Indicionário do contemporâneo – CÁMARA et al (A-EN)

CÁMARA, Mário; KLINGER, Diana; PEDROSA, Celia; WOLFF, Jorge. Indicionário do contemporâneo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018. Resenha de MANZONI, Filipe.  Some possible journeys for reading the Indicionário do contemporâneo. Alea, Rio de Janeiro, v.21 n.1, jan./apr., 2019.

É conhecido o diagnóstico, lançado por Flora Sussekind em 2013, de uma emergência de “formas corais” na produção literária brasileira, textos marcados pela “constituição de uma espécie de câmara de ecos na qual ressoa o rumor (à primeira vista inclassificável, simultâneo) de uma multiplicidade de vozes” (SUSSEKIND, 2010). Flora nos diz ainda que nessas formas seria característica uma interrogação simultânea “tanto da hora histórica quanto do mesmo campo da literatura” (idem). Se nos for permitido o pressuposto de que a relação entre literatura e crítica não é de precedência mas de mútua contaminação, não é de impressionar que é contemporânea à emergência das “formas corais” a gestação de uma verdadeira “forma coral” da crítica, isto é, o trabalho de escrita do Indicionário do contemporâneo.

O projeto, bem como o processo de sua escrita, são deslindados na apresentação, “Um indicionário de nós”, assinado pelos quatro organizadores do volume, Celia Pedrosa, Diana Klinger, Jorge Wolff e Mario Cámara: trata-se de uma coletânea de ensaios escritos e reescritos ao longo de quatro anos por múltiplos pesquisadores e críticos da América do Sul. O marco inicial desse encontro, um simpósio proposto para o X JALLA – Jornadas Andinas de Literatura Latinoamericana intitulado“Políticas literárias do contemporâneo”, parece ter sinalizado para essa zona de ressonância entre conceitos recorrentes e pontos comuns de inquietação que foram, conforme nos conta ainda a apresentação, gestados durante oito meses pelos catorze pesquisadores que assinam, coletivamente, o livro. Desse processo de mapeamento de afinidades, seis verbetes “que incidem de modo decisivo sobre o pensamento das artes e literaturas atuais” se estabilizaram como núcleos conceituais e deram corpo à versão final do volume: “Arquivo”, “Comunidade”, “Endereçamento”, “O contemporâneo”, “Pós-autonomia” e “Práticas inespecíficas”.

Dois pontos no Indicionário parecem falar a partir de umaindistinção entre as proposições teórico-críticas e a própria metodologia e construção da obra. Em primeiro lugar, desde seu título, encontramos a marca de uma profunda ambivalência: se o texto de apresentação evidencia a ambivalência do prefixo “in-” – que supõe “insubordinação, insatisfação, inquietação, independência” (CÁMARA; KLINGER; PEDROSA; WOLFF, p. 7) mas joga também com o significante “índice ao postular uma leitura-escritura indicial das linguagens e dos conceitos em cena” (idem) -, o volume como um todo parece levar essa ambivalência alguns passos além. De fato, a sobreposição de um “in-dicionário” a um “indício-nário”, ela mesma baseada na homonímia de dois radicais latinos “in-”, um de negação outro de direcionamento, poderia ser tomada como uma marca comum de todos os ensaios. Encontramos, a cada verbete, uma espécie genealogia aberta do conceito abordado, genealogia que esbarra sempre em sua própria incompletude e impossibilidade de fechamento – em um “indicionarizável”, portanto -, mas que nos leva a uma mobilização, isto é, a direcionamentos possíveis – ou indícios – que sobrevivem enquanto potência ou possibilidade.

O segundo ponto que caberia destacar é o quanto todos os tópicos propostos parecem falar não apenas dentro de seu próprio ensaio, mas também através da própria estrutura do livro. Desnecessário sublinhar, por exemplo, o quanto a discussão a respeito da “Comunidade” – em seu percurso que vai da retomada etimológica e filosófica de Roberto Espósito até a proposição de um ator político proposto enquanto “multidão”, via Antonio Negri, Michael Hardt e Paolo Virno, passando ainda, entre outros pontos relevantes, pela ontologia do “com” de Jean-Luc Nancy e pela comunidade que vem de Giorgio Agamben – está na base da própria proposição do “escrever com” que marca o Indicionário. A alternância de grupos fez com que os estilos pessoais de cada pesquisador não sejam mais do que vestígios suspeitos, não autorizados por nenhuma delimitação autoral: todos os textos (exceções feitas à apresentação, assinada pelos organizadores, e ao posfácio, assinado por Raúl Antelo) são potencialmente de todos os pesquisadores, isto é, de Antonio Andrade, Antonio Carlos Santos, Ariadne Costa, Celia Pedrosa, Diana Klinger, Florencia Garramuño, Jorge Wolff, Luciana di Leone, Mario Cámara, Paloma Vidal, Rafael Gutiérrez, Raúl Antelo, Reinaldo Marques e Wander Melo Miranda.

No que toca ainda aos itinerários propostos dentro de cada ensaio, novamente a metodologia parece dizer tanto quanto a proposição teórica a respeito de um modo específico de lidar com o “Arquivo”, tema que abre o Indicionário. Parece interessar, mais do que a figura do “leitor autoritário, organizador que procure dar um sentido fixo ao conjunto” (ibidem, p. 24), uma espécie subversiva de “leitor nômade”, que circula pelos textos “estabelecendo novas redes, abrindo os sentidos” (ibidem). Caberia observar que nesses trajetos alguns caminhos são mais recorrentes, dando uma impressão algo monadológica, na medida em que no interior de cada verbete parecem habitar os demais conceitos, em uma espécie de rede de associações potenciais.

É assim, por exemplo, no ensaio sobre o “Endereçamento”, em que, a partir de uma leitura da importância dos pronomes pessoais a partir da produção de Ana Cristina Cesar, encontramos uma ameaça ao estatuto autônomo da literatura (que ressoaria no verbete “pós-autonomia”), bem como a proposição do endereçamento como “problema epistemológico e ético de como ter acesso à alteridade, sem se fechar numa forma autorreferencial” (idem p. 107), o que nos levaria também ao tópico da comunidade, via Jacques Rancière e Nicolas Bourriaud.

Os percursos possíveis no Indicionário interessam, portanto, tanto quanto possam ser remontados, repensados, e reorganizados por esse “leitor nômade”, figura que abre ainda o ensaio sobre o “Contemporâneo”, a partir de uma desestabilização moderna do espaço institucional da arte, tópico que nos levará a uma leitura de diversas instalações artísticas, tomadas enquanto práticas inespecíficas (nome também do último ensaio do volume, no qual a proposição de um “campo estendido” de Rosalind Krauss se desdobra em ferramenta para a análise de diversas obras contemporâneas que ameaçam a estabilidade de um campo literário). É a partir desse tensionamento do campo literário e da representação do presente histórico que chegamos a uma potência de anacronismo em figuras como Nietzsche, Didi-Huberman ou Agamben, autores que farão do “contemporâneo” um arquivo aberto do histórico, uma zona de constante formulação, impasse e reformulação do histórico.

Caberia ainda ressaltar que, se o tom da proposta do Indicionáio parece, em diversos momentos, trazer uma noção panorâmica ou enciclopédica, em especial pela amplitude das implicações de alguns dos verbetes escolhidos, isso não se dá mediante o sacrifício da riqueza de detalhes. De fato, se nos voltarmos para as notas – somando-se as de todos os fragmentos, quase trezentas -. estas deslumbram pela riqueza de caminhos que se abrem em uma espécie de microscopia dos “indícios” que se permitem ler a partir das catorze bibliotecas que coabitam (e assinam) a obra.

Também parece resistir à planificação sob um argumento “panorâmico” a atenção dada ao que poderíamos chamar de uma das questões centrais, ou, ao menos, a mais recorrente dentro do Indicionário: os desdobramentos e reavaliações da noção de pós-autonomia. O ensaio específico, “Pós-autonomia”, faz um levantamento minucioso das diferentes acepções do polêmico conceito proposto por Josefina Ludmer em 2006, desdobrando suas múltiplas implicações em diferentes contextos que vão desde a literatura contemporânea sul americana, sua recepção crítica, as artes plásticas no presente, mas também a própria estabilização e pacificação de um conceito de “modernidade”. Encontramos ainda, juntamente com esse desdobramento das implicações críticas da questão, um levantamento de algumas das respostas polêmicas ao conceito que, em última instância, atenta contra a própria possibilidade de circunscrição de um campo que identifique um “literário” em oposição a um “não literário”, percurso que nos conduzirá por uma dupla reação: uma postura de retomada elegíaca de uma institucionalidade perdida ou ameaçada, a partir de teóricos como Antoine Compagnon ou Tzvetan Todorov; em contraposição a uma dinamização da ameaça a essa estabilidade institucional, em figuras como Jacques Rancière ou Bruno Latour.

É no centro dessa polêmica que se insere ainda o posfácio do livro, único ensaio assinado por um único autor, Raúl Antelo. O ensaio, originalmente uma conferência intitulada “Autonomia, pós-autonomia, an-autonomia” apresentada no segundo encontro do grupo de pesquisa, em 2013, aparece aqui como “Espaçotempo”, e traz um segundo mapeamento da proposição de Ludmer da pós-autonomia (após uma raiz comum ao verbete “pós-autonomia” via Kant – Adorno), detendo-se na relevância do questionamento da autonomia nas teorias da esquerda italiana da década de 70 (discussão da qual Ludmer seria herdeira). Finalmente, após uma retomada da questão do espaçotempo e da quarta dimensão, percurso que vai desde Ouspensky até as clássicas investigações benjaminianas sobre o cinema e a aura na década de 30, chegamos a uma ressonância entre Ludmer e Benjamin, ponte especialmente contemporânea, já que sobrepõe duas polêmicas longes da pacificação. A partir do temor de alguns possíveis desdobramentos políticos nefastos da aceitação da pós-autonomia (que ressoam o temor benjaminiano da apropriação fascista da potência revolucionária do cinema), Raúl Antelo propõe, em um tom cuidadoso, uma renovação do “crédito ao conceito de autonomia, mesmo que em plano reconfigurado, digamos, an-autonômico” (ibidem, p. 252). Cabe ressaltar o quanto esse final, ou mais especificamente, esse prefixo de negação “an-”. Parece ressoar ainda o “in-” que dá título ao volume, em especial porque ao mesmo tempo que aponta para o estatuto aporético da questão – ou seja “in-dicionário” -, se abre enquanto espaço de apostas – ou seja, para os “indícios”.

Cabe, finalmente, nos permitirmos uma última palavra sobre um ponto que não pode ser deixado de lado quando nos referimos a essa empreitada crítica de tantos pesquisadores. E o que nos interessa ressaltar é precisamente o quanto essa ambivalência que vem desde o título do volume nunca se furta a manter aberto o contemporâneo como um espaço de apostas mais do que do esgotamento. Encontramos, por exemplo, no ensaio sobre “o contemporâneo” uma contraposição ao escuro catastrófico que se resguarda ainda à possibilidade de uma aposta nas sobrevivências, isto é, um pouco de Didi-Huberman contrabalanceando o peso de Giorgio Agamben. Encontramos, ainda, em toda a discussão sobre o “endereçamento”, uma via de escape do fechamento do moderno em um modelo autorreferencial e intransitivo (ou novamente autonomista) a partir de uma abertura ao outro, a uma investidura ainda possível em um pensamento da comunidade, um pensamento que se funda no impróprio, na impropriedade radical, o que, novamente, parece espelhar, mais que teoricamente, metodologicamente o dispositivo crítico do Indicionário.

Referências

CÁMARA, Mário; KLINGER, Diana; PEDROSA, Celia; WOLFF, Jorge (Org.). Indicionário do contemporâneo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018. [ Links ]

GARRAMUÑO, Florencia. Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea. Trad. Carlos Nougué. Rio de Janeiro: Rocco, 2014. [ Links ]

LUDMER, Josefina. “Literaturas pós-autonomas”. In: Sopro Panfleto Político cultural. Trad. Flávia Cera. Desterro: Cultura e Barbárie, 2010, p. 1-4. Disponível em: <Disponível em: http://culturaebarbarie.org/sopro/n20.pdf >. Acesso em: 16 jul 2018. [ Links ]

SUSSEKIND, Flora. Objetos verbais não identificados. O Globo, v. 21, Rio de Janeiro, 2013. Disponível em <Disponível em https://blogs.oglobo.globo.com/prosa/post/objetos-verbais-nao-identificados-um-ensaio-de-flora-sussekind-510390.html > Acesso em 15 de março de 2019. [ Links ]

Recebido: 27 de Abril de 2019; Aceito: 31 de Agosto de 2019

Filipe Manzoni. É Doutor em literatura pelo programa de pós-graduação da Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente realiza pesquisa de pós-doutoramento sobre poesia contemporânea brasileira na Universidade Federal Fluminense e leciona literatura brasileira na Universaidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

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Cidades e cultura política nas Américas – MORSE; DOMINGUES (RBH)

MORSE, Richard. DOMINGUES, Beatriz Helena. Cidades e cultura política nas Américas. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2017. 277p. Resenha de: CASTRO, Ana Claudia Veiga de. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.38, n.77, jan./abr. 2018

Mais conhecido no Brasil por ter publicado nos anos 1980 o livro O Espelho de Próspero (Morse, 1988), uma polêmica tese sobre as duas Américas, o historiador norte-americano Richard Morse também é o autor de uma série de ensaios sobre as cidades latino-americanas e o papel do pesquisador social. É um conjunto expressivo desses ensaios que vem agora a público no volume organizado pela historiadora Beatriz Domingues: Cidades e cultura política nas Américas. O livro reúne textos escritos por Morse entre 1954 e 1992, meio século de uma intensa produção intelectual enquanto era professor e pesquisador de algumas das principais universidades norte-americanas.

Morse iniciou seu percurso acadêmico nos anos 1940, e após graduar-se em História na Universidade de Princeton veio ao Brasil, em 1947, para realizar a pesquisa de campo de seu doutorado em Columbia, sob orientação do antropólogo Frank Tannenbaum. Interessado em compreender como uma pequena vila sem grande importância no sistema colonial português vinha se tornando a principal metrópole latino-americana, Morse passou mais de um ano em São Paulo, onde travou relações duradouras com Antonio Candido e seu grupo na Universidade de São Paulo, encantando-se pelo Modernismo e pela vibração daquela metrópole em formação. O resultado da tese foi o livro Formação Histórica de São Paulo: de comunidade à metrópole, publicado pela primeira vez nas comemorações do IV Centenário de São Paulo, com o título De comunidade à metrópole: a biografia de São Paulo, e republicado em 1970 na famosa coleção Corpo e Alma do Brasil, dirigida por Fernando Henrique Cardoso (Morse, 1954Morse, 1970). A obra tornou-se um clássico da história urbana de São Paulo, podendo também ser lida como um esquema de interpretação sobre a forma de desenvolvimento da cidade capitalista no mundo ibero-americano e, talvez, como vislumbre de uma outra modernidade. Pode-se dizer que essa tese (e sua experiência em São Paulo) abriu os olhos de Richard Morse para o problema da urbanização latino-americana e para a cultura urbana em geral – definindo a importância dessa perspectiva analítica para seu entendimento do mundo social -, resultando em textos, intervenções e organização de livros.

Parte dessa produção é agora publicada: nunca traduzidos e de difícil acesso ao pesquisador brasileiro, estes artigos podem ser lidos de maneira complementar aos trabalhos de maior fôlego do pesquisador, desenhando o percurso de seu pensamento ao longo dos anos e revelando a erudição e a perspicácia de um intelectual que não se contentava com visadas ortodoxas, buscando escapar da ideia de modelos e desvios, valendo-se da compreensão de sistemas de pensamentos.

O primeiro desses ensaios, “Rumo a uma teoria de governo para a América Espanhola”, publicado ainda em 1954 no Journal of History of Ideas, recupera a presença hispânica na América e discute as heranças medieval e renascentista na formação do novo continente, sobretudo nas suas cidades, indicando a impossibilidade de se lidar com as nações de origem ibérica na América seguindo a régua da América anglo-saxã, formada desde uma origem diversa não apenas espacial, mas também temporal. O ensaio anuncia um tema que Morse revisita ao longo da carreira e que encontra sua forma final no já citado Espelho de Próspero.

Em seguida, “São Paulo desde a independência: uma interpretação cultural”, publicado no mesmo ano, desta vez na Hispanic American Historic Review – a mais importante publicação dos estudos históricos latino-americanos nos Estados Unidos -, apresenta uma espécie de síntese de sua tese sobre São Paulo e introduz o leitor à compreensão das cidades a partir de uma mirada cultural. Num momento em que os pesquisadores se debruçavam sobre os problemas advindos da intensa urbanização das cidades latino-americanas – que sem o necessário lastro na industrialização resultava num conjunto expressivo da população empregado nas margens do sistema, abrigado em imensas áreas periféricas sem infraestrutura urbana adequada -, Morse indicava a potência da cultura para o conhecimento dessas cidades, e a própria importância das cidades, com suas instituições culturais, para que se pudesse tratar “de forma eficaz [até mesmo] os insistentes problemas agrários da América Latina” (p.106). Esta última afirmação do ensaio evidencia como, para Morse, o trabalho intelectual não era desprovido de intenções, comprometendo-se, ao fazer história, a discutir o desenvolvimento do subcontinente, em diálogo com pesquisadores como Robert Redfield e Oscar Lewis, que se dedicavam naqueles anos à compreensão das especificidades do fenômeno urbano latino-americano.

Dois outros ensaios publicados na mesma Hispanic American Historic Review, “Algumas características da história urbana da América Latina” (de 1962) e “Prolegômenos para a história urbana da América Latina” (de 1972), foram escritos quando Morse era professor de História da América Latina, primeiro na Universidade do Estado de Nova York e em seguida em Yale, onde se envolveu em diversas ações para a consolidação da história urbana como uma disciplina, participando de congressos, coordenando simpósios, organizando volumes – entre os quais, alguns trabalhos com o argentino Jorge Enrique Hardoy que geraram aportes decisivos ao campo.

No primeiro, Morse retoma ideias trabalhadas em um texto publicado em 1957 na revista Estudios Americanos, “La ciudad artificial”, escrito como comentário da mesa “Expansão urbana na América Latina durante o século 19”, em uma reunião da American Historical Association no qual anunciara a cidade na América Latina como algo “artificial” ao ser lida à luz da história urbana europeia. Já ali Morse defendia a necessidade de uma história cultural urbana como a única forma de não ver a América Latina como desvio da “civilização ocidental”. Mas se havia especificidades em relação à urbanização europeia e também à da América anglo-saxã, havia um paradoxo que valia tanto para a América do Norte quanto para a do Sul: “que a cidade, notória na Europa por seu raio comercial e por sua atividade manufatureira, serviu, no Novo Mundo, como ponto de partida para o contato com o solo, em territórios onde nenhuma rota de comércio interno havia sido definida e onde a manufatura era restringida pelas políticas do mercantilismo” (p.135). Isso teria feito do espaço, e não do tempo, “o principal fator da experiência americana”, tornando a cidade na América uma força centrípeta. Com isso, Morse anuncia a urbanização latino-americana como chave para a compreensão dos sentidos da América. E que, se quisermos lembrar, seria o mote de Ángel Rama em seu fundamental La ciudad letrada (1984): o reconhecimento do papel das cidades (e das letras) na constituição da América Latina (Rama, 1986).

No segundo ensaio, discutindo com uma bibliografia clássica que ia de Henri Pirènne a Max Weber, Morse uma vez mais trabalha a especificidade da urbanização latino-americana desde sua origem, recuando desta vez aos primórdios da urbanização na Europa, a polis grega, de modo a definir a gênese mesma da cidade enquanto instituição política e social, para compreender o papel das cidades na constituição dos Estados nacionais modernos europeus. Buscando definir caminhos para construir uma história urbana latino-americana, não teve receio em enfrentar outros pesquisadores, recuperando e debatendo com suas teses de modo a indicar os “furos”, as incongruências, e mais que tudo, um eurocentrismo de fundo que impedia um olhar menos formatado para a América Latina. Em tempos de Cepal e de outros órgãos que enfrentavam questões latino-americanas para a construção de sua autonomia, Morse se colocava como um interlocutor importante àqueles que queriam formular um pensamento próprio do e para o subcontinente.

