Creer en la historia | François Hartog

Hartog es un académico francés cuyas inquietudes abarcan el tiempo y su vinculación entre las categorías de pasado, futuro y presente. Sus especialidades abarcan el mundo de la Antigüedad y tocan temas como la representación del Otro en Heródoto, o la memoria en el mito de Ulises. Fundamental en Creer en la Historia, notaremos las conexiones desde lo más antiguo con ideas de Grecia clásica, hasta las definiciones más contemporáneas, de mano del giro lingüístico y su propuesta para la historia presente y del presente. A partir de conceptos como patrimonio, memoria, identidad y tiempo, el autor nos introduce al panorama de la historia en el siglo XXI. El autor enuncia el cisma del paradigma historiográfico en el periodo de la Segunda Guerra Mundial, momento en que la disciplina pierde su sentido, deteriora el acto de pronunciarse sobre su contexto y cuestiona su rol en el tribunal del mundo, en los juicios de la Historia (esa con mayúsculas, con un sentido anterior y guiada por el Progreso). Uniendo la historia con la literatura, mayormente francesa, los cruces intentan demostrarnos que creer en la historia es algo que no sólo viene desde nuestro campo, sino también en la experiencia de época. Leia Mais

Oliveira Lima e a longa História da Independência | André Heráclio do Rêgo, Lucia Maria Bastos P. Neves e Lucia Maria Paschoal Guimarães

Lucia Neves e Lucia Guimaraes Oliveira Lima e a longa História da Independência
Lucia Maria Bastos P. Neves e Lucia Maria Paschoal Guimarães | Fotos: A Hora e CocFioCruz.br

NEVES Oliveira Lima Oliveira Lima e a longa História da IndependênciaHá uma intrigante expressão popular na língua inglesa que sempre desafia o sujeito na direção da curiosidade e da investigação. Cito-a aqui no original: “more than meet the eye”. Ao que tudo indica, trata-se de uma expressão idiomática cuja origem histórica é difícil de rastrear, mas que nos brinda com uma imagem deveras interessante e ilustrativa: a do olhar em movimento, que se desloca na direção de algo com a intenção de “encontrar” o que não lhe parece óbvio, o que pode ainda ser revelado, elaborado, e portanto compreendido.

Cai como uma luva, no meu humilde entender, para dialogarmos nesta breve resenha, acerca da imensa contribuição intelectual e historiográfica, que podemos despreocupadamente constatar em cada página da obra Oliveira Lima e a longa história da Independência, organizada por André Heráclito do Rêgo, Lucia Maria P. Neves e Lucia Maria Paschoal Guimarães. Leia Mais

Como será o passado? História, historiadores e a Comissão Nacional da Verdade

A obra Como será o passado? História, historiadores e a Comissão Nacional da Verdade é o resultado de um projeto de pesquisa da autora, Caroline Silveira Bauer, “Um estudo sobre os usos políticos do passado através dos debates em torno da Comissão Nacional da Verdade (Brasil, 2008-2014)”, sendo este apenas um dos muitos projetos envolvendo a ditadura civil-militar, os direitos humanos e a Comissão Nacional da Verdade nos quais a autora se envolveu. Antes da publicação deste livro, Bauer havia analisado comparativamente políticas de memória no Brasil e na Argentina, e mais recentemente integra um projeto de pesquisa sobre os usos políticos do passado. Além disso, entre 2011 e 2013 foi consultora na Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Portanto, dado o domínio da autora sobre o tema e sua familiaridade com tantas questões que o tangenciam, não é de surpreender que se trate de uma leitura tão interessante e instigante.

Segundo afirmado pela historiadora na introdução do livro, seu objetivo era o de “fomentar o debate sobre fazeres e práticas dos historiadores comprometidos com uma escrita da história que fundamenta suas análises no pensaras possibilidades de intervenção no mundo”1 , que considero ser seguro afirmar, a obra cumpre com maestria, trazendo à luz questionamentos sobre o papel de organizações como a CNV no estudo de história, bem como o papel de historiadores e historiadoras no que diz respeito à estes órgãos. A autora admite, contudo, que o livro pode ser considerado “inoportuno, insistente ou rancoroso”2 por quem critica o anacronismo da Comissão da Verdade, que deveria ter existido em outro momento, mas é justamente este um dos pontos da obra: compreender se esta comissão foi capaz de apaziguar os ânimos no que diz respeito a memória da ditadura civil-militar. Leia Mais

Como será o passado? História, historiadores e Comissão Nacional da Verdade / Caroline S. Bauer

Uma linha do tempo em sentido crescente percorre a quarta capa em direção à capa, com início no ano do golpe, 1964, e fim no ano da publicação, 2017. Acima, a questão: Como será o passado? A pergunta incomoda pelo óbvio: como empregar um verbo no futuro para refletir sobre o que já foi? Interessa à autora, Caroline Silveira Bauer, investigar como um órgão de Estado, no caso a Comissão Nacional da Verdade (CNV), lançou uma narrativa capaz (ou não) de pacificar interpretações a respeito do complexo passado da ditadura, alvo de concepções opostas. Trata-se de um passado vivido, mas também relatado – o que, no futuro, entender-se-á sobre este passado? É dessa maneira que o debate proposto pela professora de História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) chega a um considerável número de acadêmicos dedicados a estudar o momento pós-ditadura no Brasil. A publicação é fruto do projeto “Um estudo sobre os usos políticos do passado através dos debates em torno da Comissão Nacional da Verdade (Brasil 2008-2014)”, que esteve em atividade entre 2014 – ano da publicação do relatório da CNV – e 2017.

A obra localiza-se em um contexto de notório interesse da academia sobre a recente experiência brasileira de uma comissão da verdade e, assim como em outras obras, questiona as potencialidades e os limites desse recurso como política de Estado que visava a superação de um passado de exceção. Trata-se, nesse caso, de uma incursão profunda nas teorias que se dedicam a pensar o lugar da memória, da verdade e da narrativa em relação a eventos traumáticos, ao mesmo tempo em que localiza o caso brasileiro – suas disputas, imprecisões e críticas à CNV – em diálogo com a literatura nacional e estrangeira. Acima de tudo, o livro é um olhar a partir da historiografia, que mira para uma narrativa que mobiliza temporalidades e noções de história, mesmo sem se inscrever no campo da disciplina em questão. Desde essa perspepctiva, Bauer oferece uma análise sobre a CNV, que demonstra como o órgão se comprometeu a alicerçar em solo movediço, uma interpretação de caráter incontestável sobre o passado. Movediço, pois despreza a possibilidade de reinterpretação de fenômenos históricos, compreendendo tempo como categoria fixa (o que passou, passou e há uma verdade sobre o que ocorreu, da mesma maneira como o futuro parece ser controlável – nele seria possível imprimir uma narrativa socialmente aceita, pacificada, sobre o passado). No decorrer da obra, a autora adiciona elementos que complexificam as posições aparentemente ingênuas da Comissão em relação à maneira como percebe a história: volta-se às disputas de projetos, ao negacionismo, à continuidade do Estado violento e à múltipla dimensão temporal de um passado que não se sabe se passou e como se inscreverá no futuro.

Para defesa dessa tese, o livro divide-se em uma introdução e três capítulos e se inicia com a discussão sobre como a historiografia brasileira sobre a `ditadura civilmilitar` tem perdido sua “inocência epistêmica”, e, assim, promovido trabalhos com criticidade no que compete à dimensão ética e política da análise historiográfica.

Prepara-se, com isso, solo para pousar as questões principais do livro, centradas em indagar como será o passado, nas omissões e silêncios prováveis de serem encontrados na ideia da CNV sobre a ditadura, bem como nas percepções sobre história que emergem do relatório produzido pela Comissão. Ao tratar questões presentes, a historiadora visita acontecimentos fundantes da ótica política sobre o tema, com destaque à lei de anistia (1979) e à ideia de cordialidade e esquecimento que tangenciam o marco legal. Essas características são tratadas pela autora como fenômenos que não se encerraram, que se dirigem para o futuro e demarcam fundamentalmente o contexto em que a CNV se originou.

Analisar a atuação da CNV como marco inicial de um processo desde o olhar de uma historiadora significou, neste livro, pensar também sobre o envolvimento de profissionais da área no interior desta Comissão, com atenção ao aprofundamento de reflexões oriundas das tensões história versus justiça, apredizado versus pena, historiadores versus juízes e tempo da história versus tempo do direito. Em uma imersão no debate teórico, o primeiro capítulo, “História, historiadores e Comissão Nacional da Verdade”, percorre os últimos anos do Cone Sul, marcados pelas crescentes iniciativas no campo das políticas públicas de memória ensejadas em governos progressistas. O texto adentra também à esfera teórica e metodológica, passa pelo papel da história em relação a passados traumáticos – considerando as variadas concepções sobre o que se entende por história -, e questiona o papel da história dentro da lógica da necessidade de reparação da experiência-limite. Dessa forma, o capítulo inicial da obra é composto por uma carga de reflexão assentada na teoria da história, marcado pela mobilização de referências que vão desde clássicos dedicados a temas fundantes nas Humanidades, como Paul Ricoeur e Theodor Adorno, até expoentes da nova geração na literatura sobre memória, a exemplo de Berber Bevernage.

Na segunda parte do livro, são abordadas as noções de tempo, passado-presentefuturo, e de suas durabilidades para tratar o caráter plural das experiências brasileiras em relação ao seu passado traumático. “As múltiplas temporalidades nos debates sobre a criação da Comissão Nacional da Verdade” trabalha com a diferenciação entre o tempo do violador e o tempo da vítima (Bevernage), tensão na qual residiria, de um lado, um passado que passou e que deve ficar inerte e fechado e, de outro, um passado que não passa e que prescinde de ruptura. Sob a polaridade, coloca-se a “ideologia da reconciliação” e os obstáculos do silêncio e do esquecimento, presentes no caso brasileiro, frente a uma transição pactuada e limitante em relação às expectativas para o futuro.

Assim, quando o Estado assume a posição de mediar a reconciliação visa-se o futuro por meio de ações institucionais do presente. O caso da CNV é tratado a partir da ideia de “políticas de memória”, de onde nasce a reflexão sobre a vítima, seu sofrimento e seu direito, e sobre a instrumentalização do sofrimento e os eventuais abusos de memória.

É apenas no final do capítulo que se inicia, de fato, a análise de fontes relacionadas à Comissão, a partir dos discursos parlamentares durante as discussões para adoção de sua lei. Os debates são exibidos ancorados na ideia de disputa pela memória e suas nuances temporais: algumas olham para o futuro, enquanto outras, para o passado. Ao encarar o tom de oficialidade da CNV e sua expectativa em consagrar um relato e deslegitimar outros, aborda-se, ainda, “O que (não) pode ser dito”, momento em que se evidencia valores pacificados no âmbito do discurso – como a defesa da democracia – e valores em disputa – como a denúncia sobre práticas violentas no tempo presente.

O livro é finalizado com análise sobre “O relatório da CNV e o futuro da memória”, indagando o teor da narrativa oficial e sua expectativa de se fixar na memória futura sobre o tema. Para isso, Bauer voltou-se primeiramente para as grandes questões que atribuem identidade ao relatório: a narrativa que estabelceria a verdade ao tom ‘história como mestra da vida’, exemplar, mas sem confrontos, apaziguadora com base em critérios jurídicos, sobretudo, na lei de anistia. A expectativa é quebrada, no entanto, quando se mostra que o projeto de apaziguar não foi bem sucedido, já que tanto as Forças Armadas criticaram o relatório por seu perfil `revanchista` quanto familiares de desaparecidos o consideraram insuficiente. Com uso do artifício de réquiem, a autora finaliza o livro sem conclusão, com espaço para evidenciar que toda trajetória da CNV se comprometia principalmente com o futuro e com a pós-memória em seu potencial de transmissão geracional.

Como será o passado?, tal qual expresso inicialmente, volta-se justamente para intersecção passado-futuro e sobre as expectativas frustradas de um órgão que partia da premissa de irreversibilidade histórica. O livro possibilita, assim, que se questione em que medida essa expectativa restringiu-se ao Estado (ou, ao menos a um órgão estatal) ou foi compartilhada por um setor da academia dedicado à pesquisa sobre esse tema. A opção por não oferecer uma conclusão fechada a respeito do fenômeno e sim evidenciar fragilidades e características do processo, abre espaço para a necessidade de complementações e revisões das teses apresentadas no livro e, assim, pacifica-se com a crítica dirigida à CNV: nenhuma interpretação sobre nenhum fenômeno é irreversível, principalmente considerando as tensões políticas que o permeia. Eis a grande contribuição da historiografia nesta análise.

Notas

O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil.

Paula Franco – Doutoranda em História na UnB. E-mail: [email protected].


BAUER, Caroline Silveira. Como será o passado? História, historiadores e Comissão Nacional da Verdade. Jundiaí: Paco Editorial, 2017. Resenha de: FRANCO, Paula. A contribuição da História para o passado ou para o futuro. Em Tempo de História, Brasília, v.1, n.36, p.586-588, jan./jun., 2020. Acessar publicação original. [IF].

 

 

COWLLING Camillia (Aut), Concebendo a liberdade: mulheres de cor/ gênero e abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro (T), GEREMIAS Patrícia Ramos (Trad), PENNA Clemente Penna (Trad), Editora da Unicamp (E), REIS Laura Junqueira de Mello (Res), Gênero, Agência escrava, Negociação Abolição da escravidão, Cidade de Havana, Cidade do Rio de Janeiro, Brasil, Cuba, Século 19, Em Tempo de História (ETH), Século 19, América

Camillia Cowlling é uma historiadora inglesa formada na Universidade de Oxford, realizou seu doutorado no Instituto de Estudos Sobre Escravidão, na Universidade de Nottingham. Atualmente é professora de história latino-americana na Universidade de Warwick. O foco de sua pesquisa é a escravidão e abolição na América latina, especialmente em Cuba e no Brasil. Fruto de suas investigações, lançou em 2013 o livro Concebendo a liberdade: mulheres de cor, gênero e abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro, sua obra foi traduzida para o português e publicado pela editora da Unicamp, em 2018.

A primazia do livro Concebendo a liberdade está, além de conferir um agenciamento social às mulheres escravizadas em Havana e no Rio de Janeiro, em realizar uma pesquisa partindo de uma perspectiva transnacional – ou podemos chamar também de transatlântica – entre duas das grandes cidades que, por meio da escravidão, cresceram e se desenvolveram ao longo do século XIX. Diante disso, apesar da autora utilizar fontes que já haviam sido investigadas, propõe uma obra pautada em um novo sentido. Dessa forma, o livro foi baseado a partir desses diversos aspectos referenciais que são explorados em sua narrativa.

O trabalho nos remete à perspectiva adotada por Sidney Chalhoub na obra Visões da Liberdade. Ambos os autores tomaram como aporte teórico a histórica social e buscaram resgatar a agência dos sujeitos e entendê-la a partir de suas experiências. A historiadora fez uso das mesmas fontes que Chalhoub, trabalhou em sentido próximo a este, no entanto, pensando a condição feminina. (CHALHOUB, 1990). Nesse sentido, a obra de Cowlling trabalha com diversos aspectos referentes à escravidão e a condição das mulheres negras nesse período, como: agência escrava, ação dos sujeitos, maternidade, feminilidade, gênero, entre outros.

O conceito de transnacionalidade, atualmente em pauta na historiografia é explorado pela historiadora inglesa, uma vez que ela pensa a emancipação gradual repensando o conceito de maternidade no Brasil e em Cuba. Ao analisar os dois países de forma comparativa, [1] investiga como a mesma situação ocasionou respostas parecidas em lugares diferentes.

Destacamos que a escolha por esses dois países não foi arbitrária. Cuba e Brasil foram os dois últimos países a abolir a escravidão e agiram de modo semelhante nos processos que resultaram na abolição, [2] a exemplo da Lei Moret, em Cuba, sancionada em 1870, e a chamada Lei Rio Branco, mais conhecida como Lei do Ventre Livre, no Brasil, em 1871. Ambas as leis determinavam a liberdade do ventre, ou seja, a partir dessas leis os filhos das escravas nasceriam livres; mas as mães permaneceriam escravas.

Nessas condições, Camillia Cowlling indica que tanto as escravas brasileiras como as cubanas se utilizavam de estratégias previstas no sistema legislativo para conseguirem a liberdade de seus filhos, portanto, sabiam usar as leis a seu favor. Além disso, a autora percebeu que as mães escravas passavam a agenciar sua própria liberdade utilizando-se da retórica da maternidade [3], a fim de que tivessem suas vozes escutadas, contando dessa forma com a piedade e a caridade dos que as ouviam. Tal retórica era uma estratégia de discurso. Assim, a partir da promulgação de tais leis, as mulheres negras passaram ao centro da discussão a respeito da abolição. A gestação tornou-se então um campo de disputas, e as mulheres souberam utilizar dos argumentos expostos em tais processos com o intuito de conseguirem a almejada liberdade.

Logo, podemos compreender que o processo de abolição não pode ser encarado como um projeto desenvolvido a partir de uma concessão dos Senhores, mas sim como uma consequência de diversas reivindicações elaboradas por mulheres escravizadas que, buscando argumentos e meios legais, fizeram uso de algumas alternativas cabíveis, estabelecendo assim, novas formas de alcançar a liberdade. No mais, a autora evidencia ainda que as disputas legais enfrentadas pelas mulheres negras eram travadas na dimensão cotidiana da vida e que não eram ações apenas individuais, ou seja, tais movimentos de luta pela liberdade eram fruto de redes de apoio e comunicação entre essas mulheres.

Para chegar a essa conclusão, Cowlling empreendeu uma série de buscas em muitos arquivos, principalmente, brasileiros e cubanos a fim de identificar a ação, experiência e agência dessas mulheres. Com o domínio do idioma espanhol e da língua portuguesa, a autora analisou várias fontes, como: jornais, inventários, relatórios consulares, poemas, novelas, registros de sociedades abolicionistas, relatos de viajantes, censos populacionais e ações criminais.

Na análise da documentação oficial relacionados a processos judiciais, as então chamadas “ações de liberdade”, Cowlling percebeu que a maioria das requerentes que buscavam justiça no processo de emancipação gradual eram as mulheres. Constatou também que estas sabiam utilizar de preceitos estabelecidos em lei e, além de usarem estrategicamente dos mesmos, negociavam suas liberdades com seus Senhores.

