil na transmissão das notícias, investe na cobertura in loco, com o repórter próximo ao fato. A linguagem mais coloquial e a crônica surgem com mais frequência nos jornais e revistas.

No início do século XX existiram milhares de jornais, alguns oficiais, comerciais, diários, semanais, religiosos, infantis. É o que diz Ilka Stern Cohen, doutora em História Social, no capítulo “Diversificação e segmentação dos impressos”. “A variedade de tendências políticas, contudo, não se repetia na aparência material6”, ou seja, mesmo com os avanços técnicos, os jornais eram parecidos. E geralmente o mercado superava o idealismo de alguns impressos. A autora destaca o entrelaçamento do jornalismo e da literatura e cita autores que conquistaram muitos leitores como Olavo Bilac, Monteiro Lobato, Menotti Del Picchia. A Belle Époque só é deixada de lado com o início da Primeira Guerra Mundial, que influencia a economia de diversos países, entre eles, o Brasil. Entre 1916 e 1925, foi a Revista do Brasil, com uma linha editorial voltada para ser um “núcleo de propaganda nacionalista7”, que se destacou na imprensa. Mudou nas mãos de Monteiro Lobato, a partir de 1918, ampliando um espaço para a literatura. Logo vieram as revistas ilustradas, com diversos temas, separados por muitas seções. Podemos destacar A Cigarra e Fon-Fon. O momento também é da Revista Feminina (1914-1936), que ditava as normas mais cabíveis para as mulheres da época. Foi um sucesso de vendagem e de valores. Cohen também dá detalhes sobre a imprensa que predominou nas comunidades, entre a classe operária – A Lanterna, A Vanguarda (1911) e A Plebe (1917) – com conteúdo político. Ao mesmo tempo, existiam revistas e jornais que pretendiam apenas informar com isenção, neutralidade, sem se posicionar a favor ou contra em determinados assuntos, como a Revista Brasileira (1934).

Com o professor titular de Teoria Literária da Unicamp, Antônio Arnoni Prado, conhecemos a relação “Imprensa, Cultura e Anarquismo”. O título abre caminho para sabermos mais a respeito de periódicos produzidos por e para anarquistas, revolucionários, comunistas e tolstoianos. Misturavam-se proletários, escritores profissionais, críticos, intelectuais e sociólogos a favor de uma causa. A história da Kultur, Spártacus, Renovação, A Vanguarda, Na Barricada e A Vida, por exemplo, é relatada das páginas 131 a 148 da obra. Como era o processo intelectual e a produção de cada jornal e qual era a repercussão que provocava na sociedade é registrada pelo autor neste texto.

Coube a doutora em História Social Tânia Regina de Luca escrever sobre a “A Grande Imprensa na primeira metade do século XX”, quando as máquinas modernas ocupam seus espaços e surgem novos meios de comunicação na sociedade: cinema, máquinas fotográficas, máquinas de escrever e fonógrafos. A vida fica mais dinâmica e a imprensa ganha novo impulso. É hora da publicidade e das agências norte-americanas ocuparem seus lugares dentro e ao lado da imprensa escrita. Surgem inúmeros títulos: Diário de Pernambuco (1825), Jornal do Commercio (1827), Correio Paulistano, Diário da Bahia (1853-1957), O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil (1891), Correio do Povo (1885) e Diário de Minas (1899).

E a história ganha contornos mais políticos quando é relatada no trecho que leva o subtítulo “Imprensa e o movimento de 1930”, com a chegada do presidente Getúlio Vargas a presidência da República. Entram em cena princípios liberais e democráticos e o nacionalismo, as disputas entre patrões e empregados, as influências do comunismo e o anticomunismo, e as propostas do Estado Novo para a nação brasileira, por meios de decretos e de uma legislação originada no autoritarismo e nacionalismo getulista. Um regime de censuras, restrições à liberdade de imprensa e abusos de poder que perdurou de 1937 a 1945.

A Parte III “De 1950 aos nossos dias” tem cinco textos, sendo o primeiro deles “Batalhas em letra de forma: Chatô, Wainer e Lacerda”, escrito por Ana Maria de Abreu Laurenza, jornalista e doutora em Ciências da Comunicação. De forma primorosa, ela descreve a relação entre esses três jornalistas, responsáveis por importantes veículos de comunicação, respectivamente, Diários Associados, que editava a revista O Cruzeiro, Última Hora, e Tribuna da Imprensa. Todos tendo como pano de fundo os governos de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek e muitas histórias políticas, de negociatas feitas nos bastidores e, depois, muitas vezes, estampadas nas páginas da imprensa. O destaque fica para quem eram os donos desses jornais e revistas e como se comportavam no contexto onde estavam inseridos.

A história das revistas é contada no “A era das revistas de consumo” pelo jornalista e vice-presidente do Conselho Editorial do Grupo Abril, Thomaz Souto Corrêa, que narra o surgimento das primeiras magazines da editora Abril, instalada em São Paulo, contrariando todas as demais editoras que preferiam estar no centro da capital federal, no Rio de Janeiro. Começou editando O Pato Donald (1950), Capricho (1952) e Contigo (1963). As duas últimas ainda estão nas bancas, com uma nova roupagem e uma outra linha editorial. A Capricho, por exemplo, que tinha em suas páginas fotonovelas agora é voltada para os jovens. Mas outras revistas surgiram, entre elas, Quatro Rodas (1960), com serviço para o leitor sobre estradas e carros. Em 1961, a Abril lança a Claudia para concorrer com a Jóia, da editora Bloch, que depois se transformou em Desfile (1969). Segundo Corrêa, uma revista voltada para o público feminino e inteligente. Possuía uma redação com ótimos jornalistas como Rubem Braga, Marina Colasanti, Fernando Sabino e Vinicius de Moraes. Para completar, a jornalista Carmem da Silva escrevia artigos sobre temas que nem eram tratados na intimidade, quanto mais numa magazine. Ele cita também a Realidade, lançada em 1966, que concorreu com O Cruzeiro, Manchete e Fatos & Fotos.

Na página 218 começa a história da revista Veja (1968). O objetivo de Victor Civita era oferecer ao leitor informação rápida e mantê-lo bem informado, uma nova forma de encarar a função de uma publicação semanal. Mais tarde chegaram ao mercado outras revistas que também se mantém nas bancas até hoje: Isto É, da Editora Três (1977), e a Época da Editora Globo (1998). Mais adiante, ele explica sobre a segmentação das revistas e cita números. Em junho de 2007, por exemplo, a Abril detinha 41% dos exemplares vendidos no Brasil.

Da página 233 a 247, cabe a Flavio Aguiar, professor e editor-chefe da agência de noticias virtual Carta Maior, relatar os fatos marcantes da imprensa alternativa com os jornais Opinião, Movimento e Em Tempo. Mas, alerta o autor, as imprensas alternativas sempre existiram, desde 1808. Alguns jornais duraram mais, outros menos.

Pretendiam cumprir a sua missão editorial para ser lido por aqueles que desejavam um veículo isento ou pelo diferente dos existentes. Os alternativos vão além do que se convencionava dizer que são jornais que se opõem a “tendência hegemônica na imprensa convencional brasileira8”. O surgimento deles se justifica também pela falta de espaço para os jornalistas e de liberdade para escrever a partir do golpe de 1964. Como a informação era censurada, criaram-se novos espaços para se escrever e dizer o que pensavam grupos de jornalistas. E foi principalmente por causa do Ato Institucional número 5 e da censura mais ferrenha que muitos jornais, cerceados de noticiar determinados fatos, substituíram espaço por receitas de culinária. Segundo o autor, “Censores foram instalados nas redações dos jornais; circulares eram enviadas a elas, dizendo o que se podia dizer e o que não se podia, vetando assuntos, nomes de pessoas e até palavras, como Brizola, Arraes, ‘comunismo’, ‘tortura’, ‘etc’9”. Aguiar descreve as características e linguagens adotadas pelos três jornais, inserindo-os nos momentos marcantes da política brasileira. Dois deles acompanharam de perto o surgimento do Partido dos Trabalhadores e das centrais sindicais dos trabalhadores, na década de 80.

Foi com a nova Constituição de 1988 e a redemocratização do país que a imprensa alternativa perdeu sentido porque sua articulação, seu fortalecimento e sua sobrevivência se deu principalmente por causa da repressão e da ditadura de 1964, explica Aguiar. Hoje, afirma o autor, a imprensa alternativa está nos sites e blogs, novos meios de comunicação que saem fortalecidos com a nova cultura surgida por causa da internacionalização da mídia.

Sobre as novas tecnologias, quem se aprofunda é Luiza Villanéa, jornalista e mestranda em História pela Universidade de São Paulo. No texto “Revolução tecnológica e reviravolta política” ela descreve cenas de quem viveu na década de 1980 numa redação barulhenta, entre máquinas de escrever e muitos papéis, e se deparam, dez anos depois, com o computador. Um equipamento que era para agilizar a produção jornalística mas, às vezes, causava indignação porque sumia com os nossos textos e tudo por causa de problemas técnicos que não tínhamos controle. E logo veio a internet, acesso rápido a um mundo até então distante. Estávamos inseridos num cenário cada vez mais complexo e, ao mesmo tempo, a favor profissional de comunicação. Afinal, esse equipamento agilizava o trânsito de informações e o acesso às fontes.

A chegada da informática, conta Villanéa, começou no jornal Folha de S.Paulo.

Logo outros seguiram essa onda de modernidade como o Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil e Zero Hora. Nessa Era, também, a cobertura ganhou uma dinâmica diferente e os acontecimentos políticos se destacavam. O Brasil vivia a redemocratização e a imprensa estava na cobertura das Diretas-Já, das eleições diretas (1989) e dos escândalos do governo Collor (1990-1992).

O último texto “O meio é a mensagem: a globalização da mídia”, escrito por Cláudio Camargo, jornalista e sociólogo, recupera o pensamento de um dos principais teóricos da comunicação, Marshall McLuhan (1911-1980). O século XXI tornou-se uma nova aldeia global, como ele havia profetizado, e agora por causa da informatização. “A revolução digital rompeu as fronteiras que antes separavam as três formas tradicionais de comunicação: o som, a escrita e a imagem10”. Estava decretado: a internet era o quarto modo de se comunicar e de se informar. Um dos aspectos negativos dessa nova fase para o Brasil é que a mídia eletrônica fica concentrada com poucos e grandes grupos empresariais da comunicação. Citando Venício A. de Lima, o autor diz que essas mudanças começam a partir dos “anos 1990 quando o Brasil passou a adotar uma agenda agressiva de privatizações e abertura ao capital externo para se integrar ao processo de globalização, as comunicações tornaram-se, a partir de 1995, o paradigma dessa nova política11”. O problema aumenta quando é aprovada a emenda constitucional de número 8 e ocorre a quebra do monopólio estatal das telecomunicações e as “leis que permitem a participação do capital estrangeiro nas áreas de telecomunicações e, principalmente, a Emenda Constitucional n. 36, de 2002, que autoriza a participação de pessoas jurídicas no capital social das empresas jornalísticas e de radiodifusão, inclusive de capital estrangeiro, limitado a 30% do total12”. Por causa disso, informa Camargo, ocorrem mudanças nas empresas tradicionais de jornalismo que afetam o controle acionário desses meios. Alguns grupos familiares que detinham o monopólio da grande mídia, exemplifica ele, são a família Marinho (Organizações Globo), Frias (Grupo Folha) e Sirotsky (Rede Brasil Sul). Em 2000, essas empresas registraram uma queda em suas receitas porque a circulação de jornais e de publicidade também diminuiu.