Completando o volume, a resenha de um livro publicado nos anos 1960, o texto “O antropólogo como consultor político”, e por último o ensaio “Cidades como pessoas”, publicado na obra Rethinking the Latin American City, organizada com Hardoy já em 1992, espécie de balanço de seu pensamento sobre o papel das cidades e as diferenças e as aproximações entre os modelos urbanos do norte e do sul.

Vale destacar que os textos de Morse são precedidos por um ensaio de fôlego da sua organizadora, Beatriz Domingues, que conheceu o pesquisador em 1991. Sua apresentação introduz o leitor aos temas de eleição de Morse e propõe uma sistematização de sua trajetória a partir de um “pressentimento metodológico”, como ela diz, adaptando as etapas de um trabalho do pedagogo Alfred North Whitehead para organizar sua obra em três fases. A historiadora já havia nos oferecido uma série de textos críticos sobre Richard Morse no livro organizado com Peter Blasenheim, O Código Morse: ensaios sobre Richard Morse (2010), também editado pela UFMG (Domingues; Blasenheim, 2010). Aqui, dá início ao trabalho de publicização dos escritos do autor e já anuncia sua continuação em um segundo volume. As traduções bem cuidadas, feitas pela jornalista Maria Bitarello (filha de Beatriz e que conheceu Morse na infância), garantem uma leitura fluida e agradável. O livro conta também com uma apresentação do jornalista Matthew Shirts (ex-aluno de Morse em Stanford) e um posfácio da historiadora Helena Bomeny, autora de uma entrevista com o historiador no final dos anos 1980 (Bomeny, 1989). A edição, que traz ao final a cronologia das obras de Richard Morse, é portanto muito bem-vinda, pois oferece um importante material para pensarmos nosso lugar no mundo, sobretudo hoje, neste momento crucial de definição de caminhos. Vale a pena ler, conhecer e refletir.

Referências

BOMENY, Helena. Uma Entrevista com Richard Morse. Estudos Históricos, Rio de Janeiro: Ed. FGV, v.2, n.3, p.77-93, 1989. [ Links ]

DOMINGUES, Beatriz; BLASENHEIM, Peter (Org.) Código Morse: ensaios em homenagem a Richard Morse. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010. [ Links ]

MORSE, Richard. De comunidade a metrópole: biografia de São Paulo. Trad. Maria Aparecida Madeira Kerberg. São Paulo: Comissão do IV Centenário, 1954. [ Links ]

_____. O Espelho de Próspero: cultura e ideias nas Américas [1982]. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. [ Links ]

_______. Formação histórica de São Paulo: de comunidade a metrópole. Trad. complementares Antonio Candido. São Paulo: Difel, 1970. [ Links ]

RAMA, Ángel. A cidade das letras [1984]. Trad. Emir Sader. São Paulo: Brasiliense, 1986. [ Links ]

Ana Claudia Veiga de Castro – Universidade de São Paulo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. São Paulo, SP, Brasil. E-mail: [email protected].

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Arquivos literários: teorias, histórias, desafios – MARQUES (A-EN)

MARQUES, Reinaldo. Arquivos literários: teorias, histórias, desafios. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015. Resenha de: COELHO, Haydée Ribeiro. Arquivos literários: teorias, histórias, desafios. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2015. Alea, Rio de Janeiro, v. n.  jan./apr. 2017.

Arquivos literários, comparativismo e outras navegações

O livro que resenhamos, do professor e pesquisador Reinaldo Marques, decorre de reflexões teóricas, da prática de pesquisa em acervos e de sua experiência administrativa como diretor do Centro de Estudos Literários e Culturais da Faculdade de Letras da UFMG. Quatro dos nove ensaios que compõem o livro trazem nos títulos o termo “arquivos literários”. Qual o sentido de arquivo literário? Como conceituá-lo? Na “Apresentação”, o autor afirma ser um conceito que “resultou numa ficção teórica para ficar num registro borgiano” (p.10) e “como produto de uma atividade especulativa (…) remete a um objeto mais imaginado e ideal nem sempre localizável no mundo empírico” (p. 11).

Na exposição sobre o arquivo e a Literatura Comparada (“Arquivos Literários e reinvenção da Literatura Comparada”), parte da perspectiva de Spivack diante dos rumos da Literatura Comparada na contemporaneidade, destacando, entre outros, aspectos como a tradução e o diálogo transdisciplinar, o que o leva a ressaltar ainda o sentido da literatura comparada como “multilíngue”. A partir das questões do comparativismo, propõe pensar no “arquivo literário” e “no pesquisador comparatista no arquivo” (p. 18). Em relação ao primeiro aspecto, são objeto de consideração os sentidos topológico e monológico do arquivo; sua desterritorialização e reterritorialização (que se dá na passagem do privado ao público) e o limiar do privado ao público. A “feição heterogênea” dos “fundos documentais” e a abordagem transdisciplinar, que requer metodologias da arquivologia, da museologia e biblioteconomia, são alguns dos pontos que propiciam o estudo do “arquivo literário” sob a perspectiva do comparativismo.

A reflexão teórica sobre o arquivo, advinda de saberes diferentes como Filosofia, Política e, ainda, Estudos culturais, suscita a noção de “arquivo literário” como “espaço aberto e inacabado, zona de contato e relações entre distintas temporalidades e subjetividades, capaz de percorrer descontinuidades e estranhamentos em relação ao tempo presente, a ativar anacronismos potencialmente problematizadores da racionalidade arcôntica, estatal e científica, da evidência histórica, que normalmente rege o arquivo” (p. 22).

Se, por um lado, o arquivista é responsável por zelar pelos documentos, normalizar, hierarquizar, armazenar e recuperar os dados nos arquivos, cabe ao pesquisador comparatista “desconstruir a ordem estabelecida (…) a intencionalidade que a estruturou” (p. 25). Tornando-se um “anarquivista”, o pesquisador comparatista está atento aos jogos que envolvem o poder e o saber, torna-se um “genealogista” (o que remete ao sentido de arquivo para Michel Foucault). É importante salientar que a proposta do autor dos ensaios, conforme esclarece em nota, anarquizar não corresponde a “bagunçar” o arquivo, mas interpretar os documentos, estabelecendo outras lógicas, outros deslocamentos que podem ser realizados com base nas tendências do comparativismo contemporâneo.

O segundo ensaio do livro, “Arquivos literários, entre o público e o privado”, está dividido nas seguintes seções: Arquivos de escritores: desterritorializações e reterritorializações; O público e o privado: rasuras; O arquivo do escritor no espaço privado; e O pesquisador, o arquivo, a lei. Nos primeiros parágrafos do estudo, há o questionamento da crítica textual, tendo em vista outras abordagens como a pós-estruturalista e aquela desenvolvida pelos estudos culturais. Essas tendências, aliadas aos estudos já existentes sobre os arquivos, podem trazer contribuições inovadoras, como fica comprovado ao longo dos nove ensaios de Arquivos literários: teorias, histórias, desafios.

Ao ser evidenciada a diferença entre a noção de “arquivo literário” daquela de “arquivo do escritor”, é ressaltado que este “ganha visibilidade na cenografia do arquivo literário, exibindo máscaras da persona autoral” (p. 35). Na comparação entre posições críticas (de Michel Foucault e de Jacques Derrida), é observado que a concepção de arquivo para o primeiro é “mais acentuadamente discursiva” (p. 36). Para o segundo filósofo, o princípio institucionalizador do arquivo está marcado pelo “lugar de consignação”. O poder arcôntico da interpretação faz com que Reinaldo Marques trate das relações entre a retórica e os arquivos. A explicitação dos sentidos de “mal de arquivo” expõe as singularidades da teoria derridiana.

A noção de “arquivo do escritor” suscita reflexões sobre o público e o privado, abrindo espaço para um campo amplo de indagações. O autor do estudo toma como referência textos básicos da teoria política moderna (A condição humana, de Hannah Arendt e Mudança estrutural da esfera pública, de Jürgen Habermas). No contexto do mundo globalizado, há um “encolhimento do espaço público” (p. 49), havendo repercussões sob o ponto de vista ético. Ao abordar o arquivo do escritor no espaço privado, muitas são as ideias que Reinaldo Marques deixa semeadas no caminho de nossa leitura, cartografada por ele: a institucionalização da vida privada pela difusão da leitura e da escrita; a biblioteca como refúgio, gerando um duplo afastamento (público e civil); o mundo privado da escrita em comunicação com o público; a relação entre a vida privada e o mundo burguês; o “indivíduo privado” buscando os “holofotes da publicidade”; o “entre-lugar” habitado pelo escritor e “a prática de arquivamento de si”. Esse último ponto é exemplificado com base na correspondência trocada entre Abgar Renault e Carlos Drummond de Andrade, escritores mineiros, cujas missivas são abordadas também em outro estudo do livro, tendo em vista o conceito “locação”, associado ao moderno “nos níveis literário, cultural, político e dos afetos” (p. 174).

Ainda no segundo ensaio, na seção destinada ao pesquisador, ao arquivo e à lei, é salientado, entre outros aspectos, no âmbito do público e do privado, o diálogo entre a arquivologia e o direito. Ao mostrar que o trabalho bemsucedido com os arquivos se realiza pela publicação dos resultados, o autor do livro em destaque, menciona dois exemplos de pesquisa “em acervos literários, um de êxito, outro de dificuldades”. No primeiro caso, refere-se aos trabalhos realizados e publicados a partir dos arquivos de Henriqueta Lisboa e, no segundo, ao “Diário alemão”, texto que foi traduzido e mantido inédito por questões jurídicas. Nessa exposição, fica claro que o arquivo e a memória representam um “campo de lutas políticas” (p. 83). É oportuno ressaltar que “Grafias de coisas, grafias de vida” (outro ensaio do livro) aborda justamente o “Diário alemão”, de Guimarães Rosa. O caráter heterogêneo dos “seis cadernos de anotações de João Guimarães Rosa” demandou um trabalho que abarca diferentes questões tratadas nos itens: leitura e escritura como coleção; a memória das coisas: breve biografia de um documento e biografias entrecruzadas.

No início desta resenha, mostrei que o termo “arquivo literário” aparece nos quatro primeiros ensaios do livro em destaque. No volume publicado, como no conto de Jorge Luis Borges, os artigos de Reinaldo Marques se imbricam e se bifurcam. Nesse sentido, a seguir, tratarei de aspectos que se interceptam e que criam outras possibilidades de análise dos arquivos, levandose em consideração o que já foi exposto e outros caminhos apresentados, no livro, sobre os arquivos.

A importância da imagem na cena contemporânea implica o estudo das representações do escritor, como este se encena nos “arquivos literários”. Tomando como referência o texto de Philippe Artières, Reinaldo mostra que, nas sociedades letradas, a existência dos indivíduos se faz pelo registro escrito. Ao utilizar o conceito de “arquivamento do escritor”, ele revela um duplo movimento que está associado ao arquivamento de papéis e ao arquivamento do próprio escritor que produz imagens de si mesmo, ao arquivar. Nos acervos literários, encontra-se uma variedade de imagens de escritores (“grafemáticas, fotográficas, plásticas, entre outras”). Exemplos ilustrativos, de imagens pictóricas, depreendidos do “Acervo de Escritores Mineiros”, dominam parte do ensaio destinado às imagens do escritor e aos arquivos literários. Os aspectos assinalados permitem que o leitor estabeleça conexões com outro texto do volume. Refiro-me ao artigo “O arquivamento do escritor” em que são assinalados “aspectos apontados por Philippe Artières, na constituição de arquivos pessoais” em confronto com “práticas de arquivamento” de escritores mineiros.

O pesquisador, que anarquiza o arquivo, não perde de vista os “restos” dos arquivos. Como dar conta dos “restos e ruínas”? Para essa travessia, Reinaldo se vale teoricamente das noções de “resíduos e farrapos da história”, de Walter Benjamin; da noção de “resto”, de Giorgio Agamben; e das considerações de Jeanne Marie Gagnebin, explicitadas na apresentação do livro do filósofo italiano – O que resta de Auschwitz. Na esteira da História, não faltam ainda em Arquivos literários: teorias, histórias e desafios, comentários sobre as relações entre arquivos literários e a formação do Estado Nacional; sobre o discurso e o saber sobre a literatura “capitaneado pela universidade”; sobre o papel pioneiro da Academia Brasileira de Letras, e a respeito das histórias locais e os arquivos literários brasileiros.

No último ensaio do livro, Reinaldo mostra que Terry Cook, ao abordar a questão dos arquivos, fornece elementos para se pensar na “dimensão subjetiva e de intervenção do arquivista”. Essa vertente da subjetividade, aliada ao conceito de “imaginação construtiva” (termo utilizado por Robin George Collingwood), evidentemente institui uma ligação intrínseca com o conceito de “arquivo literário” decorrente de uma “ficção teórica”. Apoiado na “imaginação construtiva”, que não perde de vista o “faro para a ‘estória’”, o autor do livro oferece múltiplas navegações em rede. Por essa e por outras razões explicitadas, a publicação comentada constitui uma referência fundamental para o estudo dos arquivos.

Haydée Ribeiro Coelho Professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Possui Graduação em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (1973); Mestrado em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Minas Gerais (1981); Doutorado em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (1990) e Pós-Doutorado pela Universidad de la República, onde desenvolveu uma pesquisa sobre o exílio de Darcy Ribeiro no Uruguai. Dedica-se, atualmente, às interlocuções culturais, literárias e críticas entre o Brasil e a América Latina. Atualmente, é coordenadora do GT ANPOLL Relações Literárias Interamericanas. E-mail: [email protected]

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Monstros e arquivos. Textos críticos reunidos – ECHEVARRÍA (A-EN)

ECHEVARRÍA, Roberto González. Monstros e arquivos. Textos críticos reunidos. Organização e apresentação: GONZÁLES, Elena Palmero. Tradução de Ary Pimentel. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2014. Resenha de: GUTIÉRREZ, Rafael. Alea, Rio de Janeiro, v.17 n.2, july/dec., 2015.

A publicação pela primeira vez, no Brasil, de um conjunto de textos do crítico literário cubano e professor da Universidade de Yale Roberto González Echevarría permite ao leitor brasileiro um percorrido detalhado por autores, temas e obsessões críticas em torno da literatura hispano-americana, assim como algumas de suas conexões com a literatura espanhola.

De Cervantes a Severo Sarduy e Alvaro Mutis, passando por Calderón, Góngora, Lezama, Carpentier, Borges e García Márquez, os ensaios de González Echevarría aprofundam na análise textual das obras destes autores, revelando diversas interpretações, influências e conexões inusitadas. Embora seu enfoque seja, primordialmente, sobre as literaturas hispano-americanas e espanhola, tem um destaque especial sua aproximação a Euclides da Cunha e Os sertões, obra-chave em um de seus textos críticos mais conhecidos Myth and archive: a theory of latin american narrative (1990) e que, na coletânea agora publicada no Brasil, é novamente retomada no ensaio “De Sarmiento a Euclides: natureza e mito”.

Tal como aparece no título e é sublinhado pela introdução da professora Elena Palmeiro ao volume, esses dois conceitos, “Monstros e Arquivos”, funcionam como núcleos de atração que vinculam grande parte dos ensaios reunidos. Monstros, no sentido de figuras feitas de rasgos contraditórios e que se exibem, escritores e textos marcados pela sua excepcionalidade. Palmeiro lembra, nesse sentido, a expressão cervantina usada no prólogo a suas Comedias y entremeses, na qual Cervantes chama Lope de “monstro da natureza” para destacar seu talento dramático.

A figura do monstro é central no ensaio que González dedica à obra de Calderón A vida é sonho, mas também aparece ao falar de um personagem como Antônio Conselheiro. Em palavras de González Echeverría: “Como Facundo Quiroga, Antônio Conselheiro é um monstro, um mutante, um acidente. Seu caráter evasivo, como um objeto de observação e de perseguição militar por parte da República, deve muito a essa falta de antecedentes classificáveis” (ECHEVERRÍA, 2014: 245). E em outro lugar do livro em que o tom ensaístico do volume tende para a anedota e as intimidades da vida literária hispano-americana, Lezama é também retratado desde uma certa monstruosidade: “A gula desaforada e a resultante gordura, que o forçava a escrever sentado em uma poltrona, pois sua barriga não lhe permitia trabalhar confortavelmente em uma escrivaninha, davam a ele um aspecto monstruosamente ridículo” (ECHEVERRÍA, 2014: 216).

A apropriação particular do conceito de arquivo, como Echeverría explicita no prólogo ao volume, surge de seus estudos sobre o direito na Espanha e no Novo Mundo dos séculos XVI e XVII e se manifesta em seu ensaio sobre o amor e o direito em Cervantes, mas também em suas análises sobre as formas em que a própria materialidade dos recipientes utilizados para a atividade de arquivar se manifesta metaficcionalmente em obras centrais da literatura hispano-americana como El Aleph de Borges e Cien años de Soledad, de García Márquez.

Além da rigorosidade acadêmica que demonstra a escrita de González Echeverría, o livro está atravessado de maneira permanente por uma força afetiva e autobiográfica que permeia as análises e que se evidencia mais explicitamente nas cartas e homenagens póstumas que fazem parte da seleção de textos (cartas a Alejo Carpentier e ao economista cubano Carlos Díaz Alejandro, assim como textos de despedida para Severo Sarduy, Emir Rodríguez Monegal e Álvaro Mutis).

A amizade e proximidade do crítico com vários dos escritores estudados, especialmente com Severo Sarduy, assim como sua cercania com outros críticos destacados no contexto da literatura hispano-americana como o uruguaio Emir Rodríguez Monegal, fazem com que muitos dos ensaios de González Echeverría funcionem, eles mesmos, como uma sorte de arquivo afetivo e íntimo da vida literária e crítica hispano-americana da segunda metade do século XX. Expondo sua própria intimidade muitas vezes de forma expressiva e radical, o crítico parece atualizar aquela máxima de Oscar Wilde: “The highest, as the lowest, form of criticism is a mode of autobiography”.

Embora não seja seu eixo central, Cuba ocupa um espaço privilegiado nos ensaios de González, não somente pela importância que ocupam em suas análises os escritores cubanos, mas também em sua preocupação pela cultura popular e a formação da nacionalidade no ensaio intitulado “Literatura, dança e beisebol no (último) fim de século cubano”. O caso de Cuba, afirma González Echeverría neste que poderia ser considerado um ensaio de história cultural sobre as origens do danzón1e da prática do beisebol na ilha: “[…] pode fornecer lições para o estudo da emergência das nacionalidades modernas, que quase sempre são pensadas com base em atividades políticas e intelectuais, ignorando-se outras de caráter mais material ou físico, como os jogos, os rituais coletivos, as danças e até mesmo a cozinha” (ECHEVERRÍA, 2014: 276).

Cuba e a política é também um tema inevitável quando se trata de abordar a figura de Severo Sarduy. Neste caso, especialmente no texto de despedida que González dedica a Sarduy, publicado originalmente em 1993, o crítico deixa claro seu posicionamento de defesa do amigo frente aos ataques dogmáticos e homofóbicos sofridos por Sarduy nos anos 1960 e 1970 por parte de críticos próximos do regime.

No entanto, no ensaio em que analisa a obra De donde son los cantantes (1967), o crítico expõe seu sentimento de dúvida sobre o valor atual da obra de Sarduy, fazendo eco a alguns questionamentos que vinculam sua obra com uma cronologia específica (boom, estruturalismo, pós-estruturalismo) e mostra seu ceticismo frente a algumas das posições do escritor, especialmente seu entusiasmo lacaniano e sua rejeição de um autor como Alejo Carpentier. Parece-me que a tensão revela a tentativa de González de manter certo distanciamento crítico com a obra de Sarduy, ao tempo em que tenta compreender o fascínio que lhe produz e a sua influência na sua própria obra crítica.

Escrevendo precisamente sobre Sarduy, González declara um dos princípios centrais de sua prática leitora e crítica: “[…] ler obras modernas e contemporâneas como se já fossem clássicos, ler Sarduy como leio Cervantes e Shakespeare” (ECHEVERRÍA, 2014: 333). A seleção de textos reunidos em “Monstros e Arquivos” se configura nessa permanente oscilação entre autores clássicos e contemporâneos e a partir das conexões, continuidades e rupturas que o autor decifra na tradição literária hispano-americana.