Portanto, segundo a autora, o movimento de algumas mulheres escravizadas em Cuba e no Brasil foi fundamental para o processo final da abolição, que ocorreu em 1886 e 1888, respectivamente.

Outra característica do livro é o uso das narrativas dos próprios atores históricos. Por exemplo, elaborando um texto mais fluído, já no início da obra, Cowlling traz a história de duas mulheres: Ramona Oliva e Josepha Gonçalves de Moraes. As trajetórias delas se assemelham no que se refere a tipos de iniciativas, objetivos e circunstâncias experimentadas por ambas, apesar de viverem em lugares diferentes – uma em Havana e a outra no Rio de Janeiro. Ao longo do livro, a autora vai descrevendo o caminho percorrido por essas mulheres e, ao final, apresenta a conclusão dos processos judiciais: as duas mulheres não conseguiram vitória na justiça, mas representam a dinâmica e ação das mulheres negras no Brasil e em Cuba, ao final do século XIX, e a relação das mesmas com o processo de abolição.

A diferença entre a feminilidade branca e a feminilidade negra também é um ponto fundamental destacado na obra. Às mulheres oitocentistas caberia o papel de mãe, mas até que ponto esse papel também se encaixava na condição das mulheres negras? Josepha de Moraes, por exemplo, ao solicitar a liberdade para sua filha, nascida após a Lei do Ventre Livre – mas ainda servindo ao antigo dono de sua mãe, conforme explicitado na lei, – teve seu pedido negado em prol do fazendeiro. Nesse caso, a justiça alegou que o Senhor teria mais condições de sustentar e dar educação à filha de Josepha do que a mãe, considerando a pouca instrução que as escravas normalmente recebiam. Assim, para as mulheres negras, nem sempre a função concernente à maternidade era permitida. Portanto, como destaca a autora, as mulheres negras pertenciam a um lugar de não-mulher construído pela sociedade paternalista vigente no Oitocentos.

Na última parte da obra, a historiadora explorou o tema da cidadania e escravidão. Cowlling levantou o questionamento: os escravos, uma vez livres, poderiam usufruir de direitos de cidadania e participar da vida política? Sabemos que, enquanto livres, a condição de vida desses sujeitos foi modificada, no entanto, mesmo após o processo de abolição, os “ex-escravos” não adquiriram cidadania plena no Brasil, uma incorporação foi mais formal do que real.” (CARVALHO, 2001, 13). Ou seja, mesmo usufruindo de uma liberdade formal, não lhes era garantido uma participação efetiva em situações cujo o direito à cidadania era capital.

Ainda sobre o último capítulo, apresentando pontos referentes ao pós abolição, a autora deixa evidente que as ações elaboradas por essas mulheres eram fundamentais para que elas se sentissem cidadãs: “apesar das mulheres estarem excluídas de outros atributos da cidadania, como o direito ao voto ou ao serviço militar, o direito de peticionar ganharia uma importância política relevante em suas mãos.” (COWLLING, 2018, n.p). Tal discussão concernente a cidadania e escravidão, presente no último trecho do livro, da margem para que novas pesquisas sejam elaboradas tomando como base essa perspectiva de análise.

O que Cowlling conclui com esse livro, para além da agência escrava feminina no século XIX, é que a escravidão como conceito foi, assim como diversos acontecimentos, atravessado pelas relações de gênero: “a escravidão ajudou a moldar ativamente as relações de poder e gênero tanto na sociedade escravista como na sociedade livre.” (COWLLING, 2018, n.p).

Isto foi evidenciado nas teorias tomadas a partir dessa temática, assim como na prática, na vida cotidiana analisada por meio da documentação. Logo, a obra nos permite perceber que é possível (e é preciso) levar o gênero e as mulheres em consideração ao fazer análise das mais diversas fontes históricas, uma vez que a escravidão também foi atravessada por relações de poder determinadas pelo gênero.

Notas

  1. Apesar de analisá-los de forma comparativa, a autora firma que não faz uso de uma metodologia comparativa.
  2. Os dois países, juntamente com o Sul dos Estados Unidos, integraram aquilo que foi chamado de Segunda Escravidão, teoria que afirma que após uma série de abolições, a escravidão foi tomando um novo formato e poucos países ainda eram escravistas, apenas: Brasil, Cuba e Estados Unidos. (TOMICH, 2011).
  3. O texto de José Murilo de Carvalho sobre retórica nos auxilia a compreender esse termo. Se encaramos a retórica a partir do exposto no artigo de Carvalho, conseguimos compreender uma certa autoridade que esse conceito buscava transmitir, logo, as mulheres se utilizavam de tais noções para se mostrarem aptas a criarem seus filhos. No entanto, na sociedade patriarcal Oitocentista, por vezes, apenas a retórica da maternidade e as brechas nas leis, não eram suficientes. (CARVALHO, 2000).

Referências

CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

CARVALHO, José Murilo de. História intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura. Revista Topoi. Rio de Janeiro, nº01, p.123-152, jan-dez. 2000.

CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: Uma história das últimas décadas de escravidão na Corte. São Paulo, Cia. das Letras, 1990.

COWLING, Camillia. Concebendo a liberdade: mulheres de cor, gênero e a abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro. Trad. Patrícia Ramos Geremias e Clemente Penna. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2018.

TOMICH, Dale. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial.

Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Edusp, 2011.

Laura Junqueira de Mello Reis – Doutoranda em História na UERJ. E-mail: [email protected].


COWLLING, Camillia. Concebendo a liberdade: mulheres de cor, gênero e abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro. Trad. Patrícia Ramos Geremias e Clemente Penna. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2018. Resenha de: REIS, Laura Junqueira de Mello. Gênero, agência escrava e estratégias de negociação: processos de abolição em Havana e Rio de Janeiro, século XIX. Em Tempo de História, Brasília, v.1, n.36, p.582-585, 2020. Acessar publicação original. [IF].

 

 

 

 

NOGUEIRA Natania Aparecida da Silva (Aut), As histórias em quadrinhos e a escola: práticas que ultrapassam fronteiras (T), ASPAS (E), MENEZES NETO, Geraldo Magella de (Res), Em Tempo de História (ETH), História em Quadrinhos, Escola, França, Japão, Estados Unidos, Canadá, Brasil, Ensino de História

Século 20, Século 21, América, Ásia, Europa

As histórias em quadrinhos (HQs), surgidas no final do século XIX com a publicação de The Yellow Kid nos jornais norte-americanos, teve inicialmente grande rejeição por parte de pais e educadores ao longo do século XX. Um marco importante dessa rejeição foi a publicação, em 1954, de A sedução dos inocentes, do psiquiatra alemão radicado nos Estados Unidos, Fredric Wertham, que denunciava os quadrinhos como uma grande ameaça à juventude norte-americana tentando provar “como as crianças que recebiam influências dos quadrinhos apresentavam as mais variadas anomalias de comportamento, tornando-se cidadãos desajustados na sociedade. Essa rejeição felizmente foi diminuindo com tempo. Os quadrinhos passaram a ser vistos com grande potencial pedagógico nas escolas, contribuindo, por exemplo, na formação de novos leitores. No Brasil, várias obras foram publicadas a partir da virada do século XXI, discutindo formas de utilização dos quadrinhos na escola e também no ensino de História.2 “As histórias em quadrinhos e a escola: práticas que ultrapassam fronteiras”, de Natania Aparecida da Silva Nogueira, é mais uma obra que vem somar nessa discussão sobre as potencialidades das HQ’s no ensino. A autora possui Mestrado em História pela Universidade Salgado de Oliveira (2015), sendo atualmente doutoranda em História pela mesma instituição. É professora do Ensino Fundamental no município de Leopoldina, Minas Gerais; sócia fundadora da Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial (ASPAS), onde atualmente ocupa o cargo de Coordenadora; e membro da Academia Leopoldinense de Letras e Artes (ALLA).3 O livro possui cinco capítulos. Segundo Nogueira, a obra é voltada para o professor e “prioriza a prática da educação, a partir da experiência docente”, refletindo sobre a capacidade criativa dos professores que podem “transformar uma HQ num instrumento de ensino capaz de mudar alguns antigos paradigmas da educação.” (NOGUEIRA, 2017, 15). A autora dialoga com vários pesquisadores dos quadrinhos como Valéria Bari, Waldomiro Vergueiro, Flávio Calazans, Gonçalo Júnior, Edgar Franco, Nobu Chinen, etc.

Os dois primeiros capítulos são uma revisão do panorama das pesquisas e dos usos dos quadrinhos no contexto internacional e brasileiro. No contexto internacional, a autora dialoga com os casos da França, Japão, Estados Unidos e Canadá. No caso brasileiro, a autora aponta que, apesar de haver publicações que remontam ao início do século XX, como Tico-Tico, e da coleção produzida pela Editora Brasil-América (EBAL), fundada em 1945, que foi pioneira na produção e edição das HQs dedicadas a temas educacionais, só foram “nos últimos dez anos que as HQs conquistaram um espaço expressivo nos debates acadêmicos e na prática escolar.” (NOGUEIRA, 2017, 50). As HQs foram introduzidas na lista de obras do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) do Ministério da Educação (MEC) a partir de 2006.

No terceiro capítulo, “Usando quadrinhos na sala de aula”, a autora observa que é equivocada a visão que considera a leitura das HQs como uma “leitura fácil”. Ao contrário, segundo Nogueira, “é um leitura que envolve uma série de processos mentais e exige domínio de códigos complexos”, sendo “aconselhável que o leitor de quadrinhos comece a ser formado ainda bem jovem.” (NOGUEIRA, 2017, 63-64). Outro equívoco mencionado é o estereótipo que taxa os quadrinhos como “coisa de criança”. Nogueira indica que “existem quadrinhos para todas as idades, sobre todos os assuntos, de gêneros tão variados quanto qualquer outra forma de leitura”, sendo possível, assim, trabalhar com HQs desde “uma classe de educação infantil quanto uma turma de estudantes universitários.” (NOGUEIRA, 2017, 69).

Ainda neste terceiro capítulo, a autora faz cinco sugestões para utilizar os quadrinhos em sala de aula. A primeira sugestão que a autora faz é trabalhar a linguagem dos quadrinhos, conhecendo alguns elementos básicos das HQs, tais como: requadro ou vinheta4; calha ou sarjeta5; recordatório6; balões de fala7; metáforas visuais8; linhas cinéticas ou de movimento9; e onomatopeias10. A segunda sugestão é usar quadrinhos para introduzir temas que serão trabalhados em sala de aula. A autora dá o seguinte exemplo: assim, numa aula de ciências, sobre doenças, por exemplo, o professor pode desejar enfatizar a dengue, por estar presente no cotidiano dos alunos ou por ser um problema grave local. Ele tem em mente selecionar determinada HQ que trata do tema. Se o professor possui quadrinhos suficientes para toda a turma, ele pode promover uma leitura coletiva ou individual. Se ele tem apenas um exemplar, pode selecionar algumas partes, montar uma apostila ou um texto simplificado e trabalhar com os alunos (NOGUEIRA, 2017, 76).

A terceira sugestão é utilizar quadrinhos em atividades (exercícios). Nesta proposta, a autora aconselha o uso de fragmentos de HQs devidamente contextualizados com o enunciado da questão, além do uso de tirinhas. O interessante nesta parte é que a autora comenta casos em que, segundo ela, há mal-uso dos quadrinhos na elaboração de questões, a exemplo de uma questão sobre totalitarismo e Segunda Guerra Mundial na prova de História do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) de 2012, que utilizava a capa da revista do Capitão América de março de 1941. Nogueira questiona o uso da imagem, pois a questão não explora a leitura visual da capa da revista, ignorando seus elementos semânticos. (NOGUEIRA, 2017: 80).

A quarta sugestão é propor a criação de HQs pelos estudantes. Essa atividade é o “coroamento de todo um processo de preparação que começa com a introdução do gênero, o incentivo da leitura e o domínio dos códigos dos quadrinhos pelos alunos” (NOGUEIRA, 2017, 87). A autora chama a atenção que o trabalho deve ser essencialmente realizado sob a supervisão do professor, que deve participar por meio de sugestões e demonstrando interesse pela produção. Por fim, a quinta sugestão de atividade é trabalhar com os alunos o gênero jornalismo em quadrinhos, mais recomendada para alunos do ensino médio e superior. Os professores podem desafiar os alunos a produzirem blogs onde eles desenvolvam matérias no formato de jornal em quadrinhos com temas como política, economia, meio ambiente, violência, etc. Outra proposta dentro do jornal em quadrinhos é a criação de fanzines, um tipo de publicação de caráter amador, sem intenção de lucro, feito pelo simples desejo de fazer circular uma determinada produção literária e/ou artística (NOGUEIRA, 2017, 95).

Nos dois últimos capítulos, “As gibitecas no Brasil” e “Relato de experiência: projeto Gibiteca Escolar”, a autora aborda a iniciativa de criação de gibitecas pelo Brasil, dando ênfase a sua própria experiência como uma das responsáveis pela gibiteca escolar da Escola Municipal Judith Lintz Guedes Machado, em Leopoldina, Minas Gerais. O projeto ganhou do MEC o 3º Prêmio Professores do Brasil no ano de 2008.

Nogueira faz um relato das dificuldades iniciais da formação da gibiteca, mas que com o tempo foi ganhando apoio dos alunos e professores, além da secretaria de educação. A gibiteca também é levada para eventos de rua no sentido de envolver a comunidade, além de realizar eventos acadêmicos com pesquisadores e professores, contribuindo para uma formação continuada. A autora cita depoimentos de professores da escola que veem o projeto da gibiteca escolar como sendo uma experiência positiva no processo de ensino-aprendizagem e envolvimento dos alunos.

Como ressalva em “As histórias em quadrinhos e a escola: práticas que ultrapassam fronteiras”, podemos apontar a falta de propostas especificando HQs que podem ser trabalhadas em sala de aula. Durante os capítulos do livro, a autora aborda as HQs de forma geral, não citando exemplos. Uma comparação que podemos fazer é com o livro, bastante conhecido, “Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula”, organizado por Angela Rama e Waldomiro Vergueiro. Neste livro, os autores dos capítulos trazem vários quadrinhos e dizem como o professor pode utilizá-los. Por exemplo, no capítulo “Os quadrinhos nas aulas de História”, Túlio Vilela cita, dentre outras, as HQs de Asterix e Obelix, que podem ser lidas “como um registro da época em que foram criadas, porque, para efeito de humor, são atribuídos aos povos e lugares do passado as características que eles têm nos dias de hoje” (VILELA, 2012, 111). Já Nogueira, embora faça referência à vários estudos e experiências com HQs, não direciona aos professores os quadrinhos que podem servir para determinados conteúdos.

Na sugestão de trabalhar as linguagens dos quadrinhos, ficaria mais claro ao leitor se o livro trouxesse ilustrações de HQs indicando o que é um requadro, um recordatório, os balões de fala, etc. O livro apenas traz as definições de cada um, criando dificuldades de entendimento e visualização de cada um desses elementos básicos dos quadrinhos que, afinal, são essencialmente visuais.

Outra ressalva diz respeito às referências bibliográficas. A maioria dos sites consultados pela autora não estão disponíveis, quando digitamos da forma como o livro indica somos direcionados ao site zipmail. Entendemos que houve um equívoco na forma de referenciar os sites, pois na maioria aparecem como zip.net, não com a sua referência original.

Entretanto, nada disso desabona a obra, que é mais uma contribuição importante para o campo que estuda as relações entre quadrinhos e educação. O grande mérito da obra é o fato da autora trazer a experiência concreta de formação de uma gibiteca em escola pública, demonstrando o papel social de um espaço que estimula a formação de novos leitores. A maioria dos trabalhos publicados sobre quadrinhos na educação, por paradoxal que seja, abordam a questão de forma teórica e não prática, haja vista que em sua maioria são produzidas por professores universitários que não tem a vivência na educação básica. Dessa forma, o leitor, seja professor, aluno, pesquisador ou simplesmente um admirador das histórias em quadrinhos será recompensado com a leitura de uma obra importante que representa o engajamento da autora pelo seu objeto de estudo.

Notas

  1. Doutorando em História pela Universidade Federal do Pará. [email protected]
  2. Ver por exemplo: CALAZANS, Flávio Márcio de Alcântara. História em quadrinhos na escola. São Paulo: Paulus, 2004; RAMA, Angela; VERGUEIRO, Waldomiro. (Orgs.). Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2004; VERGUEIRO, Waldomiro; RAMOS, Paulo. (Orgs.). Quadrinhos na educação: da rejeição à prática. São Paulo: Contexto, 2009; SANTOS NETO, Elydio dos; SILVA, Marta Regina Paulo da. Histórias em quadrinhos e práticas educativas, volume I: o trabalho com universos ficcionais e fanzines. São Paulo: Criativo, 2013; SANTOS NETO, Elydio dos; SILVA, Marta Regina Paulo da. (Orgs.) Histórias em quadrinhos e práticas educativas, volume II: os gibis estão na escola, e agora? São Paulo: Criativo, 2015.
  3. Informações sobre a trajetória acadêmica e profissional de Natania Aparecida da Silva Nogueira consultadas na Plataforma Lattes. Disponível em: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4509802D6 Acesso em: 31 out. 2018.
  4. É a moldura que envolve a cena retratada em cada quadrinho. (NOGUEIRA, 2017: 72).
  5. É o espaço que existe entre dois quadrinhos e que muitas vezes precisa ser preenchido pelo leitor por meio do raciocínio. (NOGUEIRA, 2017: 73).
  6. É o pequeno painel, algumas vezes de tamanho retangular que aparece no canto do requadro e que faz uma breve narrativa como forma de introduzir ou complementar a cena. (NOGUEIRA, 2017: 73).
  7. Simbolizam o ato da fala dos personagens. (NOGUEIRA, 2017: 73).
  8. São uma espécie de figuras de linguagem que funcionam como palavras, sintetizando conceitos epnas por meio de uma simples imagem. (NOGUEIRA, 2017: 74).
  9. São aqueles riscos que indicam movimento. (NOGUEIRA, 2017: 74).
  10. São palavras que representam sons. (NOGUEIRA, 2017: 74).

Referências

VERGUEIRO, Waldomiro. Uso das HQs no ensino. In: RAMA, Angela; VERGUEIRO, Waldomiro. (Orgs.). Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula. 4 ed. São Paulo: Contexto, 2012.

VILELA, Túlio. Os quadrinhos na aula de História. In: RAMA, Angela; VERGUEIRO, Waldomiro. (Orgs.). Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula. 4 ed. São Paulo: Contexto, 2012.

