Pierre Nora- homo historicus – DOSSE (RBH)

DOSSE, François. Pierre Nora- homo historicus. Paris: Perrin, 2011. 660p. Resenha de: SILVA, Helenice Rodrigues da. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.31, n.61, 2011.

Dando sequência ao gênero de ‘biografia intelectual’ de autores franceses que marcaram a segunda metade do século XX (Michel de Certeau, Paul Ricoeur, Gilles Deleuze/Félix Guattari), François Dosse completa um extenso trabalho sobre Pierre Nora. Figura singular no espaço intelectual francês, esse autor atravessa, de maneira discreta e silenciosa, diferentes domínios de produção e difusão (literatura, jornalismo, edição e ensino) nestes últimos 50 anos.

Conhecido pelos historiadores como um dos coordenadores (com Jacques Le Goff) de “Fazer a história” e o idealizador dos “lugares da memória”, Pierre Nora é, sobretudo, visto como o editor da maison Gallimard e o criador da famosa “Bibliothèque des sciences humaines”. Nessa coleção, a ‘nata’ da intelligentsia francesa e estrangeira (Michel Foucault, Georges Dumézil, Émile Benveniste, entre tantos outros) promove, nas décadas de 1960 e 1970, “os anos dourados das ciências humanas”.

Professor universitário (assistente na École des Hautes Études en Sciences Sociales e no Institut d’Études Politiques, nas décadas de 1970 e 1980), idealizador de diferentes coleções de ciências humanas (inicialmente na editora Julliard, em seguida na Gallimard), fundador (com Marcel Gauchet), em 1980, da revista Le Débat (importante mídia intelectual ancorada na crítica de ideias e nas análises da atualidade), imortal (eleito para a Académie Française em 2002), Pierre Nora ocupa ainda uma posição de destaque nos debates atuais da Cité (esfera pública) no que diz respeito, notadamente, aos imbróglios da memória, da história e do patrimônio francês.

No entanto, autor de um único livro, publicado durante a guerra da Argélia, Les Français d’Algérie, e de numerosos artigos (jamais agrupados) sobre história do presente e epistemologia da história, Pierre Nora encarna o intelectual solitário, o escritor de talento que duvida do caminho a seguir, e que se sente incapacitado para edificar uma obra individual.

Ao longo de um trabalho denso e detalhado, graças, notadamente, a uma extensa documentação do arquivo pessoal do biografado, François Dosse reconstitui os diversos itinerários desse historiador, buscando entender o enigma do acadêmico ‘fora da norma’. Como bem mostra a biografia, o paradoxo de Nora, editor de grandes livros em todas as disciplinas – da linguística à economia, da antropologia à história, da filosofia à política – residiria na sua impossibilidade de se afirmar como autor de uma obra.

Sensível à recepção de novas ideias, Pierre Nora publica, desde a década de 1960, textos até então inéditos e originais, produzidos na França e no estrangeiro. De As palavras e as coisas, de Michel Foucault, a Montaillou, povoado occitâneo, de Leroy Ladurie (300 mil exemplares vendidos), Pierre Nora, na Gallimard, lança os best sellers das ciências humanas e sociais. No entanto, duas obras de peso que marcaram seu tempo constituíram exceções. Tristes trópicos, de Lévi-Strauss, e A era dos extremos, de Eric Hobsbawm, foram recusados pela editora.

Ora, como explicar a trajetória de um autor sem obra, mas que parece ter feito de sua existência sua própria obra? Tal interrogação constitui um ‘desafio biográfico’ (título de um dos livros de François Dosse). Pierre Nora seria mais solícito a ideias de seus autores que à produção de suas próprias ideias. Escritor talentoso, ele teria dito: “os melhores editores são, certamente, escritores reconvertidos, reprimidos, transformados”.

Pautada por sucessos e fracassos, sua trajetória intelectual é reveladora de um Ser em busca permanente de si mesmo. Nora coloca em dúvida seu percurso, critica as normas acadêmicas e recusa fechar-se dentro de uma disciplina. Mas, ao lado de aparentes frustrações e insucessos (os concursos de admissão para a École Normale Supérieure, a renúncia a uma tese já iniciada, a desistência de trabalhos coletivos) encontram-se incontestáveis conquistas. Graças a seu dom de escritor, a sua visão antecipada e a sua incansável curiosidade, Pierre Nora obtém a difícil agrégation em história (concurso para se tornar professor da Educação Nacional), antecipa a criação de novos modelos historiográficos e consegue sobreviver à crise das ciências humanas e sociais, criando, em 1980, uma revista aberta aos debates intelectuais.