***

Finalmente, quero destacar a relevância desta iniciativa, levada a cabo pela professora Elena Palmero, da UFRJ, e acolhida pela editora da UFMG, que permitiu reunir e dar a conhecer ao público brasileiro parte significativa do trabalho de um dos críticos mais reconhecidos no campo dos estudos literários hispano-americanos dos últimos anos, assim como a cuidadosa tradução do professor Ary Pimentel, que consegue manter em português a fluência narrativa e o ritmo da prosa de González.

Tomara que este tipo de iniciativas continuem se afiançando no âmbito editorial brasileiro, no sentido de promover a difusão do pensamento crítico hispano-americano com traduções em língua portuguesa. Um campo de intercâmbio que, historicamente, apresenta lacunas, desencontros e algumas reticências, mas que, acredito, configura um caminho produtivo e interessante a ser mais explorado e discutido. Gênero musical que, com o tempo, seria identificado com a música cubana.

Rafael Gutiérrez – Escritor, crítico literário e tradutor. Doutor em Estudos de Literatura da PUC-Rio e mestre em Literatura Latino-americana da Universidade Javeriana de Bogotá. Atualmente, realiza pós-doutorado no Departamento de Letras Neolatinas da UFRJ. É autor do romance Como se tornar um escritor cult de forma rápida e simples (Rio de Janeiro: 7Letras, 2013) e organizador do livro NósOtros. Diálogos literários entre o Brasil e a América Hispânica (Rio de Janeiro: 7Letras, 2010).

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Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora? – SOUZA (TES)

SOUZA, Jessé de. Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora?. Editora UFMG, 2010, 354 p. Resenha de: TEIXEIRA, Marcia de Oliveira. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.11, n.2, maio/ago. 2013.

Maria, Maria
É o som, é a cor, é o suor
É a dose mais forte e lenta
De uma gente que ri
Quando deve chorar
E não vive, apenas aguenta
Mas é preciso ter força
É preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca
Maria, Maria
Mistura a dor e a alegria
(Maria, Maria – Milton Nascimento)

Economistas e sociólogos debatem a emergência de uma nova fração da classe média no Brasil; para muitos, efeito das políticas de transferência de renda e acesso ao microcrédito, enquanto para outros, da estabilidade econômica. A contribuição de Jessé de Souza e da equipe do Centro de Estudos sobre Desigualdade ao debate é parte de um projeto de pesquisa de maior fôlego. Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora?, somado a outras publicações, é uma tentativa de construir uma teoria de classes sociais para o Brasil contemporâneo. Para tanto, destaca a reprodução dos privilégios de classes e das desigualdades sociais duráveis, as dimensões simbólicas e não-econômicas constituintes da reprodução das classes, bem como a dinâmica entre relações fordistas e pós-fordistas em uma sociedade periférica.

O quadro interpretativo de Batalhadores foi construído no diálogo com Max Weber, Pierre Bourdieu, Bernard Lahire e Richard Senneth. Ele enfatiza o passado incorporado dos atores individuais e sua posição na compreensão prática do mundo, as disposições construídas e operadas em diferentes situações de vida; os contextos de socialização e de atuação significativos na trajetória de vida dos indivíduos de determinada classe. O diálogo ácido com Sérgio Buarque de Holanda, Raimundo Faoro e Roberto DaMatta, aprofundado em outras publicações, não foi abandonado. O intuito é criticar as interpretações do Brasil assentadas na negatividade da herança ibérica, no personalismo, no patrimonialismo e na caracterização de uma modernidade incompleta.

Há um diálogo secundário com a produção etno-metodológica, com as concepções da teoria ancorada e com o interacionismo informando o desenho da pesquisa, a prática de campo e a análise das concepções de mundo formadas e operadas pelos batalhadores. Especificamente com relação à teoria ancorada, destaco o zelo pela empiria.

Um aspecto valorizado por Jessé de Souza (para contrapor-se à ideia da nova classe média no Brasil) é o fato de Batalhadores resultar de uma extensa pesquisa de campo. Entretanto, em nenhum momento o leitor conhece as condições de realização da pesquisa de campo, tampouco sobre os instrumentos de pesquisa. Pouco foi dito sobre a escolha das regiões, das cidades e sobre os entrevistados. A descrição das condições de realização da pesquisa fortalece o argumento, além de ser tópico obrigatório em face do quadro teórico-metodológico utilizado.

Ao contrário dos economistas, para Jessé de Souza as análises centradas na renda não permitem compreender os processos constitutivos das ‘classes sociais’ e suas fronteiras. Ele parte da economia política, privilegiando as dinâmicas entre as relações de produção e as classes sociais para construção de sua teoria sobre classes no Brasil. Essa opção é essencial para entendermos porque batalhadores não formam nova fração da classe média.

Classes sociais são constituídas por aportes ideológicos, éticos, morais, educacionais, compreendidos pela noção de cultura. Mas não é possível gerar uma teoria do processo de produção do mundo social (e sua compreensão pelos indivíduos) e da formação de classes centrada na matriz cultural. O desafio de Jessé de Souza é construir uma análise não hierárquica capaz de considerar os diversos fluxos entre as dimensões cultural e material.

Batalhadores distinguem-se, e, portanto, autorizam Jessé de Souza a reivindicar sua condição de classe, pela “pequena incorporação dos capitais impessoais mais importantes da sociedade moderna, capital econômico e capital cultural” (p. 327). A burguesia define-se pela reprodução de ambos, enquanto a classe média pela reprodução do capital cultural.

Como ‘renda’ não é um elemento delimitador de ‘classe’, observamos uma enorme diversidade entre os indivíduos caracterizados como ‘batalhadores’. Há ‘batalhadores empreendedores’ constituídos por pequenos comerciantes (lojinhas de garagem, barracas de rua ou em feiras, lojinhas de bairro e comunidades populares), donos de indústrias de pequeno porte (confecções, serralheria, carpintaria) e pequenos agricultores. De modo geral, são ex-trabalhadores rurais, ex-empregados do comércio ou do setor industrial, os quais perderam seu emprego por demissão ou fechamento das empresas. No caso das mulheres, o abandono dos maridos as transforma em única fonte de geração de renda da família. Há também os batalhadores ‘assalariados’ dedicados ao trabalho em pequenas e médias indústrias, vendedores, técnicos, profissionais do setor de serviços como telemarketing.

Jessé de Souza destaca mobilidade entre frações de classe e classes (batalhadores, empreendedores e ralé). Muitos depoimentos tratam de mudanças bruscas no nível de renda, acesso a trabalho permanente e a moradia. Mesmo os ‘batalhadores empreendedores’ não se afastam significativamente de situações de vulnerabilidade. Patrão ou empregado portam as mesmas marcas constitutivas da classe, a dinâmica das interações sociais, as visões de mundo e o modo de operá-lo e, principalmente, estão sujeitos às mesmas práticas de dominação do capital financeiro. O trabalho desempenha uma posição essencial na reprodução material e na concepção de mundo do batalhador.

É preciso compreender o mundo que autoriza o ‘batalhador’ a se reproduzir como classe. Para Jessé, não se trata do mundo dominado pelas sobrevivências coloniais ou por arranjos pré-capitalistas, tampouco pelo fordismo. Ao contrário, há uma correlação entre a emergência dos batalhadores e o processo de transição para o capitalismo financeiro. Processo de transição situado na periferia, na qual a produção fordista foi severamente excludente, mantendo parte da força de trabalho à margem. Ele explica assim o grande impulso que os batalhadores conheceram nos últimos anos. O mundo social dos batalhadores é formado por trabalhos flexíveis, pela provisoriedade de estratégias de vida, pela necessidade de adaptar-se rapidamente às condições de trabalho mutantes e a mercados reconfigurados por tendências da estação. Os batalhadores são efeito do processo de incorporação de trabalhadores pobres excluídos da sociedade fordista às novas formas de organização do trabalho e da produção.

Os batalhadores asseguram inserção no mundo do trabalho do capitalismo financeiro (como proprietário de pequenos negócios e/ou empregados) pela constituição de um conjunto de disposições, entre outras, para disciplina, autocontrole e pensamento prospectivo. Estamos lidando, por conseguinte, com uma classe social apta e pronta para trabalhar em jornadas extensas, em pequenos negócios realizados em ambiente improvisados, sem garantias e direitos trabalhistas; onde o dono e o empregado, em geral de uma mesma família, labutam lado a lado e estão sujeitos às mesmas condições de trabalho pouco salubres; onde as relações de trabalho e a produção são imprevisíveis, pois dependem de mercado de consumo de produtos sazonais, formados por consumidores de pequeno poder de compra, recentemente fortalecido pelos programas de transferência de renda, além da previdência social; onde muitos ‘patrões’ estão sujeitos a tornarem-se empregados pela escassez de créditos, mudanças bruscas no mercado de consumo, aumento da concorrência, ação da fiscalização. Digo que os batalhadores estão aptos e prontos porque possuem os conhecimentos práticos e intelectuais (disposição), além do potencial para desenvolvê-los, e admitem as condições do trabalho flexíveis. Eles (in)corporam essas condições como naturais, porque as relacionam com condições herdadas ou compreendem que por intermédio delas poderão assegurar para si e para sua família condições de vida mais dignas. Nos relatos, “condições de vida mais dignas” significam acesso permanente a trabalho, moradia, comida e educação. Os batalhadores não se afastam definitivamente de situações de vulnerabilidade, afastam-se apenas das mais extremas.

Para compreendermos a disposição para o trabalho dos batalhadores é preciso olhar com mais atenção os processos de construção e reprodução de concepção de mundo e das ‘disposições’. Jessé de Souza considera a religião como um dos elementos fundamentais na construção de mundo dos batalhadores e, nesse sentido, de sua reprodução como classe social no capitalismo periférico. A religião opera por intermédio das trajetórias exemplares (mescladas aos exemplos familiares); da valorização do trabalho árduo (‘trabalho duro’ no roçado, no pequeno comércio ou pequena oficina), no desenvolvimento e exercício de uma solidariedade com familiares, vizinhos e membros da congregação; na reprodução de uma concepção herdada de família; na valorização de atitudes em prol de uma vida melhor. Cabe aqui observar a conexão entre ‘vida melhor’ e futuro (inexistente na ralé). Para os batalhadores, projetar o futuro implica não voltar a viver situações de extrema vulnerabilidade. A concepção de mundo fruto da vivência religiosa (em uma ‘comunidade’ congregada em torno de uma igreja e seu pastor) associa-se às percepções forjadas na vivência prática em diferentes situações de vida regulada pelo trabalho.

A formação das dimensões éticas e morais essenciais ao trabalho duro nos batalhadores com origens rurais, notadamente no nordeste, estão imbricadas com ações de entidades ligadas à Igreja Católica. Nas periferias urbanas e, mais recentemente na região rural, as religiões pentecostais dominam. De fato, Jessé de Souza chama atenção para como religiões pentecostais, desde sua origem nos Estados Unidos da América na primeira metade do século XX, capturaram as demandas sociais e religiosas de migrantes do campo, trabalhadores da pequena indústria e do comércio das periferias urbanas.

Outro elemento constitutivo da concepção e interações sociais dos batalhadores é a família. Família e relações familiares que transcendem o modelo pais e filhos, cuja lógica de estruturação é o direito sucessório na propriedade do capital. Trata-se de famílias com configurações bastante diversas, mas firmemente amarradas pela valorização do ‘trabalho duro’, do compromisso com a manutenção da reprodutibilidade da própria família, o estímulo para investir na melhoria da educação, mas sempre conciliada com o trabalho.

A conclusão decepciona, mesmo considerando que o volume de dados exige prazos mais dilatados (necessidade que não é acompanhada pelo imperativo da publicação mais célere dos resultados). Mas ao final de 248 páginas de apresentação e análise de material empírico, o leitor espera mais do que uma retomada à crítica do livro A classe média brasileira: ambição, valores e projetos de sociedade de Bolivar Lamounier e Amaury de Souza. Esse livro é importante enquanto representativo de estudos comprometidos com ideologias de classes e partidos políticos. A crítica à incapacidade desses estudos colaborarem para a compreensão da dinâmica das classes sociais no Brasil na periferia do capitalismo financeiro era o ponto de partida de Batalhadores. A conclusão deveria retomar exatamente o projeto de produção de uma teoria original, apresentado na introdução, agora à luz dos dados sistematizados.

O trabalho de Jessé de Souza tem o mérito de preservar a complexidade das relações sociais e das interações entre classes (simplificadas ou desconsideradas por outros estudos). Mas é necessário aprofundar a análise dos fluxos e fronteiras entre a classe média, os batalhadores e a ralé; bem como ampliar os estudos empíricos para testar a capacidade explicativa do modelo proposto por Jessé de Souza. Será que ele seria diverso em espaços onde encontramos relações de produção fordistas e dinâmicas econômicas diferentes das encontradas no Norte, Nordeste e mesmo na zona da mata mineira?

Marcia de Oliveira Teixeira – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected]

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Walter Benjamin: rastro, aura e história – SEDIMAYER (A-EN)

SEDIMAYER, Sabrina; GINZBURG, Jaime (Orgs.). Walter Benjamin: rastro, aura e história. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2012. Resenha de: VASCONCELOS, Lisa Carvalho. Walter Benjamin: rastro, aura e história. Alea, Rio de Janeiro, jan./jun., 2013.

Em 1935, Erich Auerbach escreve uma triste carta a seu colega Walter Benjamin. Nela, o autor da Mimesis explica que suas pretensões de obter para o colega um posto na Universidade de São Paulo, que então se formava, haviam sido completamente frustradas. Na época, para ambos os intelectuais, que compartilhavam também a origem judaica e a nacionalidade alemã, a emigração parecia ser a única saída de uma Europa cada vez mais beligerante e totalitária. Sabemos que Auerbach, pouco tempo depois, de fato se exilou na Turquia, sendo obrigado a deixar para trás sua biblioteca e os muitos trabalhos que conduzia; sabemos também que Benjamin, entretanto, não teve a mesma sorte: ele morreu em 1940, durante uma última e fracassada tentativa de fugir à perseguição e à guerra, na travessia dos Pireneus já quase em solo espanhol. Pressentiria ele, então, que sua obra faria anos depois o caminho que não conseguiu fazer pessoalmente, com os próprios pés? Afinal, se o próprio Benjamin não conseguiu atravessar o oceano, seus trabalhos têm hoje aqui, do outro lado do Atlântico – no país que um dia poderia ter vindo a habitar – uma rica e fértil recepção.

Segundo Hannah Arendt, “a fama póstuma parece ser o quinhão dos inclassificáveis”.*1 Benjamin, a quem a frase se refere, foi um autor cuja obra não se adequava à ordem de sua época: sem ser propriamente um historiador, um teólogo, um filósofo da linguagem ou um crítico da literatura e da arte, escrevia sobre história, teologia, estética e literatura indistintamente, misturava áreas e saberes constituindo uma forma própria de lidar com o mundo e com o conhecimento.1 Nos dias de hoje, nos quais a valorização da interdisciplinariedade e da interpenetração de saberes vai se tornando o caminho prioritário, seu trabalho se torna particularmente atual. Prova disso é que no Brasil, sua acolhida não se limitou aos campos mencionados acima, mas se espraiou e vem se espraiando pelos campos da psicanálise, da arquitetura, da sociologia e, principalmente, da teoria literária, disciplina que recentemente tem se expandido para dar conta não só de objetos artísticos, mas também dos discursos e das narrativas que compõem o vasto panorama da cultura.

O volume Walter Benjamin: rastro, aura e história, lançado pela Editora UFMG, no segundo semestre de 2012, é um bom exemplo do que afirmamos. Fruto de um trabalho coletivo, o livro é a mais nova produção do Núcleo Walter Benjamin, grupo coordenado, entre outros por Georg Otte e Élcio Cornelsen e que, desde 2006, se dedica à pesquisa e à divulgação dos trabalhos do pensador alemão. O livro reúne em forma de ensaios as principais comunicações dadas à luz durante o segundo Colóquio Internacional do núcleo, intitulado “Spuren: rastros, traços, vestígios” realizado em 2010 na Universidade Federal de Minas Gerais e acrescenta, a esse material, contribuições de convidados, que vem enriquecer e ampliar o projeto inicial. O resultado é um volume amplo e diversificado que mistura reflexões teóricas exclusivamente benjaminianas (como as de Rolf-Peter Janz e de Jeanne Marie Gagnebin, que procuram delimitar filosoficamente os conceitos aura e rastro, fundamentais para as posteriores discussões do livro) com trabalhos de natureza comparatista (como, por exemplo, os de Paulo César Endo e Michele Cometa, que procuram estabelecer a relação entre Benjamin e outros pensadores, no caso Sigmund Freud e o historiador italiano Carlo Ginzburg), e ainda com trabalhos nos quais os conceitos e formulações de Benjamin são usados na abordagem de realidades outras (como fazem Márcio Seligmann-Silva, ao usar o conceito de rastro para abordar a obra da artista plástica Regina Silveira, ou Willi Bolle, que procura ler a cidade de Belém a partir dos mesmos protocolos que Benjamin mobiliza para ler Paris, na obra das Passagens; vale lembrar, entretanto, que seu paradigma de modernidade não é mais Baudelaire, mas Dalcídio Jurandir, escritor paraense e o seu romance Belém do Grão-Pará).

Como o próprio título dá a entender, para todos esses autores serão essenciais os conceitos de rastro e aura. Ambos fazem referência a realidades fugidias e às expressões usadas para se referir aos dois não o são em menor medida. “Aparição única de uma coisa distante, por mais perto que esteja”*2 é uma das definições de aura elencadas por Rolf-Peter Janz. “Presença de uma ausência e ausência de uma presença” é como Gagnebin define rastro. Ao longo dos textos, esses conceitos se alternam colocando em oposição duas realidades diferentes, mediadas pelo terceiro item da tríade que dá título ao livro, a história. Se no passado os objetos históricos (a obra de arte em especial) eram cercados de uma aura que lhes conferia valor quase religioso, hoje, no contexto de sociedades pós-industriais, só podemos entrar em contato com o passado através de seus rastros.

Em dois artigos específicos esses conceitos são empregados em situações particularmente interessantes para a reflexão sobre o mundo contemporâneo. Em “A interpretação do rastro em Walter Benjamin” de Jaime Ginzburg, o rastro é elegido como concepção fundamental para o entendimento da realidade brasileira em seus recalques e não ditos. Já em “A memória poética da guerra colonial de Portugal na África: os vestígios como material de uma construção possível”, de Roberto Vecchi e Margarida Calafate Ribeiro, o rastro vai ser o elemento que permitirá a construção de uma memória da guerra no contexto pós-colonial português, utilizando para isso a produção poética (canônica e não canônica) disponível sobre o assunto.

No primeiro desses artigos, Jaime Ginzburg partirá de uma diferenciação básica no que diz respeito ao conceito de rastro para problematizar as especificidades da realidade brasileira (e da sua representação artística). Para isso, o professor e pesquisador se dedica ao estudo comparativo de dois teóricos importantes: o historiador Carlo Ginzburg e o próprio Walter Benjamin. Para o primeiro, o rastro é compreendido como parte constitutiva de uma narrativa a ser formada. Em sua acepção mais básica, o rastro é a marca (a pegada) deixada por um animal em seu caminho. Cabe ao caçador, recompor, a partir dessas marcas, um percurso que o permita encontrar o animal buscado. Para Carlo Ginzburg, o historiador deve agir como um caçador, selecionando “os principais elementos decisivos para a compreensão do passado”*3 e formando a partir deles a narrativa a que chamamos história. A concepção de Benjamin sobre esse mesmo assunto, entretanto, não poderia ser mais diferente. Segundo Jaime Ginzburg, ele “entende a interpretação do humano em pautas que envolvem componentes dissociativos e cindidos”,*4 ou seja, em sua concepção, o rastro não seria necessariamente encaixável em uma narrativa linear e totalizadora, mas produziria cortes, esquecimentos e dissonâncias.

