Cultura, identidade e território no Nordeste indígena: os Fulni-ô | Peter Schröder

Quando se trata dos “índios”, no geral e mesmo ainda no meio acadêmico, após alguns anos de pesquisas e de convivência nesse ambiente com colegas de diferentes áreas do conhecimento, constatamos que um dos maiores desafios é a superação de visões exóticas para abordagens críticas, aprofundadas sobre a história, as sociodiversidades indígenas e as relações dos povos indígenas com e na nossa sociedade. E além do mais, quando diz respeito a povos como os Fulni-ô, falantes do Yaathe e do Português, sendo o único povo bilíngue no Nordeste (excetuando o Maranhão), habitando em Águas Belas no Agreste pernambucano a cerca de 300 km do Recife.

Sobre as sociodiversidades indígenas em nosso país o índio Gersem Baniwa (os Baniwa habitam as margens do Rio Içana, em aldeias no Alto Rio Negro e nos centros urbanos de São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel e Barcelos/AM), que é Mestre e recém-Doutor em Antropologia pela UnB, publicou o livro O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje, onde escreveu:

A sua diversidade, a história de cada um e o contexto em que vivem criam dificuldades para enquadrá-los em uma definição única. Eles mesmos, em geral, não aceitam as tentativas exteriores de retratá-los e defendem como um principio fundamental o direito de se autodefinirem. (BANIWA, 2006, p.47).

Após discorrer sobre as complexidades das organizações sociopolíticas dos diferentes povos indígenas nas Américas, questionando as visões etnocêntricas dos colonizadores europeus o pesquisador indígena ainda afirmou:

Desta constatação histórica importa destacar que, quando falamos de diversidade cultural indígena, estamos falando de diversidade de civilizações autônomas e de culturas; de sistemas políticos, jurídicos, econômicos, enfim, de organizações sociais, econômicas e politicas construídas ao longo de milhares de anos, do mesmo modo que outras civilizações dos demais continentes europeu, asiático, africano e a Oceania. Não se trata, portanto, de civilizações ou culturas superiores ou inferiores, mas de civilizações e culturas equivalentes, mas diferentes. (BANIWA, 2006, p.49).

Na Introdução do livro aqui resenhado, o organizador da coletânea Peter Schröder de forma bastante emblemática e provocativa afirmou: “É fácil escrever alguma coisa sobre os Fulni-ô” sendo o bastante recorrer a uma bibliografia existente. Mas, no parágrafo seguinte Schröder enfatizou o quanto é difícil escrever sobre aquele povo indígena, diante do desconhecimento resultante de barreiras impostas pelos Fulniô que impedem o acesso ao conhecimento da sua organização sociopolítica e expressões socioculturais, notadamente a língua e o ritual religioso do Ouricuri. E ainda as contestações e questionamentos dos índios aos escritos a seu respeito, elaborado por pesquisadores, mais especificamente pelos antropólogos.

Após o texto onde o organizador da coletânea procurou situar de forma resumida a história territorial Fulni-ô, segue-se o texto de Miguel Foti que resultou da Dissertação de Mestrado na UnB em 1991, onde o antropólogo procurou descrever e refletir a partir do cotidiano durante seu trabalho de campo, o universo simbólico Fulni-ô baseado na resistência do segredo das expressões socioculturais daquele povo indígena.

O texto seguinte de Eliana Quirino, que teve sua promissora trajetória de pesquisadora interrompida com o seu falecimento repentino em outubro de 2011, é uma discussão baseada principalmente na sua Dissertação de Mestrado em Antropologia/UFRN. Tendo como base as memórias Fulni-ô, a exemplo do aparecimento da imagem de N. Sra. da Conceição, a participação indígena na Guerra do Paraguai, a marcante e sempre remorada atuação do Pe. Alfredo Dâmaso em defesa dos índios em Águas Belas, a autora discutiu como essas narrativas são fundamentais para afirmação da identidade indígena e os direitos territoriais reivindicados.

Um exercício de discussão sobre a identidade étnica a partir do próprio ponto de vista indígena foi realizado no texto seguinte por Wilke Torres de Melo, indígena Fulniô formado em Ciências Sociais pela UFRPE e atualmente realizando pesquisa de mestrado sobre o sistema político daquele povo indígena. Em seu texto, Wilke procurou evidenciar as imbricações entre identidade étnica e reciprocidade, discutindo as relações endógenas e exógenas de poder vistas a partir do princípio da união, do respeito e da reciprocidade baseados na expressão Fulni-ô Safenkia Fortheke que segundo o autor caracteriza e unifica aquele povo indígena.

A participação de Wilker na coletânea é bastante significativa por se tratar de uma reflexão “nativa” e, além disso, como informou o organizador na Introdução do livro, numa iniciativa inédita e antes da publicação todos os artigos foram enviados ao pesquisador indígena para serem discutidos entre os Fulni-ô, como forma de apresentarem sugestões e as “visões Indígenas” sobre conteúdos dos textos.