A partir daí, outras transformações ocorreram nos meios de comunicações.

Camargo registra no artigo quando o Grupo Folha cria o Universo On Line (UOL), marcando assim o ingresso da mídia brasileira na era digital, em 1996. Com Fernando Henrique Cardoso, o país vive seu ápice com a privatização e a imprensa acompanha e estampa tudo nas capas e em páginas e páginas, na imprensa escrita e na internet. Os escândalos pululam e contribuem para alterar a maneira de se fazer coberturas políticas.

O jornalista, apoiado pela grande mídia que percebe ser o quarto poder, acaba se transformando num investigador e estampa nas capas de jornais e revistas reportagens mais sensacionalistas do que investigativas, questionadas pelo leitor mais crítico. E esse fenômeno, explica o autor, não é apenas brasileiro, ocorreu nos Estados Unidos após a Guerra do Vietnã e no escândalo político de Watergate. Mais adiante, Camargo chama atenção para esse fato e cita a banalização e “generalização de matérias comportamentais nas grandes revistas, como Veja, Época e Isto É em detrimento das reportagens investigativas que foram a glória das semanais no passado13”.

A obra “História da imprensa no Brasil”, lançada em 2008, reconstitui e contextualiza as principais fases da imprensa do país, desde 1808 até 2008, e é, sem dúvida, essencial para pesquisadores, principalmente, das áreas das Ciências Humanas e Sociais, e para leitores curiosos que se interessam pelos fatos que marcaram o país. Os onze autores narram os acontecimentos desse período, cada um com suas características, com uma riqueza de detalhes que certamente irão empolgar quem conhece e quem desconhece alguns fatos históricos. Um livro para ser lido, relido, e para consultado e utilizado como referência bibliográfica para diferentes trabalhos acadêmicos.

Notas

1. Mestre em História do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. E-mail: [email protected] 2 MARTINS, Ana Luiza, e LUCA, Tânia Regina de. História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008. p. 9.

3. Idem. Ibidem. p. 9.

4. Idem. Ibidem. p. 28.

5. Idem. Ibidem. p. 70.

6. Idem. Ibidem. p. 104.

7. Idem. Ibidem. p. 108.

8. Idem. Ibidem. p. 236.

9. Idem. Ibidem. p. 238.

10. Idem. Ibidem. p. 270.

11. Idem. Ibidem. p. 271.

12. Idem. Ibidem. p. 272.

13. Idem. Ibidem. p. 284.

Izani Mustafá – Mestre em História do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. E-mail: [email protected].


MARTINS, Ana Luiza; De LUCA, Tania Regina. (orgs.). História da imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008, 304 p. Resenha de: MUSTAFÁ, Izani. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.14, p.203-211, jan./jun., 2009. Acessar publicação original. [IF].

Leituras da revista Realidade (1966-1968) / Letícia N. Moraes

Retrospectivamente, tem-se a impressão de que a revista Realidade nasceu para causar polêmica. No seu primeiro número (abril de 1966), a revista abordava o tema da sexualidade entre os jovens; dois meses depois, a principal matéria questionava o divórcio (dez anos antes de sua legalização). Nos números seguintes, temas como o celibato entre sacerdotes católicos ou a controvertida capa de dezembro de 1966 “Deus está morrendo?” causaram discussões em todo o País. Apesar de todas as controvérsias geradas nos primeiros meses da revista, a história desse veículo guardou para janeiro de 1967, com “A mulher brasileira, hoje”, o momento em que segmentos censores da sociedade passaram a agir contra a sua publicação de modo agressivo. Contudo, uma leitura atenta da seção de cartas da revista desmistifica qualquer possível surpresa em relação aos eventos daquele janeiro.

Na análise de Letícia Nunes Moraes, a revista pertencente ao grupo empresarial Abril de São Paulo resistiu em seus dois primeiros anos porque matinha uma relação amistosa com os governos militares, que, desde 1964, controlavam o País. Isso graças a matérias “simpáticas” e perfis de ministros e presidentes publicados com freqüência, embora tal relacionamento tenha lenta e gradativamente se deteriorado a partir de 1968, algo que pode ser verificado com o número de leitores que passaram a “atacar” a publicação.

Realidade foi um marco na história do jornalismo brasileiro ao abordar temas pouco costumeiros nos periódicos voltados à classe média urbana e por incentivar uma linguagem jornalística próxima aos efeitos estilísticos da literatura, naquilo que se denominou genericamente como “new journalism”. A revista foi publicada entre 1966 e 1976, e Moraes debruça-se sobre os três primeiros anos (1966-1968), cerca de 36 números, em especial sobre as cartas enviadas aos editores, numa forma consciente de compreender como o periódico decodificava as opiniões de seus leitores. Nesse aspecto a revista também inovou ao produzir as primeiras pesquisas para definir seu público leitor.

Ao definir seu objetivo, Moraes produz o primeiro ruído quando identifica, no confronto entre os missivistas e as matérias publicadas, uma possibilidade de entender “como a revista queria ser lida e como de fato era lida”, sem lembrar-se , contudo, de que sua fonte única é a própria revista e que mesmo aquelas cartas eram passíveis de seleção e edição.

Enfim, o que a autora nos oferece é um detalhado estudo de duas “esferas” editorias de uma publicação: aquela preocupada com os “fatos” e outra, dedicada a selecionar as interpretações dos “fatos” pelos leitores. É nesse ponto que a sagacidade da autora traz elementos novos, desvios que necessitaram de elementos comparativos para expor certas nuances expressas nas cartas que podem não ter chamado a atenção dos editores naqueles anos, mas que, aos olhos dos estudiosos, hoje não apenas denotam as estratégias dos meios de comunicação da época – imersos num regime hostil à liberdade de expressão – como também nos dão pistas sobre os assuntos debatidos.

Em outro aspecto, a autora adverte que a seção de cartas naquele universo midiático controlado é muitas vezes utilizada para expressar aquilo que não se permite mais nos editoriais, utilizando as opiniões de “leitores” como forma de “desviar” o sentido de autoria.

Infelizmente o trabalho não levou adiante a desconfiança de que cartas podem ter sido criadas pelos editores, como ela mesma conjectura, apresentando-nos como contra-argumento o fato de que não havia tal necessidade mediante a quantidade de cartas recebidas pela revista.

Argumento que em si não está necessariamente ligado ao problema.

Num outro hemisfério, uma prática chamou sua atenção: o fato de que algumas cartas eram respondidas, e as respostas publicadas, quando os editores (Paulo Patarra e Woile Guimarães) percebiam que as questões apresentadas poderiam interessar a outros leitores.

Essas respostas foram bem exploradas pela autora e nelas podemos ver um certo “diálogo” na seção de cartas com “alguns” leitores selecionados. O exemplo que nos parece atual é o número recorrente de leitores que reclamavam da elevada quantidade de anúncios publicados e de uma das respostas ofertadas: “Sem publicidade, imprensa não vive. O importante não é quantos anúncios uma revista contém, mas sim qual a qualidade e a quantidade das matérias que oferece ao leitor” (p.86).

Muitas respostas da revista continham a idéia de que a sugestão para uma nova matéria já havia sido considerada dentro da própria redação. Havia uma preocupação dos jornalistas em explicitar que estavam à frente dos leitores, que suas sugestões apenas reforçavam pautas. Essa tática discursiva era importante na construção da identidade de Realidade, que deveria ser lida como um veículo de comunicação que antecipava discussões e tendências críticas. Apesar desse expediente, a autora mostra que, com o passar dos anos, as respostas tornaram-se cada vez mais raras e eram destinadas a cartas contrárias às opiniões da revista.

Por meio de um banco de dados construído a partir da análise de 686 cartas publicadas, Moraes tenta configurar o perfil dos leitores que escreviam para Realidade. Mas o esforço é decepcionante; a maioria era formada por homens (73%) e oriundos da região sudeste (70%); as únicas informações possíveis, pois raramente aqueles que escreviam identificavam-se de modo preciso. As conjecturas quanto à idade, à profissão, à escolaridade ou a quaisquer índices, mesmo ofertados pela autora, parecem estatisticamente irrelevantes.

Em depoimentos à autora, os editores explicitaram que, nos primeiros números de Realidade, os leitores enviavam cartas cujo teor era mais genérico e as referências às reportagens da revista eram secundárias. Raramente essas cartas eram publicadas; optava-se por relatos diretos ligados à publicação anterior. Com o tempo, as cartas já seguiam essa receita, ou seja, ensinava-se ao leitor que desejava ter sua carta publicada como ela deveria ser escrita. Essa pedagogia da acessibilidade era conscientemente seguida e coloca em suspense qualquer ilusão de uma interatividade irrestrita, tão advogada na época.

Outro aspecto era o incansável desejo de uniformizar as leituras de matérias da revista propostas pelas cartas, numa clara manipulação daquilo que era entendido – publicado – como opinião pública. Nesse tocante, Moraes explora o que Patarra chamou de “jogar um leitor contra o outro” (p.112), uma forma de legitimar a opinião da revista diante de cartas desfavoráveis por meio da publicação cartas de leitores oportunos, conferindo à publicação uma falsa imparcialidade. Um procedimento ainda muito em voga nas publicações atuais.

As cartas mostram que a revista também foi considerada perigosa quando um número considerável de missivistas acusou a revista de defender uma nova organização familiar representativa de uma “revolução moral”. Alguns leitores escreveram à Realidade afirmando que seus filhos estavam proibidos de ler a publicação. Na contrapartida, a revista utiliza cartas de pais que se manifestaram de modo oposto: elogiavam a publicação por criar um ambiente mais confortável entre eles e seus filhos em relação a questões sobre sexualidade e drogas.