Ao estudar as especificidades do caso brasileiro (das suas narrativas históricas dominantes, das suas elaborações conceituais, da formação das suas instituições), ele encontra muitos exemplos desses cortes e disjunções. Enquanto país, viemos, no Brasil, ao longo de nossa história, reprimindo as memórias da violência estrutural e formadora do país: a destruição de povos indígenas, a escravidão africana, o massacre de Canudos, a repressão e os assassinatos durante os regimes de exceção (com a ditadura civil-militar de 1964 em primeiro plano). Todos são episódios do nosso passado que preferimos deixar de lado, numa verdadeira política do esquecimento. Ainda segundo Ginzburg, a literatura brasileira dá testemunho formal de uma desconfiança legítima em relação às narrativas falsas e totalizadoras. Bons exemplos disso são, nessa perspectiva, os narradores pouco confiáveis de Machado de Assis, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos ou mesmo Raduan Nassar. Tanto Bentinho, como Riobaldo, Paulo Honório ou André desprezam a linearidade e a causalidade das estórias que contam e se revelam sempre hesitantes e desconfiados da própria memória.

O segundo artigo é quase um corpo estranho dentro da coletânea. Sem se dedicar especificamente a Benjamin ou a realidades próximas ao contexto brasileiro ele faz, entretanto, um movimento muito interessante de buscar no rastro benjaminiano as bases para a construção literal de uma memória coletiva. É preciso deixar claro que esse processo não tem ambições totalizadoras; muito pelo contrário, é uma memória falha, estilhaçada e fragmentada a que se desenha através desse esforço. Talvez a única memória possível em uma situação de guerra generalizada. Expliquemos. O artigo de Roberto Vecchi e Margarida Calafate Ribeiro vem debater teoricamente os princípios de uma coletânea poética elaborada pelos próprios autores – a Antologia da memória poética da Guerra Colonial. O livro procura, nas palavras de seus próprios organizadores, recolher um corpo textual que paute os principais temas e problemas da produção poética feita no e a partir do período da Guerra Colonial portuguesa (1961-1974). Nesse sentido, os conceitos benjaminianos de rastro, vestígio e ruína se revelaram essenciais, como afirmam Vecchi e Ribeiro, uma vez que fundamentaram as questões iniciais a partir das quais foi possível se desenhar um corpus para o trabalho. É preciso lembrar que o conflito colonial foi uma experiência praticamente universal dentro da realidade portuguesa da época, mobilizando algo em torno de um milhão de soldados e atingindo quase todas as famílias do país, independentemente da classe social. A produção artístico-literária que lida diretamente com o assunto é igualmente profusa, daí a dificuldade e ambição da tarefa.

Elegido um material de trabalho, a tentativa dos autores foi então a de abordar os poemas e fragmentos textuais que compõem o livro como rastros, que, lidos em sequência, comporiam uma narrativa incompleta, mais ainda assim uma narrativa. O modelo usado para isso é novamente o do caçador, que recompõe o percurso de sua presa a partir das pegadas deixadas por ela. Ao contrário da narrativa linear e causal de uma caça, a memória recomposta pelos poemas seria uma memória em perigo, ou ainda uma memória em disputa. E isso se dá não só porque aquilo que os poemas buscam partilhar faz oposição direta à política de esquecimento adotada pelos órgãos oficiais do país, mas também pelo caráter traumático dessa própria memória. A experiência avassaladora e sem sentido da guerra se erige nesses textos como fato não simbolizável, como ruína e signo (mudo) de morte, e instaura, assim, um tempo recursivo, não linear dentro do qual é impossível enterrar o passado. Não é sem razão que o corpo insepulto será, como lembram os autores do ensaio, um tema recorrente na literatura portuguesa de guerra. Como um fantasma a materialidade do império desfeito sem impõem sem “nenhuma totalidade ou sentido possível”*5 resistindo à amnésia do mundo da técnica.

Assim como os dois artigos mencionados acima, muitos outros da coletânea Walter Benjamin: rastro, aura e história mereceriam uma leitura mais prolongada aqui. As limitações da presente resenha impedem, entretanto, uma análise maior ou mais detalhada. Fica registrado aqui o convite para que o leitor dê continuidade a esse trabalho, através da leitura desse livro que, como queremos enfatizar, é fundamental para a compreensão seja do Brasil, seja de outras realidades.

Notas

*1 (ARENDT, Hanna. Walter Benjamin: 1892-1940. In: Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das Letras: 167.         [ Links ])
*2 (SEDLMAYER, Sabrina e GINZBURG, Jaime (Org.). Walter Benjamin: rastro, aura e história. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2012: 13.         [ Links ])
*3 (Ibidem: 119.)
*4 (Ibidem: 124.)
*5 (Ibidem: 98.)

1 Vide Theodor Adorno, em “O ensaio como forma”. In: Notas de literatura I. Tradução e apresentação de Jorge de Almeida. São Paulo: Duas cidades; Editora 34, 2003.

Lisa Carvalho Vasconcellos é doutora em Teoria Literária pelo Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. E-mail: <[email protected]>

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Antropologia Brasiliana: Ciência e Educação na obra de Edgard Roquette-Pinto – LIMA (RIHGB)

LIMA, Nísia Trindade; SÁ, Dominichi Miranda de (Orgs). Antropologia Brasiliana: Ciência e Educação na obra de Edgard Roquette-Pinto.Nísia Belo Horizonte, UFMG e Rio de Janeiro, FIOCRUZ, 2008. Resenha de RIOS: José Arthur. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, a. 171 (447) p.291-298, abr./jun. 2010.R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 171 (447) p.291-298, abr./jun 2010.

O título do livro deriva da expressão cunhada por Edgard Roquette-Pinto, tema principal dessa coletânea de ensaios. As organizadoras, téc­nicas e professoras da Casa de Oswaldo Cruz, uma, socióloga (Nísia), outra, historiadora (Dominichi), ambas se completam na interpretação e na análise documental dos dados e informações colhidos em obras, cor­respondências e arquivos, sobre essa curiosa figura de sábio e pioneiro.

Robert Wegner assina erudito Prefácio completado por uma Apre­sentação das organizadoras que associam a trajetória intelectual de Ro­quette-Pinto à própria história da República na primeira metade do século XX e, mais que isso, à historia das ideias e do pensamento científico naquelas décadas.

Valiosa a transcrição de uma palestra de Roquette sobre “Ciência e Cientistas do Brasil”, proferida em 1939, onde nos dá, com a autoridade de protagonista, o estado da questão, uma visão panorâmica dos avan­ços e atrasos das ciências físico-naturais no Brasil da época. Duas ideias transparecem (Dominichi) nesse texto: – a influência do Positivismo e a preocupação dominante na legitimação da ciência, sobretudo de uma “ciência pura” face a uma “ciência aplicada”.

Na mesma perspectiva interpretativa, Alberto Venâncio Filho analisa a obra de Roquette-Pinto como expressão de humanismo, assinalando a importância da formação positivista, bebida desde tempos escolares, na gênese do pensamento do autor de Rondônia; bem como sua tentativa de conciliar ciência e técnica com as melhores fontes do humanismo do século XIX, sobretudo com a obra de Goethe, de declarada influência na obra de Roquette.

Central, no livro, o ensaio de Nísia Trindade Lima situando o cien­tista na sua geração, no papel renovador e contestatário que esta desem­penhou face à sociedade patriarcal e à cultura que produziu, baseada na inteligentsia bacharelesca, na aversão das elites ao trabalho manual e na retórica romântica.  Nessa perspectiva – do amplo processo de desagregação do regime escravista e da sociedade patriarcal, e a demorada extinção de suas mar­cas – as autoras situam a obra de Roquette. Seria esta mais um capítulo na busca de identidade do povo brasileiro. Escreve em momento de tran­sição social e cultural em que antigas categorias explicativas como “raça” e “mestiçagem” vão cedendo lugar a traços culturais persistentes como analfabetismo, doença e atraso. Tudo isso se prende à ascendência das camadas médias urbanas na sociedade brasileira, ansiosas por abraçar, na nova República, uma ideologia justificadora. Nesse cenário avulta o papel inspirador – e formatizador – do que João Cruz Costa chamou “po­sitivismo difuso”, de remota, mas certa raiz na doutrina de Comte.  Esse Positivismo sui generis é tema do ensaio de Luiz Otávio Fer­reira (“Ethos positivista e a institucionalização das ciências no Brazil”) onde salienta a função do arcabouço institucional então criado, institutos, centros de pesquisas e laboratórios, sem o que as ideias renovadoras dessa nova geração careceriam de uma caixa de ressonância. Como demonstra o autor, mediatizaram essas instituições as inovações intelectuais trazidas pelos cientistas, articulando sua atividade com um sistema de ensino su­perior, criando campo de prova para as primeiras reformas universitárias. Sob esse aspecto, a obra de Fernando de Azevedo, companheiro de gera­ção de Roquette-Pinto, é bastante característica dessas vocações. Nesses avanços científicos, – caruncho no tronco – brota o cientificismo, no qual capitulam os melhores espíritos – Alberto Torres, Oliveira Vianna, Eucli­des, que pagaram preço alto à pseudociência dos tempos.

Essa institucionalização se prende a amplo projeto nacional. É o grande tema de Rondônia, como evidenciam, em outro ensaio, a mãos juntas, Nísia Trindade Lima, Ricardo Ventura Santos e Carlos E. A Coim­bra Junior. A obra de Roquette resultou de um projeto caro à nova Re­pública – a expedição Rondon e a implantação das linhas telegráficas no extremo Oeste. Graças a Rondon, a ciência não se legitimava apenas pe­las elocubrações e descobertas de gabinete, mas por propiciar a extensão do Estado às regiões inóspitas, aos “sertões” do Brasil; e a incorporação das populações indígenas à proteção paternalista do Governo. O “sertão” é assim anexado à cultura urbana e o sertanejo – o homem forte, mas abandonado, de Euclides, – é agora associado à obra coletiva da criação nacional. Em Rondônia, como os autores vêm a obra mestra de Roquette, ocorre a transição da antropologia física de Broca, Bertillon e outros – a antropologia das medidas antropométricas – para uma redefinição do “primitivo” que só poderá se processar em termos culturais.

Ricardo Ventura Santos aborda o mesmo tema sob o ângulo da mes­tiçagem, objeto de acalorados, às vezes transviados, debates na sociologia e na medicina da época e que levaram Roquette, admirador de Euclides, a separar-se, nesse ponto, do cientificismo do autor dos Sertões. Na discus­são o autor exalta, com acerto, a importância da componente nacionalista que vai dominar a polêmica nos anos 20 e 30.

É justamente o momento em que o debate passa do domínio cientifico – ou cientificista – para o campo político e avulta, no cenário internacional do após Primeira Guerra, – cortado de redefinições de fronteiras e movi­mentação de povos, – o problema das migrações. É este objeto do denso, pesquisado e fundamentado ensaio de Giralda Seyferth (“Roquette-Pinto e o debate sobre raça e imigração no Brasil”). Demonstra os obstáculos ideológicos que atravancavam o caminho para uma solução racional e despreconceituosa do problema. Ditadas por uma teorização equivocada e lacunosa, surgem, no cenário brasileiro, propostas que, hoje, nos fazem rir, assinadas por figuras respeitáveis, alguns médicos, de renome.

Típica é a reação de muitos à imigração japonesa, tida como ameaça à nossa pureza racial, a ponto de merecer a denúncia de “perigo amarelo”. Assim também a repulsa à mera possibilidade de uma imigração chinesa acalentada por alguns líderes desde o tempo do Império, como substitu­ta no latifúndio cafeeiro, à escravidão africana – e até considerada nos anos 30 “repugnante”. Obedece aos mesmos preconceitos a sugestão de adoção do sistema de quotas, cópia do modelo americano. Essas ideias, como verifica a autora, resultaram em políticas, ditaram critérios restriti­vos quando não proibitivos, contra correntes imigratórias que nos teriam trazido, como algumas de fato trouxeram, progresso social, tecnologia e prosperidade. Eram todas sustentadas em nome da pureza da raça, concei­to de problemática definição.

A confusão, muitas vezes ciente e consciente, entre raça, etnia, povo e nacionalidade, sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial e durante o Estado Novo, resultou de fato em políticas anti-imigrantistas. É o tema de Jair de Souza Ramos (“Como classificar os indesejáveis?”). O autor, no entanto, usa o termo “racialização”, “medidas racialistas”, quando na verdade está falando de racismo, tout court, agravado no período da Se­gunda Guerra, pela entrada do Brasil na luta contra o Eixo e que atingiu, por motivações diversas, os descendentes de italianos, alemães e japone­ses no Sul do Brasil, e também judeus que tentavam fugir à perseguição nazista – como fartamente documentado. Roquette-Pinto prestou-se, no caso, a interpretações nacionalistas, quando afirmou que o brasileiro não precisava de substituto – nivelando-se a outro contemporâneo que ficou célebre pela afirmação “o brasileiro é o melhor imigrante”.

A preocupação da Eugenia, generalizada na época e importada dos círculos científicos europeus e norte-americanos, constituiu tropeço no pensamento de Roquette, como demonstra Vanderlei Sebastião de Souza (“As leis da eugenia na antropologia de Roquette-Pinto”). A Eugenia an­dou muito associada às teorias racistas, tornou-se, na Alemanha nazista, instrumento e desculpa para a eliminação de “indesejáveis” – leiam-se minorias, os chamados “quistos” – termo usado no Brasil para designar as colônias alemãs no Sul – por serem, segundo os autores dessas teorias, inassimiláveis, irredutíveis ao melting pot brasileiro. Assim também fo­ram considerados os “amarelos”, os orientais de várias procedências, cuja assimilação e docilidade à miscigenação tornaram-se hoje evidentes, a olho nu, para quem transita nas ruas de São Paulo, onde se misturam gos­tosamente com os descendentes dos bandeirantes, arianos e não – arianos, caros a Oliveira Vianna.

Os últimos ensaios do livro dedicam-se à descrição do enorme papel desempenhado pelo autor de Rondônia na criação da nossa radiofonia educativa. E, paradoxalmente, na elaboração das normas de censura a esse novo meio de comunicação. Ildeu de Castro Moreira, Luisa Mas­sarani e Jaime Aranha descrevem a importância de Roquette na nossa primeira divulgação científica, enquanto Regina Horta Duarte compõe um retrato do Roquette viajante e Sheila Schwartzman realça sua contri­buição ao uso educativo do cinema.

Enriquece o livro farto material fotográfico e cartográfico e a trans­crição de textos de Roquette-Pinto, alguns inéditos. É de lamentar a falta de um índice onomástico, indispensável face à riqueza das fontes consul­tadas e citadas.  Nenhum praticante das ciências humanas está isento da contamina­ção com teorias espúrias, ranço de seu pensamento cientificismo, seja o darwinismo de seu pensamento social, o positivismo, o marxismo de pacotilha ou a psicanálise de bolso. O livro, de titulo elusivo, mas de lei­tura essencial, é indispensável para uma visão dos caminhos e descami­nhos da antropologia brasileira – ainda que não brasiliana – nas primeiras décadas do século passado; e mais, para uma compreensão dos problemas epistemológicos e metodológicos que enfrentou na transição, ou acomo­dação, entre uma ciência biológica e uma ciência da cultura. Nesse sentido, a obra de Roquette-Pinto, como nos demonstram os ensaios coligidos no livro, é paradigmática. Não se abalançaram as orga­nizadoras a uma síntese conclusiva sobre o ideário de Roquette-Pinto, seu legado às novas gerações, talvez porque a riqueza do material reunido em ensaios tão variados e a vivência do cotidiano institucional na Fiocruz – à qual Roquette esteve tão associado – lhes dificultassem a distância e a perspectiva necessárias.

Que era, afinal, a “antropologia brasiliana”, alem de um modismo?Que resta desse empreendimento, uma vez despido das aderências ideo­lógicas de seu tempo?  O livro mereceria um capitulo sobre o administrador de instituições que foi Roquette – como diretor do Museu Nacional; quando, em mo­mento crítico – a gripe espanhola, – assumiu a direção de uma enfermaria do Hospital Deodoro; ou quando esteve à frente da primeira emissora de radiodifusão do Brasil, depois mutado na Rádio MEC que, em 1937, ele doou generosamente ao Ministério da Educação e Saúde. E quando, ain­da, em 1936, dirigiu o Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE).

Essa intensa, importante atividade institucional é mencionada, mas não devidamente descrita e analisada para a compreensão necessária do que seria, naqueles anos, um administrador institucional do porte criativo de Roquette.

Como convivia o cientista, o humanista, com o clima autoritário, depois totalitário do Estado Novo? Como teria disciplinado a censura cinematográfica?Que censura era essa?Qual teria sido o convívio de Roquette com a Ditadura, de origem positivista e constituição salazarista, que iria formalizar-se na carta de 1937 e esterilizou, com o peso de suas burocracias, tanta iniciativa fecunda na educação e na saúde? De um a outro capítulo, delineia-se o perfil de Roquette-Pinto educa­dor. Merecia capítulo à parte. Difícil, também neste passo, compreender como o signatário do “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova” – com Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Francisco Venâncio Filho e  tantos outros – documento de tempera liberal, veio a filiar-se ao Partido Socialista Brasileiro, no qual chegou a candidatar-se em 1954 a deputado à Câmara Federal. Que socialismo era esse?O de Proudhon ou o de Saint-Simon? Não seria certamente o de Marx.

Outro ponto que mereceria análise, nessa personalidade – de tão ri­cas e instigantes contradições – era sua religiosidade. Chegou a articular, nos idos de 1935, um curioso Credo (sic), onde parece transitar do Positi­vismo, doutrina conservadora, para um Socialismo reformista.

Não há dúvida que essas tensões eram as de sua geração, alimentada pelas ideias de Darwin, de Spencer, de Comte, e animada por um Roman­tismo fundamental. Nascidos poucos anos depois da Abolição da escra­vatura, esses pensadores cresceram nos padrões e comportamentos per­sistentes de uma sociedade patrimonialista e de uma cultura bacharelesca. Sem a prática do método científico e sem as disciplinas da Universidade esses cientistas formam-se ao acaso do encontro, da viagem, do livro ou da experiência estrangeira, ainda apegados, malgie soi, ao discurso, ao culto da palavra, ao individualismo decorativo – menos ao laboratório, ao trabalho técnico e manual à pesquisa de equipe. Admirável, tenham conseguido produzir uma ciência e uma estrutura institucional, pagan­do alto preço ao ufanismo que os levaria às aberrações nacionalistas dos anos 30, à Ditadura de 37, às restrições criminosas à imigração – enfim, até ao Racismo.

Livrou-se Roquette dessa maleita e do racismo arianista pelo concei­to problemático de uma raça brasileira – ou brasiliana – encontrada por Euclides no sertanejo, por Roquette nos nhambicuaras. Bastante cientista, no entanto, Roquette percebeu que esse brasiliano não podia ser “antes de tudo um forte” e continuasse analfabeto, verminótico, tuberculoso, en­quanto exercesse práticas agrícolas destrutivas – e que era preciso tratá-lo, dar-lhe hospital, vacina, arado. Essa a grande missão que destinava ao Estado e às elites do seu tempo. Nessas esperanças, de alguma forma, comungamos, indivíduos ou instituições. Desse idealismo, não no sentido de Oliveira Vianna, mas no comum, Roquette, como o livro assaz demonstra, foi exemplo egrégio e continua mestre e inspirador.

José Arthur Rios – Sócio emérito do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Subsistência e poder: a política do abastecimento alimentar nas Minas setecentistas – SILVA (RBH)

SILVA, Flávio Marcus da. Subsistência e poder: a política do abastecimento alimentar nas Minas setecentistas. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008. 293p. Resenha de: BASSO, Rafaela. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.30, n.60, 2010.

Subsistência e poder: a política do abastecimento alimentar nas Minas setecentistas, escrito por Flávio Marcus da Silva, traz uma contribuição significativa para o campo da historiografia sobre Minas Gerais colonial, na medida em que analisa a dinâmica do abastecimento alimentar na região no século XVIII, a partir de uma perspectiva política. Nesse sentido, a proposta do historiador é atentar para as diferentes estratégias empreendidas pela Coroa Portuguesa para garantir o acesso da população aos gêneros alimentares de primeira necessidade e evitar qualquer desordem pública. Porém, acreditamos que essa não é a única importância da obra, uma vez que o estudo desenvolvido por ela perpassa várias instâncias da sociedade mineradora, buscando decifrá-la e repensá-la não só no âmbito geral da política e da economia, mas também no cotidiano, através do estudo da alimentação. Vejamos por quê.