Geraldo Magella de Menezes Neto –Doutorando em História pela Universidade Federal do Pará. [email protected].

NOGUEIRA, Natania Aparecida da Silva. As histórias em quadrinhos e a escola: práticas que ultrapassam fronteiras. Leopoldina: ASPAS, 2017. 148p. Resenha de: Em Tempo de História, Brasília, v.1, n.34, p.122-127, jan./jul., 2019. Acessar publicação original. [IF].

SILVA Pedro Ferreira da (Aut), Cooperativa sem lucros: uma experiência anarquista dentro da sociedade capitalista (T), Editora Entremares (E), FELIPE Cláudia Tolentino Gonçalves (Res), Em Tempo de Histórias (ETH), Cooperativa, Anarquismo, Sociedade capitalista, Pedro Ferreira da Silva, Portugal, França, Brasil, Século 20 Século 20, América, Europa

O título do livro de Pedro Ferreira da Silva pode parecer equivocado: como conceber a existência de uma cooperativa sem finalidades lucrativas? O subtítulo, no entanto, desfaz o equívoco ao precisar o conteúdo da obra: uma experiência anarquista no interior da sociedade capitalista. É no mínimo intrigante a possibilidade de coexistência entre capitalismo e anarquismo, especialmente para quem encara a experiência libertária de forma banal e preconceituosa. Resenhar Cooperativa sem lucros, portanto, mostra-se uma tarefa necessária por duas razões: poderia apontar os nexos entre cooperativismo e anarquia e ajudar-nos a entender o que motivou a republicação de um livro anarquista de 1958 quase sessenta anos depois.

Perseguido pelo governo salazarista, o anarco-sindicalista português Pedro Ferreira da Silva refugiou-se na França em 1926 e, logo em seguida, mudou-se para o Brasil. Em Portugal, ele foi um dos responsáveis pela publicação do semanário A Comuna, editado na cidade do Porto. Convém mencionar que é o mesmo periódico do qual participava o militante anarquista português Roberto das Neves, antes de sua vinda para o Brasil no início dos anos 1940. No Brasil, Pedro Ferreira associou-se aos anarquistas cariocas e paulistas e, ao final da ditadura varguista, começou a participar efetivamente do periódico Ação Direta (1946-1959), publicado no Rio de Janeiro. Aproveitou o espaço que lhe foi destinado para escrever textos críticos sobre o salazarismo, o sindicalismo e o cooperativismo.

Apesar de desempenhar a função de contador, Pedro Ferreira dedicou-se ao jornalismo e escreveu poemas e livros nas áreas de literatura, crítica social e economia. Dentre suas principais obras, destacam-se: Eu creio na Humanidade (1949); Três enganos sociais: férias, previdência e lucro (1953); Cooperativa sem lucros: uma experiência anarquista dentro da sociedade capitalista (1958). Interessa-nos, particularmente, a última obra mencionada, que edifica um projeto revolucionário cujo veículo seria a cooperativa, entendida como uma arma de luta contra a exploração capitalista e como um caminho para a construção de uma sociedade libertária. Para tanto, o autor reuniu uma série de discussões realizadas no Ação Direta entre os anos de 1947 a 1958.

A linguagem adotada no livro é acessível, abrindo mão das figuras de linguagem desfiladas em outros textos de sua autoria, como em Eu creio na humanidade. A disposição de seus artigos assume claramente ares de “projeto”, uma vez que instrui sobre o funcionamento do que seria uma sociedade libertária estruturada por cooperativas sem lucros. Convém mencionar que o autor acredita que a anarquia não se desenvolveria de imediato, carecendo de estratégias intermediárias que pudessem educar os homens, tornando os princípios libertários atrativos e cativantes. A questão a se perguntar é: de que maneira a cooperativa atenderia esse propósito?

Não nos parece conveniente retomar minuciosamente as particularidades de cada um dos 32 artigos do livro escritos pelo autor, mas esboçar a ideia geral que confere ares de unidade ao conjunto. O cooperativismo pensado por Pedro Ferreira remete a uma experiência anárquica dentro da sociedade capitalista e dependeria da iniciativa do indivíduo e de seu esforço associativo. No entanto, o sistema cooperativo corrente deveria passar por mudanças significativas, para se ver livre dos vícios capitalistas. A princípio, o autor declara que não acredita na violência e retoma o conceito de ação direta, definido como ato de perseguir uma finalidade trilhando “caminhos iluminados, pelos meios limpos, isentos de colaboração suspeita” (p. 17). As cooperativas seriam uma alternativa intermediária, contanto que se livrasse do lucro e se baseasse em preços justos e acessíveis.

Pedro Ferreira insiste na necessidade de uma cooperação ampliada, multiplicada, que eliminaria a especulação, os salários e concentrar-se-ia no benefício dos consumidores. Note-se que, sem se confundir com a anarquia, o cooperativismo reproduz alguns de seus postulados, já que efetua “a melhoria econômica da classe proletária, a assimilação social e o enfraquecimento dos preconceitos de classe” (p. 27). O autor ressalta a necessidade de a sociedade se livrar dos “intermediários”, dos comerciantes que lucram às custas do consumidor: são eles que, “na indústria como no comércio, o cooperativismo combate, dispensa e destrói” (p. 31). Parece-nos que uma das lutas mais recorrentes nos escritos de Pedro Ferreira é direcionada contra a ideia de o salário ser a finalidade última do trabalhador, e não a produção. Afinal, ele “é um elemento econômico decorrente do trabalho e não um objetivo a conquistar por meio do trabalho” (p. 35). Por outras palavras, se a intenção do trabalho industrializado é o lucro, no caso do trabalho cooperativista, o intuito é a produção. O problema, portanto, é associado à sociedade, pensada como “edifício formado de material ruim”. Uma vez que “matéria ruim não pode fazer edifício bom”, é preciso transformá-la, mas de forma não abrupta, já que a retirada do homem de um edifício ruim e sua introdução num edifício bom não mudaria, de imediato, o próprio homem.

O autor pensa o cooperativismo como estágio necessário para a reformulação do “processo mental” capaz de “fazer com que o homem crie, em volta de si, o ambiente anarquista” (p. 46). Através dele, seria possível desenvolver um “espírito associativo”, a solidariedade e a ajuda mútua. Trata-se de uma “arma revolucionária”, imunizada contra “o contágio da cobiça”, mas que, inicialmente, estaria associada ao capital: só com o tempo o cordão umbilical seria rompido. Para sua administração, seria necessário um “fundo social”, que reuniria um montante indispensável para garantir as instalações, móveis, imóveis etc. Quanto maior fosse a participação, mais eficaz se tornaria a cooperativa. Além do fundo social, haveria um fundo de manutenção e desenvolvimento, para ampliação das operações sociais através de materiais que permitissem sua administração. Não há lugar para os juros. O autor afirma que “o sonho pode estar dentro de nós, mas em torno de nós há a realidade e nela se movem nossas vidas, nela se animam os nossos gestos e se realizam as nossas obras” (p. 73). É por essa razão que seria preciso reter um excedente quando da definição dos preços dos produtos e de sua distribuição, para “cobrir possíveis erros de cálculo, desgastes ou perecimentos imprevistos de mercadorias” (p. 74). Pedro Ferreira afirma que a cooperativa não pretende conferir lucro a seus associados, pois não alimenta finalidades mercantilistas. Isso não exclui, no entanto, “a margem necessária ao funcionamento da organização e convenientes reservas” (p. 75).

De um lado, o autor pensa as cooperativas de produção, que tentam conferir aos operários a possibilidade de “trabalhar por sua conta”, sem submeter-se à exploração patronal. As cooperativas de consumo, por sua vez, tendem à universalidade, já que buscam contemplar os consumidores de forma geral. Sendo assim, elas têm o mérito não apenas de eliminar o “intermediário no comércio improdutivo” (p. 100), mas também de aproximar os consumidores de diversas classes, “num movimento comum de defesa econômica, que por sua vez lhes há de inspirar outras formas de cooperação social” (p. 100). Há, portanto, um efeito pedagógico a subsidiar as cooperativas, como o autor admite na passagem abaixo:

O cooperativismo é, pois, um sistema econômico-social de função altamente educativa, e como tal merece maior atenção dos anarquistas, que não o sejam apenas de modo passivamente platônico ou furiosamente arrasador. A ação das cooperativas sem lucros, no terreno industrial ou nas redes distribuidoras dos produtos, leva à emancipação do trabalhador e ao fim do parasitismo comercial; faz converter maior número de braços às tarefas produtivas e semeia o espírito de ajuda, a união e o entendimento comum. Na sua prática, isenta de egoísmo, pode alimentar-se largamente o ideal anarquista e exercitar-se com progressivo êxito mais de um preceito da sociedade livre (pp. 100-101).

Interessa-nos, por agora, retomar a noção de intercooperativismo, que ajuda a compreender a diferença entre liberdade e arbítrio. A liberdade das cooperativas não implica ausência de obrigações que elas devem manter entre si. O homem é livre, mas seu arbítrio “tem de obedecer ao interesse comum” (p. 107). Para Pedro Ferreira, o homem apresenta tendências e impulsos naturais que o levam à sociabilidade, ou seja, há uma “necessidade de cooperação”:

Firmada a mentalidade cooperativista, cada sociedade incorporará esse espírito e passará a representa-lo em relação às sociedades congêneres. Então se estabelecerá o ponto de partida para o intercooperativismo, ou seja, a cooperação entre as sociedades, segundo sua natureza, espécie de atividade ou região onde se desenvolve a influência de seu funcionamento (p. 108).

Criar-se-á, portanto, “federações de cooperativas”, não para circunscrever a liberdade de cada uma delas, mas para atribuir-lhes a mesma liberdade conferida aos indivíduos. Eis porque a cooperativa pode ser encarada como um instrumento de preparo psicológico e prático e como uma etapa que conduziria à sociedade libertária. No terreno econômico, ela possibilitaria preços mais baixos; no âmbito educacional, ensinaria normas de respeito ao interesse coletivo e combateria a guerra dos preços e a concorrência capitalista; no domínio da moral, incitaria o respeito pelo semelhante; em termos sociais, incentivaria troca de ideias e projetos de aperfeiçoamento comuns, alimentando as relações humanas; já no que se refere ao âmbito profissional, estimularia a técnica e o aperfeiçoamento pessoal, e não a intensificação do volume de trabalho.

Não poderia faltar o incentivo à arte: uma vez vencido o sistema do patronato, a arte poderia ser valorizada não a partir de seus rendimentos financeiros, mas como veículo de estudo e de promoção da cultura. Poder-se-ia estruturar uma cooperativa artística, com programas independentes dos quais participariam artistas e o público.

Por fim, Pedro Ferreira trata da família, uma “comuna dentro da sociedade que condena o comunismo” (p. 123). Ele a encara como um “núcleo social”, como “ponto de partida da associação humana” (p. 127). A família, portanto, seria uma “cooperativa isolada”, que poderia deixar de sê-lo caso se unisse a outras famílias em associações cooperativas. É o que, posteriormente, daria ensejo à “policooperativa”:

A policooperativa é o organismo social completo. É o indivíduo na constituição da sociedade. Dentro dela estão as peças todas indispensáveis à satisfação das necessidades sociais. Se a cooperativa geral compreender seções de todas as atividades humanas, ou pelo menos de todas as atividades necessárias aos indivíduos que a compõem, é naturalmente muito mais fácil a federação das cooperativas e o intercâmbio de suas ações, conforme as conveniências não nacionais, mas regionais (p. 134).

Como se pode ver, o livro de Pedro Ferreira apresenta um encadeamento lógico ao sugerir a cooperativa como uma ferramenta eficaz no combate ao lucro e ao comércio, como estágio necessário à consecução da anarquia. No entanto, é preciso problematizar o lugar que essa obra poderia ocupar no atual cenário histórico a ponto de ter sido reeditada em julho de 2017. Seria uma indicação da fragilidade das cooperativas do século XXI? Uma forma de sugerir a necessidade de cooperação e apoio mútuo na atualidade? Uma tentativa de inspirar o leitor, convencendo-o da necessidade de se pensar alternativas que contrariem a modernidade líquida? A tomar pelo critério da verossimilhança, essas hipóteses parecem válidas, o que torna louvável a iniciativa da editora Entremares e imperativa a leitura o livro, que combate o individualismo pós-moderno com palavras libertárias de um autor que, há mais de 50 anos, fez da escrita um instrumento contra o egoísmo. Será possível que continua eficaz? Há somente um meio de descobrir: boa leitura!

Cláudia Tolentino Gonçalves Felipe – Doutoranda em História pela Universidade Estadual de Campinas. E-mail: [email protected].

SILVA, Pedro Ferreira da. Cooperativa sem lucros: uma experiência anarquista dentro da sociedade capitalista. São Paulo: Editora Entremares, 2017. Resenha de: FELIPE, Cláudia Tolentino Gonçalves. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.33, p.295-300, ago./dez., 2018. Acessar publicação original. [IF].

NAVARRO-SWAIN Tania (Aut), O que é lesbianismo (T), Brasiliense (E), LESSA Patrícia (Res), Em Tempo de Histórias (ETH), Lesbianidade, Estudos feministas, História das Mulheres Século 19, Século 20 O livro, O que é lesbianismo, editado pela Brasiliense em 2000, é uma edição de bolso da coleção ‘primeiros passos’, por isso, demonstra uma visão muito particular da autora com um posicionamento intelectual específico ao tema em pauta.

A autora inicia seu livro fazendo uma pequena advertência aos possíveis leitores: “quem estiver vestido no cimento de suas certezas não mergulhe nestas águas” (p. 9), pois a “arrogância dos paradigmas” e o “totalitarismo do senso comum” já tentaram petrificar o tema aqui em debate. O Discurso da autora transita pelas teorizações feministas e foucaultianas fazendo uma divisão do livro em três capítulos. O primeiro capítulo discute os indícios e interpretações da historiografia recuperando as discussões da epistemologia feminista para demonstrar a ‘desordem’ que o sujeito lesbiano causa ao conhecimento comum e científico, por isso, sua ocultação na historiografia tradicional. Com o título: ‘Nosso nome é legião: o espaço vivido’ o segundo capítulo demonstra a presença do sujeito lesbiano na literatura, nas teorizações e nas representações diversas. O último capítulo trata dos ‘Perfis Identitários’, ou seja, trata das atuais discussões sobre identidade empreendidas pelas teorias feministas e foucaultianas, discussões que não aceitam a identidade presa ao sexo e sexualidade e, propositivamente, a autora sugere o nomadismo identitário como contrapartida.

O que a história não diz não existiu é o título que inicia a discussão dos indícios e interpretações em história no primeiro capítulo, onde é problematizado o estatuto histórico, que apegado em modelos fixos, anulou a aparição das lesbianas por representarem uma contradição à “ordem natural da heterossexualidade dominada pelo masculino” (p.13). Cabe ao atual fazer histórico questionar, problematizar, na tentativa de buscar os significados e os valores das condutas humanas esquecidas pelas certezas da história-ciência do século XIX: “a história, dona do tempo, esqueceu que tempo significa transformação, esqueceu a própria história para traçar um só perfil das relações humanas” (p.14). Daí decorre que os indícios da história podem apontar outras culturas e civilizações onde as mulheres amavam-se umas às outras, pois masculino e feminino nem sempre tiveram a mesma conotação (p.16), embora o imaginário ocidental esteja marcado por Adão e Eva, representantes de dois pólos: a imagem de deus e a submissão, a sexualidade naturalizada, binária, formada por relações assimétricas, é também histórica (p.17).

Trabalha com uma concepção de História não-linear onde o papel de historiador é importante, pois seus olhos estão impregnados de valores e crenças atuais, seu papel não é desvendar algo que estava oculto, mas, interpretar os indícios, nos quais os fragmentos do passado atestam o real, segundo interpretações possíveis e as representações que constroem o mundo. A História é, então, mais um discurso, dentre tantos outros, onde os historiadores são mediadores entre o passado e a construção do conhecimento histórico atual. O papel da História é o de questionar, tentar apreender os significados e valores que orientam atos e gestos (p.14).

A heterossexualidade compulsória como regra universal determina os papéis sexuais do verdadeiro masculino e feminino, assim a tolerância quanto às práticas sexuais diversas depende do grau de hegemonia da heterossexualidade (p.17). Os filósofos da Antiguidade Grega são citados como marco entre razão e mito, mas, as práticas sexuais dos mesmos nem sempre são incorporadas aos seus discursos, ocultando-se os sentimentos elevados entre homens. E quanto às mulheres na antiguidade? O silêncio paira sobre a vida das mulheres atenienses, embora o confinamento delas em casa não signifique sua inexistência. A vida das mulheres em Atenas diferencia-se de Esparta, lugar onde elas viviam separadas dos homens.

Em Esparta, Tebas e Siracusa, sabe-se indiretamente, pelos atenienses, que as mulheres tinham maior liberdade, porém, no ocidente cristão a homossexualidade feminina “desaparece da ordem do discurso”, “não se fala, logo não existe” (p.19), pois ao nomeá-las cria-se uma imagem, cria-se uma personagem no imaginário social. Durante o período da Inquisição criase o termo “Sodomitas” para definir as mulheres que viviam ou estabeleciam algum tipo de relação afetiva ou sexual com o mesmo sexo, não possuem um nome nem mesmo direito à existência.

Serão os indícios da História capazes de recuperar essas vidas ocultadas? A oposição entre a representação normativa do feminino e as guerreiras, vistas como mito, por alguns dos grandes nomes da Historiografia, são tomadas como exemplo do apagamento daquilo que é tido como incomum (p. 21-22). O discurso transforma a mulher guerreira em ilusão, embora descreva eventos, datas e em alguns casos até nomes. Florestan Fernandes e Sérgio Buarque de Holanda descrevem as amazonas como paródias do homem e o homem como referente da força, do combate, do ataque, da independência. A historiografia como memória social pode naturalizar comportamentos? E quanto à homossexualidade feminina? Porque a história oculta povos matriarcais e comunidades de mulheres guerreiras relegando-as a paródias do masculino? A história colabora na construção de um modelo de feminino, tipo frágil e submisso, naturalizando os comportamentos e criando representações sociais regidas pela ordem patriarcal, como o discurso ideológico dos museus que colabora no ideário da evolução histórica na passagem do primitivo para o civilizado, do matriarcado para o patriarcado. A poeta Safo de Lesbos serve como exemplo das regras da heteronormatividade, ou seja, é necessário enquadrá-la nos parâmetros do binário homem/mulher para caracterizá-la, mesmo sabendo da beleza de sua poesia, é necessário discursar sobre sua sexualidade: Horácio dirá que Safo era máscula, Ovídio relata seu suicídio após ter sido abandonada por um homem (p.30-32).