Os temas mais comentados eram os de comportamento. Três publicações de 1967 merecem destaque: “A mulher brasileira hoje”, de janeiro; “A juventude brasileira hoje”, de setembro; e “Existe preconceito de cor no Brasil”, de outubro. Temas explosivos que fizeram com que todas essas abordagens sofressem com proibições, ataques e debates acalorados dentro e fora da seção de cartas da revista. Mas nenhum tema foi mais combatido pelos leitores que o “Homossexualismo”, matéria publicada em maio de 1968 (uma data nada neutra), cuja repercussão negativa a revista ratificou, “talvez por ter o mesmo ponto de vista desses leitores” (p.116). Mas há reveses.

Estudiosos acostumados com os vieses da história da recepção sabem que leitores são freqüentemente praticantes de táticas que enviesam sentidos “programados”. Um exemplo ressaltado pela autora diz respeito à surpresa dos editores ao descobrirem que “prováveis” jovens estavam menos preocupados com a “revolução sexual” e as novas posturas comportamentais que com questões mais práticas como o acesso à educação de qualidade e desemprego. Essa conclusão nasceu dos resultados de questionários enviados aos leitores em julho de 1967 com perguntas sobre o divórcio, virgindade da mulher, cabelo comprido dos rapazes, mini-saia das moças etc. O resultado, publicado na edição de setembro (“A juventude brasileira hoje”), mesmo que longo, merece ser reproduzido: “Os jovens acreditam ao mesmo tempo em Deus e no socialismo, não pensam em revolução, acham que há alguma coisa errada no Brasil, mas a maioria prefere não protestar contra os abusos e erros. Julgam que seu papel é estudar, trabalhar e preparar-se para o futuro. Estão mais a favor do que contra o governo, embora muitos nem se preocupem com isso. Pregam a fidelidade para marido e mulher, os rapazes exigem a virgindade feminina, e muitas moças a masculina. Muitos defendem o controle da natalidade e se inclinam pela separação quando o casamento fracassa” (p.187, grifo da autora). Num mundo às vésperas de 1968, cada trecho desse pequeno resumo rendeu diferentes conclusões, exploradas no livro.

O debate político não está ausente do trabalho de Moraes; o número de cartas dedicadas ao assunto é menor que aquele direcionado aos costumes. Mas lidas de modo mais cuidadoso pela autora, mostram que temas como sexo ou matrimônio eram álibis para acusar a revista de ser “francamente antiamericana”, de “usar disfarces esquerdistas” ou para culpá-la de traição à pátria ou de ser “a favor de uma nação estrangeira” (p.140). O que, por efeito, alerta aos historiadores para o fato de que certas categorias estanques, tão arduamente elaboradas para nossas pesquisas, raramente resistem à complexidade dos “problemas” analisados.

Leituras da revista Realidade tem o mérito inegável de apresentar uma visão criativa daquela que foi a revista com maior credibilidade dentro da classe média brasileira no final dos anos 60, superando ícones do jornalismo como O Cruzeiro e Manchete. A autora ensina- nos a perquirir os detalhes de um “documento” que parece, a principio, demasiado óbvio ou já muito explorado. Seu trabalho confirma a suspeita, há anos difundida, de que novas fontes não são apenas encontradas, também podem ser construídas onde muitos já passaram.

Emerson Dionisio Gomes de Oliveira – * Doutorando do Programa de Pós-graduação em História da Universidade de Brasília, sob orientação da Profa. Dra. Eleonora Zicari Costa de Brito, com apoio do CNPq.


MORAES, Letícia Nunes de. Leituras da revista Realidade (1966-1968). São Paulo: Alameda Editora, 2007, 253p. Resenha de: OLVEIRA, Emerson Dionisio Gomes de. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.12, p.115-119, 2008. Acessar publicação original. [IF].

A Corte e o Mundo: uma história do ano em que a família real portuguesa chegou ao Brasil / Andréa Slemian e João P. G. Pimenta

Integrando a Coleção Passado / Presente, da Editora Alameda, “A Corte e o Mundo: uma história do ano em que a família real portuguesa chegou ao Brasil” insere-se na categoria do chamado “livro de divulgação”, cujo propósito é oferecer ao publico não especializado o conhecimento histórico de qualidade, que incorpore os atuais avanços da pesquisa acadêmica, sem as formalidades desta, tornando a obra acessível ao público em geral.

Uma iniciativa fundamental diante das muitas ofertas no mercado que, atendendo ao atual interesse pela história, publica livros e revistas produzidas por pesquisadores curiosos, muitas vezes com visões ultrapassadas e distantes dos avanços de nossa historiografia. Nesse sentido, é importante apoiar e divulgar a produção de obras de qualidade dirigidas ao público leigo, como também dos livros paradidáticos de história para o ensino fundamental e médio.

Na mesma coleção, os autores publicaram anteriormente “O nascimento político do Brasil: origens do Estado e da nação”, e novamente foram bem sucedidos na dosagem certa entre simplificação e objetividade da escrita, sem que a obra perdesse o interesse proporcionado pela análise histórica.

O ano de 1808 é, ao mesmo tempo, marco cronológico, tema e fio condutor da narrativa. Partindo da instalação da Família Real Portuguesa no Brasil, propõe-se a narrar outros acontecimentos a ele correlatos, observar regiões por ele afetadas, e com isso tentar compreender o que era o mundo ocidental, em 1808. O ano é entendido como crucial porque, dentre outros motivos, nele começaram a surgir as possibilidades históricas que, pouco depois, culminariam no nascimento de um Brasil politicamente independente e soberano. Neste sentido, o livro é um esforço de entender uma história do Brasil articulada a uma história mundial.

Apresentando os anos iniciais do século XIX como produtor de novas condições históricas de transformação, num processo acelerado, com mudanças profundas e de caráter substancialmente político, em torno de 1808, os autores vão agregando diferentes espaços a cada capítulo do livro.

No capítulo 1, o cenário é o de uma Europa remexida pela expansão militar francesa. Ao abordar a Península Ibérica, procura-se destacar as condições que foram tão decisivas para os destinos de Portugal e Brasil e o percurso inesperado para a Espanha, que de aliada passara a inimiga da França.

A narrativa da guerra espanhola e de seu forte envolvimento popular conduz o leitor à reflexão da dramaticidade daquele processo histórico: como seria viver e travar uma guerra, em meio às idéias de abolição de privilégios da nobreza e das formas de organização social aristocráticas, das pressões e imposição de Napoleão para elaboração de uma Constituição Espanhola, numa sociedade onde o rei absolutista era elo de convergência de lealdades e do sentido das coletividades nacionais? Destaca-se a boa síntese feita no capítulo sobre o abolicionismo inglês. Partindo da grande dificuldade econômica da Grã-Bretanha naquele ano, diante dos bloqueios comerciais, da sua tentativa de reação, chega-se ao consenso de suas elites dirigentes em torno da necessidade de abolição do tráfico de escravos como meio de fortalecer uma nova ordem econômica da qual ela seria líder mundial. A bandeira do abolicionismo propiciava um aspecto universalizante muito adequado à estratégia inglesa de voltar-se cada vez mais para outros continentes, uma vez que a Europa estava fechada para seu comércio.

O capítulo 2 enfoca o Rio de Janeiro e sua articulação socioeconômica ao continente africano. Traça os desdobramentos advindos com a vinda da Família Real. A trajetória da cidade do Rio de Janeiro sob o impacto de sediar a Corte do Império Português: as necessidades de novos melhoramentos urbanísticos, de prédios e habitações, a urgência no abastecimento de víveres e outros gêneros, a preocupação com formas de controle de seus habitantes.

Afinal, a partir de 1808, a cidade assistiria à instalação das novas instituições administrativas criadas para o funcionamento do Estado Português, acompanhada de uma complexa massa de órgãos governativos, que “diante do desaparecimento da figura do vice-rei, teriam uma ampla jurisdição, relativa tanto a assuntos da Coroa, como do Império e de todas as capitanias da América”. (p.66).

Entre as instituições criadas no Rio de Janeiro destacou-se a Imprensa Régia. A criação e a atuação da imprensa estavam atreladas ao alargamento de espaços públicos de discussão que, embora já existentes anteriormente, agora seriam alargados, transbordando os tradicionais limites dos círculos cortesãos. Os múltiplos e contraditórios potenciais da imprensa seriam sentidos na América Portuguesa, onde ela certamente contribuiria para manter a ordem, mas poderia também ajudar a subvertê-la. No primeiro sentido, possibilitaria para a monarquia que pretendia sempre reforçar os vínculos dinásticos entre ela e seus súditos, em segundo porque a circulação desses conteúdos em uma escala muito maior implicaria, forçosamente, alterações nos padrões de sociabilidades existentes, o que incluiria discutir política em tempos de revolução.

Ao tratar do alargamento do espaço público, os autores destacam outra dimensão da sociabilidade que foi especialmente tocada com a instalação da Corte na cidade: as representações de nobreza, da relação rei/súditos, a simbologia em torno do rei, de uma Corte antes tão distante e, naquele momento, tão perto do cotidiano da cidade. Como ressaltam os autores: “por ocasião dos festejos públicos, a cidade era cuidadosamente preparada para recriar a mística do monarca e da Corte em sua nova sede americana”. (p.71) Tratava-se do reforço da monarquia e da unidade do Império Português, de reproduzir em terras americanas, a lógica de privilégios e favorecimentos pessoais que emanavam do rei, e era a regra das relações políticas e sociais num ambiente cortesão tradicional como o das monarquias européias. A partir de 1808, essa lógica de privilégios e favorecimentos se desdobraria em verdadeiras disputas por ascensão e influência na esfera da Corte.

Quanto às mudanças econômicas, basta citar que, ainda em 1808, seriam estabelecidos no Rio de Janeiro o Erário Régio, o que significava que a imensa massa de recursos derivada da cobrança de impostos não mais seria enviada para Lisboa, devendo permanecer no Rio de Janeiro.

A renda daí advinda serviria às obras necessárias para adaptação da cidade à condição de sede da Corte, aos melhoramentos de sua ligação com outras capitanias. Foram também criados novos impostos internos em função da abertura dos portos e do estabelecimento dos direitos de importação.