O problema da instabilidade do mercado de víveres, no que diz respeito ao suprimento regular da população, era frequente em várias regiões da América Portuguesa. Ainda mais na sociedade mineira, que nesse período estava em seus primórdios e sem estrutura para receber o contingente de pessoas que para lá migravam, vindas de várias partes, inclusive da metrópole, em busca de ouro e pedras preciosas. Não foram raros os problemas referentes à escassez, à má qualidade e à carestia dos gêneros alimentares, os quais afligiam a população dessa região na primeira metade do século XVIII e geravam conflitos com as autoridades locais. Esses conflitos criavam um ambiente propício para a sublevação dos povos, o que de fato ocorreu algumas vezes no período. O livro analisa, portanto, a questão do abastecimento, cujo papel era fundamental para garantir

o êxito da administração na região e também para aquietar a população. Para se embrenhar nas tessituras da cultura política metropolitana, o his toriador revisita obras de autores como Adam Smith, E. P. Thompson, John Bohstedt, Adrian Randall e Andrew Charlesworth, que também se dedicaram ao estudo das políticas intervencionistas no âmbito do abastecimento alimentar. Esse debate forneceu ao autor acesso a conceitos explicativos, tal como o de economia moral extraído da obra A economia moral da multidão inglesa no século XVIII, de E. P. Thompson. Nesse trabalho, o historiador inglês aponta como as intervenções do poder público na comercialização de gêneros de primeira necessidade na Inglaterra moderna foram resultado de uma série de motins da população contra a fome generalizada no período. De acordo com Thompson, as revoltas eram motivadas por uma visão “consistente tradicional das normas e obrigações sociais, das funções econômicas peculiares a vários grupos da comunidade, as quais, consideradas em conjunto, podemos dizer que constituem a economia moral dos pobres”. Tal postura estaria relacionada com noções que a comunidade tinha sobre o que era direito e dever do Estado, as quais seriam legitimadas por antigas tradições.

Deve-se ressaltar que essa categoria analítica será reavaliada por Flávio Marcus da Silva, tendo em vista dar conta da especificidade da realidade colonial de Minas. Para ele, o conceito deve ser mais abrangente a fim de esmiuçar

o equilíbrio de forças estabelecido entre governantes e classes populares, mediante um acordo implícito para garantir o cumprimento das obrigações sociais. Nesse ponto entra em cena a teoria corporativa do Estado, de António Manuel Hespanha. De acordo com essa teoria, a sociedade portuguesa – incluindo também suas possessões coloniais – deveria ser entendida como um organismo onde cada indivíduo tinha uma função para o bom funcionamento do corpo social e político. Nesse sentido, o soberano ocupava a posição da cabeça do “corpo”, cuja função deveria ser a de garantir o cumprimento da justiça mantendo a ordem e a harmonia dentro de seus domínios.

O uso dessas noções, em seu arcabouço teórico, permitiu a Flávio Marcus da Silva analisar as seguintes estratégias empreendidas pela Coroa para sanar os problemas advindos da crise de subsistência: a concessão de terras para a agricultura, a taxação dos gêneros de primeira necessidade, a fiscalização dos pesos e medidas, bem como a preocupação com a manutenção das estradas. Por desenvolver essa análise, acreditamos que o autor se propõe a romper com interpretações que, através de uma perspectiva política, trabalham com a dicotomia entre colonizadores e colonizados, como se não houvesse interesses comuns entre ambas as partes. Tais interpretações seriam advindas de uma visão que entende a colonização portuguesa somente como um vasto empreendimento predatório, voltado a explorar a colônia para atender os interesses da Coroa, sejam eles econômicos, políticos ou religiosos, entre outros. O historiador, por sua vez, quer trabalhar de uma nova maneira a relação entre colônia e metrópole, pois a pesquisa por ele desenvolvida o levou à elaboração da tese de que uma das preocupações centrais da administração em Minas era garantir a subsistência dos povos.

Nesse contexto não podemos deixar de mencionar que Flávio Marcus da Silva não se centra apenas nas ações das autoridades, pois ele nos possibilita visualizar a atuação dos mais diversos agentes históricos envolvidos, desde a produção e a circulação até o consumo dos alimentos. O que nos chama atenção é a negociação desses sujeitos com as autoridades e as relações sociais mantidas entre ambas as partes. De acordo com o autor, os habitantes de Minas perceberam que uma vez o Estado estando estabelecido por aquelas partes, sua obrigação seria garantir a subsistência da população. Além do mais, havia a noção da vulnerabilidade do aparelho administrativo metropolitano e o temor de que a população se amotinasse contra a falta de víveres. As autoridades, desta forma, não poupariam esforços para evitar conflitos, pois haveria o receio de que esses fossem duradouros, a ponto de ameaçar a estabilidade do controle sobre a área.

O que se pretende mostrar é a ação dos mais diversos indivíduos pressionando as autoridades por meio de ameaças, protestos e pequenas sublevações, a fim de que atitudes fossem tomadas com relação ao problema do abastecimento alimentar. Mesmo que na maioria dos casos as ações dos moradores não objetivassem solapar o domínio dos portugueses na região e sim firmar as bases legítimas desse domínio, sua postura política não pode ser deixada de lado, uma vez que demonstram a capacidade do povo de se organizar e defender seus interesses. Nessa proposta, Flávio Marcus da Silva analisa ainda o papel de indivíduos que, de certa forma, representaram um empecilho para o estabelecimento eficaz das políticas de controle sobre a dinâmica do mercado alimentar, tais como proprietários de terras, quilombolas, mercadores, negras de tabuleiro e atravessadores.

Podemos propor que o livro, além de trazer um olhar inovador sobre a política colonial empreendida em Minas, também traz contribuições no que diz respeito à maneira como aborda a economia local. O autor, influenciado por trabalhos que buscam repensar o papel da economia interna dentro da sociedade colonial,1 relativiza algumas ideias consagradas acerca da pobreza da Capitania, a qual estaria ligada ao exclusivismo da extração mineral e à lógica externa desse setor econômico. Dessa forma, ele se opõe à interpretação que relega para segundo plano a estrutura produtiva interna e a comercializa ção alimentar da região, preocupando-se em acompanhar o dinamismo da produção e do comércio interno. Para tanto, o diálogo com obras mais recentes sobre a historiografia de Minas Gerais2 é também fundamental, visto que elas apontam para uma diversificação desses setores, através de uma rede de abastecimento que procurava atender a demanda crescente dos moradores da zona aurífera. Contexto este que existia desde o início dos Setecentos, contrariando a imagem consagrada em outros estudos, segundo a qual a produção alimentar só teria ganhado espaço com a crise da mineração, no final do XVIII.

Ademais, acreditamos que a importância da obra Subsistência e poder reside no fato de que nela a alimentação é utilizada como chave para o entendimento das relações estabelecidas entre colônia e metrópole. Não é de hoje que a alimentação tem chamado atenção dos historiadores. Tal interesse veio se desenvolvendo desde o início do século passado, porém esse campo ainda é muito recente e pouco explorado pelos historiadores brasileiros. Acreditamos que ao trabalhar na perspectiva da História da Alimentação, a obra de Flávio Marcus da Silva é uma das contribuições que surgiram nos últimos anos para suprir essa lacuna.

O autor, ao se mover nessa perspectiva, faz uso dos mais variados enfoques para adentrar seu objeto de estudo, tais como o econômico, o social e o cultural. A presença do primeiro se manifesta na medida em que Flávio Marcus da Silva se preocupa com os problemas referentes à economia de subsistência e à sua dinâmica interna, abrangendo desde a produção até o consumo dos alimentos e sua comercialização com outras partes. O enfoque social se faz presente, visto que são abordados no livro os temas da fome e da desordem social, provenientes dos problemas de abastecimento, bem como a questão da atuação “estatal”, cujo objetivo era sanar o problema através de políticas públicas. Quanto ao enfoque cultural, apesar de não ser uma preocupação do autor e de infelizmente ser o menos explorado pelos trabalhos na área de História da Alimentação, visualiza-se sua presença ainda que tímida no livro, pois temos alguns indícios do cotidiano desenvolvido em torno da alimentação. O autor nos fornece um panorama dos hábitos alimentares daquela região, mostrando alimentos consumidos, bem como alguns de seus usos.

A obra Subsistência e poder de Flávio Marcus da Silva traz várias contribuições para os estudos históricos sobre Minas Colonial, na medida em que reflete sobre aspectos da colonização portuguesa empreendida naquelas terras. Dentre esses aspectos destaca-se a oposição à ideia de pobreza generalizada, decorrente do exclusivismo da indústria mineradora. Tal exclusivismo teria consumido todos os esforços dos colonos e relegado a produção dos gêneros de subsistência para um segundo plano. Além de apontar a importância desta última produção para o mercado interno, o autor apresenta outra face da colonização, diferente daquela intransigente e alheia aos problemas que afetavam a população. Nesse sentido, ao buscar penetrar na sociedade mineira partindo das tensões que a constituíam, ele move constantemente as fronteiras do econômico, do político e do social, apresentando um estudo revelador de toda uma complexa rede de relações que permearam tal sociedade.

Notas

1 Dentre essas obras podemos citar os trabalhos pioneiros de LINHARES, Marie Yeda. História da agricultura brasileira, combates e controvérsias. São Paulo: Brasiliense, 1982;         [ Links ] e de LAPA, José Roberto do Amaral. Economia colonial. São Paulo: Perspectiva, 1973,         [ Links ] bem como outros que os seguiram, como o de FRAGOSO, João. Homens de grossa ventura: acumulação e hierarquia na praça do Rio de Janeiro 1790-1830. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.         [ Links ]

2 GUIMARÃES Carlos Magno. Uma negação da ordem escravista: quilombos em Minas Gerais no século XVIII. São Paulo: Ícone, 1988;         [ Links ] FURTADO, Júnia. Homens de negócio: a interiorização da metrópole e do comércio nas Minas setecentistas. São Paulo: Hucitec, 1999;         [ Links ] e MENESES, José Newton Coelho de. O Continente rústico: abastecimento alimentar nas Minas Gerais setecentistas. Diamantina (MG): Maria Fumaça, 2000.         [ Links ]

Rafaela Basso – Mestranda da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Departamento de História. Rua Cora Carolina, s/n – Campinas – SP. E-mail: [email protected].

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Espaço e política – LEFEBVRE (BGG)

LEFEBVRE, Henri. Espaço e política. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2008, 192 p. Resenha de: MONDARDO, Marcos Leandro. Boletim Goiano de Geografia. Goiânia, v. 30, n. 1, jan./jun. 2010.

Espaço e política é um livro que reúne uma coletânea de artigos do filósofo Henri Lefebvre originalmente publicados em 1972 na França,1 contendo uma seminal análise e discussão “teórica” a respeito da produção do espaço e, notadamente, sobre o espaço urbano e a cidade. O autor propõe a elaboração de uma teoria sobre a problemática do espaço (teoria, aliás, que viria desenvolver mais a fundo em livro posterior),2 na qual busca desenvolver uma análise da totalidade dos elementos que produzem o espaço a partir da teoria marxista.

O livro contém sete artigos, dentre os quais podemos agrupar as discussões em duas perspectivas (não diacrônicas, mas sincrônicas) da teoria/problemática da espacialidade.

Na primeira parte do livro, percebe-se que os três primeiros artigos – “O espaço”, “Reflexões sobre a política do espaço” e “A cidade o urbano” – apresentam uma discussão mais “teórica”, do ponto de vista da conceituação do espaço mediante a construção de hipóteses sobre a “produção do espaço”, de sua definição e conceituação. Concebe, então, uma reflexão filosófica acerca da “reprodução das relações sociais de produção, em sentido amplo, por meio da construção do espaço urbano e da cidade na sua forma-conteúdo material e vivida. Assim, para o autor, produção significa também e sobretudo criação. Criação de obras (tempos e espaços incluídos) pelos e para os homens nas e pelas quais possam realizar e reconhecer a trajetória da formação do ser humano.

Na segunda parte estão concentrados os quatro últimos artigos: “Engels e a utopia”, “As instituições da sociedade pós-tecnológica”, “A burguesia e o espaço”, “A classe operária e o espaço”, em que o autor faz uma análise das “variáveis” que produzem o espaço, como as instituições, a burguesia, as classes e a utopia, cada qual com suas relações, conflitos, lutas e contradições.

Para Lefebvre, houve transformações na maneira como a cidade foi produzida na sociedade tradicional e como passou a ser construída na sociedade capitalista. Nessa última, segundo o autor, passa-se da produção das coisas no espaço à produção do espaço planetário. Avança-se da consideração clássica dos lugares de implantação industrial para o espaço inteiro, ou seja, ocorre uma mutação, pois o espaço (e não as coisas no espaço) é que passa a ser produzido, agora, em escala planetária, sendo por isso a mais-valia o motor dessa relação social mundial.

Lefebvre menciona que existem vários métodos e abordagens no que concerne ao espaço, e isso em diferentes níveis de reflexão, de recorte da realidade. Para ele, por exemplo, pode-se estudar o espaço percebido, isto é, aquele da percepção comum à escala do indivíduo e de seu grupo, a família, a vizinhança, aí compreendendo o que se chama de ambiente.

Uma das hipóteses levantadas é aquela que concebe o espaço como resultado do trabalho e da divisão do trabalho, pois ele é o lugar geral dos objetos produzidos, o conjunto das coisas que o ocupam e de seus subconjuntos, efetuado, objetivado, sendo portanto funcional de acordo com um conjunto ou setor de atividade. O espaço é, amiúde, o objetivo, ou melhor, a objetivação do social, das relações que a sociedade materializa a partir de uma intencionalidade.

Por isso, para o autor, o espaço tornou-se instrumental. Lugar e meio onde se desenvolvem estratégias, onde elas se enfrentam, o espaço deixou de ser neutro, geográfica e geometricamente, há muito tempo. Logo, o espaço não é neutro e nem inofensivo; pelo contrário, está – como considera Lefebvre – sendo cada vez mais instrumentalizado, ganhando novas formas, conteúdos e significados para se tornar estratégico, dotado de intencionalidades para ser utilizado como meio para se atingir a “dominação”. O espaço produzido é, portanto, o espaço projetado.

Em outra hipótese, o autor afirma que o espaço é significante, e comporta significados que são dotados de experiências e sentidos que produzem/influenciam nossos comportamentos. Trata-se daquilo que Lefebvre chama de espaço vivido, vinculado à prática social. Esse espaço vivido, também chamado pelo autor de mental, gera o espaço social que está relacionado às estratégias desenvolvidas na cidade. Dessa forma, hoje, o mental e o social se reencontram na prática: no espaço concebido e vivido. Demonstra, assim, a relação dialética entre o espaço mental (percebido, concebido, representado) e o espaço social (construído, produzido,  projetado). A produção do espaço concebe o espaço racional-funcional- -instrumental e o espaço vivido-concebido-mental.3 Há, portanto, uma intersecção entre o espaço da representação e a representação do espaço. O espaço, por isso, é ao mesmo tempo ideológico (porque político) e dotado de saber (pois comporta representações elaboradas)”.

4 Pode-se, consequentemente, denominá-lo racional-funcional, sem que tais termos possam separar-se, e funcional-instrumental, pois a função, no quadro global da sociedade “neocapitalista”, implica o projeto, a estratégia. Isso demonstra a capacidade que tem o espaço de ser racional- -funcional através da “representação do espaço”, e funcional-instrumental por ser o “espaço da representação”. Existe, em níveis diferentes, um amálgama na produção do espaço entre o espaço da representação e a representação do espaço, no desenvolvimento cada vez mais complexo das relações capitalistas alastradas na espacialidade.

Desse modo, a produção do espaço urbano perpassa pelo cotidiano dos sujeitos que são e produzem o espaço urbano. O cotidiano é elemento fundamental na construção das cidades e nas formas idiossincráticas de produção do espaço urbano, como considera também Carlos (2004). Corrêa (1995, p. 26), por sua vez, afirma que “O espaço é concebido como locus da reprodução das relações sociais de produção, isto é, reprodução da sociedade”, pois, como afirma Lefebvre(1999a, p. 39), “Quem diz ‘produção’ diz também ‘reprodução’, ao mesmo tempo, física e social: reprodução de um modo de vida”. Ou seja, como material, se (re)produz também um modo de vida, que comporta ideias, sonhos, desejos…

O espaço, então, para Lefebvre, não seria nem um ponto de partida – ao mesmo tempo mental e social, como na hipótese filosófica – nem um ponto de chegada – um produto social ou o lugar dos produtos – mas, e, sobretudo, “um intermediário em todos os sentidos desse termo, ou seja, um modo e um instrumento, um meio e uma mediação” [grifos nossos] (Lefebvre, 2008, p.44). Nessa hipótese, o autor considera que o espaço é um instrumento político intencionalmente manipulado, sendo, por isso, um meio nas mãos de “alguém”, grupo, classe, indivíduo, isto é, de um poder (por exemplo, Estado, Igreja), de uma classe dominante (comerciantes, imobiliários, industriais) ou de um grupo político que tanto pode representar a “sociedade” de um município, Estado ou o Mundo, quanto ter seus próprios objetivos, por exemplo.

Como mediação, um espaço pode se tornar instrumental e tanto permitir impor uma aparente e manifesta coesão (pela “violência”), quanto mascarar as contradições da realidade (sob uma “atmosfera” de coerência racional e objetiva). Ocorre no espaço uma regulação buscada, pretendida, projetada, o que não quer dizer obtida em sua objetividade, em sua “plenitude”. Esse espaço, concomitantemente funcional e instrumental, vincula-se à reprodução da força de trabalho pelo consumo. Na re-produção dos meios de produção faz parte a força de trabalho, pelo trabalho produtivo, que é o motor do consumo de massa. Sendo assim, o espaço na sociedade capitalista é, para Léfèbvre, o meio e o modo, ao mesmo tempo, de uma organização do quadro de consumo (e de vida), cuja reprodução da força de trabalho se manifesta por meio das contradições.

Por isso, a expressão “produção do espaço”, provavelmente cunhada por Lefebvreno final dos anos 60, visa responder aos processos de reprodução das relações capitalistas de produção. O espaço para Lefebvreconsiste no lugar onde as relações capitalistas se reproduzem e se localizam com todas as suas manifestações de conflitos, lutas e contradições. Existem, assim, contradições do espaço, mesmo se dissimuladas, escondidas ou mascaradas. As contradições do espaço advêm – para Lefebvre– do conteúdo prático e social e, especificamente, do conteúdo capitalista que, por extensão, expressão a dimensão política da luta, da disputa, do conflito entre, por exemplo, as classes sociais. Nesses termos, o espaço na sociedade capitalista pretende ser racional quando, na prática, é comercializado, despedaçado, vendido em parcelas. Sendo um espaço capitalista, é um espaço seletivo, espaço para aqueles que detêm o poder do consumo, que dá o “direito” à propriedade privada do solo e ao seu uso.

Assim ele é simultaneamente global e pulverizado, vivido e funcional, concebido e vendido, imediato e distante, estratégico e intencional, quadro da reprodução da vida e do consumo. Apresenta, portanto, um caráter paradoxal pois tenta definir um “aqui”: junto e ao mesmo tempo separado. É dessa maneira que ele é concomitantemente dominado (pela técnica) e não apropriado (para e pelo uso). Ele é imediato e mediato, ou seja, pertence a uma certa ordem próxima, a ordem da vizinhança, e uma ordem distante, a sociedade, o Estado, o capital.

Por comportar essa problemática, o espaço é eminentemente político. Ele é dotado de intencionalidades e sentidos e por isso é estratégico. Possui uma “ordem”, uma ordenação espacial, um arranjo e disposição que visam atingir certos objetivos, certo projeto. O espaço urbano – mas não só ele – é um projeto, é projeto através de sua instrumentalização técnica, racional e funcional e, amiúde, politicamente conduzido e produzido.

Nesse contexto, Lefebvre considera em seu livro Espaço e política que o espaço urbano tornou-se o lugar do encontro das coisas, das pessoas e da troca sendo, por isso, fundamental para a reprodução da condição humana. Portanto, excluir do urbano grupos, classes, indivíduos, implica também excluí-los da civilização, até mesmo da sociedade. É fundamental, nesse cenário, a luta pelo direito à cidade. O direito à cidade, de outros tempos e outros espaços, que não o do consumo e do mercado, que concebe o espaço vivido, o espaço da não segregação e do respeito e convívio com a diferença socioespacial.