Uma contribuição com uma abordagem diferenciada é o artigo de Carla Siqueira Campos, resultado de sua Dissertação em Antropologia/UFPE onde a autora discute a organização e produção econômica Fulni-ô, fundada no acesso aos recursos ambientais no Semiárido, nas diferentes formas de aquisição de recursos econômicos por meios de salários, aposentadorias e os tão conhecidos “projetos” (aportes externos de recursos financeiros) e as suas influências na qualidade de vida dos indígenas.

O artigo seguinte da coletânea de autoria de Áurea Fabiana A. de Albuquerque Gerum uma economista, e Werner Doppler estudioso alemão de sistemas agrícolas rurais nos trópicos, a primeira vista parece muito técnico devido às várias tabelas e gráficos. Seus autores discutiram com base em dados empíricos as relações ente a disponibilidade de terras, a renda das famílias a o uso dos recursos produtivos entre os Fulni-ô.

No último artigo da coletânea, Sérgio Neves Dantas abordou como as músicas Fulni-ô expressam aspectos das memorias identitárias e mística daquele povo indígena. O autor procurou também evidenciar a dimensão poética e sagrada dessa musicalidade. Sua análise baseia-se, sobretudo, na produção musical contemporânea gravada por grupos de índios Fulni-ô, como forma de afirmação da identidade étnica daquele povo.

Publicado como primeiro volume da Série Antropologia e Etnicidade, sob os auspícios do NEPE (Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Etnicidade), um dos núcleos de pesquisas no Programa de Pós-Graduação em Antropologia/UFPE, o livro é composto por sete artigos é complementado com uma relação bibliográfica comentada sobre os Fulni-ô, trazendo ainda em anexo vários documentos relativos às terras daquele povo indígena.

A publicação dessa coletânea é muito oportuna pelo fato de reunir um conjunto de textos, com diferentes olhares e abordagens que procuram fugir do exotismo, como também do simplismo em tratar sobre um povo tão singular, situado no contexto sociohistorico do que se convencionou chamar-se o Semiárido no Nordeste brasileiro, onde a presença indígena foi em muito ignorada pelos estudos acadêmicos e deliberadamente negada seja pelas autoridades constituídas, seja também pelo senso comum.

Diante exíguo conhecimento que se tem sobre os Fulni-ô e da dispersão dos poucos estudos publicados a respeito daquele povo indígena, provavelmente a primeira edição dessa importante coletânea será brevemente esgotada. Pensando em uma segunda edição seguem algumas sugestões. A primeira diz respeito ao próprio titulo do livro, pois da forma com estar ao ser referenciado os Fulni-ô aparecem como última parte do título: Cultura, identidade e território no Nordeste indígena: os Fulni-ô. Para um efeito prático da referenciação bibliográfica propomos então uma inversão no título para: os Fulni-ô: cultura, identidade e território no Nordeste indígena.

Sugerimos também a inclusão de mapas de localização de compreenda o Nordeste, Pernambuco, o Agreste e Águas Belas onde habitam os Fulni-ô. A nosso ver tais mapas são imprescindíveis, pois possibilitarão a visualizar o povo indígena em questão e contexto das relações históricas e socioespaciais onde o grupo estar inserido. Sabemos que imagens de uma forma em geral encarecem a produção bibliográfica, todavia a inclusão de fotografias, ao menos em preto e branco, também enriqueceria e muito as abordagens dos textos.

Por fim, uma pergunta: para enriquecer mais ainda a coletânea, porque não acrescentar na Introdução de uma reedição comentários sobre quais foram às argumentações dos Fulni-ô a respeito das leituras prévias dos textos antes da publicação e como ocorreu a recepção daquele povo ao receber o livro publicado?

Lamentamos a ausência na coletânea de artigos na área História. Infelizmente frente ainda ao pouco interesse de historiadores sobre a temática, colegas de outras áreas, principalmente da Antropologia, cada vez procuram suprir essa lacuna, realizando pesquisas em fontes históricas para embasarem seus estudos e reflexões a respeito dos povos indígenas.

Ainda para uma segunda edição ou um possível e merecido segundo volume da coletânea, lembramos o estudo A extinção do Aldeamento do Ipanema em Pernambuco: disputa fundiária e a construção da imagem dos “índios misturados” no século XIX, apresentado em 2006 por Mariana Albuqquerque Dantas como Monografia de Conclusão do Curso de Bacharelado em História/UFPE.

A mesma autora defendeu na UFF/RJ em 2010 a Dissertação de Mestrado intitulada História dinâmica social e estratégias indígenas: disputas e alianças no Aldeamento do Ipanema em Águas Belas, Pernambuco. (1860-1920). São duas pesquisas amplamente baseadas em fontes históricas disponíveis no Arquivo Público Estadual de Pernambuco e nas discussões da produção bibliográfica atualizada sobre os povos indígenas no Nordeste.