Estes impostos foram introduzidos em todas as capitanias e, mesmo não sendo drenados de forma eficiente para o Rio de Janeiro, geraram muitos descontentamentos. As populações das capitanias se viram oneradas com o aumento das taxas, sobretudo as províncias do norte, onde a presença da Corte na América não compensava a pressão fiscal sofrida. Até porque esse sistema de impostos favorecia muito mais as capitanias do centro-sul, sobretudo São Paulo e Rio Grande, que, “possuindo economias de passagens”, ganhariam muito mais com impostos sobre o trânsito de mercadorias e imóveis. Os efeitos positivos dessa arrecadação vieram exatamente dessas capitanias, estimuladas pela presença da Família Real no Brasil. (p.69) Os agentes envolvidos no comércio marítimo centrado no Rio de Janeiro, articulados principalmente ao Rio da Prata, África e Portugal e às áreas internas do sudeste, vislumbraram a possibilidades de expansão de seus negócios, possibilitando-lhes uma valorização não só comercial como política, e “que se mostraria fundamental para o futuro projeto de independência do Brasil, ainda existente”.(p. 65) A desconexão entre Lisboa e o Rio de Janeiro, provocada pela invasão napoleônica de 1807, ativaria a circulação monetária da segunda, ao frear a desmonetarização e entesouramento típicos da ex-colônia com a interrupção do tradicional circuito de metais preciosos e de afluxos financeiros, que antes seguiam para o Erário Régio em Portugal. Seu resultado imediato seria um aumento, no Rio de Janeiro, da capacidade de importação e da velocidade de difusão de numerário, que se desdobraria num crescimento notável de investimentos. Assim, a partir de 1809, a nova sede do império começou a importar escravos em números especialmente altos.

Nesse sentido a posição estratégica da corte portuguesa em sustentar a manutenção do tráfico, nos anos seguintes a 1808, contemplava os interesses de uma elite mercantil que cada vez mais se atrelava ao Estado, ocupando postos de destaque e defendendo seu prestígio e seus privilégios.

Com a abertura dos portos, o consumo de cativos pela América Portuguesa aumentaria sensivelmente. Além disso, o notável aumento na capacidade de investimentos em decorrência de sua transformação em sede do império propiciaria uma maior importação de africanos, cuja mão de obra era adequada à aceleração da economia no centro-sul.

Dentre as regiões africanas articuladas ao tráfico negreiro, destaca-se o de Angola, que estabeleceu uma relação de complementaridade com a América portuguesa, que remonta aos séculos XVI e XVII. Os autores problematizam a ação portuguesa na região, desde a ocupação costeira, o processo de interiorização da captura de escravos destinados à América por volta da primeira metade do século XVIII e as clivagens entre grupos vizinhos ao Reino de Angola.

Do outro lado do Atlântico, o Rio de Janeiro estava atrelado a essas transformações, pois desde o século XVIII era o principal entreposto do comércio de homens que abastecia o centrosul da América Portuguesa e algumas regiões da América Espanhola. Com o governo de d. João VI, o tráfico não só foi mantido como foi incentivado, incrementado e alargado.

O capítulo 3 traz uma panorâmica do que eram no ano de 1808 os vários Brasis portugueses, ou seja, as várias partes que compunham a América Portuguesa, e que eram bastante diversas, com perfis sociais e econômicos variados, e com distintas vinculações políticas entre si e com o restante do mundo ocidental.

Essa diversidade fora resultado da própria dinâmica da colonização moderna em terras portuguesas, que articulou áreas diferentes à metrópole, à competição européia e aos mercados mundiais, criando formas de reprodução muito variadas.

O impacto da chegada e instalação da Corte no Rio de Janeiro, e sua tentativa de reforço dos laços entre o monarca e os súditos de além-mar, seria desigual nas várias capitanias da América Portuguesa. Os efeitos da mudança da corte foram diversificados nos vários Brasis posto que essas partes não formavam uma unidade político-administrativa e possuíam perfis socioeconômicos específicos, não havendo, portanto um único Brasil que pudesse reagir e sentir ao acontecimento.

Nas primeiras décadas do século XIX, o Brasil era uma designação genérica para um conjunto de territórios que, a despeito de vários pontos de encontro e articulação recíproca, não podiam formar um Estado e uma nação próprios. Assim, embora a designação Brasil já existisse, ela não portava o conteúdo que viria a ter poucos anos depois.

O quarto e último capítulo aborda o restante do continente americano: as consequências para a América Espanhola diante da invasão napoleônica e a ascensão dos Estados Unidos ao cenário internacional.

Para as várias partes da América Espanhola, o ano de 1808 foi especial, pois o Império Espanhol começava a ruir, fomentando as primeiras sementes dos movimentos de Independência que começariam a ocorrer em breve. Também foi especial para os Estados Unidos que, em meio às guerras européias, encontraram novas oportunidades de potencializar seu crescimento econômico e territorial.

O capítulo 4 destaca ainda o encontro dos Impérios Ibéricos em torno do Rio da Prata. Segundo os autores, a região mereceu tratamento especial porque ali, mais do que em qualquer outra parte da América Espanhola, os acontecimentos de 1808 se mostraram ligados diretamente à transferência da Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro.

Isso porque, a invasão francesa da Península Ibérica em 1807 criou condições favoráveis ao incremento dos fluxos comerciais para a região do Prata, pois levou à abertura dos portos lusoamericanos, e à redução de tarifas aduaneiras para mercadorias procedentes do Brasil no porto de Buenos Aires. A instalação da Corte Joanina no Rio de Janeiro também incentivou o comércio para que se facilitasse a chegada à Corte de gêneros de abastecimento.

Para os autores, o ano de 1808 foi fundamental por evidenciar as várias mudanças do “turbilhão político do período das revoluções”, por se precipitar nele tantos eventos de forma acelerada, como que envolvidos no “olho do furacão”.

Achamos que o aspecto mais interessante do livro seja a reflexão proporcionada ao leitor sobre a questão das diferentes temporalidades. Sendo endereçado mais ao público em geral, a obra proporciona para este um aprofundamento na percepção dos diferentes tempos sociais, da multiplicidade de visões e perspectivas próprias do mundo social, das diferentes culturas, das diferentes épocas.

Assim, escolhendo o ano de 1808 e as transformações que nele vêm à tona – as idéias da Revolução Francesa, de Constitucionalismo, de libertação dos absolutismos, que significaram “varrer o mundo ocidental com um conjunto de formas políticas, econômicas e sociais que organizavam as vidas cotidianas” (p. 12), os autores conseguem evidenciar como uma cultura política pode apresentar formas e valores sociais compartilhados e, ao mesmo tempo, serem significadas de formas diferentes, em diferentes regiões, em diferentes sociedades. O leitor pode então perceber que o turbilhão político que varria o ocidente ia sendo nuançado, ia tomando sentidos diferentes na Europa, na Corte do Rio de Janeiro, nos outros Brasis, na América Espanhola – um dos aspectos mais fascinantes proporcionado pela abordagem histórica.

Léa Maria Carrrer Iamashita – Doutoranda em História Social-UnB.


SLEMIAN, Andréa; PIMENTA, João Paulo G., A Corte e o Mundo: uma história do ano em que a família real portuguesa chegou ao Brasil. São Paulo: Alameda, 2008, 180 p. Resenha de: IAMASHITA, Léa Maria Carrrer. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.13, p.225-230, 2008. Acessar publicação original. [IF].

O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil do século XIX / Miriam Dolhnikoff

Professora de História e Relações Internacionais da USP e pesquisadora do CEBRAP, Miriam Dolnikoff publica livro que contraria interpretações consagradas sobre a história política do Brasil imperial.

Inserida na questão maior da organização política do Brasil Imperial, a obra busca entender a longevidade da influência das elites no Brasil, investigando a maneira pela qual estas estiveram presentes no processo de construção do Estado brasileiro, de modo a contribuir na determinação de seu perfil.

Podemos melhor avaliar a pesquisa da autora e sua posição de embate frontal à historiografia estabelecida, por breve análise da idéia cristalizada da “história da construção do Estado brasileiro na primeira metade do XIX como a história da tensão entre unidade e autonomia”.

Sabemos que a interpretação do Período Regencial como a fase do jogo político entre centralização e descentralização de poder surgiu ainda no século XIX. A pesquisa de Augustin Wernet rastreou o início desta interpretação e o localiza na obra de H. G.

Handelmann, de 1860.1 Nesta visão assiste-se ao revezamento de homens no cenário político nacional, sem as profundas mudanças (revolução) das estruturas herdadas do período colonial, tendo a primeira metade das Regências sido caracterizada pelo avanço liberal (descentralização), e a segunda pelo regresso conservador (centralização). A historiografia a seguir vai articulando a descentralização às forças provinciais e à desordem, e o Regresso, ao retorno da ordem.

Por exemplo, Sérgio Buarque de Holanda considerou as forças provinciais, defensoras de um projeto federalista, expressão das forças localistas arcaicas, apegadas aos privilégios coloniais, enquanto a centralização seria o projeto que trazia no seu bojo a possibilidade de modernização, já que ela seria a condição de construir o Estado e a unidade nacional. A defesa dos interesses regionais se limitaria, deste ponto de vista, à tentativa de preservar a herança colonial. Para Buarque, o federalismo não passava de um lema para sustentar o estado das coisas vindas da vida colonial.

Outros autores como Maria Odila Dias e Ilmar de Mattos, também atribuem a vitória sobre as forças centrífugas herdadas do período colonial à capacidade da elite articulada em torno do aparato estatal do Rio de Janeiro de se impor a todo o território nacional. Para eles, o acordo pela unidade, pela centralização política e direção administrativa nas mãos do Rio de Janeiro, teria sido resultado do movimento conservador de 1840, conhecido como “Regresso”, indicando o abandono da experiência de descentralização da Regência.

Entre as interpretações mais consagradas está a de Jose Murilo de Carvalho, segundo a qual, a unidade sob um único governo, teria sido obra de uma elite da Corte, cuja perspectiva ideológica a diferenciava das elites provinciais, comprometidas com seus interesses materiais e locais. A vitória da primeira teria significado a submissão dos grupos provinciais, que ficavam desta forma, isolados em suas províncias. Essa vitória se materializou na imposição de um regime centralizado que neutralizava as demandas localistas das elites provinciais.

Discordando desses autores, e particularmente, de José Murilo, para Míriam Dolhnikoff, a unidade sob hegemonia do Rio de Janeiro foi possível não pela neutralização das elites provinciais e centralização, mas sim à implementação de um arranjo institucional por meio do qual as elites se acomodaram, ao contar com autonomia significativa para administrar suas províncias e, ao mesmo tempo, obter garantias de participação no governo central por meio dos seus representantes na Câmara dos Deputados. Através do parlamento, as elites nele representadas participavam não só do orçamento, mas também das questões relevantes para a definição dos rumos do país como a escravidão, a propriedade de terras e para organização do Estado, como a legislação eleitoral. (p.14) A autora discorda da idéia de que foi o retorno à centralização – “projeto vencedor” do Regresso- o responsável pela unidade do Império e pela definição do modelo de estabilidade deste; ou seja, para ela, o projeto federalista não morreu em 1824, nem em 1840, ele foi o vencedor, embora tenha feito, no bojo da negociação política, algumas concessões.