O direito à cidade significa, portanto, a constituição ou reconstituição de uma unidade espaço-temporal, de uma reunião, no lugar de uma fragmentação. Ele não elimina os confrontos e as lutas, ao contrário; mas permite, dá o direito que as pessoas possam estabelecer trocas e relações, significa o direito dos cidadãos-citadinos e dos grupos que eles constituem (sobre a base das relações sociais) de figurar sobre “todas” as redes de relações sociais, os circuitos de comunicação, de informação, de trocas, de vivenciar experiências múltiplas no espaço urbano diferentemente produzido e diferencialmente apropriado.

Sobretudo, o livro Espaço e política de Henri Lefebvre é uma imprescindível contribuição para a reflexão e análise da problemática do espaço para aqueles estudiosos seja da Geografia, Sociologia, Filosofia, Arquitetura, História dentre outros que se preocupam com a produção da cidade e do espaço, notadamente do espaço urbano, das suas disputas e conflitos, pois é da política que emerge o espaço para Lefebvre.

Notas

1 LEFEBVRE, Henri. Le droit à la ville – suivi de Espace et poltique. Paris: Éditions Anthropos, 1972.

2 LEFEBVRE, Henri. La production de l’espace. Paris: Éditions Anthropos, 1974.

3 Lefebvre (1974) desenvolveu plenamente, em livro posterior, essas “duas” características por meio daquilo que ele distingue no processo de produção do espaço como apropriação de dominação (“possessão”, “propriedade”); o primeiro, sendo um processo muito mais simbólico, é carregado das marcas do “vivido”, do valor de uso; e, o segundo, mais concreto, funcional e vinculado ao valor de troca. Segundo o autor, “O uso reaparece em acentuado conflito com a troca no espaço, pois ele implica ‘apropriação’ e não ‘propriedade’. Ora, a própria apropriação implica tempo e tempos, um ritmo ou ritmos, símbolos e uma prática”. Logo, “Tanto mais o espaço é funcionalizado, tanto mais ele é dominado pelos ‘agentes’ que o manipulam tornando-o unifuncional, menos ele se presta à apropriação. Por quê? Porque ele se coloca fora do tempo vivido, aquele dos usuários, tempo diverso e complexo” (Lefebvre, 1974, p. 411-412).

4 A produção do espaço não se limitaria apenas à produção física do capital, mas inclui também a produção da(s) forma(s) de vida da(s) pessoa(s), com suas ideias e representações, pois “A produção em sentido amplo (produção do ser humano por ele mesmo) implica e compreende a produção de ideias, das representações, da linguagem. (…) Os homens produzem as representações, as ideias, mas são ‘os homens reais, ativos’” (Lefebvre, 1999b, p. 44). Desse modo, o autor afirma que o conceito de produção é também uma representação porque abarca as relações sociais por meio da auto-reprodução do ser humano, ser social, espacial e temporal. O conceito de produção, nesse sentido, comporta as representações que interpretam as vivências e as práticas: “Las representaciones circulan, pero en torno a fijezas: las instituciones, los símbolos y arquetipos. Interpretan la vivencia y la práctica: intervienen en ellas sin por ello conorcelas ni dominarlas” (Lefebvre, 1983, p. 28). Assim, “(…) as representaciones son productos de la mente humana, de la división social del trabajo. Interpretaciones de la práctica, mutiládola o transponiéndola, se utilizam políticamente” (Lefebvre, 1983, p. 29).

Referências

CARLOS, Ana Fani. Espaço e tempo sociais no cotidiano. In: _____. O espaço urbano: novos escritos sobre a cidade. São Paulo: Contexto, 2004. p.59-66.

CORRÊA, Roberto Lobato. Espaço, um conceito-chave da Geografia. In: CASTRO, Iná Elias de; GOMES, Paulo César da C.; CORRÊA, Roberto Lobato. Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p.15-47.

LEFEBVRE, Henri. La production de l’espace. Paris: Anthropos,1974.

_____. A cidade do capital. Rio de janeiro: DP&A, 1999a.

_____. A revolução urbana. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999b.

_____. La presencia y la ausencia: contribución a la teoria de las representaciones.

México: Fondo de Cultura Económica, 1983.

_____. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001  Resenha

Marcos Leandro Mondardo – Universidade Federal da Bahia

Antropologia Brasiliana: ciência e educação na obra de Edgard Roquette-Pinto – LIMA (RBH)

LIMA, Nísia Trindade; Sá, Dominichi Miranda de (Org.). Antropologia Brasiliana: ciência e educação na obra de Edgard Roquette-Pinto. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008. 327p. Resenha de: OLIVEIRA, Lucia Lippi. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.29, no.58, DEZ. 2009.

Durante o século XIX ainda existiam dúvidas sobre como deveria ser chamado o nascido no Brasil. Não por acaso o principal jornal do Império denominava-se Correio Brasiliense. Já no início do século XX, ao apresentar um panorama da evolução da ciência no país, Roquette-Pinto se referia à contribuição científica dos ‘brasilianos’ e ao Brasil ‘brasiliano’, aquele depois de Ron-don. Essa mesma designação foi usada por Nísia Trindade Lima e Dominichi Miranda de Sá, organizadoras da coletânea Antropologia Brasiliana.

As quatro partes do livro mapeiam a ciência – a Antropologia – e a área de atuação – a educação – de Edgard Roquette-Pinto. A primeira parte, como diz seu título, trata do “Perfil e trajetória”; a segunda, de “Positivismo e nação”; a terceira, de “Antropologia e população”, e a última, de “Ciência e ação”. Na “Apresentação”, as organizadoras ressaltam que Roquette-Pinto é mais lembrado e reconhecido por suas realizações no rádio e no cinema educativos, ou seja, como divulgador da ciência, e é relativamente esquecido como cientista, estudioso das raças e dos tipos antropológicos brasileiros. Destacam, também, um ponto central presente na maioria dos artigos: Roquette-Pinto, com base em pressupostos da antropologia física e da biologia mendeliana, refutou as teses da inferioridade dos mestiços brasileiros.

Os artigos da coletânea procuram, cada um à sua maneira, situar a trajetória e a obra de Roquette-Pinto no contexto da época e mostrar como as questões-chave dos anos iniciais do século XX envolviam o fortalecimento da República e da nação. A ciência da época – o Positivismo – prometia progresso e civilização, e nesse quadro sobressaía o papel dos engenheiros, dos médicos e dos educadores. As figuras de Oswaldo Cruz, Paulo de Frontin, Aarão Reis, Pereira Passos, Euclides da Cunha e Cândido Rondon, entre outros, podem iluminar os diagnósticos, as expectativas, as atuações, e também os desencantos dos primeiros anos da República no Brasil. Essa era a reação dos desiludidos, que procuravam respostas para a questão: “como explicar o atraso do Brasil?”. Os intelectuais cientistas entraram no debate lançando mão do que tinham à disposição: leis biológicas, eugenia, mestiçagem, ‘branqueamento’, imigração. Tudo isso foi acionado, com diferentes combinações, para explicar a formação do povo, da ‘raça’ brasileira, do ‘tipo’ nacional, e tentar responder ou resolver a questão mencionada.

O “Prefácio”, de Robert Wegner, assim como o artigo “Roquette-Pinto e sua geração na República das Letras e da Ciência”, das organizadoras do livro, oferece um bom guia de leitura. Então, como reapresentar aqui o livro aos leitores? O que selecionar? Como a seleção se faz guiada por motivações derivadas do trabalho do leitor/resenhador, esclareço as questões que guiaram minha leitura.

A construção de um regionalismo no Brasil durante o Estado Novo, reiterada pela atuação do IBGE na redefinição do mapa do país, ao estabelecer em 1941 a divisão regional do Brasil, foi acompanhada pela apresentação e divulgação de desenhos que representavam ‘tipos brasileiros’, como o seringueiro, o vaqueiro, o pescador, a baiana e o gaúcho, entre outros. Percy Lau, desenhista e funcionário do IBGE, foi o autor dos desenhos dessas figuras que frequentaram os livros de Geografia por muitas décadas. Durante a leitura, eu me perguntava: essa história de ‘tipos brasileiros’ teria a ver com sociologia de Oliveira Viana? Lendo Antropologia Brasiliana pude entender melhor a matriz dessa classificação e conhecer o papel dos estudos de Roquette-Pinto no debate sobre a unidade ou pluralidade da ‘raça’ brasileira. Os artigos de Giralda Seyferth, de Jair de Souza Ramos e de Vanderlei Sebastião de Souza, que compõem a terceira parte do livro e analisam a Antropologia do autor, oferecem a chave explicativa do debate em questão.

Giralda Seyferth, no magnífico artigo “Roquette-Pinto e o debate sobre raça e imigração no Brasil”, analisa a obra antropológica do autor confrontando-a com a antropologia da época, em especial com o que já se dizia nos Estados Unidos (sobretudo Franz Boas). Roquette-Pinto produziu uma classificação dos ‘tipos nacionais’, assunto de destaque da antropologia física, que importava até mesmo para assuntos demográficos. Suas categorias se reportavam à cor da pele: leocodermos (brancos), melanodermos (negros), xantodermos (mestiços de branco e índio, indicativo da cor amarela) e faiodermos (mestiços de branco e negro). As classificações foram elaboradas com base em amostragem significativa de homens jovens oriundos de todos os estados brasileiros. Segundo Giralda, Roquette-Pinto, mesmo com uma bibliografia cheia de paradoxos, de classificações ambíguas, foi capaz de mostrar “a falácia da desigualdade racial, a heterogeneidade da população, a normalidade dos mestiços e a impossibilidade de vaticinar a formação de um tipo nacional” (p.161).

O artigo de Vanderlei Sebastião de Sousa, “‘As leis da eugenia’ na Antropologia de Edgard Roquete-Pinto”, também aborda a pesquisa “Notas sobre os tipos antropológicos do Brasil”, cujo texto foi publicado em 1928 no Boletim do Museu Nacional e apresentado em 1929 no Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia. Ali Roquette-Pinto concluía que nenhum dos tipos da população brasiliana apresentava qualquer estigma da degeneração antropológica. Negava assim os supostos efeitos negativos que derivariam da miscigenação social. Reafirmaria em Ensaios de antropologia brasiliana (1933) que não havia mal algum no processo de mestiçagem, na combinação de fatores biológicos que levaram à formação de um tipo híbrido, e que haveria mesmo, nessa formação, uma eugenia saudável. Assim, o homem brasileiro precisava era ser educado, e não substituído.

Jair de Souza Ramos, no artigo “Como classificar os indesejáveis?”, acompanha a participação de Roquette-Pinto no debate da seleção racial suscitado pela política de imigração. Explora os passos dados na identificação e restrição aos imigrantes indesejáveis e reafirma que Roquette-Pinto – convocado a participar nos debates das políticas de imigração por sua condição de antropólogo, autor de Rondônia (1917) e diretor do Museu Nacional (de 1926 a 1936) –, usando os caminhos da antropometria, abordando a questão da mestiçagem sob o ângulo da eugenia, ou seja, como portador de um discurso racialista, foi crítico da superioridade das raças. O uso da categoria ‘racioalismo’ como o autor do artigo esclarece, é feito no sentido explicitado por Todorov:

As doutrinas racialistas têm três pressupostos: 1) os homens se diferenciam em grandes grupos chamados raças, os quais possuem certa unidade física, que lhes confere determinadas características psicológicas e culturais; 2) o predomínio do grupo sobre o indivíduo (isso significa supor que o comportamento do indivíduo é determinado, em grande medida, pelo grupo racial ao qual ele pertence); 3) as ‘raças’ não seriam apenas diferentes, mas também desiguais. (p.206)

Para além dos artigos que tratam da questão das raças e dos ‘tipos nacionais’, gostaria também de ressaltar o artigo de Regina Horta Duarte, “Rumo ao Brasil: Roquette-Pinto viajante”, que enfoca a viagem como uma vitória sobre a rigidez dos costumes, como algo capaz de forjar uma abertura no caráter do indivíduo e de operar uma transformação em cada brasileiro. As via-gens de Euclides, de Rondon, dos médicos sanitaristas, dos modernistas paulistas às cidades mineiras e de Mário de Andrade ao Norte e Nordeste vêm merecendo atenção de inúmeros analistas. No caso de Roquette-Pinto o foco da transformação tem a ver com o impacto produzido pelo encontro com os Nhambikuáras em 1912, quando, acompanhando Rondon, fez sua viagem de descoberta do Brasil. Roquette-Pinto fez anotações e fotografou os índios, seus enfeites, seus apetrechos, suas habitações. Gravou a narração de lendas e cantigas, filmou o preparo da mandioca, os trabalhos de tecelagem e fiação. Observou, desenhou, documentou tudo, como prova e também como fonte de conhecimento a ser utilizado na educação.

Para Roquette-Pinto, a constituição da nação implicava vencer distâncias, e as estradas eram referidas como ‘vasos nutridores’ do Brasil. Se os ‘tipos brasileiros’ precisavam e podiam ser melhorados pela educação, o país enfrentava dificuldades adicionais derivadas da grande extensão territorial. Pode-se então compreender o papel do rádio e do cinema como projetos de divulgação do saber, como meios eficazes de vencer distâncias, de ultrapassar os limites do espaço e do tempo, possibilitando que os homens do povo realizassem suas viagens transformadoras. Daí sua frase: “Para nós o ideal é que o cinema e o rádio fossem, no Brasil, escolas dos que não têm escola”. Tanto suas ações envolvendo o rádio e o cinema quanto sua atuação como editor da Revista Nacional de Educação, fundada em 1932, falam de uma mesma estratégia de partilhar o conhecimento entre os brasileiros espalhados pelo território nacional, nos informa Regina Horta Duarte.

A concepção de nação como domínio sobre os territórios e suas populações, as ideias sobre a importância do saber geográfico na construção da nação, estavam na ordem do dia. A premiação de Rondônia e de A expansão geográfica do Brasil Colonial, de Basílio de Magalhães, em 1917, pelo IHGB, falam dessa tendência. A repercussão de Os sertões já indicava isso. A relação entre ocupação do território e população também está fortemente presente na historiografia de Capistrano de Abreu. Se nação é combinação entre território e população, Roquette-Pinto estudou, escreveu, atuou nos dois campos, e procurou responder ao desafio de vencer dificuldades de ambos: vencer distâncias e demonstrar que o povo mestiço não era inferior. Seu compromisso com a nação, sua missão de construir a nacionalidade guiou sua trajetória e sua obra.

Ao discutir e apresentar a obra de Roquette-Pinto, Antropologia Brasiliana oferece um importante panorama das teses e dos confrontos de posições entre os intelectuais e cientistas que compunham a geração que pensou o Brasil na Primeira República. Mostra também a complexidade e a riqueza do pensamento da época ao fazer uso das categorias ciência, desigualdade, mestiçagem, branqueamento, imigração e democracia. Se alguns dos temas são questões do passado, outros estão presentes nos dias de hoje, quando políticas de ação afirmativa baseadas em critérios raciais vão se tornando correntes nas ações do Estado brasileiro. É importante que historiadores, sociólogos e antropólogos tomem conhecimento das experiências anteriores, quando a raça foi a principal moeda para condenar o mestiço brasileiro e para classificar os imigrantes desejados.

Lucia Lippi Oliveira – Socióloga, pesquisadora e professora do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC/FGV). Praia de Botafogo, 190. 22250-900 Rio de Janeiro – RJ – Brasil. [email protected].

Leituras críticas sobre Evaldo Cabral de Mello / Lilia M. Schwarcz

A editora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em parceria com a Fundação Perseu Abramo, lançou, em 2008, a coleção „Intelectuais do Brasil‟, para abordar o conjunto da obra de certos autores, cuja “reflexão sobre o Brasil seja considerada relevante para a compreensão do país”. Foram editados quatro livros naquele ano, apresentando as obras de Evaldo Cabral de Mello, Boris Fausto, Silviano Santiago e Leonardo Boff. Cada livro ficou sob a responsabilidade de um organizador, cuja tarefa, além de articular a apresentação da obra e do respectivo autor selecionado, era reunir um grupo de pesquisadores para efetuarem análises aprofundadas. Lilia Moritz Schwarcz foi a responsável pela organização das leituras críticas que foram feitas sobre a obra de Evaldo Cabral de Mello.

Embora a coleção não apresente o que está entendendo por „intelectual‟, supõe que são indivíduos cuja obra e atuação diante do cenário nacional e internacional contribuíram diretamente para que questões políticas e culturais fossem pensadas e repensadas, quanto ao presente (ao passado e ao futuro) das sociedades. Tal definição, mesmo que indiretamente, aparece interligada entre cada um dos quatro livros até aqui lançados pela coleção. No caso de Evaldo Cabral de Mello, tal questão se apresenta em sua atuação como historiador e diplomata, cuja relação profissional não é recente no país. Em função da presença tardia de universidades no país, a formação do ofício de historiador permaneceu, durante muito tempo, em caráter „autodidata‟. A paixão pelo ofício, alicerçava-se nos Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e seus congêneres estaduais. Sem profissionalização, a atuação „autodidata‟ dos praticantes do ofício neste período tinha que, por razões óbvias, manter-se ligados a outras profissões. O exercício da diplomacia, ao lado da prática da pesquisa histórica, foi muito comum nos séculos XIX e XX, e mesmo após a criação das primeiras universidades, a partir da década de 1920, tal tradição não desapareceu. Evaldo Cabral de Mello, nesse sentido, esta enraizado nesta tradição de pesquisa, que media história e diplomacia: “fez uma carreira em tudo singular: seguiu a diplomacia e sempre alardeou um „horror‟ às instituições, as quais, segundo seu próprio depoimento, são sempre muito „conformistas‟” (p. 11), mas não se limitou a ela. Em suas obras, a “fonte documental permite perceber como a identidade é uma criação social, opositiva e circunstancial: uma resposta política a um contexto político [mesmo considerando sua relutância sobre o uso deste conceito]” (p. 9). Por outro lado, descortina a ideia “de que a vinda da Corte já levaria a prever uma independência conservadora e liderada pela monarquia”, cujo fundamento estava alicerçado numa interpretação finalista e parcial sobre a separação política, “condicionada pela história da Corte”, e por suas ações. Ao longo do livro, que conta com cinco ensaios, uma entrevista e um balanço dos ensaios efetuado pelo autor, apresenta-se esta questão e sua contribuição, para a produção da abra do autor.

No primeiro ensaio, Stuart Schwartz, faz um balanço da produção do autor, dando destaque as suas obras: Olinda restaurada (de 1975), Rubro veio (de 1986), O nome e o sangue (de 1989), A fronda dos mazombos (de 1995), O negócio do Brasil (de 1998) e A outra independência (de 2004). Para ele, esse conjunto formaria um sexteto de uma história regional do país, em que estudou parte do nordeste e a história de Pernambuco. Essas obras estariam articuladas num projeto historiográfico ambicioso e bem sucedido.

Em certo sentido, o sexteto de Evaldo Cabral de Mello é um exemplo brasileiro do ‘retorno à narrativa’ […]. O autor adotou este meio de exposição não porque desconhecesse a teoria nas ciências sociais, ou porque rejeitasse um modo analítico. De fato, seus livros demonstram familiaridade com um amplo espectro teórico; mas ele sempre concebeu a teoria e o método como ferramentas, não como propósitos da análise histórica. Além disso, criticou o que chama de ‘orgia’ nas ciências humanas e o abuso da interdisciplinaridade entre historiadores […] sempre se manteve de certa foram um positivista, e pensa ser possível à recuperação daquilo que realmente aconteceu no passado […] também acredita que a narrativa é a forma clássica do historiador, e o método mais adequado a sua tarefa: reconstruir os eventos do passado e explicá-los aos leitores do presente sem incorrer no pecado do anacronismo […] confia que a escrita da narrativa é o melhor método a partir do qual é possível começar a entender as estruturas subjacentes aos eventos e as conexões entre acontecimentos e estruturas. Ao mesmo tempo, sua abordagem também o tornou particularmente sensível a narrativas passadas, às maneiras através das quais atores históricos no passado representaram a si próprios e a sua realidade, explicaram eventos e usaram tais narrativas para criar uma mitologia que representa sua visão do mundo (p. 30-1).