Na discussão da identidade atrelada ao sexo Foucault mostra como a taxionomia imprime-se às coisas e modela os seres conforme a divisão binária e hierárquica da sociedade.

Mas a autora pergunta: a reprodução sempre ordenou o mundo? Sempre ordenou as relações? (p.35). Para lembrar que os discursos são construídos em suas “condições de saber”, Navarro- Swain cita Hadcliff Hall, que escreveu sobre o amor trágico entre mulheres (p.40) e Nathalie Clifford Barney, escritora norte-americana, que viveu na França, amou exclusivamente inúmeras mulheres e morreu aos 95 anos, publicou muitos livros, organizou a Academi dês Femmes.

Para Navarro-Swain a história das mulheres está por ser desvendada: “o que a realidade social não retêm perde a espessura da realidade” (p.50). Simone De Beauvoir mostra-se indecisa quanto ao lesbianismo, mas por fim toma-o como escolha existencial. Para a autora ela é arauto do feminismo, fundadora das teorizações e ainda assim cai em contradição quanto ao tema do lesbianismo. Algumas falas de Beauvoir demonstram o poder da representação social no discurso e no imaginário quando a autora reafirma a natureza feminina em oposição à virilidade lésbica e recai no modelo binário.

Mas enfim, se na idade média a sexualidade está associada ao silêncio, a repressão e a procriação na modernidade a homossexualidade será tratada como doença ou crime. A ciência e a jurisdição irão separar a boa da má sexualidade. E para tal a psicanálise torna-se um dos mecanismos para elucidar a evolução sexual e demonstrar que o sexo natural é a heterossexualidade.

Mathieu, Monique Wittig, Nicholson, Gayle Rubin são algumas das teóricas feministas citadas que discutem o lesbianismo na tentativa de ancorá-lo para além do binário. As representações do mundo são duplas: vida/morte, bela/feia, assim “a verdadeira mulher é diferente da prostituta e da lésbica”, a segunda é preservada na ordem do sistema e a última apagada dos discursos. Para a autora: “a inversão da ordem não representa revolução dos costumes” (p.66), hoje as revistas, o cinema, os direitos demonstram uma maior proximidade entre os homossexuais, mas, o homem ainda quer manter o lugar dominante. Por isso o livro O que é Lesbianismo vem abrir um caminho para pensarmos o tão temido tema da homossexualidade feminina, quem sabe sacudindo as evidências e modificando as representações, sem emitir uma resposta uniformizante ao que seja uma lesbiana.

Patrícia Lessa – * Patrícia Lessa – Mestrado em Filosofia da Educação (UNICAMP/SP), doutoranda em Estudos Feministas (UnB/DF). Professora na Universidade Estadual de Maringá/UEM – PR.

NAVARRO-SWAIN, Tania. O que é lesbianismo. São Paulo: Brasiliense, 2000. 101p. Resenha de: LESSA, Patrícia. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.9, p.150-153, 2005. Acessar publicação original. [IF].

SAFFIOTI Heleieth I B (Aut), Gênero/ patriarcado/ violência (T), Fundação Perseu Abramo (E), PIMENTA Fabrícia F (Res), Em Tempo de Histórias (ETH), Gênero, Patriarcado, Violência, Mulheres Publicado recentemente, em 2004, Gênero, Patriarcado, Violência parece ter sido concebido para ser uma espécie de “manual didático” que busca conceituar, sob a perspectiva de uma socióloga estudiosa das temáticas feministas, conceitos imbricados de paradoxos tais como gênero, patriarcado, poder, raça, etnia e a relação exploração-dominação.

A partir da utilização de conceitos formulados pela autora no correr de sua vida acadêmica, já que os temas em pauta fazem parte do universo de pesquisas de Saffioti desde os anos oitenta, a obra em análise se propõe a abrir novas perspectivas para o entendimento da violência contra as mulheres. Este tipo de violência, segundo a autora, consiste em um problema social cujo exame encontra-se entrelaçado aos estudos de gênero, raça/etnia, classes sociais e patriarcado.

Dividido em quatro seções de análises, a obra de Saffioti “destina-se a todos(as) aqueles(as) que desejam conhecer fenômenos sociais relativamente ocultos”(p.9), dentre os quais está a violência contra as mulheres, questão que perpassa todos os eixos de reflexão do livro em pauta.

As áreas da Saúde, Jurídicas, Ciências Sociais e Humanas têm se dedicado, mesmo que de forma tímida ou isolada, à compreensão dos mais diversos mecanismos de opressão das mulheres. Dada à diversidade e a multiplicidade de pesquisas que vem sendo realizadas em relação aos temas abarcados nesta obra, é possível observar que as articulações dos pensamentos da autora são perpassadas pela transversalidade de saberes. Assim, por meio de uma perspectiva reconhecidamente feminista e a partir do instrumental teórico do campo disciplinar no qual está inscrita é que partem suas pontuações. Com títulos de abertura dos capítulos considerados pouco comuns, tais como “a realidade nua e crua” e “descoberta da área das perfumarias”, a socióloga versa sobre temas específicos de forma a conceituar, em termos jurídicos e sociológicos, sobre os diversos tipos de violências (doméstica, de gênero, contra as mulheres, intra-familiar, urbana) existentes no caso brasileiro sob uma espécie de permissividade social.

Com essa profusão de novos conceitos, a releitura e a reinterpretação de teorias já existentes, acrescentando-se a instabilidade característica do fazer feminista, talvez não seja possível encontrarmos termos consensuais no contexto dos embates das correntes feministas.

A autora faz uma breve análise do cenário político-econômico brasileiro e constata que estes terrenos são, “certamente, a maior e mais importante fonte da instabilidade social no mundo globalizado”(p.14). Para ela, é sob a ordem patriarcal de gênero que devem ser feitas as análises sobre a violência contra as mulheres.

Recorrendo a referências obrigatórias no campo dos Estudos Feministas e de Gênero, tais como Carole Pateman, Gayle Rubin, Joan Scott, entre outras, Saffioti empreende uma escrita que varia entre pontuações extremamente coloquiais e outras passagens com reflexões importantes e densas para uma obra que pretende ser didática. Para o/a leitor/a desavisado/a, essas passagens requerem especial atenção, já que as análises da autora requerem uma leitura prévia dos conceitos discutidos. Exemplo disso é a utilização do conceito de poder formulado por Foucault que a socióloga utiliza sem maiores esclarecimentos acerca da perspectiva pósmoderna.

Influenciado pelas correntes do pensamento pós-moderno no qual estava inserido (construindo e desconstruindo suas perspectivas), ao refletir sobre outras maneiras de pensar, Foucault defende um amplo questionamento de conceitos caros a seu campo como a finalidade, a natureza, a verdade, os procedimentos tradicionais de produção do conhecimento histórico, as representações do passado com que operamos e os usos que fazemos de sua construção.

Outra questão que merece zelo na leitura são as discussões teóricas que Saffioti estabelece sobre diferentes perspectivas sobre os conceitos de gênero existentes. Vale destacar que, de natureza cultural e ideológica, os Estudos de Gênero introduziram a questão de gênero como categoria analítica e demonstraram como é ilusória a neutralidade dos valores ditos “universais”. Em sua prática interdisciplinar, articula – a partir de uma perspectiva “gendrada” – questões de raça, classe, etnia, bem como contribuições de vários eixos epistemológicos como a psicanálise, marxismo, antropologia, etc, buscando compreender a representação (histórico-cultural, literária) das mulheres, bem como sua contribuição neste processo.

Um ponto bastante interessante a ser ressaltado nesta obra, como se pode depreender da sua leitura, é que esta consiste no fruto de reflexões embasadas em dados empíricos e sobre pontos de referências a respeito das sobreposições parciais, as especificidades e diferenças entre as várias modalidades de violências existentes, fenômenos estes, demonstrados pela autora, que não são tão raros quanto o senso comum indica.

Consiste alvo de crítica da autora, em diversas passagens da obra, o uso político de uma diferença fundada nos argumentos do determinismo biológico e em normatizações feitas a partir de uma marca genital. Para ela, as pessoas são socializadas para manter o pensamento andrógino, machista, classista e sexista estabelecido pelo patriarcado como poder político organizado e legitimado pelo aparato estatal por meio da naturalização das diferenças sexuais.

Em relação à violência, tema que perpassa a maioria das reflexões da autora há que se considerar as sobreposições feitas por Saffioti sobre os conceitos e as especificidades de cada “fenômeno”, sua expressão para designar a violência. Ao mostrar os fatos em suas peculiaridades, a autora trabalha quadros teóricos de referência com vistas a orientar seu leitor. Assim, ela diferencia e explicita as características e os contextos em que ocorrem principalmente os seguintes tipos de violência: contra a mulher, de gênero, doméstica, intrafamiliar, entre outras. Nesse sentido, faz parte também das análises de Saffioti a ocorrência do “femicídio”, que, segundo ela, consiste na feminização da palavra homicídio e é um fenômeno infelizmente bastante recorrente, principalmente nos tempos atuais (p. 72-73).

No que tange ao significado da violência e todas as conseqüências que surgem da ocorrência deste fenômeno, a autora lembra que na sociedade patriarcal em que vivemos, existe uma forte banalização da violência de forma que há uma tolerância e até um certo incentivo da sociedade para que os homens possam exercer sua virilidade baseada na força/dominação com fulcro na organização social de gênero. Dessa forma, é “normal e natural que os homens maltratem suas mulheres, assim como que pais e mães maltratem seus filhos, ratificando, deste modo, a pedagogia da violência.” (p.74) Para Saffioti, a ruptura dos diferentes tipos de integridade, quais sejam, a física, a sexual, a emocional, a moral, faz com que se estabeleça a “ordem social das bicadas”, na qual o consentimento social para a conversão da agressividade masculina em agressão contra as mulheres, não é um fator que prejudica apenas as vítimas, mas também seus agressores e toda a teia social que convive ou é forçada, por inúmeros motivos, a suportar tal sujeição. como critério de avaliação de um ato como violento situa-se no terreno da individualidade e, dessa forma, cada mulher interpreta de forma singular esse mecanismo de sujeição aos homens. Segundo Saffioti, somente uma política de combate à violência (especialmente a doméstica) que se articule e opere em rede, de forma a englobar diferentes áreas (Ministério Público, juizes, polícia, hospitais, defensoria pública) pode ser capaz de ter eficácia no combate à violência.

As experiências da autora e a liberdade com que trata dos temas de forma a informar e/ou atualizar o leitor merecem atenção. Ao desvelar parte do processo de diferenciação sexuada, nas múltiplas configurações espaços-temporais, a autora expõe o caráter produtor e reiterador de imagens naturalizadas de mulheres e homens. Dessa forma, a obra pode ser considerada referência de leitura para as pessoas que se interessam pelas temáticas ligadas às questões de gênero, violência, patriarcado, e afins.

Uma vez que a literatura científica feminista tem sido constantemente obscurecida ou ignorada, este livro ressalta a importância no questionamento dos paradigmas científicos e da naturalização das formas de relações sociais que instituem o feminino e o masculino em uma escala de valores hierarquizada com vistas à desnaturalizar construções cristalizadas no imaginário e nas representações sociais sobre as desigualdades existentes nas relações entre homens e mulheres.

Trata-se de uma obra instigante, cuja leitura deve ser cuidadosa, que funda suas interpretações a partir do enfoque que entende o gênero como uma representação que produz e reproduz diferenças por meio da classificação dos indivíduos pelo sexo, os quais exigem abordagens e epistemologias específicas para suas análises.

Longe de ser um “manual didático” Gênero, Patriarcado, Violência apresenta conceitos já trabalhados pela autora em outros estudos, mas pode ser considerada uma referência bibliográfica atualizada para os/as interessados/as em estudos de Gênero e violências, já que apresenta importantes distinções das considerações anteriormente feitas aos deslocar o olhar do leitor para além do senso comum e das generalizações

Fabrícia F. PimentaGraduada em Direito, Mestre em Ciência Política pela UnB e doutoranda na UnB em História na linha de pesquisa “Estudos Feministas e de Gênero”. Apoio financeiro para a pesquisa: CNPq. E-mail: [email protected] / [email protected].

SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004, 151p. Resenha de: PIMENTA, Fabrícia F. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.10, p.190193, 2006. Acessar publicação original. [IF].

DOLHNIKOFF Miriam (Aut), O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil do século XIX (T), Globo (E), IAMSHITA Léa Maria Carrer (Res), Em Tempo de Histórias (ETH), Império, Brasil, Federalismo Século 19, América, Professora de História e Relações Internacionais da USP e pesquisadora do CEBRAP, Miriam Dolnikoff publica livro que contraria interpretações consagradas sobre a história política do Brasil imperial.

Inserida na questão maior da organização política do Brasil Imperial, a obra busca entender a longevidade da influência das elites no Brasil, investigando a maneira pela qual estas estiveram presentes no processo de construção do Estado brasileiro, de modo a contribuir na determinação de seu perfil.

Podemos melhor avaliar a pesquisa da autora e sua posição de embate frontal à historiografia estabelecida, por breve análise da idéia cristalizada da “história da construção do Estado brasileiro na primeira metade do XIX como a história da tensão entre unidade e autonomia”.

Sabemos que a interpretação do Período Regencial como a fase do jogo político entre centralização e descentralização de poder surgiu ainda no século XIX. A pesquisa de Augustin Wernet rastreou o início desta interpretação e o localiza na obra de H. G.

Handelmann, de 1860.1 Nesta visão assiste-se ao revezamento de homens no cenário político nacional, sem as profundas mudanças (revolução) das estruturas herdadas do período colonial, tendo a primeira metade das Regências sido caracterizada pelo avanço liberal (descentralização), e a segunda pelo regresso conservador (centralização). A historiografia a seguir vai articulando a descentralização às forças provinciais e à desordem, e o Regresso, ao retorno da ordem.

Por exemplo, Sérgio Buarque de Holanda considerou as forças provinciais, defensoras de um projeto federalista, expressão das forças localistas arcaicas, apegadas aos privilégios coloniais, enquanto a centralização seria o projeto que trazia no seu bojo a possibilidade de modernização, já que ela seria a condição de construir o Estado e a unidade nacional. A defesa dos interesses regionais se limitaria, deste ponto de vista, à tentativa de preservar a herança colonial. Para Buarque, o federalismo não passava de um lema para sustentar o estado das coisas vindas da vida colonial.

Outros autores como Maria Odila Dias e Ilmar de Mattos, também atribuem a vitória sobre as forças centrífugas herdadas do período colonial à capacidade da elite articulada em torno do aparato estatal do Rio de Janeiro de se impor a todo o território nacional. Para eles, o acordo pela unidade, pela centralização política e direção administrativa nas mãos do Rio de Janeiro, teria sido resultado do movimento conservador de 1840, conhecido como “Regresso”, indicando o abandono da experiência de descentralização da Regência.

Entre as interpretações mais consagradas está a de Jose Murilo de Carvalho, segundo a qual, a unidade sob um único governo, teria sido obra de uma elite da Corte, cuja perspectiva ideológica a diferenciava das elites provinciais, comprometidas com seus interesses materiais e locais. A vitória da primeira teria significado a submissão dos grupos provinciais, que ficavam desta forma, isolados em suas províncias. Essa vitória se materializou na imposição de um regime centralizado que neutralizava as demandas localistas das elites provinciais.

Discordando desses autores, e particularmente, de José Murilo, para Míriam Dolhnikoff, a unidade sob hegemonia do Rio de Janeiro foi possível não pela neutralização das elites provinciais e centralização, mas sim à implementação de um arranjo institucional por meio do qual as elites se acomodaram, ao contar com autonomia significativa para administrar suas províncias e, ao mesmo tempo, obter garantias de participação no governo central por meio dos seus representantes na Câmara dos Deputados. Através do parlamento, as elites nele representadas participavam não só do orçamento, mas também das questões relevantes para a definição dos rumos do país como a escravidão, a propriedade de terras e para organização do Estado, como a legislação eleitoral. (p.14) A autora discorda da idéia de que foi o retorno à centralização – “projeto vencedor” do Regresso- o responsável pela unidade do Império e pela definição do modelo de estabilidade deste; ou seja, para ela, o projeto federalista não morreu em 1824, nem em 1840, ele foi o vencedor, embora tenha feito, no bojo da negociação política, algumas concessões.

Dolnikoff entende que o “Regresso” foi uma revisão centralizadora que se restringiu ao aparelho judiciário, sem alterar pontos centrais do arranjo liberal, que tinham caráter descentralizador. (p.130) Ao invés de destacar a atuação da elite da Corte, a autora conclui que foi a participação das elites provinciais a propiciadora das condições para inserção de toda a América Lusitana no novo Estado, atuação decisiva, que inclusive marcou a dinâmica do Estado brasileiro.

Para a defesa desta posição, a autora recorta para pesquisa três unidades da federação: as províncias de Pernambuco, Rio Grande do Sul e São Paulo. Examina o exercício da autonomia dos governos provinciais inclusive em fase posterior ao Regresso. Justifica sua seleção por serem essas províncias diversas entre si, nos aspectos regionais, nos distintos passados, e nas diferentes demandas e interesses. Busca demonstrar que os diferentes conflitos encontravam espaço de negociação dentro da organização institucional organizada.

Desse modo, as elites provinciais tiveram papel decisivo na construção do novo Estado e na definição da sua natureza. Participaram ativamente das decisões políticas, fosse na sua província, fosse no governo central. E, ao fazê-lo, constituíram-se como elites políticas.

O que a autora quer mostrar mais especificamente é que as elites provinciais (com raízes no período colonial, que defendiam a ordem escravista, a exclusão social e as franquias provinciais) estavam também atreladas ao projeto de construção do Estado nacional e não excluídas. Justamente porque conseguiram articular-se a um arranjo institucional consagrado nas reformas de 1830 e na revisão de 1840 é que a fragmentação da nação foi evitada.

O “preço pago” por esta unidade conseguida teria sido o fortalecimento dos grupos provinciais no interior do próprio aparato estatal, com o conseqüente estabelecimento das poderosas forças oligárquicas, que ao final do século XIX, reivindicaram mais autonomia.