Dolnikoff entende que o “Regresso” foi uma revisão centralizadora que se restringiu ao aparelho judiciário, sem alterar pontos centrais do arranjo liberal, que tinham caráter descentralizador. (p.130) Ao invés de destacar a atuação da elite da Corte, a autora conclui que foi a participação das elites provinciais a propiciadora das condições para inserção de toda a América Lusitana no novo Estado, atuação decisiva, que inclusive marcou a dinâmica do Estado brasileiro.

Para a defesa desta posição, a autora recorta para pesquisa três unidades da federação: as províncias de Pernambuco, Rio Grande do Sul e São Paulo. Examina o exercício da autonomia dos governos provinciais inclusive em fase posterior ao Regresso. Justifica sua seleção por serem essas províncias diversas entre si, nos aspectos regionais, nos distintos passados, e nas diferentes demandas e interesses. Busca demonstrar que os diferentes conflitos encontravam espaço de negociação dentro da organização institucional organizada.

Desse modo, as elites provinciais tiveram papel decisivo na construção do novo Estado e na definição da sua natureza. Participaram ativamente das decisões políticas, fosse na sua província, fosse no governo central. E, ao fazê-lo, constituíram-se como elites políticas.

O que a autora quer mostrar mais especificamente é que as elites provinciais (com raízes no período colonial, que defendiam a ordem escravista, a exclusão social e as franquias provinciais) estavam também atreladas ao projeto de construção do Estado nacional e não excluídas. Justamente porque conseguiram articular-se a um arranjo institucional consagrado nas reformas de 1830 e na revisão de 1840 é que a fragmentação da nação foi evitada.

O “preço pago” por esta unidade conseguida teria sido o fortalecimento dos grupos provinciais no interior do próprio aparato estatal, com o conseqüente estabelecimento das poderosas forças oligárquicas, que ao final do século XIX, reivindicaram mais autonomia.

A autora conclui que foi a participação destas elites no interior do Estado, com fortes vínculos com os interesses de sua região de origem e ao mesmo tempo comprometidas com uma determinada política nacional, pautada pela negociação destes interesses e pela manutenção da exclusão social, que marcou o século XIX e também o XX. (p. 285) Mesmo considerando o levantamento feito pela autora entre o número de medidas centralizadoras e descentralizadoras, concluindo pelo predomínio das segundas, ainda pensamos que o fundamental foi a direção e a finalidade da acomodação centro/províncias no momento considerado: – que foi justamente o sentido da centralização, da negociação em torno de “um sentido”, que garantisse a permanência da sociedade escravocrata e excludente.

Notas 1 Historiador alemão, H G Handelmann, Geschicht von Brasilien. Berlim: Springer, 1860, p. 935, conforme Augustin Wernet, Sociedades políticas (1831-1832). São Paulo: Cultrix, 1978, p 15.

Léa Maria Carrer Iamashita – Doutoranda em História Social-UnB.


DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil do século XIX. São Paulo: Globo, 2005. Resenha de: IAMSHITA, Léa Maria Carrer. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.11, p.177-180, 2007. Acessar publicação original. [IF].

Justiça e gênero: uma história da Justiça de menores em Brasília (1960-1990) / Eleonora Z. C. Brito

Nos anos 60 e 70, Michel Foucault abriu uma perspectiva para a leitura das relações de poder, demonstrando que, a partir do século XVIII, uma rede de dispositivos disciplinares objetivou não apenas atuar sobre o sexo, colocando-o “em discurso”, mas também inventou novas formas de apropriação de sentido.

O trabalho de Brito articula a noção de poder do pensador francês não somente pela via da negação de poder como simples repressão; a essa via a autora contrapõe a afirmação de que o poder positiva, diz sim, induz formas de saber e produz discurso. Trata-se, portanto, de um conceito de poder que produz verdades, mais do que as oculta, que constitui regras para o verdadeiro, regras, entre outras, de produção de enunciados e de reconhecimento de seus sujeitos-autores.

Justiça e gênero tem como tônica central o modo como a categoria “menor de idade”, em especial “a menor de idade”, fora lida pela Justiça de Menores no Distrito Federal entre 1960 e 1996 (embora o título estabeleça 1990, a autora nos traz dados atualizados até os meados da década seguinte). Uma leitura que adotou de uma série de estratégias que refletem questões ligadas às relações de poder e gênero, evidenciadas e criticadas pela autora. O trabalho inscreve-se no grupo de estudos de gênero que possuem como ambição desnaturalizar as relações entre homens e mulheres, mostrando-as como construções sociais, históricas e culturais.

Ao analisar os casos indicados nos arquivos do antigo Juizado de Menores de Brasília – um total de cinco mil processos de um universo de cerca de trinta e dois mil –, a autora nos apresenta a história da constituição da justiça voltada ao “menor” infrator, por meio da configuração do Código de Menores, numa clivagem entre Direito e Ciências Médicas, além das teorias assistenciais em voga desde o final do século XIX. Dessa forma, o livro localiza o leitor pelas histórias normativas que procuraram regular a relação entre a infância, a juventude e a Justiça.

Nesse aspecto, Brito indica o caráter ambíguo do Código de Menores de 1927, na medida em que, para esse instrumento legal, o “menor” foi uma criação da tensão entre um sujeito ligado ao perigo, a ser detectado e disciplinado, e o sujeito cuja inocência deveria ser resguardada ou recuperada. A autora apresenta-nos esse “leitmotiv”, intimamente ligado à dimensão punitiva – marca do Direito Penal –, que matizou a questão até 1990, ano da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e mostra-nos como esse sujeito “menor” é destituído de sexo e sofre o apagamento regulador das tensões de gênero.

Enquanto a lei desconsidera o sexo do menor, anulando-o, na prática, por meio das aplicações do Juizado, recupera-se esse sexo “anulado” hierarquizando-o. Para a autora, “antes de ser ‘menor’, a menina é seu corpo, seu sexo de mulher”, como demonstra já de início, a partir da análise do caso de estupro avaliado pelo ministro do Supremo, em que a transgressão não está no ato, mas naquele que transgride – máxima da Escola Positiva de Direito Penal.

Os casos vão surgindo de modo a configurar ora a constituição de uma vítima, ora uma delinqüência, sempre julgada a partir do sexo. Nas questões em que a “menina/mulher” é vítima de crimes sexuais, o que importa é verificar sua índole e não o caso em si. Nesse aspecto, o que os discursos proferidos pelos curadores e juízes instauram é a justificativa da violência como punição social para a “má-conduta” da mulher “devassa”. Impressiona a recorrência de preconceitos tradicionais impostos às menores; constata-se, por exemplo, que, em relação à “menina/mulher”, o crime se associava irremediavelmente à prostituição ainda no final dos anos 80. Sua sexualidade era o foco para onde convergiam essas explicações.

O trabalho nos lembra de que, na lógica das fábulas processuais, não cabia à mulher um papel ativo. Sua defesa só poderia ser constituída diante da evidência de que seu papel de agente passivo do ato estava garantido, de tal modo – mostram-nos os casos narrados –, que, protegida e vigiada pela insígnia do perigo, o respeito à mulher e o crédito de seu relato passavam pelo testemunho do homem adulto. Não são raros, por exemplo, os pareceres que culpam as mães pelas “distrações” das filhas, enquanto ao pai nada cabia senão a vergonha.

O desvio infanto-juvenil, ou seja, sua punibilidade perante a lei, insere-se, portanto, no contexto de certa “estratégia de “governamentalidade” que, por um lado, buscava disciplinar os corpos, e, por outro, objetivava a regulação da população” (p.119). Sobre as questões dos corpos, Brito narra todo um jogo de poder na constituição de uma Medicina Legal, cara às determinações hierárquicas entre homem/mulher, adulto/criança e normal/anormal. Teorias como as divulgadas por Afrânio Peixoto e Nina Rodrigues foram as que deram os contornos do debate sobre a delinqüência no Brasil e, conseqüentemente, sobre a infância e a juventude a serem “protegidas”, objetos preferenciais do saber criminológico.

Tal saber é evidenciado pela autora por meio do estudo de dois laudos solicitados pela Justiça. Um proferido para uma menina e outro, para um menino (os casos de Alice e Mário, independentes, estão entre as comparações mais impressionantes do livro). Os laudos naturalizam os comportamentos, “fixando os que são normais num e noutro sexo e classificando-os no discurso médico” (p.190). O saber médico (legal) respaldava a criação do desvio – ação fora da norma qualificada na patologia clínica –, migrando-o da ordem moral para a clínica. A perícia médica funcionava como uma guardiã da higiene sexual, medicalizando e criminalizando o sexo desviado de sua função procriativa, saudável.

Brito nos mostra como a própria pré-seleção do delito era imposta pelas relações de gênero, na medida em que certas práticas desviantes, na verdade, eram cometidas por meninos e meninas, mas classificadas de modo diverso. O que os pareceres e as sentenças não estavam preparados a permitir eram meninas em situações tidas como preferencialmente masculinas.

Um exemplo é a modalidade “perturbação da ordem”, instituída como um domínio reservado ao masculino, uma vez que corriqueiramente a rua – o espaço público – estava “estabelecida” como tal, enquanto na modalidade “inadaptação familiar” o número de transgressões femininas está “naturalizado”, pois passa-se para a esfera privada. Enfim, analisados e delimitados por critérios específicos a cada época, crianças e adolescentes têm a complexidade de seu “ser no mundo” reduzida a traçados lineares.

Contudo, as regras a que tal linearidade obedecia sofreram mudanças entre os anos 60 e o início dos 90. A autora não comete o erro de planificar os valores nas décadas estudadas.

Está, antes, interessada em como, em momentos distintos, embora próximos, o aparato regulador da “infância” lida com o paradoxo entre uma Justiça que institui para si o peso da modernização moral, ao passo que continua a reconduzir valores tradicionais instituídos às mulheres.

É certo que Brito salienta que as mutações, em muitos aspectos, só renovam alguns padrões de conduta historicamente defendidos. Ignorar que as relações de gênero impõem hierarquizações que estão para além daquelas “admitidas” pela lei – essa mesma viciada em dissimular tais hierarquias, mesmo nos dias atuais – é um alerta premente desse livro. De tal monta que a polêmica que mesmo hoje divide grupos feministas em torno do uso do sistema penal na luta pela defesa e pelo reconhecimento de direitos às mulheres deve ser evidenciada à luz das questões tratadas aqui. A autora põe em questão a eficácia de se acionar o sistema legal em favor da defesa dos direitos das mulheres, discutindo se esta prática, ao contrário, não seria promovedora de um quadro de aprofundamento das relações hierarquizadas de gênero. Pela conduta de sua pesquisa, a autora parece não crer que tal sistema – como ele se apresenta atualmente – seja capaz de garantir equidade.