No segundo ensaio, Luiz Felipe de Alencastro, prolonga essas análises, centrando-se na questão da narrativa contida nas obras do autor. Pauta-se na analise de: O norte agrário e o Império (de 1984), além de Rubro veio, O nome e o sangue e Olinda restaurada. Procura dimensionar a importância da narrativa histórica no encadeamento do enredo de cada um dos livros, fazendo também uma avaliação crítica do uso deste procedimento expositivo de dados. Para ele, o autor versa sobre um conflito luso-holandês, unindo a “metodologia histórica atual à erudição e à tradição regionalista”, numa reflexão que conforma três séculos de história, “conectando-a aos grandes debates historiográficos e tornando-a um dos capítulos centrais da historiografia das Américas” (p. 39).

Júnia Ferreira Furtado, em seu ensaio, analisa comparativamente O nome e o sangue com Grande sertão: veredas de Guimarães Rosa. Para ela, detendo-se na questão da mitologia política, enquanto Evaldo Cabral procurou demonstrar um segredo, ao expor a genealogia de uma família, Guimarães Rosa fez o inverso, no que diz respeito aos segredos do sertão, e as suas características políticas. De acordo com ela:

Ao revelar as vicissitudes e os percalços por que passou o personagem em sua tentativa de fraudar sua história familiar, criando o segredo que se oculta nas entrelinhas do processo [como cristão-novo], a narrativa [de Evaldo Cabral] desnuda o universo não só da sociedade do açúcar do Nordeste do Brasil, como também do mundo luso-brasileiro, suas formas de sociabilidade e seus conflitos. Um mundo em transformação, onde os negócios promoviam a inversão da ordem, mas onde o sangue, o nome, a honra, a linhagem e a nobreza continuavam a ser fatores estruturantes desta sociedade (p. 80).

A preocupação de Pedro Puntoni esteve mais em demonstrar as características metodológicas e as escolhas efetuadas pelo autor em sua obra. Para ele, o traço marcante da obra está em alcançar grandes sínteses sobre os processos analisados, investindo na questão narrativa, como forma de exposição dos dados, e na interpretação de uma massa documental impressionante. Por isso, a “prosa evaldiana nos conduz […] pelos desvãos desta sociedade conflituosa”, dando a “possibilidade de não apenas compreender a história, mas também de habitá-la” (p. 105).

Pautando-se na interpretação de A outra independência, Lilia Moritz Schwarcz no quinto ensaio do livro, voltou-se para o modo como Evaldo Cabral de Mello além de contraria as interpretações sobre a independência do país, não deixa de lado demonstrar que a história não é um processo teleológico no qual „os atores sociais‟ tem plena consciência de suas decisões e de suas atitudes. Para ela, as obras do autor “têm gerado movimento e feito a historiografia nacional passar por uma clara renovação e questionamento”, por que mostrou ângulos e aspectos do passado pouco percebidos, que teoria e método são importantes, mas apenas quando estão articuladas, a análise das fontes e a exposição dos dados, e que todo acontecimento impõem uma multiplicidade de olhares, não se limitando a uma única interpretação.

Na entrevista que concedeu a Lilia Schwarcz e Heloisa Starling, juntamente com seus comentários aos ensaios, o autor volta à questão da articulação de sua obra num projeto coerente e organizado, destacando que não haveria tal projeto. E que foi concebendo cada obra, uma após a outra, e não todas ou um conjunto ao mesmo tempo. Ressalta a importância da carreira diplomática, para a consecução de suas pesquisas. E que:

A conclusão que tirei a partir de outras leituras foi a de que a narrativa proporciona a técnica mais adaptada a realizar a integração dos saberes históricos; e que o preconceito vigente contra ela nos meios acadêmicos não leva em conta que a opção em seu favor decorre essencialmente da natureza da realidade histórica. A historia ideal de um dado acontecimento histórico seria a meu ver a que, por exemplo, tratando da Revolução de 1848 na França, combinasse o Marx do ‘18 de Brumário de Napoleão Bonaparte’ e o Tocqueville das Recordações. O historiador não pode aceitar ser posto contra a parede pela escolha entre historiar eventos ou historiar estruturas. Não há porque optar por uma em detrimento da outra. A história puramente factual é confusa e monótona; a história puramente estrutural não o é menos, mesmo quando escrita por um historiador de talento. […] Os eventos têm uma estrutura (como demonstra a história comparada das revoluções), mas a estrutura também compõe-se de ações, pois, nada tendo de metafísica, é apenas o produto de uma miríade de microeventos, e é ação cristalizada dos homens ao longo do tempo (p. 198).

A leitura desta obra dá, portanto, um belo exemplo de como uma obra é produzida, e ao longo de sua produção quais os questionamentos, dificuldades e dilemas que perpassam por seu autor. Nesse sentido, a coleção „Intelectuais do Brasil‟ constitui um empreendimento editorial inovador e didático, por permitir uma apresentação minuciosa a produção de importantes „intelectuais‟ brasileiros, que contribuíram para a produção e a renovação do conhecimento histórico nas últimas décadas. No caso das leituras aqui apresentadas sobre a obra de Evaldo Cabral de Mello não é diferente, mesmo por que os autores possibilitaram um acesso à obra viável tanto para o iniciante, quanto para o pesquisador da área. Além disso, destaque-se o intenso debate entre os comentadores e o autor, que demonstra a complexidade que sempre permeia a interpretação de qualquer obra ou autor. O que apenas torna a obra ainda mais rica e viável para consulta. A lamentar apenas o pouco espaço que foi dado a discussão da formação do autor (principalmente, em sua infância e juventude), que apenas se inseriu na entrevista.

Diogo da Silva Roiz – Doutorando em História pela UFPR, bolsista do CNPq. Mestre em História pelo programa de pós-graduação da UNESP, Campus de Franca. Professor do departamento de História da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Campus de Amambai, em afastamento integral para estudos. E-mail: [email protected].


SCHWARCZ, L. M. (org.) Leituras críticas sobre Evaldo Cabral de Mello. Belo Horizonte: Ed. UFMG; Fundação Perseu Abramo, 2008, 204p. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Historiografia e “intelectuais brasileiros”. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.15, p.122-125, jul./dez., 2009. Acessar publicação original. [IF].

Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva / Beatriz Sarlo

O passado, ao contrário do sentido mais generalizado ao qual a expressão induz, de modo algum está limitado a fatos que se perderiam prisioneiros de um tempo ido e finito. Isto porque o passado, pelo menos enquanto construção de significado, só existe enquanto tal porque há um presente que lhe serve de lugar de produção e contraste: uma lembrança a qual se recorre, uma comparação entre o que foi e já não é. Passado que, para a crítica literária argentina Beatriz Sarlo, de certa forma continuaria sempre ali, presente e emergente nos momentos em que menos se espera, fugindo muitas vezes ao controle da própria vontade, manifestando-se fora das amarras de uma operação da inteligência, quando “o retorno do passado nem sempre é um momento libertador da lembrança, mas um advento, uma captura do presente” (p.9).

Para além de uma mera categoria relacionada à observação e posicionamento diante da passagem do tempo, Sarlo, no livro Tempo Passado: cultura da memória e guinada subjetiva, problematiza o passado enquanto representação a partir de uma perspectiva que, segundo ela, tem predominado nas últimas décadas: uma espécie de valorização demasiada do testemunho, dos discursos produzidos por sujeitos que teriam vivenciado in loco e diretamente os fatos dos quais se propõem serem divulgadores.

Narração da experiência ligada à materialidade do corpo e da voz, à presença efetiva do sujeito naquele passado por ele recontado. Se por um lado isso nos levaria a afirmar que não existe testemunho sem experiência, por outro também poderíamos pensar que não há experiência sem narração, pois a linguagem realiza a libertação do aspecto mudo da experiência, redimindo-a de seu caráter imediato e do esquecimento ao qual estaria destinada, transformando-a no comunicável – na acepção de uma vivência compartilhada por meio do relato.

A narração inscreve a experiência numa temporalidade que não é a de seu acontecer (ameaçado desde seu próprio começo pela passagem do tempo e pelo irrepetível), mas a de sua lembrança. A narração também funda uma temporalidade, que a cada repetição e a cada variante torna a se atualizar (p.24).

Sarlo argumenta que, ao contrário do que possa parecer, quando nas últimas décadas houve certa impressão de que o “império do passado se enfraquecia diante do instante”, anunciada principalmente pela chamada pós-modernidade, presenciou-se de fato à erupção de inúmeras formas de representar o passado: lembranças, comemorações, lamentos, tentativas de reconstituição. Uma época que viu nascer, ou ao menos disseminar-se, a museificação, a produção intensa de romances e filmes com temáticas históricas, a realização das histórias da vida privada.

O objetivo declarado da autora é discutir as relações entre passado e memória nas últimas décadas, reagindo não aos usos jurídicos e morais do testemunho, mas a seus outros usos públicos. O que propõe é analisar a transformação do testemunho em um ícone da Verdade ou no recurso mais importante para a reconstituição do passado; discute a primeira pessoa como forma privilegiada diante de discursos dos quais ela está ausente ou deslocada. A confiança no imediatismo da voz e do corpo favorece o testemunho. O que proponho é examinar as razões dessa confiança (p.19).

Muito da análise de Sarlo está ligada ao passado recente de seu país. Principalmente ao fato de que, após sete anos de ditadura militar (1976-1983), iniciouse, e ganhou mais força, uma espécie de acerto de contas entre os argentinos – principalmente entre as vítimas diretas das arbitrariedades do regime e seus agentes. O conhecimento dos atentados contra a liberdade e a vida teriam sido possíveis, em grande parte, aos relatos daqueles que sofreram diretamente com tais medidas. A memória teria sido, na Argentina posterior à ditadura militar, mas também em outros países latinoamericanos, uma espécie de dever ao qual não se podia, e não se queria, fugir. O testemunho tornou-se uma das principais estratégias para a condenação do terrorismo de Estado.

Entretanto, argumenta Sarlo, para além de configurar-se na base probatória dos julgamentos e condenações ao terrorismo de Estado na Argentina, o testemunho se transformou num relato de grande força e penetração que não se restringiu ao âmbito do judiciário, mas que se disseminou para outras instâncias da sociedade, operando “cultural e ideologicamente” (p.24).

E esses testemunhos, em virtude das circunstâncias as quais se reportavam, geraram uma espécie de suspensão das desconfianças, sendo raramente submetidos a algum tipo de crítica. Não se desconfiava por uma série de motivos: jurídicos, com a necessidade de servirem de provas, às vezes as únicas, dos crimes cometidos pelo Estado; políticas, como demonstração do que significou a interdição da democracia; e morais, em que se considera o direito das vítimas em se manifestarem e o dever de seus interlocutores em saber o que aconteceu. Em detrimento da análise criteriosa, a tomada dos relatos como signos da verdade, facilitada pelo fato de que aquelas pessoas “estiveram lá”. Como salienta Beatriz Sarlo, o que importava “não era compreender o mundo das vítimas, mas conseguir a condenação dos culpados” (p.67).

Valendo-se muitas vezes da acumulação de detalhes, vivenciados por quem foi testemunha ocular dos fatos, tem-se a produção de um “modo realista-romântico”, quando o sujeito-narrador confere sentidos aos detalhes pelo próprio fato de que os incluiu em seus relatos. Assim procedendo, ele não se sente constrangido a atribuir significados ou explicar ausências, sendo o primado do detalhe “um modo realistaromântico de fortalecimento da credibilidade do narrador e da veracidade de sua narração” (p.51).

A partir da constatação de que o relacionamento que as pessoas mantêm com o passado é muitas vezes conflituoso, a autora pondera que nem sempre se mostra harmoniosa a relação entre história e memória: a primeira nem sempre acredita na segunda, sendo que esta freqüentemente nutre desconfianças em toda reconstituição que não a leve em conta – e mais que isso, que não a coloque em seu centro.

Diferença que de certa forma se desdobra na produção de dois tipos de fazer histórico, duas formas de lidar e produzir significados sobre o passado: uma história acadêmica, produzida segundo os cânones e estratégias de reconhecimento próprios da universidade; e uma qualificada, a partir de seus êxitos comerciais, como sendo “de grande circulação”.

A histórica acadêmica, com suas regras de métodos, que incluem as disputas por poder dentro do espaço institucional, monitora ou pelo menos serve como ponto de observância aos modos de construção de um discurso sobre o passado. Como escreveu Michel de Certeau, seu lugar de fala inclui o objetivo de reconhecimento entre os chamados pares, de legitimação perante um modo de fazer considerado adequado. Sarlo observa que toda esta preocupação não se converte necessariamente na construção de uma escrita histórica que tenha apelo ou que suscite a atenção de um público mais amplo, para além dos ditos circuitos especializados.

Característica que seria mais típica de uma história pensada como sendo de grande circulação, mais atenta não estritamente a demandas de mercado, pois não se trataria somente da produção de um artigo que se sabe de antemão que vai vender bem.

Para além do âmbito mercadológico, haveria a constatação de que este tipo de história mostrar-se-ia mais sensível aos mecanismos pelos quais “o presente torna funcional a investida do passado e considera totalmente legítimo pô-lo em evidência”. Uma história que deve encontrar suas respostas na própria esfera pública atual, atendendo às expectativas e crenças do público, orientando-se por elas. Algo que não a tornaria “pura e simplesmente falsa, mas ligada ao imaginário social contemporâneo, cujas pressões ela recebe e aceita mais como vantagem do que como limite” (p.13).

Mas como essa história, também designada por Sarlo como “de massa”, realizaria aqueles propósitos? Segundo ela, por meio da recorrência a um princípio explicativo que buscaria garantir origem e causalidade, a serem aplicados a quaisquer fragmentos de passado, demonstrando ou não uma pertinência com os mesmos. Haveria assim uma “redução do campo das hipóteses”, que acabaria por sustentar o interesse público e realizar uma “nitidez argumentativa e narrativa”, algo do qual a história acadêmica careceria. Desse modo a história de massas, de acordo com Sarlo, que reflete especialmente sobre a produção argentina sobre os anos da ditadura, não prescinde do relato pelo fato de que este acaba impondo uma “unidade sobre as descontinuidades, oferecendo uma ‘linha do tempo’ consolidada entre seus nós e desenlaces” (p.14).

Os textos não acadêmicos sobre o assunto investiriam sobre o passado de maneira bem menos regulada pelo método do que por necessidades, demandas ou expectativas políticas, intelectuais, morais e afetivas. A autora sustenta que muito do que foi escrito sobre as décadas de 1960 e 1970, não apenas na Argentina como em outros países da América Latina que tiveram experiências de regimes autoritários, principalmente as histórias baseadas em testemunhos, correspondem àquelas características.

E aqui temos o que mais parece incomodar a escritora argentina: o fato de que esses escritos oferecem antes certezas e verdades apresentadas como indiscutíveis, porque baseadas em experiências vividas, do que a possibilidade de hipóteses, de indagações, cuja confirmação ou refutação dependam substancialmente da crítica, algo de que o testemunho parece muitas vezes estar imune.

O que ela propõe é uma espécie de exercício da desconfiança, principalmente em relação à tendência que acredita ser possível “reconstituir a textura da vida e a verdade abrigadas na rememoração da experiência”. Sarlo identifica seu nascedouro com o fim, ou pelo menos o enfraquecimento, das concepções estruturalistas a partir dos anos 70, em que de certa forma houve um ressurgimento do sujeito, não mais limitado por determinismos, seja de que matizes fossem. A partir de então foi imposta o que ela chama de guinada subjetiva, quando, por exemplo, a história oral e o testemunho trouxeram à tona a confiança na primeira pessoa que “narra sua vida (privada, pública, afetiva, política) para conservar a lembrança ou para reparar uma identidade machucada” (p.19). Algo que não se limita ao campo específico da disciplina História.

A dimensão intensamente subjetiva caracteriza o presente. Isso acontece tanto no discurso cinematográfico e plástico como no literário e midiático. Todos os gêneros testemunhais parecem capazes de dar sentido à experiência (p.38).

Para Sarlo, não se trata apenas de uma questão sobre a forma do discurso, mas também das condições de sua produção, das configurações políticas e culturais que lhe conferem fidedignidade. Além disso, ela questiona o fato de que se configuram margens para algumas contradições teóricas, pois, se por um lado há o consenso de que inexiste uma dizibilidade da Verdade, com a reconstituição dos fatos em si, por outro se admite sem maiores discussões que os discursos de experiência têm uma verdade identitária.

Assim, quando ninguém se mostra favorável em defender “a verdade de uma história, todos parecem mais dispostos à crença nas verdades de histórias no plural” (p.40).

Partindo de uma reflexão de Hannah Arendt, a autora critica o fato de que as narrativas baseadas principalmente na memória e nos testemunhos, bem como uma escrita de forte inflexão autobiográfica, estão sempre passíveis de caírem numa armadilha, representada pelo “perigo de uma imaginação que se instale ‘em casa’ com firmeza demais”, sem um necessário distanciamento que proporcione e consolide uma observação mais atenta, acurada e reflexiva.

ao ofício do historiador, acabariam eclipsados por certo dever de memória, muito mais afeito a uma relação sentimental e moral com o passado. Sua inquietação, quando observa aquilo que se tem escrito e publicizado sobre a ditadura na Argentina, é que sobressaem posicionamentos muito mais “de deferência, de respeito congelado” frente alguns episódios, principalmente referentes aos sofrimentos das vítimas, em detrimento da compreensão e de um debate mais criterioso, em que não sejam privilegiadas determinadas vozes como fontes indiscutíveis – que trazem muito mais as certezas que todos esperam ouvir do que ensejam novas indagações. Para ela, na memória estaria muito mais fragilizada a “possibilidade de discussão e de confrontação crítica, traços que definiriam a tendência a impor uma visão do passado” (p.43).

O testemunho seria mais suscetível ainda a outro perigo: o anacronismo. Sarlo ilustra essa constatação com um exemplo claro. Ela recorda que nas décadas de 1960 e 1970 não havia nos movimentos revolucionários argentinos a idéia de direitos humanos, não sendo possível projetá-la incólume para o passado, ainda que tal observação provavelmente seja dificultada pelos valores e idealizações produzidas no presente – risco maior, seguindo sua linha de raciocínio, assumido pelo privilégio dado ao relato, que ressoa ainda que involuntariamente idéias de épocas distintas, apresentadas como típicas de um período específico.

Desse modo, ainda que se considere, como no caso específico das vítimas da ditadura argentina, a necessidade (pessoal, social, política e jurídica) dos testemunhos, essa “legitimidade moral e psicológica não é suficiente para fundamentar uma legitimidade intelectual igualmente indiscutível” (p.42).

Tempo Passado é escrito com erudição e nenhum pedantismo, muito pelo contrário. Com o que eu chamaria de “elegância objetiva”, traz idéias claras, bem articuladas e expostas em argumentos desenvolvidos com fluidez. Destaca-se pela proposta de elucidar, num contexto específico – mas sempre com um olhar abrangente – a construção de demandas por explicações históricas, por inteligibilidades e interpretações dos acontecimentos; os usos que podem ser feitos, do conhecimento histórico de modo geral e da memória em particular; as disputas pela versão “correta” dos fatos e como as noções de verdade em história devem sempre ser redimensionadas a partir dos artífices desta produção.

Não é um debate propriamente inovador. Mas ora, não é imprescindível que o seja. Nem sempre a maior relevância está na busca incessante por aquilo que nunca foi dito – e sim no debate contínuo sobre pontos que não devem ser esquecidos ou negligenciados por já parecer consenso. Neste caso, reitera-se o sempre oportuno cuidado em perceber e pôr em discussão a maleabilidade dos usos do conhecimento histórico.

Fabio Henrique Gonçalves –Mestrando em História Social pela Universidade de Brasília (UnB). Bolsista da Fundação de Amparo a Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (FAPEMA).


SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Tradução Rosa Freire d’Aguiar. – São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007. Resenha de: GONÇALVES, Fabio Henrique. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.14, p.212-219, jan./jun., 2009. Acessar publicação original. [IF].