A autora conclui que foi a participação destas elites no interior do Estado, com fortes vínculos com os interesses de sua região de origem e ao mesmo tempo comprometidas com uma determinada política nacional, pautada pela negociação destes interesses e pela manutenção da exclusão social, que marcou o século XIX e também o XX. (p. 285) Mesmo considerando o levantamento feito pela autora entre o número de medidas centralizadoras e descentralizadoras, concluindo pelo predomínio das segundas, ainda pensamos que o fundamental foi a direção e a finalidade da acomodação centro/províncias no momento considerado: – que foi justamente o sentido da centralização, da negociação em torno de “um sentido”, que garantisse a permanência da sociedade escravocrata e excludente.

Notas 1 Historiador alemão, H G Handelmann, Geschicht von Brasilien. Berlim: Springer, 1860, p. 935, conforme Augustin Wernet, Sociedades políticas (1831-1832). São Paulo: Cultrix, 1978, p 15.

Léa Maria Carrer Iamashita – Doutoranda em História Social-UnB.

DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil do século XIX. São Paulo: Globo, 2005. Resenha de: IAMSHITA, Léa Maria Carrer. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.11, p.177-180, 2007. Acessar publicação original. [IF].

BRITO Eleonora Zicari Costa de (Aut), Justiça e gênero: uma história da Justiça de menores em Brasília (1960-1990) (T), Editora da UnB, Finatec (E), PACHECO Mateus de Andrade (Res), Em Tempo de Histórias (ETH), Justiça, Gênero, Menor de idade, Distrito Federal (Brasília), Século 20 Século 20, América

Nos anos 60 e 70, Michel Foucault abriu uma perspectiva para a leitura das relações de poder, demonstrando que, a partir do século XVIII, uma rede de dispositivos disciplinares objetivou não apenas atuar sobre o sexo, colocando-o “em discurso”, mas também inventou novas formas de apropriação de sentido.

O trabalho de Brito articula a noção de poder do pensador francês não somente pela via da negação de poder como simples repressão; a essa via a autora contrapõe a afirmação de que o poder positiva, diz sim, induz formas de saber e produz discurso. Trata-se, portanto, de um conceito de poder que produz verdades, mais do que as oculta, que constitui regras para o verdadeiro, regras, entre outras, de produção de enunciados e de reconhecimento de seus sujeitos-autores.

Justiça e gênero tem como tônica central o modo como a categoria “menor de idade”, em especial “a menor de idade”, fora lida pela Justiça de Menores no Distrito Federal entre 1960 e 1996 (embora o título estabeleça 1990, a autora nos traz dados atualizados até os meados da década seguinte). Uma leitura que adotou de uma série de estratégias que refletem questões ligadas às relações de poder e gênero, evidenciadas e criticadas pela autora. O trabalho inscreve-se no grupo de estudos de gênero que possuem como ambição desnaturalizar as relações entre homens e mulheres, mostrando-as como construções sociais, históricas e culturais.

Ao analisar os casos indicados nos arquivos do antigo Juizado de Menores de Brasília – um total de cinco mil processos de um universo de cerca de trinta e dois mil –, a autora nos apresenta a história da constituição da justiça voltada ao “menor” infrator, por meio da configuração do Código de Menores, numa clivagem entre Direito e Ciências Médicas, além das teorias assistenciais em voga desde o final do século XIX. Dessa forma, o livro localiza o leitor pelas histórias normativas que procuraram regular a relação entre a infância, a juventude e a Justiça.

Nesse aspecto, Brito indica o caráter ambíguo do Código de Menores de 1927, na medida em que, para esse instrumento legal, o “menor” foi uma criação da tensão entre um sujeito ligado ao perigo, a ser detectado e disciplinado, e o sujeito cuja inocência deveria ser resguardada ou recuperada. A autora apresenta-nos esse “leitmotiv”, intimamente ligado à dimensão punitiva – marca do Direito Penal –, que matizou a questão até 1990, ano da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e mostra-nos como esse sujeito “menor” é destituído de sexo e sofre o apagamento regulador das tensões de gênero.

Enquanto a lei desconsidera o sexo do menor, anulando-o, na prática, por meio das aplicações do Juizado, recupera-se esse sexo “anulado” hierarquizando-o. Para a autora, “antes de ser ‘menor’, a menina é seu corpo, seu sexo de mulher”, como demonstra já de início, a partir da análise do caso de estupro avaliado pelo ministro do Supremo, em que a transgressão não está no ato, mas naquele que transgride – máxima da Escola Positiva de Direito Penal.

Os casos vão surgindo de modo a configurar ora a constituição de uma vítima, ora uma delinqüência, sempre julgada a partir do sexo. Nas questões em que a “menina/mulher” é vítima de crimes sexuais, o que importa é verificar sua índole e não o caso em si. Nesse aspecto, o que os discursos proferidos pelos curadores e juízes instauram é a justificativa da violência como punição social para a “má-conduta” da mulher “devassa”. Impressiona a recorrência de preconceitos tradicionais impostos às menores; constata-se, por exemplo, que, em relação à “menina/mulher”, o crime se associava irremediavelmente à prostituição ainda no final dos anos 80. Sua sexualidade era o foco para onde convergiam essas explicações.

O trabalho nos lembra de que, na lógica das fábulas processuais, não cabia à mulher um papel ativo. Sua defesa só poderia ser constituída diante da evidência de que seu papel de agente passivo do ato estava garantido, de tal modo – mostram-nos os casos narrados –, que, protegida e vigiada pela insígnia do perigo, o respeito à mulher e o crédito de seu relato passavam pelo testemunho do homem adulto. Não são raros, por exemplo, os pareceres que culpam as mães pelas “distrações” das filhas, enquanto ao pai nada cabia senão a vergonha.

O desvio infanto-juvenil, ou seja, sua punibilidade perante a lei, insere-se, portanto, no contexto de certa “estratégia de “governamentalidade” que, por um lado, buscava disciplinar os corpos, e, por outro, objetivava a regulação da população” (p.119). Sobre as questões dos corpos, Brito narra todo um jogo de poder na constituição de uma Medicina Legal, cara às determinações hierárquicas entre homem/mulher, adulto/criança e normal/anormal. Teorias como as divulgadas por Afrânio Peixoto e Nina Rodrigues foram as que deram os contornos do debate sobre a delinqüência no Brasil e, conseqüentemente, sobre a infância e a juventude a serem “protegidas”, objetos preferenciais do saber criminológico.

Tal saber é evidenciado pela autora por meio do estudo de dois laudos solicitados pela Justiça. Um proferido para uma menina e outro, para um menino (os casos de Alice e Mário, independentes, estão entre as comparações mais impressionantes do livro). Os laudos naturalizam os comportamentos, “fixando os que são normais num e noutro sexo e classificando-os no discurso médico” (p.190). O saber médico (legal) respaldava a criação do desvio – ação fora da norma qualificada na patologia clínica –, migrando-o da ordem moral para a clínica. A perícia médica funcionava como uma guardiã da higiene sexual, medicalizando e criminalizando o sexo desviado de sua função procriativa, saudável.

Brito nos mostra como a própria pré-seleção do delito era imposta pelas relações de gênero, na medida em que certas práticas desviantes, na verdade, eram cometidas por meninos e meninas, mas classificadas de modo diverso. O que os pareceres e as sentenças não estavam preparados a permitir eram meninas em situações tidas como preferencialmente masculinas.

Um exemplo é a modalidade “perturbação da ordem”, instituída como um domínio reservado ao masculino, uma vez que corriqueiramente a rua – o espaço público – estava “estabelecida” como tal, enquanto na modalidade “inadaptação familiar” o número de transgressões femininas está “naturalizado”, pois passa-se para a esfera privada. Enfim, analisados e delimitados por critérios específicos a cada época, crianças e adolescentes têm a complexidade de seu “ser no mundo” reduzida a traçados lineares.

Contudo, as regras a que tal linearidade obedecia sofreram mudanças entre os anos 60 e o início dos 90. A autora não comete o erro de planificar os valores nas décadas estudadas.

Está, antes, interessada em como, em momentos distintos, embora próximos, o aparato regulador da “infância” lida com o paradoxo entre uma Justiça que institui para si o peso da modernização moral, ao passo que continua a reconduzir valores tradicionais instituídos às mulheres.

É certo que Brito salienta que as mutações, em muitos aspectos, só renovam alguns padrões de conduta historicamente defendidos. Ignorar que as relações de gênero impõem hierarquizações que estão para além daquelas “admitidas” pela lei – essa mesma viciada em dissimular tais hierarquias, mesmo nos dias atuais – é um alerta premente desse livro. De tal monta que a polêmica que mesmo hoje divide grupos feministas em torno do uso do sistema penal na luta pela defesa e pelo reconhecimento de direitos às mulheres deve ser evidenciada à luz das questões tratadas aqui. A autora põe em questão a eficácia de se acionar o sistema legal em favor da defesa dos direitos das mulheres, discutindo se esta prática, ao contrário, não seria promovedora de um quadro de aprofundamento das relações hierarquizadas de gênero. Pela conduta de sua pesquisa, a autora parece não crer que tal sistema – como ele se apresenta atualmente – seja capaz de garantir equidade.

Em muitos casos, como os próprios processos indicavam, eram famílias interessadas em desvincular-se daquela menor que não mais se adequava ao regime de menina da casa.

Jovens, algumas vezes crianças, trazidas do interior do país para trabalhar como domésticas sem receber salário, num dúbio jogo de exploração e tutela que, em determinado momento, era considerado indesejável. Tal questão mostra que o livro não se presta a maniqueísmos, pois aqui a autora indica como foi importante o papel do Juizado para desvelar esse jogo.

Às mulheres se perdoava, ironia discriminatória que atingia também as jovens de classe média que furtavam no comércio local. Elas eram, geralmente, enquadradas no chamado ‘descuido’, ou seja, na capacidade de pegar e não pagar por mera falta de atenção.

Ao examinar extensa documentação, a autora tomou o cuidado de questionar as determinações de produção, enquadrando-as num contexto histórico localizado, e evidenciou os procedimentos representados pela instituição. Exemplo: nos anos 60 e 70, o juizado de Menores de Brasília não possuía o aparato interdisciplinar de profissionais, previsto em lei, os quais deveriam apoiar as decisões tomadas; nem mesmo contava com instituições “corretivas”. Fatos que influenciavam as decisões e que fizeram muitos processos percorrerem uma cansativa rede burocrática, na esperança de que os problemas externos à demanda judicial fossem resolvidos antes de uma possível sentença.

São todas questões cruciais para quem quer compreender, a partir dos exemplos de Brasília, as determinações legais frente às relações de gênero. A autora não se furta a contextualizar o ambiente em que os documentos são gerados: “Profusão de imagens, Brasília era representada, ao mesmo tempo, como o espaço propício para a manifestação de uma sociabilidade que a fazia mais humana que a maioria das outras cidades (…) e lócus de manifestação do ‘perigo’ representado pela infância e pela juventude ‘desviantes’.”(p.154).

Tal abordagem confere ao livro mais esse atrativo. Além de interessar a estudiosos em gênero, ligados à história ou ao direito, há na pesquisa de Brito uma sutil, mas determinante, consciência do papel que essa “urbe”, tão exótica por sua constituição e história, ocupa na problemática. Brasília e os brasileiros vindos de todas as partes serviram a Brito para o elementar exercício de compreensão daqueles “poderes” que Foucault nos apresentou.

Mateus de Andrade Pacheco – Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília, com apoio do CNPq.

BRITO, Eleonora Zicari Costa de. Justiça e gênero: uma história da Justiça de menores em Brasília (1960-1990). Brasília: Editora Universidade de Brasília: Finatec, 2007. Resenha de: PACHECO, Mateus de Andrade. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.11, p.172-176, 2007. Acessar publicação original. [IF].

MARTINS Estevão C de Rezende (Aut), Cultura e poder (T), Saraiva (E), SALES Eric de (Res), Em Tempo de Histórias (ETH), Conceito de Cultura, Conceito de Ideia, Conceito de Poder, Conceito de Ideologia, Identidades, Organizações sociais, Estado Professor de teoria da história e de história contemporânea na Universidade de Brasília – UnB, Estevão C. de Rezende Martins dedica-se aos estudos nos campos da teoria, filosofia e metodologia da história, história cultural moderna e contemporânea, e das relações internacionais, em particular da Europa ocidental. Publica em 2007, Cultura e poder, livro que busca situar o leitor em questões referentes à formação e organização dos Estados modernos e de suas relações externas. Nas palavras do autor, o livro segue uma “perspectiva teórico analítica em que são coordenados a preocupação filosófica com a engenharia conceitual e o prisma historiográfico, penhor de inserção empírica dos temas tratados” (p. 01).

O livro está dividido em sete capítulos que buscam apresentar ao leitor, inicialmente, os conceitos que o autor utiliza (como poder, idéias, cultura e ideologia), para em seguida, demonstrar como estes são utilizados para a construção das identidades e, conseqüentemente, das organizações sociais que originam os Estados. Durante a leitura da obra capítulos, nota-se que há quatro seções de análise que direcionam o livro. Essas podem ser divididas em: seção de conceituação (capítulos 1, 2 e 3), nos quais são apresentados os conceitos usados em todo o livro; análise da União Européia (capítulos 4 e 5), onde as idéias apresentadas pelo autor já foram trabalhadas e postas em prática, com relativo sucesso; e análise da América Latina (capítulo 6), utilizando-se de todo o escorço conceitual apresentando. O capítulo 7 tratará das perspectivas sobre o uso das idéias e o poder que exercerão no contexto da “mundialização”.1 Diversos são os campos de estudos e pesquisas que se dedicam à formação dos Estados e sua relação com as identidades sócio-culturais. Dentre esses, há de se destacar o campo da ciência Jurídica, da Ciência Política e das Relações Internacionais. E é por meio dos conceitos fornecidos por estas áreas do saber que Martins articula seus pensamentos utilizando uma perspectiva que se afasta da ciência da história e se aproxima da filosofia, do direito e das relações internacionais. Por meio de tais perspectivas e com base no instrumental teórico dos campos citados é que o autor inicia suas pontuações.

O que são idéias e como são capazes de mover sociedades, isto é, sua concepção e sua função, são as bases para os debates do primeiro capítulo. O autor trata as idéias com uma perspectiva do papel que desempenham no “contexto de redes culturais cuja resultante são as formas de poder na sociedade e no Estado que interferem na formulação e na prática de condutas individuais e sociais”. (p. 7) As idéias são apresentadas como uma forma de orientação do agir, destacando-se em três dimensões distintas: passado (interpretação), presente (explicação) e futuro (projeção). Tais dimensões orientam o pensar humano e a formação não apenas de idéias, mas de identidades – outro discussão que perspassa o livro todo. O debate sobre as idéias de poder é o que conclui o primeiro capítulo. Neste ponto, Martins apresenta diversos posicionamentos sobre as idéias de poder – Foucault, Carl Schmitt, Jean Bodin, etc. – mas deixa claro seu alinhamento com a concepção de Niklas Luhmann, que concebe o poder “como um jogo social de ações, que causam a partir de pressupostos não causais, que efetuam trocas com base em fundamentos não permutáveis, que jogam utilizando regras não colocáveis em jogo”. (p. 25) O poder da cultura e a cultura do poder são o mote do segundo capítulo. O autor emprega o termo cultura, no livro, de forma ampla, “diretamente vinculada à ação racional do homem” (p. 2), um fator dinâmico de ação, formação e transformação. O fundamento da cultura está no fato de que o homem precisa agir para poder viver.

Utilizando-se das concepções de Gordon Mathews, para Martins, a cultura está mergulhada em um “sistema de circulação de idéias e de produtos chamado mercado” (p. 30), e segue três vertentes: a individual, a coletiva (família, colegas de trabalho, torcedores de um time, etc.) e a pública ou estatal (sistemas de educação e de comunicação em massa). Por estas vertentes, o autor explicita a importância do conhecimento histórico, ou “cultura histórica”, pois esse é formador de identidades e está inserido em um mundo de signos, elementos distintivos pertencentes a uma “cultura”. “A cultura histórica é, então, a articulação de percepção, interpretação, orientação e teleologia, na qual o tempo é um fator determinante da vida humana”. (p. 33) Ao nascer, qualquer pessoa já está inserida em um mundo pleno de histórias, de signos e conceitos pré-concebidos, mas isso não significa precisar aceitá-los passivamente; ao contrário, ao adquirir consciência, conquista a capacidade de transformar estas idéias dadas em idéias e conceitos próprios. O indivíduo, grupo ou nação demonstram, desta forma, o poder da cultura. A construção e formação das identidades tomam boa parte desse segundo capítulo, pois para Martins, é o entendimento de si e de quem é o outro que propiciará a criação de laços entre os países, superando questões seculares, como ocorreu com a União Européia (UE). Ponto interessante, pois o autor toma a UE como um exemplo, guardadas as devidas proporções, que a América Latina deve seguir para superar desavenças e se impor de forma organizada.

O terceiro capítulo trata da ideologia. Neste ponto, o autor explicita que o entendimento de ideologia como “receita pronta” para uso rápido, simples e imediato, independente do conteúdo ou dos fins – colocadas de forma maniqueísta muitas vezes – deve ser superado. Atualmente deve-se observar a amplitude e abrangência das idéias, que escapam do simplismo das ideologias clássicas. É algo que pode estar em qualquer contexto, desde que nele haja a questão de ser, pensar e agir, que pode ser entendida como ideologia. Martins expressa que ideologia “é um instrumento prático polivalente, socialmente relevante e particularmente eficaz – embora de contornos difusos, quando ‘vivida’ de forma concreta pelas pessoas”. (p. 67) Após apresentar suas impressões sobre os conceitos elencados Martins passa a questionar essas concepções, o autor vai se lançar a questionar o poder da cultura na história européia e, conseqüentemente, como se pode buscar um fio condutor para a formação das identidades da Europa ocidental, o que facilitaria a convivência e formação de um bloco de países.

O capítulo quatro é dedicado a apresentar a história da Europa ocidental e como a formação das identidades foi diferente em relação aos europeus orientais. Para tal, lança mão das idéias sobre a expansão da fronteira na formação das identidades e do conceito de “grande fronteira” – teorias de Frederick Tuner e Walter Prescott Webb, respectivamente. Para Martins, “A percepção ou ‘estranhamento’ cultural entre diversos ‘outros’ que conviveram – e convivem – no espaço da(s) Europa(s) é um elemento importante na organização extrínseca (…) e intrínseca da identidade cultural européia…” (p. 83).