Relatar essa ‘aventura intelectual’ solicita, por parte de um bom biógrafo, recursos da psicanálise. François Dosse é, assim, levado a ressaltar uma experiência traumática, vivida pelo jovem Pierre aos 12 anos. De origem judia, totalmente assimilada à República francesa, a família Nora (originalmente Aron, antes do século XIX) se considera, no entanto, “uma família judia mais francesa do que francesa”. Refugiado com os parentes no sul da França, no momento da ocupação alemã, Pierre se salva de uma rafle (uma blitz para prender judeus) organizada pela Gestapo. Nas palavras do biógrafo, esse episódio drástico acrescentará certa inquietação e gravidade a sua existência, marcando-o para sempre.

Na opinião de François Dosse, a lembrança desse acontecimento incidirá, provavelmente, sobre seu trabalho intelectual posterior, levando-o a repensar as categorias da memória e da história: “[Esta] será, incontestavelmente, a contribuição mais decisiva de Pierre Nora à historiografia; a sua singularidade de judeu o leva a valorizar a memória – o Zakhor [‘lembre-se’] -, mas a submete a uma artilharia ininterrupta da crítica à disciplina histórica, à vigilância histórica”.

Outras pistas que podem explicar suas escolhas ou suas recusas são recenseadas: o autoritarismo do pai, o sucesso de um irmão mais velho (aluno brilhante na prestigiosa École Nationale d’Administration – ENA, alto funcionário das finanças e conselheiro de Mendès France, presidente do conselho de ministros da IV República), a paixão inicial pela literatura e poesia, o espírito crítico em relação à retórica e à filosofia ensinadas na juventude. Este último aspecto justificaria seu triplo fracasso no concurso de admissão para a École Normale Supérieure. Destinada aos futuros filósofos, a ENS constitui um dos ‘lugares de passagem’ da elite intelectual e ‘republicana parisiense’.

No entanto, a escrita de Les Français d’Algérie (1961) despertará seu interesse pelos arquivos. Nora idealiza, ainda na editora Julliard, o lançamento de uma coleção de bolso que apresentaria aos leitores a integralidade dos arquivos, acompanhados de comentários por parte de especialistas. Intitulada “Archives”, essa coleção, publicada em 1964, parece renovar a disciplina história. Seu projeto de lançamento de novas coleções, desta vez na editora Gallimard, se concretizaria na “Bibliothèque des sciences humaines”, na “Bibliothèque des histoires” e na coleção “Témoins”.

Seus sucessos editoriais, no entanto, o impedem de elaborar seu próprio pensamento. Em carta redigida no final da década de 1960, Edgar Morin demonstra sua inquietude e afirma:

cada vez mais, você encarcera sua primeira personalidade, que penso que é sonhadora, meditativa, afetuosa, plena de curiosidades profundas que vão alhures. Não existe uma solução em vista, mas existe um caminho: cultive sua própria filosofia. Isto não quer dizer: faça uma tese ou um livro, ou ande a cavalo. Isto quer dizer, apenas, que é hora de partir em busca da expressão daquilo que mais conta dentro de você mesmo.

Ora, segundo François Dosse, a grande obra na vida de Pierre Nora realizar-se-á através de sua ligação íntima com a França, por intermédio dos ‘lugares da memória’; ele até afirma que um ‘momento Nora’, semelhante a um ‘momento Michelet’ e a um ‘momento Lavisse’, marcará a historiografia francesa.

Esse empreendimento ‘memorial’, coordenado por Pierre Nora, tem por origem seu seminário sobre história do presente, na École des Hautes Études en Sciences Sociales, e durará mais de 10 anos, concluído em 1993 com a publicação do último tomo dos “Lugares da memória”. Propondo o retorno ao questionamento sobre a nação mediante a análise dos ‘lugares da memória’ (material, simbólico, funcional), o primeiro tomo consagra-se à “República” (1 volume sobre o século XIX), o segundo (3 volumes) à “Nação” (a partir da Idade Média), e o terceiro (3 volumes) às “Franças” (les France).