Em muitos casos, como os próprios processos indicavam, eram famílias interessadas em desvincular-se daquela menor que não mais se adequava ao regime de menina da casa.

Jovens, algumas vezes crianças, trazidas do interior do país para trabalhar como domésticas sem receber salário, num dúbio jogo de exploração e tutela que, em determinado momento, era considerado indesejável. Tal questão mostra que o livro não se presta a maniqueísmos, pois aqui a autora indica como foi importante o papel do Juizado para desvelar esse jogo.

Às mulheres se perdoava, ironia discriminatória que atingia também as jovens de classe média que furtavam no comércio local. Elas eram, geralmente, enquadradas no chamado ‘descuido’, ou seja, na capacidade de pegar e não pagar por mera falta de atenção.

Ao examinar extensa documentação, a autora tomou o cuidado de questionar as determinações de produção, enquadrando-as num contexto histórico localizado, e evidenciou os procedimentos representados pela instituição. Exemplo: nos anos 60 e 70, o juizado de Menores de Brasília não possuía o aparato interdisciplinar de profissionais, previsto em lei, os quais deveriam apoiar as decisões tomadas; nem mesmo contava com instituições “corretivas”. Fatos que influenciavam as decisões e que fizeram muitos processos percorrerem uma cansativa rede burocrática, na esperança de que os problemas externos à demanda judicial fossem resolvidos antes de uma possível sentença.

São todas questões cruciais para quem quer compreender, a partir dos exemplos de Brasília, as determinações legais frente às relações de gênero. A autora não se furta a contextualizar o ambiente em que os documentos são gerados: “Profusão de imagens, Brasília era representada, ao mesmo tempo, como o espaço propício para a manifestação de uma sociabilidade que a fazia mais humana que a maioria das outras cidades (…) e lócus de manifestação do ‘perigo’ representado pela infância e pela juventude ‘desviantes’.”(p.154).

Tal abordagem confere ao livro mais esse atrativo. Além de interessar a estudiosos em gênero, ligados à história ou ao direito, há na pesquisa de Brito uma sutil, mas determinante, consciência do papel que essa “urbe”, tão exótica por sua constituição e história, ocupa na problemática. Brasília e os brasileiros vindos de todas as partes serviram a Brito para o elementar exercício de compreensão daqueles “poderes” que Foucault nos apresentou.

Mateus de Andrade Pacheco – Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília, com apoio do CNPq.


BRITO, Eleonora Zicari Costa de. Justiça e gênero: uma história da Justiça de menores em Brasília (1960-1990). Brasília: Editora Universidade de Brasília: Finatec, 2007. Resenha de: PACHECO, Mateus de Andrade. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.11, p.172-176, 2007. Acessar publicação original. [IF].

Cultura e poder / Estevão C. R. Martins

Professor de teoria da história e de história contemporânea na Universidade de Brasília – UnB, Estevão C. de Rezende Martins dedica-se aos estudos nos campos da teoria, filosofia e metodologia da história, história cultural moderna e contemporânea, e das relações internacionais, em particular da Europa ocidental. Publica em 2007, Cultura e poder, livro que busca situar o leitor em questões referentes à formação e organização dos Estados modernos e de suas relações externas. Nas palavras do autor, o livro segue uma “perspectiva teórico analítica em que são coordenados a preocupação filosófica com a engenharia conceitual e o prisma historiográfico, penhor de inserção empírica dos temas tratados” (p. 01).

O livro está dividido em sete capítulos que buscam apresentar ao leitor, inicialmente, os conceitos que o autor utiliza (como poder, idéias, cultura e ideologia), para em seguida, demonstrar como estes são utilizados para a construção das identidades e, conseqüentemente, das organizações sociais que originam os Estados. Durante a leitura da obra capítulos, nota-se que há quatro seções de análise que direcionam o livro. Essas podem ser divididas em: seção de conceituação (capítulos 1, 2 e 3), nos quais são apresentados os conceitos usados em todo o livro; análise da União Européia (capítulos 4 e 5), onde as idéias apresentadas pelo autor já foram trabalhadas e postas em prática, com relativo sucesso; e análise da América Latina (capítulo 6), utilizando-se de todo o escorço conceitual apresentando. O capítulo 7 tratará das perspectivas sobre o uso das idéias e o poder que exercerão no contexto da “mundialização”.1 Diversos são os campos de estudos e pesquisas que se dedicam à formação dos Estados e sua relação com as identidades sócio-culturais. Dentre esses, há de se destacar o campo da ciência Jurídica, da Ciência Política e das Relações Internacionais. E é por meio dos conceitos fornecidos por estas áreas do saber que Martins articula seus pensamentos utilizando uma perspectiva que se afasta da ciência da história e se aproxima da filosofia, do direito e das relações internacionais. Por meio de tais perspectivas e com base no instrumental teórico dos campos citados é que o autor inicia suas pontuações.

O que são idéias e como são capazes de mover sociedades, isto é, sua concepção e sua função, são as bases para os debates do primeiro capítulo. O autor trata as idéias com uma perspectiva do papel que desempenham no “contexto de redes culturais cuja resultante são as formas de poder na sociedade e no Estado que interferem na formulação e na prática de condutas individuais e sociais”. (p. 7) As idéias são apresentadas como uma forma de orientação do agir, destacando-se em três dimensões distintas: passado (interpretação), presente (explicação) e futuro (projeção). Tais dimensões orientam o pensar humano e a formação não apenas de idéias, mas de identidades – outro discussão que perspassa o livro todo. O debate sobre as idéias de poder é o que conclui o primeiro capítulo. Neste ponto, Martins apresenta diversos posicionamentos sobre as idéias de poder – Foucault, Carl Schmitt, Jean Bodin, etc. – mas deixa claro seu alinhamento com a concepção de Niklas Luhmann, que concebe o poder “como um jogo social de ações, que causam a partir de pressupostos não causais, que efetuam trocas com base em fundamentos não permutáveis, que jogam utilizando regras não colocáveis em jogo”. (p. 25) O poder da cultura e a cultura do poder são o mote do segundo capítulo. O autor emprega o termo cultura, no livro, de forma ampla, “diretamente vinculada à ação racional do homem” (p. 2), um fator dinâmico de ação, formação e transformação. O fundamento da cultura está no fato de que o homem precisa agir para poder viver.

Utilizando-se das concepções de Gordon Mathews, para Martins, a cultura está mergulhada em um “sistema de circulação de idéias e de produtos chamado mercado” (p. 30), e segue três vertentes: a individual, a coletiva (família, colegas de trabalho, torcedores de um time, etc.) e a pública ou estatal (sistemas de educação e de comunicação em massa). Por estas vertentes, o autor explicita a importância do conhecimento histórico, ou “cultura histórica”, pois esse é formador de identidades e está inserido em um mundo de signos, elementos distintivos pertencentes a uma “cultura”. “A cultura histórica é, então, a articulação de percepção, interpretação, orientação e teleologia, na qual o tempo é um fator determinante da vida humana”. (p. 33) Ao nascer, qualquer pessoa já está inserida em um mundo pleno de histórias, de signos e conceitos pré-concebidos, mas isso não significa precisar aceitá-los passivamente; ao contrário, ao adquirir consciência, conquista a capacidade de transformar estas idéias dadas em idéias e conceitos próprios. O indivíduo, grupo ou nação demonstram, desta forma, o poder da cultura. A construção e formação das identidades tomam boa parte desse segundo capítulo, pois para Martins, é o entendimento de si e de quem é o outro que propiciará a criação de laços entre os países, superando questões seculares, como ocorreu com a União Européia (UE). Ponto interessante, pois o autor toma a UE como um exemplo, guardadas as devidas proporções, que a América Latina deve seguir para superar desavenças e se impor de forma organizada.

O terceiro capítulo trata da ideologia. Neste ponto, o autor explicita que o entendimento de ideologia como “receita pronta” para uso rápido, simples e imediato, independente do conteúdo ou dos fins – colocadas de forma maniqueísta muitas vezes – deve ser superado. Atualmente deve-se observar a amplitude e abrangência das idéias, que escapam do simplismo das ideologias clássicas. É algo que pode estar em qualquer contexto, desde que nele haja a questão de ser, pensar e agir, que pode ser entendida como ideologia. Martins expressa que ideologia “é um instrumento prático polivalente, socialmente relevante e particularmente eficaz – embora de contornos difusos, quando ‘vivida’ de forma concreta pelas pessoas”. (p. 67) Após apresentar suas impressões sobre os conceitos elencados Martins passa a questionar essas concepções, o autor vai se lançar a questionar o poder da cultura na história européia e, conseqüentemente, como se pode buscar um fio condutor para a formação das identidades da Europa ocidental, o que facilitaria a convivência e formação de um bloco de países.

O capítulo quatro é dedicado a apresentar a história da Europa ocidental e como a formação das identidades foi diferente em relação aos europeus orientais. Para tal, lança mão das idéias sobre a expansão da fronteira na formação das identidades e do conceito de “grande fronteira” – teorias de Frederick Tuner e Walter Prescott Webb, respectivamente. Para Martins, “A percepção ou ‘estranhamento’ cultural entre diversos ‘outros’ que conviveram – e convivem – no espaço da(s) Europa(s) é um elemento importante na organização extrínseca (…) e intrínseca da identidade cultural européia…” (p. 83).

As questões do multiculturalismo e das identidades nacionais no conjunto Europeu é o tema do capítulo cinco. Nesse momento da obra é debatido o conceito de “linguagem da nação”, isto é, o discurso político nacional que integra três grandes dimensões: a razão modernizadora, a vontade mobilizadora e a justiça igualitária. Por meio desta “linguagem da nação”, deste discurso político nacional é que as nações modernas se organizaram. Para Martins a nação não é uma ideologia, mas um “produto, dentro de um território particular, das relações entre uma economia, uma cultura e um Estado dominados pelo princípio da racionalidade instrumental”. (p. 99) Por essa linguagem é que uma sociedade pode construir o passado como tempo ultrapassado (dimensão interpretativa), de modo a se distanciar e poder explicar o passado e ter perspectivas de futuro (projeção). Contudo, no decorrer da leitura, nota-se que essa linguagem, com bases muito mais históricas, perdeu sua força. A busca de uma nova linguagem deverá, segundo Martins, passar por uma (re)construção das consciências nacionais (no âmbito europeu), devendo se reorientar em busca de uma síntese democrática, o que evitaria os elementos contraditórios de nossa modernidade.