As questões do multiculturalismo e das identidades nacionais no conjunto Europeu é o tema do capítulo cinco. Nesse momento da obra é debatido o conceito de “linguagem da nação”, isto é, o discurso político nacional que integra três grandes dimensões: a razão modernizadora, a vontade mobilizadora e a justiça igualitária. Por meio desta “linguagem da nação”, deste discurso político nacional é que as nações modernas se organizaram. Para Martins a nação não é uma ideologia, mas um “produto, dentro de um território particular, das relações entre uma economia, uma cultura e um Estado dominados pelo princípio da racionalidade instrumental”. (p. 99) Por essa linguagem é que uma sociedade pode construir o passado como tempo ultrapassado (dimensão interpretativa), de modo a se distanciar e poder explicar o passado e ter perspectivas de futuro (projeção). Contudo, no decorrer da leitura, nota-se que essa linguagem, com bases muito mais históricas, perdeu sua força. A busca de uma nova linguagem deverá, segundo Martins, passar por uma (re)construção das consciências nacionais (no âmbito europeu), devendo se reorientar em busca de uma síntese democrática, o que evitaria os elementos contraditórios de nossa modernidade.

O sexto capítulo do livro volta-se para os debates sobre a formação de uma identidade cultural latino-americana. São expostas quais são as dificuldades para se fomentar uma identidade comum na América Latina. O primeiro passo é compreender que as sociedades européias são “sociedades originárias”, ou seja, foram criadas, originadas da vontade mobilizadora de um grupo, enquanto as sociedades americanas são “sociedades implantadas”, isto é, não foram originadas de uma vontade de um grupo, mas sim impostas por um grupo sobre outro. A partir desse pressuposto, Martins vai discorrer sobre a situação na América Latina e das dificuldades de uma articulação histórica, que contribua para uma identidade comum.

A parte final da obra é dedicada a uma discussão de possíveis perspectivas sobre os movimentos de “mundialização”, o uso e poder das idéias nesse contexto “A multipolaridade política e cultural apresenta-se como contraponto consolidável para viabilizar uma alternativa à unipolaridade econômica norte-americana ainda remanescente”. (p. 137) Com tal perspectiva, propõe que o mundo social deve se voltar para um entendimento da diversificação cultural interna, encarceradas nos Estados nacionais, pois a cultura serve como referência do agir humano, podendo influenciar na modificação das estruturas sociais vigentes.

O historiador convencional ao ler, Cultura e poder não encontrará uma obra nos moldes da ciência da história. Mesmo hoje, onde as fronteiras entre as disciplinas como filosofia, história, sociologia e relações internacionais, não possuem um limite claro – pois todas se utilizam de conceitos comuns, mas com usos específicos – pode-se dizer que o livro é direcionado para o campo das relações internacionais, como o próprio nome da coleção, Coleção Relações Internacionais, já mostra – e dos estudos que debatem a formação dos Estados nacionais e das relações de poder que emergem no interior dessas sociedades, através de uma perspectiva cultura.

Centra-se no contexto europeu, mas segue esse caminho para demonstrar como as idéias e os conceitos apresentados foram aplicados na Europa, suas conseqüências e os possíveis que a América Latina pode seguir para formar uma macro-identidade regional, respeitando as diferenças culturais – o que não ocorreu no velho continente, segundo Martins, pois os Estados foram criados, como que ignorando tais diferenças culturais, criando situações de conflito nos dias atuais, como nos Bálcãs ou na região basca. Contudo, sem se aprofundar no debate, o livro pode introduzir e situar o leitor no debate sobre cultura e poder.

A obra de Martins é extremamente interessante, já que ao introduzir e situar o leitor no debate sobre cultura e poder, centra-se no contexto europeu e segue essa trilha para demonstrar como as idéias e os conceitos apresentados foram aplicados na Europa, suas conseqüências e os possíveis caminhos que a América Latina pode seguir para formar uma macro-identidade regional, desde que respeitadas as diferenças culturais.

Notas 1 O autor usa o termo “mundialização”, expressão do universo da língua francesa, no sentido de “globalização”, mas com ênfase aos aspectos mentais, ideais e culturais.

Eric de Sales – Graduado em História pela Universidade de Brasília – UnB e mestrando pela UnB em História na Área de Concentração História Social. E-mail para contato: [email protected].

MARTINS, Estevão C. de Rezende. Cultura e poder. 2 ed. Revisada e ampliada. São Paulo: Saraiva, 2007. Resenha de: SALES, Eric de. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.11, p.167-171, 2007. Acessar publicação original. [IF].

MORAES Letícia Nunes de (Aut), Leituras da revista Realidade (1966-1968) (T), Alameda Editora (E), OLVEIRA Emerson Dionisio Gomes de (Res), Em Tempo de Histórias (ETH), Revista Realidade, New journalism, História do jornalismo, Brasil Século 20, América Retrospectivamente, tem-se a impressão de que a revista Realidade nasceu para causar polêmica. No seu primeiro número (abril de 1966), a revista abordava o tema da sexualidade entre os jovens; dois meses depois, a principal matéria questionava o divórcio (dez anos antes de sua legalização). Nos números seguintes, temas como o celibato entre sacerdotes católicos ou a controvertida capa de dezembro de 1966 “Deus está morrendo?” causaram discussões em todo o País. Apesar de todas as controvérsias geradas nos primeiros meses da revista, a história desse veículo guardou para janeiro de 1967, com “A mulher brasileira, hoje”, o momento em que segmentos censores da sociedade passaram a agir contra a sua publicação de modo agressivo. Contudo, uma leitura atenta da seção de cartas da revista desmistifica qualquer possível surpresa em relação aos eventos daquele janeiro.

Na análise de Letícia Nunes Moraes, a revista pertencente ao grupo empresarial Abril de São Paulo resistiu em seus dois primeiros anos porque matinha uma relação amistosa com os governos militares, que, desde 1964, controlavam o País. Isso graças a matérias “simpáticas” e perfis de ministros e presidentes publicados com freqüência, embora tal relacionamento tenha lenta e gradativamente se deteriorado a partir de 1968, algo que pode ser verificado com o número de leitores que passaram a “atacar” a publicação.

Realidade foi um marco na história do jornalismo brasileiro ao abordar temas pouco costumeiros nos periódicos voltados à classe média urbana e por incentivar uma linguagem jornalística próxima aos efeitos estilísticos da literatura, naquilo que se denominou genericamente como “new journalism”. A revista foi publicada entre 1966 e 1976, e Moraes debruça-se sobre os três primeiros anos (1966-1968), cerca de 36 números, em especial sobre as cartas enviadas aos editores, numa forma consciente de compreender como o periódico decodificava as opiniões de seus leitores. Nesse aspecto a revista também inovou ao produzir as primeiras pesquisas para definir seu público leitor.

Ao definir seu objetivo, Moraes produz o primeiro ruído quando identifica, no confronto entre os missivistas e as matérias publicadas, uma possibilidade de entender “como a revista queria ser lida e como de fato era lida”, sem lembrar-se , contudo, de que sua fonte única é a própria revista e que mesmo aquelas cartas eram passíveis de seleção e edição.

Enfim, o que a autora nos oferece é um detalhado estudo de duas “esferas” editorias de uma publicação: aquela preocupada com os “fatos” e outra, dedicada a selecionar as interpretações dos “fatos” pelos leitores. É nesse ponto que a sagacidade da autora traz elementos novos, desvios que necessitaram de elementos comparativos para expor certas nuances expressas nas cartas que podem não ter chamado a atenção dos editores naqueles anos, mas que, aos olhos dos estudiosos, hoje não apenas denotam as estratégias dos meios de comunicação da época – imersos num regime hostil à liberdade de expressão – como também nos dão pistas sobre os assuntos debatidos.

Em outro aspecto, a autora adverte que a seção de cartas naquele universo midiático controlado é muitas vezes utilizada para expressar aquilo que não se permite mais nos editoriais, utilizando as opiniões de “leitores” como forma de “desviar” o sentido de autoria.

Infelizmente o trabalho não levou adiante a desconfiança de que cartas podem ter sido criadas pelos editores, como ela mesma conjectura, apresentando-nos como contra-argumento o fato de que não havia tal necessidade mediante a quantidade de cartas recebidas pela revista.

Argumento que em si não está necessariamente ligado ao problema.

Num outro hemisfério, uma prática chamou sua atenção: o fato de que algumas cartas eram respondidas, e as respostas publicadas, quando os editores (Paulo Patarra e Woile Guimarães) percebiam que as questões apresentadas poderiam interessar a outros leitores.

Essas respostas foram bem exploradas pela autora e nelas podemos ver um certo “diálogo” na seção de cartas com “alguns” leitores selecionados. O exemplo que nos parece atual é o número recorrente de leitores que reclamavam da elevada quantidade de anúncios publicados e de uma das respostas ofertadas: “Sem publicidade, imprensa não vive. O importante não é quantos anúncios uma revista contém, mas sim qual a qualidade e a quantidade das matérias que oferece ao leitor” (p.86).

Muitas respostas da revista continham a idéia de que a sugestão para uma nova matéria já havia sido considerada dentro da própria redação. Havia uma preocupação dos jornalistas em explicitar que estavam à frente dos leitores, que suas sugestões apenas reforçavam pautas. Essa tática discursiva era importante na construção da identidade de Realidade, que deveria ser lida como um veículo de comunicação que antecipava discussões e tendências críticas. Apesar desse expediente, a autora mostra que, com o passar dos anos, as respostas tornaram-se cada vez mais raras e eram destinadas a cartas contrárias às opiniões da revista.

Por meio de um banco de dados construído a partir da análise de 686 cartas publicadas, Moraes tenta configurar o perfil dos leitores que escreviam para Realidade. Mas o esforço é decepcionante; a maioria era formada por homens (73%) e oriundos da região sudeste (70%); as únicas informações possíveis, pois raramente aqueles que escreviam identificavam-se de modo preciso. As conjecturas quanto à idade, à profissão, à escolaridade ou a quaisquer índices, mesmo ofertados pela autora, parecem estatisticamente irrelevantes.

Em depoimentos à autora, os editores explicitaram que, nos primeiros números de Realidade, os leitores enviavam cartas cujo teor era mais genérico e as referências às reportagens da revista eram secundárias. Raramente essas cartas eram publicadas; optava-se por relatos diretos ligados à publicação anterior. Com o tempo, as cartas já seguiam essa receita, ou seja, ensinava-se ao leitor que desejava ter sua carta publicada como ela deveria ser escrita. Essa pedagogia da acessibilidade era conscientemente seguida e coloca em suspense qualquer ilusão de uma interatividade irrestrita, tão advogada na época.

Outro aspecto era o incansável desejo de uniformizar as leituras de matérias da revista propostas pelas cartas, numa clara manipulação daquilo que era entendido – publicado – como opinião pública. Nesse tocante, Moraes explora o que Patarra chamou de “jogar um leitor contra o outro” (p.112), uma forma de legitimar a opinião da revista diante de cartas desfavoráveis por meio da publicação cartas de leitores oportunos, conferindo à publicação uma falsa imparcialidade. Um procedimento ainda muito em voga nas publicações atuais.

As cartas mostram que a revista também foi considerada perigosa quando um número considerável de missivistas acusou a revista de defender uma nova organização familiar representativa de uma “revolução moral”. Alguns leitores escreveram à Realidade afirmando que seus filhos estavam proibidos de ler a publicação. Na contrapartida, a revista utiliza cartas de pais que se manifestaram de modo oposto: elogiavam a publicação por criar um ambiente mais confortável entre eles e seus filhos em relação a questões sobre sexualidade e drogas.

Os temas mais comentados eram os de comportamento. Três publicações de 1967 merecem destaque: “A mulher brasileira hoje”, de janeiro; “A juventude brasileira hoje”, de setembro; e “Existe preconceito de cor no Brasil”, de outubro. Temas explosivos que fizeram com que todas essas abordagens sofressem com proibições, ataques e debates acalorados dentro e fora da seção de cartas da revista. Mas nenhum tema foi mais combatido pelos leitores que o “Homossexualismo”, matéria publicada em maio de 1968 (uma data nada neutra), cuja repercussão negativa a revista ratificou, “talvez por ter o mesmo ponto de vista desses leitores” (p.116). Mas há reveses.

Estudiosos acostumados com os vieses da história da recepção sabem que leitores são freqüentemente praticantes de táticas que enviesam sentidos “programados”. Um exemplo ressaltado pela autora diz respeito à surpresa dos editores ao descobrirem que “prováveis” jovens estavam menos preocupados com a “revolução sexual” e as novas posturas comportamentais que com questões mais práticas como o acesso à educação de qualidade e desemprego. Essa conclusão nasceu dos resultados de questionários enviados aos leitores em julho de 1967 com perguntas sobre o divórcio, virgindade da mulher, cabelo comprido dos rapazes, mini-saia das moças etc. O resultado, publicado na edição de setembro (“A juventude brasileira hoje”), mesmo que longo, merece ser reproduzido: “Os jovens acreditam ao mesmo tempo em Deus e no socialismo, não pensam em revolução, acham que há alguma coisa errada no Brasil, mas a maioria prefere não protestar contra os abusos e erros. Julgam que seu papel é estudar, trabalhar e preparar-se para o futuro. Estão mais a favor do que contra o governo, embora muitos nem se preocupem com isso. Pregam a fidelidade para marido e mulher, os rapazes exigem a virgindade feminina, e muitas moças a masculina. Muitos defendem o controle da natalidade e se inclinam pela separação quando o casamento fracassa” (p.187, grifo da autora). Num mundo às vésperas de 1968, cada trecho desse pequeno resumo rendeu diferentes conclusões, exploradas no livro.

O debate político não está ausente do trabalho de Moraes; o número de cartas dedicadas ao assunto é menor que aquele direcionado aos costumes. Mas lidas de modo mais cuidadoso pela autora, mostram que temas como sexo ou matrimônio eram álibis para acusar a revista de ser “francamente antiamericana”, de “usar disfarces esquerdistas” ou para culpá-la de traição à pátria ou de ser “a favor de uma nação estrangeira” (p.140). O que, por efeito, alerta aos historiadores para o fato de que certas categorias estanques, tão arduamente elaboradas para nossas pesquisas, raramente resistem à complexidade dos “problemas” analisados.

Leituras da revista Realidade tem o mérito inegável de apresentar uma visão criativa daquela que foi a revista com maior credibilidade dentro da classe média brasileira no final dos anos 60, superando ícones do jornalismo como O Cruzeiro e Manchete. A autora ensina- nos a perquirir os detalhes de um “documento” que parece, a principio, demasiado óbvio ou já muito explorado. Seu trabalho confirma a suspeita, há anos difundida, de que novas fontes não são apenas encontradas, também podem ser construídas onde muitos já passaram.

Emerson Dionisio Gomes de Oliveira – * Doutorando do Programa de Pós-graduação em História da Universidade de Brasília, sob orientação da Profa. Dra. Eleonora Zicari Costa de Brito, com apoio do CNPq.

MORAES, Letícia Nunes de. Leituras da revista Realidade (1966-1968). São Paulo: Alameda Editora, 2007, 253p. Resenha de: OLVEIRA, Emerson Dionisio Gomes de. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.12, p.115-119, 2008. Acessar publicação original. [IF].

Historiadores pela Democracia – O golpe de 2016: a força do passado | T. Bessone, B. G. Mamigonian e H. Mattos

RC Destaque post 2 11 Oliveira Lima e a longa História da Independência

“A humanidade caminha Atropelando os sinais A história vai repetindo Os erros que o homem traz O mundo segue girando Carente de amor e paz Se cada cabeça é um mundo Cada um é muito mais”.

(Lenine, 2010) Dois mil e dezesseis. Ano marcado por muitas disputas narrativas acerca dos eventos históricos que ganharam relevo nos cenários brasileiro e mundial. Esses eventos se difundiram pela política, pela economia, pela educação, pela cultura; puseram em destaque as tensões que envolvem os três Poderes da República, que se tornaram o epicentro das disputas; expuseram as fragilidades institucionais e de conduta de vários segmentos de nossa sociedade; suas ressonâncias reverberaram no cotidiano de cada um de nós. Fantasmas de diferentes tempos evidenciam sua fertilidade e passam a amedrontar o presente; traumas e lacerações de nossa história irrompem novamente e insistem em doer. A história – ah, a história! Mais uma vez passa a ser responsabilizada pela instabilidade humana! Mas ela própria sabe-se fruto dessa ação e, como tal, traz consigo o germe da luta entre o instável e o perene; entre as tradições e o novo; entre o provisório e o eterno. Isso, por si só, a absolve de qualquer peso que a sobrecarregue.

Essa efervescência, contudo, traduz a inquietude gerada pela onda reacionária que insiste em se alastrar pelo nosso país e pelo planeta. Essa guinada retrógrada parece querer varrer nossa lucidez! A intolerância manifesta-se em diferentes territórios e sob variadas formas. Diferentes posições; variadas narrativas para descrever um enredo de tensões, para traduzir as fraturas na maneira de perceber a história recente. Afinal, a diversidade dos testemunhos acerca da história é quase infinita. Mas há elementos na história que se subvertem contra qualquer amarra ou controle que pretenda direcioná-la para uma interpretação que ameace contradizê-la em sua incontingência. Racionalidade e irracionalidade flertam entre si; ora enamoram-se, ora dilaceram-se em explícito combate. Leia Mais

Uma introdução à história da historiografia brasileira (1870-1970) – NICODEMO et. al (A)

NICODEMO, Thiago Lima; SANTOS, Pedro Afonso Cristovão dos; PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. Uma introdução à história da historiografia brasileira (1870-1970). Rio de Janeiro: FGV, 2018. 238p. Resenha de: ALMEIDA, Letícia Leal de. História da historiografia brasileira: uma apresentação do percurso historiográfico. Antíteses, Londrina, v.12, n. 23, p. 850-857, jan-jul. 2019.

A História da Historiografia é um campo de discussão que se preocupa com a profusão dos discursos historiográficos, que visam compreender as relações que se estabelecem entre os historiadores, as instituições e a História. Buscando compreender as tensões entre o passado e as representações construídas na historiografia, os historiadores que se dedicam a essa perspectiva visam refletir sobre a emergência dos discursos, preocupações, critérios de validação e confiabilidade da historiografia.

O livro Uma introdução à história da historiografia (2018) foi construído a partir dos debates travados nos encontros do Seminário Brasileiro de História da Historiografia, bem como no Núcleo de História da Historiografia e Modernidade da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).