No momento em que a sociedade civil no Brasil, por meio dos movimentos sociais principalmente na Educação, questiona os discursos sobre uma suposta identidade cultural nacional, a publicação dessa coletânea reveste-se, portanto, de um grande significado. A afirmação das sociodiversidades no país, questionando a mestiçagem como ideia de uma cultura e identidade nacional, significa o reconhecimento dos povos indígenas (Silva, 2012), a exemplo dos Fulni-ô, em suas diferentes expressões socioculturais.

Buscando compreender as possibilidades de coexistência socioculturais, fundamentada nos princípios da interculturalidade,

a interculturalidade é uma prática de vida que pressupõe a possibilidade de convivência e coexistência entre culturas e identidades. Sua base é o diálogo entre diferentes, que se faz presente por meio de diversas linguagens e expressões culturais, visando à superação de intolerância e da violência entre indivíduos e grupos sociais culturalmente distintos. (BANIWA, 2006, p.51).

Essa coletânea é uma excelente referência tanto para pesquisadores especializados no estudo da temática indígena, como para as demais pessoas interessadas sobre o assunto e principalmente professores indígenas e não-indígenas que terão em mãos uma fonte de estudos sobre o tema, mais precisamente ainda na fragrante ausência de subsídios, objetivando atender as exigências da Lei 11.645/2008 que determinou a inclusão no ensino da história e culturas afro-brasileira e dos povos indígenas nas escolas públicas e privadas no Brasil.

Referências

BANIWA, Gersem dos Santos Luciano. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília, MEC/Secad; Museu Nacional/UFRJ, 2006.

DANTAS, Mariana Albuqquerque. A extinção do Aldeamento do Ipanema em Pernambuco: disputa fundiária e a construção da imagem dos “índios misturados” no século XIX. Recife, UFPE, 2006. (Monografia de Bacharelado em História)

_______. História dinâmica social e estratégias indígenas: disputas e alianças no Aldeamento do Ipanema em Águas Belas, Pernambuco. (1860-1920). Rio de Janeiro, UFF, 2010. (Dissertação Mestrado em História).

SILVA, Edson. História e diversidades: os direitos às diferenças. Questionando Chico Buarque, Tom Zé, Lenine… In: MOREIRA, Harley Abrantes. (Org.). Africanidades: repensando identidades, discursos e ensino de História da África. Recife, Livro Rápido/UPE, 2012, p. 11-37.

Edson Silva – Doutor em História Social pela UNICAMP. Leciona no Programa de Pós-Graduação em História/UFCG (Campina Grande-PB) e no Curso de Licenciatura Intercultural Indígena na UFPE/Campus Caruaru, destinado a formação de professores/as indígenas. É professor de História no Centro de Educação/Col. de Aplicação-UFPE/Campus Recife E-mail: [email protected]


SCHRÖDER, Peter. (Org.). Cultura, identidade e território no Nordeste indígena: os Fulni-ô. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2012. Resenha de: SILVA, Edson. Os Fulni-ô: múltiplos olhares em uma contribuição para o reconhecimento das sociodiversidades indígenas no Brasil. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.30, n.2, jul./dez. 2012. Acessar publicação original [DR]

A presença indígena no Nordeste: processos de territorialização, modos de reconhecimento e regimes de memória | João Pacheco de Oliveira

A ideia desse texto não é fazer propriamente uma resenha do recém-publicado livro A presença indígena no Nordeste: processos de territorialização, modos de reconhecimento e regimes de memória, pois uma resenha diante da dimensão do conjunto de textos que compõe o livro é uma tarefa bastante árdua e demandaria um espaço bem maior dos limites que aqui propomos. Buscamos tão somente então situar o livro em um debate mais amplo: as pesquisas, as reflexões e os textos gerais publicados sobre os índios no Nordeste.

Com suas mobilizações os índios no Nordeste vêm ocupando cada vez mais o cenário sociopolítico regional e assim questionando as tradicionais visões e imagens que advogam a inexistência, a extinção ou ainda o gradual desaparecimento dos povos indígenas na Região. Durante muito tempo e até bem recentemente, os indígenas no Nordeste não foram desconsiderados nas reflexões históricas, antropológicas e das Ciências Humanas e Sociais em uma visão baseada nas concepções da aculturação ou mestiçagem, após a extinção oficial dos aldeamentos indígenas a partir de meados do Século XIX. Leia Mais

A Santa Cruz do deserto: a comunidade igualitária do Caldeirão: 1920 – 1937 | Tarcísio Marcos de Alves

ALVES, Tarcísio Marcos de. A Santa Cruz do deserto: a comunidade igualitária do Caldeirão: 1920 – 1937. Recife: Néctar, 2008. Resenha de: SILVA, Edson. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.25, n.2, p.349-354, jul./dez. 2007.

Acesso apenas pelo link original [DR]