Trabalho historiográfico e epistemológico notável na trajetória intelectual de Nora, esse ‘empreendimento’ ocupa um espaço central em sua biografia. No capítulo intitulado “A fábrica dos lugares da memória”, François Dosse descreve a confecção dessa produção historiográfica lembrando que, nas décadas de 1980 e 1990, a expressão ‘lugares de memória’ passa a integrar a linguagem corrente. Se a noção da memória emerge no território dos historiadores franceses, ela se apresenta como coadjuvante da categoria da história. Através dos ‘lugares da memória’, Pierre Nora fornecerá “uma resposta histórica pessoal a esta situação ‘ambígua’ do intelectual francês judeu; desta [situação] resulta sua relação passional com este monumento editorial”.

No entanto, a partir da década de 1970, a França conhece o ressurgimento das memórias ocultas, reprimidas e recalcadas pela história oficial. Consequentemente, o fenômeno do après coup, do traumatismo, expresso pelos sobreviventes das catástrofes do século XX, modificará sensivelmente a abordagem do passado. Contudo, longe de exprimir a dialética da memória e do esquecimento (da memória coletiva), os ‘lugares da memória’ (responsáveis pelo retorno da questão nacional, por intermédio da memória e da política) se erigem como um estudo do patrimônio francês.

Embora reconhecendo seu valor heurístico, compartilho as críticas emitidas por alguns historiadores franceses (citadas por Dosse). Enquanto patrimônio nacional (simbólico e material), os ‘lugares da memória’ sacralizam a história oficial, os mitos da nação, os lugares de culto. Assim, os sete volumes que formam os três tomos dessa coletânea não deixam de representar um ‘monumento histórico’, uma celebração da história nacional francesa. Voltados à trilogia – a República, a Nação e as Franças – os ‘lugares da memória’, injustificadamente, não levam em conta a análise do passado colonial, ou seja, do império francês e da guerra da Argélia, esquecendo-se dos traumatismos da memória coletiva (o governo de Vichy, a guerra da Argélia e o tráfico de escravos, dentre outros).

Analisar, retrospectivamente, o chamado ‘momento Nora’ nos tempos atuais da vigência do paradigma da global history leva os historiadores a exprimir sérias reservas em relação à matriz histórica do Estado-nação. Além do mais, a noção de ‘identidade nacional’ (intrínseca e explícita a esta obra), que se transformou em uma categoria polêmica e perigosa na França atual, obriga os historiadores a rever as interpretações históricas e historiográficas das décadas anteriores.

Em contrapartida, é de fundamental importância o empreendimento posterior de Pierre Nora para a história intelectual. Criada em 1980, a revista Le Débat (dirigida por Pierre Nora, Marcel Gauchet e Krzysztof Pomian) se propõe a repensar novos modelos intelectuais e/ou ‘a mudança de paradigmas’ nas ciências humanas. Aberta à inovação, à reflexão, às contribuições estrangeiras e, sobretudo, à heterogeneidade das ideias, ela se instala na paisagem intelectual como uma referência obrigatória.

“A palavra-chave para caracterizar Le Débat é a abertura, uma vontade de descompartimentalização, de romper as fronteiras, tanto disciplinares como nacionais.” Ao longo dos 30 anos de sua existência, o espírito de renovação e a sensibilidade em relação às mutações históricas e intelectuais do momento da revista permanecem atuais.

Conjugando história do intelectual, história intelectual e história da historiografia francesa (dos últimos 50 anos), este estudo biográfico oferece ao leitor um estimulante percurso através das ideias. Abordando diferentes cenários – instituições, pessoas, obras e redes sociais -, François Dosse reconstitui tensões políticas e intelectuais, debates ideológicos, modelos de análise etc. através do percurso original de um discreto ‘aristocrata de esquerda’..

Helenice Rodrigues da Silva Silva – Professora Associada, Universidade Federal do Paraná. Rua General Carneiro, 460. 80060-150 Curitiba – PR – Brasil. E-mail: [email protected].

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