Em conjunto, Nicodemo, Santos e Pereira são historiadores que se têm dedicado à História da Historiografia, participando da organização dos encontros na UFOP, bem como na problematização da História da Historiografia enquanto campo de produção. Thiago Lima Nicodemo é professor de Teoria da História da Unicamp, com pesquisas desenvolvidas em torno da produção historiográfica de Sérgio Buarque de Holanda. Pedro Afonso Cristovão dos Santos é professor de Teoria da História da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), com pesquisas sobre intelectuais do século XIX, com destaque a Capistrano de Abreu.

Mateus Henrique de Faria Pereira é professor associado de História do Brasil da Universidade Federal de Ouro Preto, com estudos em Historiografia no Tempo Presente, Intelectuais e Teoria da História.

O recorte temporal do livro visa contemplar discussões a partir da emergência da História da Historiografia no Brasil, desde o surgimento do moderno conceito de História no século XIX, além das apropriações e ressignificações das matrizes europeias no Brasil. Buscando compreender o percurso da História da Historiografia até a institucionalização da História nas Universidades e ao refletir sobre a elaboração da Cultura História brasileira e dos estudos desenvolvidos acerca desse tema, visa instaurar um lugar para as produções brasileiras na História da Historiografia. A maior parte do livro se centra no contexto após a institucionalização das Universidades.

No que se refere à História, a partir da estruturação dos cursos nas Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras no Brasil, partir de 1930 (FERREIRA, 2013). O mérito do texto está em apresentar um fio condutor na emergência do historiador de ofício: a partir da preocupação dos historiadores em situar-se em relação às produções anteriores, problematizando a organização da Historiografia brasileira a partir de suas próprias tensões e especificidades, rompem, assim, com a perspectiva da relação centro-periferia, discutindo a produção dos autores na organização de conceitos e de critérios para a Historiografia no Brasil.

No primeiro capítulo, os autores constroem o percurso da Historiografia enquanto campo, ou seja, relacionando problemas, aportes teóricosmetodológicos, nos quais diversos autores buscaram compreender o passado brasileiro. Utilizando um recurso do Google, o Ngram Viewer2, buscaram localizar a palavra Historiografia e seus correlatos em outros idiomas, com destaque para o inglês, espanhol, francês, italiano e alemão, ressaltando, assim, a ascensão no uso da palavra Historiografia a partir do século XX, enquanto fenômeno transnacional. O crescimento, segundo os autores, se deve à estruturação dos primeiros cursos de História nas Universidades, o que ampliou consideravelmente a produção em História (NICODEMO; SANTOS; PEREIRA, 2018, p. 23 – 25).

Nos capítulos seguintes, segundo e terceiro, destacam os primeiros esforços de se pensar a Historiografia Brasileira, como os livros de José Honório Rodrigues, desde a Teoria da História do Brasil, de 1949, até História da História do Brasil e a Historiografia colonial de 1979. José Honório Rodrigues é um dos autores basilares para se compreender o processo organização do ofício do historiador, do caráter amador-ensaísta ao historiador acadêmico (IGLÉSIAS, 1988).

Desde o gênero ensaístico, que misturava História e Política, os autores apresentam a emergência de novas formas de apreensão do tempo. A divisão da Historiografia no Brasil deveria considerar a produção desde o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, em 1838, até a organização das Universidades, momento em que a História iniciou o processo de organização disciplinar, definindo seus limites, enquanto uma tradição especializada.

A partir do processo de consolidação da disciplina e da emergência do historiador profissional, os autores discutem sobre a transição entre o intelectual polígrafo e o historiador acadêmico. Nesse sentido, referenciam a produção de Capistrano de Abreu, no Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen, publicado em 1878.

Nesse texto, se discutiu sobre o caminho da História Nacional, apresentando um protótipo de historiador: Transparecem as qualidades que comporiam o historiador ideal: a erudição, o conhecimento em primeira mão das fontes, aliados a uma capacidade de fazer reviver, pela escrita, os eventos estudados e de ter empatia com o objeto (NICODEMO; SANTOS; PEREIRA, 2018, p. 23-25).

Varnhagen, aos olhos de Capistrano, ao apresentar preocupações com as fontes e metodologias, próprias do métier do historiador, foi destacado pelos autores como precursor da Historiografia, compondo um estilo e uma escrita.

Desse modo, a História foi tecendo uma legitimidade enquanto produção de conhecimento. Em vista disso, a produção do século XIX se deu através da acumulação de informação e de fontes, além da crítica documental (NICODEMO; SANTOS; PEREIRA, 2018, p. 64).

Ao retratar Varnhagen, Capistrano apresenta uma visão mais refinada do processo metodológico, enviesado pela perspectiva de verdade em História. Os autores esclarecem que, devido à essa produção, a partir do acúmulo exaustivo das fontes, marcada pelo viés cronológico, possui uma natureza diferenciada que visava articular presente, passado e futuro.

Outro texto fundamental, destacado pelos autores, publicado em 1951 por Sérgio Buarque de Holanda, foi O pensamento histórico no Brasil nos últimos 50 anos. Para Holanda, Capistrano seria o ponto de partida para a Historiografia, enquanto processo de definição dos estudos históricos. A contribuição desse texto é de incidir sobre os anos 20 e 30, momento em que vigorou a produção ensaística.

Sérgio Buarque de Holanda produziu ensaios interpretativos, enquanto uma preocupação desse período, contemporâneo aos estudos de Gilberto Freyre e Caio Prado Júnior, que analisaram as heranças coloniais, esses escritos visavam transformar a realidade brasileira. O gênero ensaísta-síntese visava articular instrumentos teóricos, influenciados por matrizes diferentes: americana, alemã e francesa, momento em que o meio de inserção dos intelectuais se dava através da crítica literária ou do serviço público. Os autores dão destaque a Sérgio Buarque de Holanda como um intelectual de transição, entre o intelectual polígrafo e o historiador universitário (NICODEMO; SANTOS; PEREIRA, 2018, p. 74 – 75).

No terceiro capítulo, a organização das primeiras Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras no Brasil, com destaque à criação da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, criada em 1934 a partir da missão francesa, e da Faculdade Nacional de Filosofia de 1939, marca o início da organização da produção acadêmica.

Porém, a consolidação dessa produção só começaria a aparecer a partir de 1950, momento em que a pesquisa em História adquire um novo sentido orientada por problemas mais delimitados e mais aprofundados (FERREIRA, 2013).

Ainda nesse capítulo, os autores aprofundam as proximidades da produção acadêmica com a produção dos ensaístas. Nas Universidades, o processo de reflexão sobre o que fora produzido desde o século XIX apresentava rupturas e continuidades.

Holanda foi um dos intelectuais que defendeu a institucionalização universitária e a valorização do trabalho acadêmico. A partir da sua produção, de Raízes do Brasil de 1934, Monções, de 1945, até Caminhos e Fronteiras, de 1957, é possível compreender a preocupação do autor com as condições sociais da produção, bem como o refinamento de uma erudição em história. A produção de Holanda refletiu sobre a mudança na concepção de métodos e dos instrumentos teórico-metodológico, para além das generalidades, e visou afirmar uma cultura acadêmica a partir do discurso do historiador profissional, atento aos dilemas do presente.

A partir da institucionalização das Universidades, no quarto capítulo, os autores buscaram compreender a repercussão da produção acadêmica, com o aumento substancial da produção em História, tanto a partir da estruturação de instituições de fomento às pesquisas, quanto com a criação de cursos universitários e de um mercado editorial que permitiu a circulação dessas produções, como a criação de revistas acadêmicas, com destaque à Revista de História da Universidade de São Paulo. Dentro dessa dinâmica, vale ressaltar que a organização das Universidades estava alinhada à preocupação com a formação de professores e não de pesquisadores, por isso o cuidado estava centrado no ensino de História e na Didática da História.

No quinto capítulo, os autores aprofundam as discussões centrais do livro, sobre a organização da História da Historiografia como campo, no I Seminário Internacional de Estudos Brasileiros de 1971. Nesse seminário, Francisco Iglésias apresenta uma das primeiras concepções de História da Historiografia, enquanto exame exaustivo dos livros sobre História do Brasil e de um roteiro de textos importantes, reafirmando o papel de Capistrano de Abreu, como marco desse tipo de reflexão.

Segundo os autores, a História da Historiografia já havia sido mobilizada em 1961, a partir da publicação da Iniciação aos estudos históricos, de Jean Glenisson, com a colaboração de Pedro Moacyr Campos e Emília Viotti da Costa, ao referirse aos desafios da relação entre Teoria da História e História da Historiografia.

História geral da civilização brasileira, lançado em 1960, é outro livro central para História da Historiografia e foi organizado por Pedro Moacyr Campos e Sérgio Buarque de Holanda, com ênfase aos estudos sobre o Brasil imperial.

A partir da afirmação da Universidade como centro de produção em História, o quinto capítulo visou compreender o reconhecimento do trabalho do historiador, bem como as preocupações dos primeiros professores universitários. Desde a organização do primeiro simpósio da Associação Nacional de Professores Universitários, que aconteceu em Marília em 1961, bem como na produção das coletâneas de José Honório Rodrigues e das produções de José Amaral Lapa, até a inserção da História da Historiografia nos currículos universitários, os autores discutem sobre as implicações políticas e teórico-metodológicas desse processo nas produções acadêmicas a partir de 1960, a partir da inserção da História da Historiografia nos currículos universitários, que conciliava tanto a análise da produção dos historiadores quanto a História da História, esta como sinônimo de História da Historiografia.

Foi a partir de 1970 que se deram os embates em torno da inclusão da História da Historiografia enquanto disciplina separada da Teoria da História, presente nas produções de José Roberto do Amaral Lapa. Para este, a História da Historiografia deveria analisar criticamente a produção dos historiadores e a transformação do pensamento histórico, o que significava afirmar que a História da Historiografia possuía um objeto próprio, teorias e metodologias. A reafirmação desse campo rejeitava uma análise centro-periferia, pois buscava construir marcos a partir da própria produção historiográfica, não mais marcos políticos, como a fundação do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro ou das Universidades. Além do mais, propunha uma investigação sobre métodos, pressupostos teóricos e formas de se escrever a Historiografia brasileira.

Isto posto, os autores buscaram compreender a organização do campo da História da Historiografia, embates e dilemas, expressos desde os primeiros textos reflexivos como em Capistrano de Abreu e Sérgio Buarque de Holanda, a organização das coletâneas como as de José Honório Rodrigues, até a institucionalização da disciplina nos currículos universitários. Enfim, o processo de composição de uma cultura histórica que aos poucos se tornou universitária, a partir do adensamento de projetos políticos, compreendendo sua dimensão prática e política. Como destacado pelos autores: Os tempos são de disputas intensas pelo passado e a dimensão ético-política da escrita da história volta a ser central. Também é hora de pensar nas práticas dos historiadores do passado, incluindo nossos mestres, como práticas arqueologicamente investigáveis. Também é hora de pensar se não é momento da história da historiografia e da teoria da história irem além (NICODEMO; SANTOS; PEREIRA, 2018, p. 186).

Tal permite-nos compreender o processo de transformação da escrita em História no Brasil, bem como a organização de métodos e conceitos que consolidam a História da Historiografia.

A História da Historiografia, nesse sentido, permite compreender os balanços do fazer histórico, a partir da investigação sistemática acerca dos discursos produzidos sobre o passado, refletindo sobre as memórias construídas pelos autores em suas obras, suas posições teórico-metodológicas, tensões em torno da escrita da História, que, sob uma perspectiva presentista após os anos 70, visam compreender as novas experiências de apreensão do tempo.

O livro traz uma importante contribuição à historiografia, desde o recorte temporal realizado pelos autores, de 1870 a 1970, que permite compreender o percurso da História da Historiografia no Brasil. Por tratar-se de um balanço do tema, possibilita aos pesquisadores principiantes se inteirar dos debates, conhecer autores referenciais, enfim, compreender a especificidade da escrita da História no Brasil, além de vislumbrar um campo de pesquisa em plena expansão, como muitas fontes inéditas, novos problemas de pesquisa, à luz de novas perspectivas teórico-metodológicas.

Referências FERREIRA, Marieta de M. A História como ofício: a constituição de um campo disciplinar. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013.

IGLÉSIAS, Francisco. José Honório Rodrigues e a historiografia brasileira. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 55 – 78, 1988.

NICODEMO, Thiago Lima; SANTOS, Pedro Afonso Cristovão dos; PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. Uma introdução à história da historiografia brasileira (1870-1970). Rio de Janeiro: FGV, 2018. 232 p.

Notas

2 O Google Ngram Viewer é um recurso do Google que mapeia a frequência da palavra pesquisada a partir de fontes de 1500 a 2008.

Letícia Leal de AlmeidaProfessora na Universidade Estadual de Ponta Grossa. Doutoranda no Programa de Pósgraduação em História da Universidade Estadual de Santa Catarina. Email: leticialeal.[email protected].

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Lacan para historiadores | Danieli Machado Bezerra

Se buscássemos um tema constantemente presente na trajetória de pesquisa da historiadora Danieli Bezerra, certamente a psicanálise seria logo destacada. Sua tese de doutoramento, publicada pela editora Appris em 2018 com o título de Lacan para historiadores, aprofunda seu interesse debruçando-se nas teorias de Jacques Lacan (1901 – 1981), e nos leva a um diálogo interdisciplinar entre história e psicanálise2. Esta desafiadora obra vem enriquecer estudos de teoria da história, e será aqui apresentada ao leitor. Leia Mais

Historiadores pela Democracia – O golpe de 2016: a força do passado | Tânia Bessone, Beatriz G. Mamigonian e Hebe Mattos

O ano de 2016 será para a historiografia brasileira um divisor de águas, profundas e turvas, inscrevendo-se numa dolorosa cronologia do Brasil contemporâneo: 1954, 1955, 1961, 1964, 1968-69 e, agora, 2016. São anos de crise, de tentativas – de sucesso e fracasso, como 1961 e 1964 – de excluir o povo brasileiro do protagonismo da ação política nacional. Se, em 1954, 1955 e 1961 foram tentativas de golpe de Estado fracassadas, 1964 foi, então, sua realização, aprofundada em 1969.

2016: toda a questão, e debate, se dará em torno da caracterização do processo de impeachment da Presidenta Dilma Rousseff (2011-2016) – iniciado em dezembro de 2015, aprovado pela Câmara dos Deputados em 17 de abril e consumado, em julgamento no Senado Federal, em 13 de maio de 2016. O processo, conduzido no Senado Federal por um juiz-presidente do Supremo Tribunal Federal, acatou regras e dispositivos – maioria já praticados no caso do impedimento de Fernando Collor em 1992. No entanto, ao contrário do impedimento precedente, o caso de Dilma Rousseff foi marcado, ao longo de todo o seu desenrolar, por fortes acusações de “Golpe”, com os ritos jurídicos encobrindo uma vasta coalizão de interesses derrotados nas eleições de 2014. Desde o primeiro momento em que se declarou a reeleição da Presidenta – por uma diferença de três milhões e quinhentos mil votos. É interessante comparar a vitória de Mauricio Macri ou Donald Trump por ínfima, ou mesmo inferior, número de votos, sem o “clamor” que a posição brasileira fez desde a zero hora da vitória de Dilma. Leia Mais

Didáticas da História – entre filósofos e historiadores (1690-1907) | Itamar Freitas

Itamar Freitas (2015) não se furta a dar resposta à questão motivadora e espinal desta obra, mesmo que a faça com certa dose de anacronismo, como alerta durante o texto. Aliás, o que poderia representar para muitos historiadores como uma falha estrutural na urdidura da sua hipótese, levando ao esfacelamento e descrédito dos argumentos, Freitas vale-se do “bicho papão” dos historiadores, o anacronismo, para construir uma interpretação ousada e coerente para questão: “o que é pensar historicamente em…?”. O autor indaga a questão a cinco filósofos e historiadores que entre os séculos XVIII e XX, trataram de alguma forma dos usos da história na formação de pessoas em uma duração conjuntural.

O historiador nos informa que a opção por autores com vivência na Alemanha, França, Espanha, Estados Unidos e Inglaterra está justificada pelos nos nossos modos de ensinar história, que estiveram ancorados em epistemologias de fundo dominantemente empirista (nos casos de J. Lock e F. Herbart) e empirista/evolucionista (J. Dewey), panorama esse, que somente se alteraria no início do século XX, momento em que tais suportes são, em parte, substituídos por uma epistemologia histórica, ainda empirista, embora não positivista (R. Altamira e C.-V. Seignobos). Leia Mais

R. G. Collingwood: A Research Companion – CONNELLY et al (IJHLTR)

CONNELLY J R G Collingwood A research companion Oliveira Lima e a longa História da IndependênciaCONNELLY, James Connelly; JOHNSON, Peter Johnson; LEACH, Stephen. R. G. Collingwood: A Research Companion. London: Bloomsbury, 2015.  293p. Resenha de: HUGHES-WARRINGTON, Mamie. International Journal of Historical Learning Teaching and Research, London, v.13, n.2, p.14-15, 2016.

In 1992, I became the fortunate owner of a small photocopied guide to the R. G. Collingwood papers in the Bodleian Library, Oxford. This much-thumbed, much-annotated booklet became the first item in a collection of transcriptions and notes that soon spilled over the limits of a single folder and settled into a row of boxes that continues to grow today.

Such was the lot of a researcher on the life and works of Robin George Collingwood (1889– 1943), philosopher, archaeologist, historian and luminary of Oxford University in the first half of the twentieth century. Until now. Connelly, Johnson and Leach’s companion for researchers admirably fulfils its aims of providing a comprehensive and systematic listing of materials by and on Collingwood and of placing those materials in the context of a detailed chronology of his life (p. 2).

The book is helpfully divided into eight sections, covering a biography, a chronology of life events, letters, unpublished and published works by Collingwood and his commentators and details of the many archive holdings. The largest section – a description of correspondence – is arguably the most helpful, for the volume and scattered nature of holdings provides a considerable challenge to any budding researcher. The chronology is also a powerful aide to understanding Collingwood’s battle with failing health, which he describes rather poignantly in a 1941 letter to Christopher Hawkes as the time ‘since the superincumbent sword of Damocles became clearly visible, and here I am driving a pen, though not well’ (p. 137).

To those who would argue that it is an important rite of passage for new researchers to find materials for themselves, the simplest rebuttal is that comprehensive aids for research assist in the development of a comprehensive and nuanced understanding of the ideas and life events of individuals and groups. Moreover, they minimise the risk of misunderstandings that arise from not having considered particular materials, protecting students, early career researchers and those interested in Collingwood because of his connections to others from the dreaded ‘but you haven’t read x’ of the experienced Collingwood researcher.