O sexto capítulo do livro volta-se para os debates sobre a formação de uma identidade cultural latino-americana. São expostas quais são as dificuldades para se fomentar uma identidade comum na América Latina. O primeiro passo é compreender que as sociedades européias são “sociedades originárias”, ou seja, foram criadas, originadas da vontade mobilizadora de um grupo, enquanto as sociedades americanas são “sociedades implantadas”, isto é, não foram originadas de uma vontade de um grupo, mas sim impostas por um grupo sobre outro. A partir desse pressuposto, Martins vai discorrer sobre a situação na América Latina e das dificuldades de uma articulação histórica, que contribua para uma identidade comum.

A parte final da obra é dedicada a uma discussão de possíveis perspectivas sobre os movimentos de “mundialização”, o uso e poder das idéias nesse contexto “A multipolaridade política e cultural apresenta-se como contraponto consolidável para viabilizar uma alternativa à unipolaridade econômica norte-americana ainda remanescente”. (p. 137) Com tal perspectiva, propõe que o mundo social deve se voltar para um entendimento da diversificação cultural interna, encarceradas nos Estados nacionais, pois a cultura serve como referência do agir humano, podendo influenciar na modificação das estruturas sociais vigentes.

O historiador convencional ao ler, Cultura e poder não encontrará uma obra nos moldes da ciência da história. Mesmo hoje, onde as fronteiras entre as disciplinas como filosofia, história, sociologia e relações internacionais, não possuem um limite claro – pois todas se utilizam de conceitos comuns, mas com usos específicos – pode-se dizer que o livro é direcionado para o campo das relações internacionais, como o próprio nome da coleção, Coleção Relações Internacionais, já mostra – e dos estudos que debatem a formação dos Estados nacionais e das relações de poder que emergem no interior dessas sociedades, através de uma perspectiva cultura.

Centra-se no contexto europeu, mas segue esse caminho para demonstrar como as idéias e os conceitos apresentados foram aplicados na Europa, suas conseqüências e os possíveis que a América Latina pode seguir para formar uma macro-identidade regional, respeitando as diferenças culturais – o que não ocorreu no velho continente, segundo Martins, pois os Estados foram criados, como que ignorando tais diferenças culturais, criando situações de conflito nos dias atuais, como nos Bálcãs ou na região basca. Contudo, sem se aprofundar no debate, o livro pode introduzir e situar o leitor no debate sobre cultura e poder.

A obra de Martins é extremamente interessante, já que ao introduzir e situar o leitor no debate sobre cultura e poder, centra-se no contexto europeu e segue essa trilha para demonstrar como as idéias e os conceitos apresentados foram aplicados na Europa, suas conseqüências e os possíveis caminhos que a América Latina pode seguir para formar uma macro-identidade regional, desde que respeitadas as diferenças culturais.

Notas 1 O autor usa o termo “mundialização”, expressão do universo da língua francesa, no sentido de “globalização”, mas com ênfase aos aspectos mentais, ideais e culturais.

Eric de Sales – Graduado em História pela Universidade de Brasília – UnB e mestrando pela UnB em História na Área de Concentração História Social. E-mail para contato: [email protected].


MARTINS, Estevão C. de Rezende. Cultura e poder. 2 ed. Revisada e ampliada. São Paulo: Saraiva, 2007. Resenha de: SALES, Eric de. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.11, p.167-171, 2007. Acessar publicação original. [IF].

Gênero, patriarcado, violência / Heleieth Saffioti

Publicado recentemente, em 2004, Gênero, Patriarcado, Violência parece ter sido concebido para ser uma espécie de “manual didático” que busca conceituar, sob a perspectiva de uma socióloga estudiosa das temáticas feministas, conceitos imbricados de paradoxos tais como gênero, patriarcado, poder, raça, etnia e a relação exploração-dominação.

A partir da utilização de conceitos formulados pela autora no correr de sua vida acadêmica, já que os temas em pauta fazem parte do universo de pesquisas de Saffioti desde os anos oitenta, a obra em análise se propõe a abrir novas perspectivas para o entendimento da violência contra as mulheres. Este tipo de violência, segundo a autora, consiste em um problema social cujo exame encontra-se entrelaçado aos estudos de gênero, raça/etnia, classes sociais e patriarcado.

Dividido em quatro seções de análises, a obra de Saffioti “destina-se a todos(as) aqueles(as) que desejam conhecer fenômenos sociais relativamente ocultos”(p.9), dentre os quais está a violência contra as mulheres, questão que perpassa todos os eixos de reflexão do livro em pauta.

As áreas da Saúde, Jurídicas, Ciências Sociais e Humanas têm se dedicado, mesmo que de forma tímida ou isolada, à compreensão dos mais diversos mecanismos de opressão das mulheres. Dada à diversidade e a multiplicidade de pesquisas que vem sendo realizadas em relação aos temas abarcados nesta obra, é possível observar que as articulações dos pensamentos da autora são perpassadas pela transversalidade de saberes. Assim, por meio de uma perspectiva reconhecidamente feminista e a partir do instrumental teórico do campo disciplinar no qual está inscrita é que partem suas pontuações. Com títulos de abertura dos capítulos considerados pouco comuns, tais como “a realidade nua e crua” e “descoberta da área das perfumarias”, a socióloga versa sobre temas específicos de forma a conceituar, em termos jurídicos e sociológicos, sobre os diversos tipos de violências (doméstica, de gênero, contra as mulheres, intra-familiar, urbana) existentes no caso brasileiro sob uma espécie de permissividade social.

Com essa profusão de novos conceitos, a releitura e a reinterpretação de teorias já existentes, acrescentando-se a instabilidade característica do fazer feminista, talvez não seja possível encontrarmos termos consensuais no contexto dos embates das correntes feministas.

A autora faz uma breve análise do cenário político-econômico brasileiro e constata que estes terrenos são, “certamente, a maior e mais importante fonte da instabilidade social no mundo globalizado”(p.14). Para ela, é sob a ordem patriarcal de gênero que devem ser feitas as análises sobre a violência contra as mulheres.

Recorrendo a referências obrigatórias no campo dos Estudos Feministas e de Gênero, tais como Carole Pateman, Gayle Rubin, Joan Scott, entre outras, Saffioti empreende uma escrita que varia entre pontuações extremamente coloquiais e outras passagens com reflexões importantes e densas para uma obra que pretende ser didática. Para o/a leitor/a desavisado/a, essas passagens requerem especial atenção, já que as análises da autora requerem uma leitura prévia dos conceitos discutidos. Exemplo disso é a utilização do conceito de poder formulado por Foucault que a socióloga utiliza sem maiores esclarecimentos acerca da perspectiva pósmoderna.

Influenciado pelas correntes do pensamento pós-moderno no qual estava inserido (construindo e desconstruindo suas perspectivas), ao refletir sobre outras maneiras de pensar, Foucault defende um amplo questionamento de conceitos caros a seu campo como a finalidade, a natureza, a verdade, os procedimentos tradicionais de produção do conhecimento histórico, as representações do passado com que operamos e os usos que fazemos de sua construção.

Outra questão que merece zelo na leitura são as discussões teóricas que Saffioti estabelece sobre diferentes perspectivas sobre os conceitos de gênero existentes. Vale destacar que, de natureza cultural e ideológica, os Estudos de Gênero introduziram a questão de gênero como categoria analítica e demonstraram como é ilusória a neutralidade dos valores ditos “universais”. Em sua prática interdisciplinar, articula – a partir de uma perspectiva “gendrada” – questões de raça, classe, etnia, bem como contribuições de vários eixos epistemológicos como a psicanálise, marxismo, antropologia, etc, buscando compreender a representação (histórico-cultural, literária) das mulheres, bem como sua contribuição neste processo.

Um ponto bastante interessante a ser ressaltado nesta obra, como se pode depreender da sua leitura, é que esta consiste no fruto de reflexões embasadas em dados empíricos e sobre pontos de referências a respeito das sobreposições parciais, as especificidades e diferenças entre as várias modalidades de violências existentes, fenômenos estes, demonstrados pela autora, que não são tão raros quanto o senso comum indica.

Consiste alvo de crítica da autora, em diversas passagens da obra, o uso político de uma diferença fundada nos argumentos do determinismo biológico e em normatizações feitas a partir de uma marca genital. Para ela, as pessoas são socializadas para manter o pensamento andrógino, machista, classista e sexista estabelecido pelo patriarcado como poder político organizado e legitimado pelo aparato estatal por meio da naturalização das diferenças sexuais.

Em relação à violência, tema que perpassa a maioria das reflexões da autora há que se considerar as sobreposições feitas por Saffioti sobre os conceitos e as especificidades de cada “fenômeno”, sua expressão para designar a violência. Ao mostrar os fatos em suas peculiaridades, a autora trabalha quadros teóricos de referência com vistas a orientar seu leitor. Assim, ela diferencia e explicita as características e os contextos em que ocorrem principalmente os seguintes tipos de violência: contra a mulher, de gênero, doméstica, intrafamiliar, entre outras. Nesse sentido, faz parte também das análises de Saffioti a ocorrência do “femicídio”, que, segundo ela, consiste na feminização da palavra homicídio e é um fenômeno infelizmente bastante recorrente, principalmente nos tempos atuais (p. 72-73).

No que tange ao significado da violência e todas as conseqüências que surgem da ocorrência deste fenômeno, a autora lembra que na sociedade patriarcal em que vivemos, existe uma forte banalização da violência de forma que há uma tolerância e até um certo incentivo da sociedade para que os homens possam exercer sua virilidade baseada na força/dominação com fulcro na organização social de gênero. Dessa forma, é “normal e natural que os homens maltratem suas mulheres, assim como que pais e mães maltratem seus filhos, ratificando, deste modo, a pedagogia da violência.” (p.74) Para Saffioti, a ruptura dos diferentes tipos de integridade, quais sejam, a física, a sexual, a emocional, a moral, faz com que se estabeleça a “ordem social das bicadas”, na qual o consentimento social para a conversão da agressividade masculina em agressão contra as mulheres, não é um fator que prejudica apenas as vítimas, mas também seus agressores e toda a teia social que convive ou é forçada, por inúmeros motivos, a suportar tal sujeição. como critério de avaliação de um ato como violento situa-se no terreno da individualidade e, dessa forma, cada mulher interpreta de forma singular esse mecanismo de sujeição aos homens. Segundo Saffioti, somente uma política de combate à violência (especialmente a doméstica) que se articule e opere em rede, de forma a englobar diferentes áreas (Ministério Público, juizes, polícia, hospitais, defensoria pública) pode ser capaz de ter eficácia no combate à violência.

As experiências da autora e a liberdade com que trata dos temas de forma a informar e/ou atualizar o leitor merecem atenção. Ao desvelar parte do processo de diferenciação sexuada, nas múltiplas configurações espaços-temporais, a autora expõe o caráter produtor e reiterador de imagens naturalizadas de mulheres e homens. Dessa forma, a obra pode ser considerada referência de leitura para as pessoas que se interessam pelas temáticas ligadas às questões de gênero, violência, patriarcado, e afins.