Semear horizontes: uma história da formação de leitores na Argentina e no Brasil, 1915-1954 – SOARES (VH)

SOARES, Gabriela Pellegrino. Semear horizontes: uma história da formação de leitores na Argentina e no Brasil, 1915-1954. Belo Horizonte: Editora UFMG/ FAPESP, 2007. Resenha de: MISKULIN, Sílvia Cezar. Varia História, Belo Horizonte, v.23, n.38, p. 639-642, jul./dez., 2007.

Semear horizontes: uma história da formação de leitores na Argentina e no Brasil, 1915-1954 analisa com rigor o surgimento da literatura infantil no Brasil e na Argentina, na primeira metade do século XX. O trabalho que agora temos o prazer de ler é fruto da Tese de Doutorado de Gabriela Pellegrino Soares, defendida no Departamento de História da USP, sob orientação da Profa. Dra. Maria Ligia Coelho Prado.

A autora debruça-se sobre a formação da literatura infantil, destacando as semelhanças e diferenças entre os escritores argentinos e brasileiros. Diferenciando-se da literatura produzida para a escola, a literatura infantil constituiu-se em um campo próprio, no qual se buscava a ampliação do público leitor e a democratização do conhecimento por meio das produções e traduções de obras voltadas para o público infantil. O objetivo da pesquisa é compreender os esforços realizados no Brasil e na Argentina para promover a prática de leituras não escolares entre as crianças. As diferenças entre os dois países foram mostradas pelo panorama que Gabriela Pellegrino Soares traçou da rede de ensino primário e de bibliotecas escolares e populares presentes na Argentina desde fins do século XIX, enquanto no Brasil as políticas públicas voltadas à difusão da leitura foram bem mais restritas e efetivaram-se somente no século XX.

Além desta diferença de contexto, Gabriela soube muito bem enfocar o repertório nacional que compunha a literatura infantil em cada um dos países. Na Argentina, muitos escritores se dedicaram a temas nacionalistas e trabalharam em suas obras elementos da história da nação, do folclore e da natureza. Dentro deste grupo a autora apresenta as obras infantis de Ada María Elflein, Alvaro Yunke, Hugo Wast, Rafael Jijena Sánchez, Horacio Quiroga, Guillermo Enrique Hudson e Ana Maria Berry.

Entretanto, o trabalho destaca um outro horizonte na literatura infantil argentina, conformado pela revista Biliken e seu criador Constancio C. Vigil. O objetivo da publicação era a formação da bagagem cultural da criança, que se tornaria no futuro o homem moderno, self-made man. Na revista, ecoavam as idéias da escola nova, que buscava uma progressiva autonomia da criança. Além disso, Biliken era irreverente, jogava com o humor, a imaginação e a estética para valorizar o esforço e a inteligência como forma de ascensão social.

A morte de Constancio C. Vigil em 1954 encerrou uma época na literatura infantil argentina e marcou o recorte cronológico final da pesquisa. Já o recorte inicial do trabalho, 1915, refere-se ao ano de surgimento da coleção “Biblioteca Infantil”, da editora Melhoramentos, a pioneira no Brasil no campo da literatura infantil, que será estudada na segunda parte do livro.

Outro destaque dado por Gabriela Pellegrino Soares à literatura infantil argentina passou pela trajetória de Javier Villafañe, criador do teatro de títeres. Villafañe trabalhava com as dimensões lúdicas, imaginativas e poéticas através da narrativa oral, dialogando também com os princípios da renovação educacional da escola nova. Muitas de suas histórias também acabaram editadas.

No Brasil, o livro enfocou detalhadamente a produção dos escritores Monteiro Lobato e Tales de Andrade. As obras de Tales de Andrade tinham balizas ideológicas, cívicas e educacionais muito bem definidas. A maioria de suas histórias tinha como protagonista uma criança do campo que conseguia, graças aos estudos, tornar-se um “arauto das luzes” em seu meio. Neste caso, o saber letrado significava o progresso para a população rural.

Monteiro Lobato foi um marco no surgimento da literatura infantil brasileira. Ele primou pela elaboração artística nos livros infantis, pois seu objetivo era conquistar novos leitores. Gabriela relaciona as concepções educacionais de Monteiro Lobato com as idéias de Anísio Teixeira, já que Lobato via na escola uma parceira da literatura no projeto de modernização da sociedade brasileira. Anísio Teixeira, por sua vez, foi o introdutor da filosofia de John Dewey no Brasil, que propunha a integração da aprendizagem escolar com as experiências sociais.

Lobato e Teixeira acreditavam que a educação infantil deveria se dar em um “meio purificado”, em que se eliminariam os aspectos nocivos do ambiente social, sem nenhum tipo de violência física ou psicológica. O alvo era incentivar a busca pela melhoria de vida e a integração social das crianças. Em sua minuciosa pesquisa, Gabriela Pellegrino Soares mostrou como as obras de Monteiro Lobato criaram situações de aprendizagem em que se exemplificaram as práticas educacionais de Anísio Teixeira.

A autora também ressalta que os elementos críticos, ateus e irreverentes da obra de Monteiro Lobato encontraram resistências entre certos mediadores culturais, por exemplo, os censores católicos, as autoridades governamentais e até entre certos expoentes da escola nova, como Lourenço Filho e Cecília Meireles.

A segunda parte de Semear horizontes: uma história da formação de leitores na Argentina e no Brasil enfoca sobretudo as mediações e os mediadores culturais, ou seja, indivíduos e instituições que se dedicaram a criar, divulgar ou circular a literatura infantil. Duas mediadoras foram selecionadas pela autora: Gabriela Mistral, escritora chilena, mas com uma importante atuação no campo educacional argentino e mexicano e, no caso do Brasil, a escritora Cecília Meireles. Gabriela Mistral foi professora no ensino público do Chile por duas décadas e atuou nas reformas educacionais de José Vasconcelos no México. Difundiram-se na Argentina suas perspectivas de educação infantil, muito afinadas com as idéias da escola nova. Além disso, em suas obras criou poesias voltadas às crianças, trabalhando com elementos do folclore, do campo e da cultura popular.

Cecília Meireles participou do movimento escolanovista, além de assumir a direção do Instituto de Pesquisas Educacionais no Rio de Janeiro. Fundou a Biblioteca Popular Infantil em 1934, que se tornou o Centro de Cultura Infantil no Rio de Janeiro, com a promoção de inúmeras atividades culturais. Entretanto, em 1937, foi invadido e fechado por ordem do interventor sob o pretexto de possuir em seu acervo um livro de “conotação comunista”: As aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain.

Gabriela Pellegrino Soares também nos presenteia com a apresentação das produções infantis de Cecília Meireles e aproxima sua obra daquela elaborada por Mistral: as duas escritoras valorizavam a sensibilidade e a vivacidade infantis, ao acreditarem que o amor, a alegria e a harmonia estariam no cerne das atitudes voltadas às crianças. O livro não deixa de apontar as diferenças entre elas, já que Cecília Meireles combatia o ensino religioso nas escolas brasileiras, enquanto que Gabriela Mistral tinha uma formação cristã.

Ao destacar instituições culturais que foram mediadoras das leituras infantis, Gabriela Pellegrino Soares elegeu duas bibliotecas modelares: a Biblioteca Nacional de Maestros, de Buenos Aires, cuja seção infantil foi fundada em 1916 por Leopoldo Lugones, e a Biblioteca Infantil de São Paulo, criada em 1935, durante a gestão de Mário de Andrade no Departamento de Cultura de São Paulo, e dirigida por Lenyra Fracarolli.

Ao analisar o acervo, os funcionários e o ambiente das bibliotecas, além da freqüência das crianças às mesmas, o objetivo do trabalho foi constatar como as bibliotecas participaram da criação de repertórios culturais e da construção de atividades sociais junto ao público infantil, ao visar sua formação moral e intelectual e a democratização do acesso aos livros. Na visão da autora, as duas Bibliotecas foram formas de realização de ações de modernização cultural por parte do Estado, perante a sociedade da época, já que divulgaram um determinado repertório e também contribuíram para a internalização de atitudes e de princípios morais e estéticos nas crianças.

Por último, analisa as concepções editorais da Melhoramentos, cuja coleção “Biblioteca Infantil” foi dirigida por Lourenço Filho. Por meio da análise de seus pareceres, Gabriela Pellegrino Soares pode ricamente nos mostrar o papel de destaque que a literatura infantil ocupou nesta editora, já que Lourenço Filho acreditava que as obras infantis deveriam complementar o papel da escola. A autora destacou como o diretor da coleção tinha restrições aos contos de fadas e também as depurações que fazia com os contos da tradição oral popular. Como as obras infantis sempre passavam pela leitura de um educador antes de chegar nas mãos das crianças, o objetivo de Lourenço Filho era conquistar a confiança dos mediadores culturais, para finalmente chegar às crianças de forma criativa e recreativa.

Ao realizar uma extensa e exaustiva pesquisa em diferentes tipos de fontes raramente examinadas,1 o livro de Gabriela Pellegrino Soares proporciona aos leitores do início do século XXI um olhar esclarecedor das concepções intelectuais, educacionais e literárias que guiaram os diversos agentes e instituições que buscaram conformar um campo da literatura infantil no Brasil e na Argentina na primeira metade do século XX. Trata-se de uma contribuição fundamental para pensar as diferenças e semelhanças que certas vezes distanciaram e muitas outras aproximaram a história dos dois países vizinhos na América Latina.

Nota

1 Walter Benjamin dedicou-se em alguns trabalhos a analisar livros infantis. Veja: BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. Trad. de Marcus Vinicius Mazzari. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2004.

Sílvia Cezar Miskulin – Doutora em História pela Universidade de São Paulo – USP. Pós-doutoranda em História/ Universidade de São Paulo/ bolsa FAPESP. E-mail:  [email protected]

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[DR]

Timor-Leste Por Trás do Palco / Kelly C. Silva e Daniel S. Simão

Publicado recentemente, o livro “Timor-Leste Por Trás do Palco – Cooperação Internacional e a Dialética da Formação do Estado” é ruma coletânea de textos produzidos por autores com as mais diversas formações e experiências na área de cooperação internacional, e produto do seminário internacional Cooperação Internacional e a Construção do Estado em Timor- Leste. O livro apresenta uma crítica às práticas da cooperação como instrumento de poder e de suas relações com as conjunturas históricas, poderes e culturais locais pré-estabelecidas, bem como os problemas decorrentes da atuação de diversas organizações na região.

Os autores organizadores possuem formação na área de antropologia, e realizaram uma intensa pesquisa de campo em Timor Leste. Algumas questões principais são lançadas ao longo da obra, e na tentativa de respondêlas, os textos trazem à tona as inúmeras facetas e os problemas derivados do campo da cooperação internacional e de sua atuação na reconstrução de um Estado.

Um das questões abordadas que instigam a reflexão do leitor é a atuação dos organismos internacionais no Timor-Leste, vista por algum tempo como exemplo fantástico de como uma cooperação internacional deve se dar, e que se transforma – a partir de uma crise militar – em um modelo de Estado fracassado. Essa é a idéia que a obra tenta refutar. Nenhum dos extremos deve ser tido como verdadeiro. Não se trata de um exemplo de perfeição, mas também não se trata de um modelo totalmente equivocado e implodido com tal crise. Os problemas, segundo alguns dos textos, são provenientes de dificuldades que estão presentes em qualquer outro tipo de atuação internacional, e os fatos acorridos não depõe contra toda uma construção positiva decorrente dos projetos empreendidos pelas organizações atuantes.

Ao identificar os problemas, o livro aborda questões fundamentais para a compreensão dos erros e acertos e porque não dizer, para correção e elaboração de novos projetos nas áreas de relações internacionais, política interna e externa, atuações militares – sobretudo da Força de Paz, com intensa participação brasileira – e projetos culturais na reconstrução de um Estadonação.

O livro, composto de vários artigos, é dividido em três partes. Na primeira delas, intitulada “Timor-Leste: passado, presente e futuro.”, procedeuse à uma análise do período que vai do início da ocupação colonial portuguesa até o acirramento da crise no país, passando diferentes momentos do longo período e principalmente pelos problemas causados pela exploração, pelos problemas das tentativas de descolonização, culminando com a crise militar e com a sua solução através da intervenção internacional.

Os portugueses estiveram presentes desde as conquistas do século XVI, de modo que, na reconstrução do país, tema principal do livro, torna-se imprescindível o papel da presença do passado colonial português, pois são inúmeros e importantes os laços estabelecidos entre a cultura portuguesa – bem como as influências intercontinentais inerentes a ela – e as populações locais.

Em 1975, a Indonésia anexou o Timor-Leste ao seu território. Como resistência, houve a formação de guerrilhas armadas e redes clandestinas de combate ao invasor, além da resistência diplomática formada por exilados na Austrália, Moçambique e Portugal. Em 1999 a Organização das Nações Unidas (ONU) propõe uma espécie de consulta popular para definir a anexação. Com resultado contrário, dá-se uma retirada em meio a massacres e a destruição de grande parte da estrutura física do país.

Em busca de uma solução, a ONU interveio através da UNTAET/ United Nations Transitional Administration in East Timor (Administração Transitória das Nações Unidas no Timor Leste), que incluía uma administração civil juntamente com uma força de paz, na tentativa de reconstrução e instauração de um governo autônomo. Além da ONU, outras organizações internacionais passaram a auxiliar neste processo, por exemplo, Banco Mundial, Banco de Desenvolvimento Asiático, Missões religiosas, ONGs, etc…

O segundo capítulo, sob o título “Timor-Leste e a cooperação internacional. Economia, política e administração pública”, é composto de artigos que remetem aos problemas da interferência externa nas questões econômicas e políticas do país, explicitando aspectos positivos e negativos de tal cooperação. São levantadas nessa parte, questões como o papel das instituições monetárias e bancárias, da jurisdição e outros campos da administração pública, além do modo como é tratada a educação e a cultura na reconstrução do país.

A interferência internacional no campo econômico, político, e sobretudo quando procura estabelecer um processo eleitoral, torna seu papel delicado.

Uma das autoras (organizadora) do livro, em entrevista ao Jornal Folha de São Paulo, afirmou que Portugal apoiava determinado candidato, ligado à FRETILIN, às eleições, enquanto os interesses australianos estavam destinados a outros candidatos.

Tal afirmação gerou desconforto em Portugal, e provocou a seguinte carta em resposta às afirmações da pesquisadora: “Li, com interesse, a entrevista hoje (10 de abril) concedida à “Folha de S. Paulo” pela Professora Kelly Silva, da UnB, a propósito do processo eleitoral em Timor- Leste. Sem querer retirar legitimidade à livre interpretação desenvolvida nesse texto sobre o posicionamento e motivações das diferentes forças em confronto, não posso deixar de discordar sobre a alusão que nela é feita ao papel de Portugal nesse contexto, e que o título escolhido sublinhou. O meu país tem demonstrado, ao longo de décadas, um empenhamento inquestionável, e unanimemente reconhecido, em favor do reforço das instituições democráticas timorenses. Isso pressupõe o natural respeito por quaisquer resultados que decorram do respectivo funcionamento. Procurar ligar a posição oficial portuguesa a qualquer facção política em Timor-Leste configura um processo de intenções que, em absoluto, rejeitamos, por não ter apoio em quaisquer factos concretos. Embaixador Francisco Seixas da Costa”1 As acusações não incluíam apenas Portugal, pois na mesma entrevista ela afirmou que havia claros interesses da Austrália em manter a fragilidade política no Timor, para facilitar a exploração de petróleo, bem como manterse em uma posição estrategicamente favorável do ponto de vista militar.

Não vem ao caso tomar uma posição em defesa de um dos lados. Porém, o que se assinala é que o envolvimento da comunidade internacional nas questões referentes ao país nem sempre são desvinculados de interesses econômicos e políticos. Daí a importância de uma regulação e verificação de um órgão superior quando se trata do problema da cooperação internacional.

Na terceira e ultima parte, intitulada “Construção do Estado”, são levantadas questões ideológicas relativas ao papel dos órgãos internacionais na reestruturação dos poderes e autoridades, e a publicação finaliza com uma série de discussões sobre a eficácia da cooperação concedida e as dificuldades enfrentadas pela comunidade internacional.

Apesar de ser uma coletânea com diferentes abordagens, o livro parece defender uma tese: a experiência no Timor-Leste não pode ser vista como um exemplo de extrema eficiência e eficácia, como foi divulgado e se sustentou por algum tempo, mas também não se trata de um total fracasso na formação do Estado através da cooperação internacional, como passou a ser visto após a crise militar. Trata-se, segundo os autores, de uma iniciativa com erros e acertos, com sucessos e insucessos, que devem ser analisados num contexto problemático que apresenta mudanças durante o processo de reconstrução do país. Outro ponto levantado está no fato do país ter grande diversidade cultural e conjunturas históricas específicas, o que torna o papel da cooperação internacional complexo e desafiador.

O livro aponta, não apenas nesta parte, mas em sua totalidade, para pontos positivos e negativos da cooperação internacional. Uma das críticas está no conflito idiomático que instalou-se no sistema judiciário do país. O anglo-saxão usado pela cooperação internacional passou a ter que conviver com o português e com o indonésio, além das dezenas de dialetos locais.

A cooperação internacional é vista como um instrumento político que interfere no destino político do país. Deve, portanto, ser analisada criticamente, pois ao invés de resolver problemas, corre o risco de gerar outros, maiores que os existentes, aumentando as injustiças, privilegiando grupos específicos em detrimento de outros. Ao analisar criticamente o papel de tal cooperação, não só em Timor Leste, mas em outros países, a leitura do livro sugere pensar em que medida ela ocorre de modo desinteressado e realmente comprometido com a reconstrução do país, ou seja, que aspectos a tornam um problema em certos campos de atuação.

Notas 1Carta enviada ao Jornal Folha de São Paulo e publicada também no site: http://timor-online.blogspot.com/2007_04_13_archive.html Acesso: 22 nov. 2007

Fabiano Luis Bueno Lopes – Doutorando em História na Universidade Federal do Paraná.


SILVA, Kelly Cristiane; SIMÃO, Daniel Schroeter. Timor-Leste Por Trás do Palco: Cooperação Internacional e a Dialética da Formação do Estado. Belo Horizonte: UFMG, 2007. Resenha de: LOPES, Fabiano Luis Bueno. Textos de História, Brasília, v.15, n.11/2, p.291-294, 2007. Acessar publicação original. [IF]

Americanos: representações da identidade nacional no Brasil e nos EUA | Lúcia Lippi Oliveira || A conquista do Oeste: a fronteira na obra de Sérgio Buarque de Holanda | Robert Wegner

Numa passagem de entrevista publicada no número 58 da revista Novos Estudos Cebrap (2000), Roberto Schwarz chama a atenção para o “comparativismo congênito” da história literária brasileira, que localiza invariavelmente a literatura produzida entre nós no interior da tradição ocidental mais ampla, conectando, portanto, produção nacional e matrizes européias. Nos trabalhos realizados nas áreas de sociologia e história, por sua vez, continua o crítico, o Brasil parece se esgotar nele mesmo, “como se o que acontecesse aqui dispensasse a consideração do resto” (p. 54). Se a advertência parece procedente em linhas gerais — as nossas ciências sociais, obcecadas pela compreensão do país, driblaram freqüentemente a empresa comparativa e os nexos com a produção internacional —, ela não se aplica a uma série de trabalhos produzidos nos últimos anos, entre os quais figuram A conquista do Oeste: a fronteira na obra de Sérgio Buarque de Holanda, de Robert Wegner, e Americanos: representações da identidade nacional no Brasil e nos EUA, de Lúcia Lippi Oliveira, ambos cuidadosamente editados pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Apesar de seus diferentes formatos e propósitos, os estudos têm, entre outros, o mérito de desprovincianizar a reflexão sobre o país, situando-a num debate ampliado sobre a(s) América(s).

Nesse sentido, a leitura dos volumes, lado a lado, revela-se extremamente proveitosa. Poderíamos dizer que os ensaios reunidos de Lúcia Lippi esboçam um grande painel sobre as relações Brasil-Estados Unidos no seio da qual o estudo de Robert Wegner se abriga ao focalizar estas mesmas relações através da obra de Sérgio Buarque de Holanda. De modo inverso, e complementar, o retrato minucioso pintado por Wegner permite qualificar processos e dimensionar questões apontadas no vasto e elaborado painel traçado por Lippi. Leia Mais