Uma vez que a literatura científica feminista tem sido constantemente obscurecida ou ignorada, este livro ressalta a importância no questionamento dos paradigmas científicos e da naturalização das formas de relações sociais que instituem o feminino e o masculino em uma escala de valores hierarquizada com vistas à desnaturalizar construções cristalizadas no imaginário e nas representações sociais sobre as desigualdades existentes nas relações entre homens e mulheres.

Trata-se de uma obra instigante, cuja leitura deve ser cuidadosa, que funda suas interpretações a partir do enfoque que entende o gênero como uma representação que produz e reproduz diferenças por meio da classificação dos indivíduos pelo sexo, os quais exigem abordagens e epistemologias específicas para suas análises.

Longe de ser um “manual didático” Gênero, Patriarcado, Violência apresenta conceitos já trabalhados pela autora em outros estudos, mas pode ser considerada uma referência bibliográfica atualizada para os/as interessados/as em estudos de Gênero e violências, já que apresenta importantes distinções das considerações anteriormente feitas aos deslocar o olhar do leitor para além do senso comum e das generalizações

Fabrícia F. PimentaGraduada em Direito, Mestre em Ciência Política pela UnB e doutoranda na UnB em História na linha de pesquisa “Estudos Feministas e de Gênero”. Apoio financeiro para a pesquisa: CNPq. E-mail: [email protected] / [email protected].


SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004, 151p. Resenha de: PIMENTA, Fabrícia F. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.10, p.190-193, 2006. Acessar publicação original. [IF].

O que é lesbianismo / Tania Navarro-Swain

O livro, O que é lesbianismo, editado pela Brasiliense em 2000, é uma edição de bolso da coleção ‘primeiros passos’, por isso, demonstra uma visão muito particular da autora com um posicionamento intelectual específico ao tema em pauta.

A autora inicia seu livro fazendo uma pequena advertência aos possíveis leitores: “quem estiver vestido no cimento de suas certezas não mergulhe nestas águas” (p. 9), pois a “arrogância dos paradigmas” e o “totalitarismo do senso comum” já tentaram petrificar o tema aqui em debate. O Discurso da autora transita pelas teorizações feministas e foucaultianas fazendo uma divisão do livro em três capítulos. O primeiro capítulo discute os indícios e interpretações da historiografia recuperando as discussões da epistemologia feminista para demonstrar a ‘desordem’ que o sujeito lesbiano causa ao conhecimento comum e científico, por isso, sua ocultação na historiografia tradicional. Com o título: ‘Nosso nome é legião: o espaço vivido’ o segundo capítulo demonstra a presença do sujeito lesbiano na literatura, nas teorizações e nas representações diversas. O último capítulo trata dos ‘Perfis Identitários’, ou seja, trata das atuais discussões sobre identidade empreendidas pelas teorias feministas e foucaultianas, discussões que não aceitam a identidade presa ao sexo e sexualidade e, propositivamente, a autora sugere o nomadismo identitário como contrapartida.

O que a história não diz não existiu é o título que inicia a discussão dos indícios e interpretações em história no primeiro capítulo, onde é problematizado o estatuto histórico, que apegado em modelos fixos, anulou a aparição das lesbianas por representarem uma contradição à “ordem natural da heterossexualidade dominada pelo masculino” (p.13). Cabe ao atual fazer histórico questionar, problematizar, na tentativa de buscar os significados e os valores das condutas humanas esquecidas pelas certezas da história-ciência do século XIX: “a história, dona do tempo, esqueceu que tempo significa transformação, esqueceu a própria história para traçar um só perfil das relações humanas” (p.14). Daí decorre que os indícios da história podem apontar outras culturas e civilizações onde as mulheres amavam-se umas às outras, pois masculino e feminino nem sempre tiveram a mesma conotação (p.16), embora o imaginário ocidental esteja marcado por Adão e Eva, representantes de dois pólos: a imagem de deus e a submissão, a sexualidade naturalizada, binária, formada por relações assimétricas, é também histórica (p.17).

Trabalha com uma concepção de História não-linear onde o papel de historiador é importante, pois seus olhos estão impregnados de valores e crenças atuais, seu papel não é desvendar algo que estava oculto, mas, interpretar os indícios, nos quais os fragmentos do passado atestam o real, segundo interpretações possíveis e as representações que constroem o mundo. A História é, então, mais um discurso, dentre tantos outros, onde os historiadores são mediadores entre o passado e a construção do conhecimento histórico atual. O papel da História é o de questionar, tentar apreender os significados e valores que orientam atos e gestos (p.14).

A heterossexualidade compulsória como regra universal determina os papéis sexuais do verdadeiro masculino e feminino, assim a tolerância quanto às práticas sexuais diversas depende do grau de hegemonia da heterossexualidade (p.17). Os filósofos da Antiguidade Grega são citados como marco entre razão e mito, mas, as práticas sexuais dos mesmos nem sempre são incorporadas aos seus discursos, ocultando-se os sentimentos elevados entre homens. E quanto às mulheres na antiguidade? O silêncio paira sobre a vida das mulheres atenienses, embora o confinamento delas em casa não signifique sua inexistência. A vida das mulheres em Atenas diferencia-se de Esparta, lugar onde elas viviam separadas dos homens.

Em Esparta, Tebas e Siracusa, sabe-se indiretamente, pelos atenienses, que as mulheres tinham maior liberdade, porém, no ocidente cristão a homossexualidade feminina “desaparece da ordem do discurso”, “não se fala, logo não existe” (p.19), pois ao nomeá-las cria-se uma imagem, cria-se uma personagem no imaginário social. Durante o período da Inquisição criase o termo “Sodomitas” para definir as mulheres que viviam ou estabeleciam algum tipo de relação afetiva ou sexual com o mesmo sexo, não possuem um nome nem mesmo direito à existência.

Serão os indícios da História capazes de recuperar essas vidas ocultadas? A oposição entre a representação normativa do feminino e as guerreiras, vistas como mito, por alguns dos grandes nomes da Historiografia, são tomadas como exemplo do apagamento daquilo que é tido como incomum (p. 21-22). O discurso transforma a mulher guerreira em ilusão, embora descreva eventos, datas e em alguns casos até nomes. Florestan Fernandes e Sérgio Buarque de Holanda descrevem as amazonas como paródias do homem e o homem como referente da força, do combate, do ataque, da independência. A historiografia como memória social pode naturalizar comportamentos? E quanto à homossexualidade feminina? Porque a história oculta povos matriarcais e comunidades de mulheres guerreiras relegando-as a paródias do masculino? A história colabora na construção de um modelo de feminino, tipo frágil e submisso, naturalizando os comportamentos e criando representações sociais regidas pela ordem patriarcal, como o discurso ideológico dos museus que colabora no ideário da evolução histórica na passagem do primitivo para o civilizado, do matriarcado para o patriarcado. A poeta Safo de Lesbos serve como exemplo das regras da heteronormatividade, ou seja, é necessário enquadrá-la nos parâmetros do binário homem/mulher para caracterizá-la, mesmo sabendo da beleza de sua poesia, é necessário discursar sobre sua sexualidade: Horácio dirá que Safo era máscula, Ovídio relata seu suicídio após ter sido abandonada por um homem (p.30-32).

Na discussão da identidade atrelada ao sexo Foucault mostra como a taxionomia imprime-se às coisas e modela os seres conforme a divisão binária e hierárquica da sociedade.

Mas a autora pergunta: a reprodução sempre ordenou o mundo? Sempre ordenou as relações? (p.35). Para lembrar que os discursos são construídos em suas “condições de saber”, Navarro- Swain cita Hadcliff Hall, que escreveu sobre o amor trágico entre mulheres (p.40) e Nathalie Clifford Barney, escritora norte-americana, que viveu na França, amou exclusivamente inúmeras mulheres e morreu aos 95 anos, publicou muitos livros, organizou a Academi dês Femmes.

Para Navarro-Swain a história das mulheres está por ser desvendada: “o que a realidade social não retêm perde a espessura da realidade” (p.50). Simone De Beauvoir mostra-se indecisa quanto ao lesbianismo, mas por fim toma-o como escolha existencial. Para a autora ela é arauto do feminismo, fundadora das teorizações e ainda assim cai em contradição quanto ao tema do lesbianismo. Algumas falas de Beauvoir demonstram o poder da representação social no discurso e no imaginário quando a autora reafirma a natureza feminina em oposição à virilidade lésbica e recai no modelo binário.

Mas enfim, se na idade média a sexualidade está associada ao silêncio, a repressão e a procriação na modernidade a homossexualidade será tratada como doença ou crime. A ciência e a jurisdição irão separar a boa da má sexualidade. E para tal a psicanálise torna-se um dos mecanismos para elucidar a evolução sexual e demonstrar que o sexo natural é a heterossexualidade.

Mathieu, Monique Wittig, Nicholson, Gayle Rubin são algumas das teóricas feministas citadas que discutem o lesbianismo na tentativa de ancorá-lo para além do binário. As representações do mundo são duplas: vida/morte, bela/feia, assim “a verdadeira mulher é diferente da prostituta e da lésbica”, a segunda é preservada na ordem do sistema e a última apagada dos discursos. Para a autora: “a inversão da ordem não representa revolução dos costumes” (p.66), hoje as revistas, o cinema, os direitos demonstram uma maior proximidade entre os homossexuais, mas, o homem ainda quer manter o lugar dominante. Por isso o livro O que é Lesbianismo vem abrir um caminho para pensarmos o tão temido tema da homossexualidade feminina, quem sabe sacudindo as evidências e modificando as representações, sem emitir uma resposta uniformizante ao que seja uma lesbiana.

Patrícia Lessa – * Patrícia Lessa – Mestrado em Filosofia da Educação (UNICAMP/SP), doutoranda em Estudos Feministas (UnB/DF). Professora na Universidade Estadual de Maringá/UEM – PR.


NAVARRO-SWAIN, Tania. O que é lesbianismo. São Paulo: Brasiliense, 2000. 101p. Resenha de: LESSA, Patrícia. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.9, p.150-153, 2005. Acessar publicação original. [IF].

Em Tempo de Histórias | UnB | 2002

Em tempo de Historias UnB Tempo de Histórias

Em Tempo de Histórias (Brasília, 2002-) é uma revista editada pelo corpo discente do Programa de Pós-Graduação em História da UnB. Publicada desde 2002, está abrigada no Portal de Periódicos Acadêmicos da Universidade de Brasília e disponibiliza suas edições on-line, com acesso livre e gratuito.

A revista não cobra taxas de autores/as para realizar avaliação, edição e publicação de seus textos. Seus objetivos são os seguintes:

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