There is a little to quibble about the book. The biography (pp. 3–6) gives the reader little sense of The Idea of History as a posthumous collection brought together by Collingwood’s student, T. M. Knox, or of the significant discovery in 1993 of missing chapters from The Principles of History in the basement of Oxford University Press. The published Collingwood is only the tip of an extensive manuscript collection that shows the evolution of his thought at work.

Nor does the book give the reader a sense of what to expect when they see a Collingwood manuscript for the first time. Collingwood’s handwriting is far from challenging as far as philosophers go, and his use of recycled exam scripts provide a helpful reminder of the Oxford in which he worked. But readers do need to be warned about his liberal use of ancient Greek terms, as well as his predilection for quoting from poems without noting their source. What was customary intertextual reference in Oxford of the 1930s can take the present day reader by surprise, and the best remedy is to begin with the revised editions of Collingwood’s philosophical work – starting notably with David Boucher’s edition of The New Leviathan (1992) – as they contain transcriptions and explanatory notes to a significant group of manuscripts.

Finally, the collection does not explicitly give the reader a sense of the balance of Collingwood’s interests in toto, as distinct from a year-by-year summary. This is a significant gap, as an analysis of the Collingwood corpus can remind us not to pass over his contributions to aesthetics when we see the vast lists of writings on archaeology, metaphysics and the philosophy of history.

But these are minor quibbles, and given the significant opportunities for research posed by a still largely untapped group of writings, this Research Companion is a welcome introduction to those new to Collingwood studies.

Marnie Hughes-Warrington – Australian National University, Australia. E-mail: [email protected].

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Sociologia no Espelho. Ensaísticas, cientistas sociais e críticos literários no Brasil e na Argentina (1930-1970) – BLANCO; JACKSON (PH)

BLANCO, A.; JACKSON, L. C. Sociologia no Espelho. Ensaísticas, cientistas sociais e críticos literários no Brasil e na Argentina (1930-1970). São Paulo: Editora 34, 2014. Resenha de: TEDESCO, Alexandra Dias Ferraz. Historiadores e sociólogos no espelho. Projeto História, São Paulo, n. 54, pp. 322-330, Set.-Dez. 2015.

A obra de Luiz Carlos Jackson e Alejandro Blanco que comentaremos nesse espaço, Sociologia no Espelho – Ensaístas, cientistas sociais e críticos literários no Brasil e na Argentina (1930-1970), publicada em português pela Editora 34, em 2014, traz, em seu título, algumas das implicações e tensões que constituem o próprio cerne da hipótese do livro. A proposta chama atenção não apenas pelo recorte temporal (datas paradigmáticas nos dois países, que sugerem ainda um período de constantes choques políticos e tensões sociais) mas, principalmente, pela multiplicidade de agentes em análise e em interação, que abre caminho para a hipótese estruturadora da análise dos dois autores: a ideia de que as trajetórias intelectuais operam em relação dinâmica com o contexto de institucionalização das referidas áreas acadêmicas e, ainda, que se pautam – em maior ou menor grau – pelas vicissitudes dos processos sociais que se desenvolvem na esfera não-acadêmica. Assim, embora a proposta do livro aborde, com riqueza de detalhes, algumas oscilações epistemológicas importantes, as questões políticas e sociais não aparecem de forma sorrateira na análise, outrossim, constituem matéria de base para a compreensão da relação entre ensaístas, cientistas sociais e críticos literários nos dois contextos.

Seguindo a proposta dialética da obra, o lugar intelectual de que falam os autores é um dado importante para a compreensão mais ampla da proposta metodológica contida na obra. Alejandro Blanco, graduado em sociologia pela Universidade de Buenos Aires e doutor em História pela mesma universidade, atualmente pesquisador do CONICET, desenvolve uma série de pesquisas no âmbito da História Intelectual, notadamente sobre o processo de institucionalização da sociologia na Argentina.1 Luiz Carlos Jackson, por seu lado, professor de Sociologia da Universidade de São Paulo trabalhou, em sua tese de Livre Docência na mesma Universidade com a perspectiva da Sociologia Comparada.2 Essas breves considerações biográficas ajudam a contextualizar o esforço conjunto do qual resulta Sociologia no Espelho, na medida em que as problematizações buscadas na obra refletem uma importante flexibilidade disciplinar, fundamental, em nosso ponto de vista, para dar corpo a um projeto comparativo que trabalha na fronteira entre a sociologia da cultura, a análise das trajetórias e a história intelectual. É nesse amalgama, inclusive, que o livro ganha centralidade também nas discussões historiográficas, notadamente naquelas que pretendem abrir-se a diálogos transversais, abrindo mão de uma visão laudatória de suas fronteiras epistemológicas. O esforço por operar com um escopo metodológico tão amplo e diversificado dá a tônica, como veremos, da estruturação dos capítulos.

A obra, que conta com prefácio do professor Sergio Miceli, está dividida em três capítulos. São eles, A Batalha dos Gêneros, focado nas relações nem sempre amistosas entre a sociologia e as disciplinas já consolidadas nos campos intelectuais dos dois países – notadamente com o ensaio, Sociologias Comparadas, momento em que os autores aprofundam a reflexão teórica e descortinam as vinculações temáticas dessa sociologia que emerge, nos dois países, a partir das décadas de 1930 e 1940 e, por fim, Terrenos da Crítica, onde a análise se dirige para as relações desse processo de institucionalização da sociologia com o amadurecimento de uma crítica literária profissional nos dois países.

É importante destacar que, ademais da clareza da divisão dos capítulos, há fios condutores evidentes entre eles, quais sejam: a natureza dinâmica do método que evita comparações estanques, procurando lançar uma luz conjunta aos dois contextos, a relação entre o processo de institucionalização da sociologia com os processos político sociais mais amplos e, não menos importante, a articulação das hipóteses a partir da trajetória do que os autores denominam como os “quatro ases” desses processos: Gino Germani e Adolfo Prieto, no caso argentino, e Florestan Fernandes e Antonio Candido, no caso brasileiro. Detenhamo-nos agora, brevemente, aos desdobramentos da hipótese.

O primeiro capítulo parte da ideia de que os embates pelos quais a sociologia procurou se colocar no rol das instâncias de fala acadêmica autorizada foram, nos dois contextos, distintos, sobretudo no grau desses enfrentamentos. No caso argentino, a existência de uma ampla rede de financiamento privado de revistas e circuitos intelectuais operando à margem de uma Universidade que, embora mais antiga que as brasileiras, esteve permanentemente exposta às intervenções do campo político, contribuiu para uma relação de enfrentamento mais branda em relação às tradições consagradas da tradição intelectual argentina, notadamente o ensaio. Além disso, a composição social argentina das décadas de 1930 a 1950 – com a entrada maciça de imigrantes e o aumento de demandas de inserção da classe média – fomentou uma composição mais diversificada para o recrutamento dos universitários na década de 1950. Essa circunstância favoreceu, na análise dos autores, a emergência da sociologia como voz paralela no campo acadêmico, na medida em que a tônica dos ensaios que circulavam na Argentina nas décadas de 1930 e 1940 – e que eram dominados por autores amplamente lastreados por vinculações pessoais e familiares com o mercado privado de instâncias culturais tradicionais, como cafés e salões – não se propunha a reconstituir os nexos históricos e sociais da formação do país, estando muito mais vinculados à chamada “literatura de crise”.3 Comparativamente, o caso brasileiro apresenta um panorama distinto. Nesse caso, o processo de institucionalização dos estudos sociológicos é confrontado com um campo literário consolidado, desde meados do Segundo Império, em torno do romance. Nesse campo já bastante articulado, a relação estreita entre essa tradição romancista e os ensaístas dos “estudos sociais” brasileiros, como Gilberto Freyre e Sergio Buarque de Hollanda, promoveu uma configuração salutar: na medida em que as propostas sociológicas desenvolvidas na USP e na ELSP confrontaram-se em termos metodológicos de forma mais dura que em relação ao caso argentino, o fato de esses literatos pertencerem a uma larga tradição de vinculação burocrática e institucional, leva a uma flagrante continuidade nos temas, pelo menos até a década de 1950.4 Em suma, o problema da “formação da nação” marca essa confluência de temas, muito embora a “forma” literária fosse questionada pelo projeto empírico que se gestava nas instituições de sociologia de São Paulo.

No segundo capítulo, uma pergunta inicial aglutina e justifica as digressões teórico-metodológicas que se seguem. Precisamente, como explicar, apesar das diferenças sugeridas no capítulo anterior, o aparecimento de empreendimentos intelectuais tão bem sucedidos, como os de Gino Germani, no caso argentino, e de Florestan Fernandes, no caso brasileiro? A resposta passa por uma análise da questão estrutural das Universidades em que operam esses agentes. A partir de um histórico da formação das três instituições centrais da análise, quais sejam, a Faculdad de Filosofia y Letras da UBA (1896), a Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da USP (1934) e a Escola Livre de Sociologia e Política (1933), o cotejamento dos autores se direciona a pensar de que forma as condições institucionais desses três centros viabilizaram, oportunizaram ou dificultaram um projeto acadêmico bastante ambicioso que une dois “ases” desse processo: Gino Germani e Florestan Fernandes. Na análise comparada, chegam à conclusão de que enquanto Florestan operava a partir de uma tradição mais consolidada e de uma ampla rede de apoiadores (formada, o que não é destituído de importância, por sumidades como D. Pierson e R. Bastide), Germani não conta com essa retaguarda, tampouco com um capital cultural acadêmico comparável ao brasileiro. Sinteticamente, “o brasileiro caminhou da ciência à política, o argentino trilhou o caminho inverno” (161).

Essa condição é fundamental pois é a partir das respectivas tradições intelectuais e institucionais em que se inseriram que os sociólogos desenvolvem suas estratégias de legitimação no espaço público. As Universidades argentinas, como apontado anteriormente, sofreram com longas intervenções – especialmente, a Universidade de Buenos Aires. Posto isso, os espaços acadêmicos atuaram como peça fundamental no acumulo de capital cultural dos intelectuais argentinos, motivo pelo qual a relação do mundo intelectual com o mundo político é comparativamente mais permeada por tensões e oscilações. No caso brasileiro, onde o Estado foi o grande empregador dos “homens de letras” ao longo de toda a primeira metade do século XX, a estrutura universitária era substancialmente mais rígida, o que torna os empreendimentos da sociologia mais orgânicos institucionalmente e, ao mesmo tempo, mais heterônomos em relação à tradição intelectual já estabelecida.

Já postas, dessa forma, as vicissitudes do processo inicial de enfrentamento da sociologia e constituição como uma disciplina autônoma nos dois países, e já balizados seus principais articuladores teóricos em confluência com as questões institucionais, passa-se para o capítulo final, Terrenos da Crítica. Nesse momento da análise a sociologia desponta, enquanto disciplina institucionalizada e em vias de especialização, enquanto legitimadora de uma série de prestígios acadêmicos, relações fundadas tanto no projeto teóricoepistemológico desenvolvido nos dois contextos, quanto nas trajetórias de seus dois protagonistas, que dão uma medida da posição de destaque que a sociologia ocupou, nos dois países, em relação a outras disciplinas do campo acadêmico.

Embora a esta altura já esteja claro que os embates da sociologia para estabelecer-se enquanto disciplina autônoma foram gradualmente distintos nos dois países, a tensão que se observa entre essas perspectivas sociológicas ascendentes e o campo da crítica literária é um fator em comum em ambos os contextos. Em síntese, “nos dois casos e quase ao mesmo tempo a crítica literária aproximou-se da sociologia, esforçando-se por obter um estatuto mais científico do que detinha até, aproximadamente, a primeira metade do século XX” (pg.

167). Como explicar, no entanto, esse movimento compartilhado? Para encontrar essa resposta, Blanco e Jackson trazem mais dois “ases” para o desenvolvimento do argumento: o argentino Adolfo Prieto e o brasileiro Antonio Candido. A análise dessas trajetórias procura levar em conta as tradições intelectuais nas quais se plasmam e, especificamente, as formas de inscrição institucional da crítica literária nos dois países. Salientando a relação díspar dos dois autores em relação ao polo central, representado então pela sociologia, os autores historicizam essas trajetórias cuidadosamente, considerando aspectos às vezes tidos como marginais, como a repercussão das publicações periódicas na definição de um espaço de autonomia para a crítica literária. Ao fim e ao cabo, a posição marginal do crítico literário Adolfo Prieto – atuante em universidades marginais da Argentina – e a posição central de Candido – ligado originalmente ao grupo de Florestan Fernandes na USP – contribuem para entender as disputas epistemológicas travadas por eles dentro de um quadro mais amplo, constituído em função da estrutura dos campos intelectuais em que se inseriram.

Nesse sentido, para dimensionar o impacto da sociologia na Crítica Literária é fundamental ter em vista que o método empírico, repertório teórico e epistemológico que une os projetos de Germani e de Florestan, logrou tornar-se, nas décadas de 1950 e 1960, o próprio paradigma através do qual deveriam se legitimar as análises sobre a modernização nos dois países. Dessa forma, observar de que forma os críticos literários foram confrontados com esse critério de validação, e de que forma se apropriaram do mesmo, é, indiretamente, perscrutar a circulação acadêmica do projeto sociológico, considerando suas distinções mas entendendo-o, como está suposto na proposta da obra, sob o mesmo foco de luz comparativo.

Os capítulos, como pretendemos demonstrar, abordam as tradições intelectuais dos dois países, as vicissitudes das organizações acadêmicas do Brasil e da Argentina e, por fim, as trajetórias dos “quatro ases” a partir de uma perspectiva comparada. A defesa do método, contudo, não é apenas um artifício narrativo, mas constitui o centro da hipótese, e perpassa os capítulos de forma sincrônica, conferindo a eles uma perspectiva contingente, atenta aos perigos de naturalizar determinadas relações entre sujeitos e objetos de pesquisa.

Consideramos, nesse sentido, que a contribuição do livro passa pela consideração das estratégias dos discursos científicos, acadêmicos, intelectuais, enquanto constituintes das dinâmicas de prestígio que organizam as relações entre as disciplinas. Dessa forma, é nessa trincheira entre auto-referenciamento disciplinar e cooperação metodológica que o livro ganha relevância, também, para historiadores.

Entender a disputas entre sociólogos, ensaístas e críticos literários – admitindo, quando é o caso, suas continuidades – em termos de estratégia de legitimação específicas pode indicar, no campo da história, um caminho de auto-reflexidade importante: assim como os “ases” do baralho em que se movem os sujeitos da pesquisa oscilam nas posições dentro do campo, as fronteiras disciplinares não respondem, somente, à discordâncias epistemológicas: são organizadoras do campo e, como tal, exigem, permanentemente, a “vigilância epistemológica” sugerida por Pierre Bourdieu.5 Não se trata, dessa forma, de obscurecer especificidades, mas de abrir-se ao diálogo, de abrir-se a um esforço conjunto de entendimento do mundo intelectual.

Notas

1 Além de uma série de artigos sobre a recepção de autores como Weber e Simmel na Argentina, é possível consultar, também, Razón y Modernidad, publicado em 2006 pela Editora Siglo XXI.

2 No caso de Jackson é possível consultar, além de seus estudos sobre a chamada Escola Paulista de Sociologia, a obra Os Parceiros do rio Bonito e a Sociologia de Antônio Cândido, publicado pela Editora da UFMG em 2002.

3 Esse é um dado importante para compreender os embates dentro do campo intelectual argentino, na medida em que, nesse caso, dá-se uma separação entre o campo acadêmico universitário (mais diretamente influenciado pelas hecatombes políticas das décadas de 1930 e de 1940) e uma longa e consolidada tradição de circulação de ideias e intelectuais nos ambitos privados, restritos às sociabilidades criollas. Exemplo dessa condição é o próprio CLES (Colégio Livre de Estudos Superiores) que atua – nos momentos de intervenção peronista na Universidade – como alternativa aos intelectuais que tiveram suas cátedras caçadas durante o regime. A existência e a força dessas plataformas de consagração acadêmica extra-universitárias, portanto, contribui para que a sociologia que emerge dentro do mundo acadêmico, na década de 1950, não dispute a mesma posição no campo intelectual. É um contraste bastante marcado em relação ao caso brasileiro, onde a tradição literária esteve, desde sua origem, vinculada às instituições acadêmicas, tanto por seu público como pela trajetória de seus principais autores.

4 Os autores levam em conta, nessa análise comparativa, que enquanto Buenos Aires era o grande centro da vida intelectual argentina, centralizando a maior parte desses embates, o caso brasileiro apresenta um outro fator de complexidade: as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro vivenciaram processos radicalmente distintos. Enquanto na primeira, pela questão da imigração e da relativa distância dos centros políticos de decisão, foi possível pensar a sociologia enquanto um projeto de cunho científico, no caso carioca a precoce criação de institutos ligados ao poder governamental tornou os embates mais imbuídos de conteúdo político. Essa relação é perene ao longo de todos os capítulos do livro, na medida em que se, em certos sentidos, Buenos Aires aparece em relação de similitude com o Rio de Janeiro – pela proximidade do poder e pelas redes de burocracia oficiais que se constituíam num fator dificultador da economia -, em termos de base de recrutamento e de projeto teórico e metodológico, a capital portenha possuía paralelos importantes com a cidade de São Paulo.

5 BOURDIEU, P. Meditações Pascalianas. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 2001.

Alexandra Dias Ferraz Tedesco – Mestre em história pela UNESP, campus de Franca, e doutoranda do programa de Pós Graduação em História da UNICAMP, bolsista do CNPq.

Pierre Nora- homo historicus – DOSSE (RBH)

DOSSE, François. Pierre Nora- homo historicus. Paris: Perrin, 2011. 660p. Resenha de: SILVA, Helenice Rodrigues da. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.31, n.61, 2011.

Dando sequência ao gênero de ‘biografia intelectual’ de autores franceses que marcaram a segunda metade do século XX (Michel de Certeau, Paul Ricoeur, Gilles Deleuze/Félix Guattari), François Dosse completa um extenso trabalho sobre Pierre Nora. Figura singular no espaço intelectual francês, esse autor atravessa, de maneira discreta e silenciosa, diferentes domínios de produção e difusão (literatura, jornalismo, edição e ensino) nestes últimos 50 anos.

Conhecido pelos historiadores como um dos coordenadores (com Jacques Le Goff) de “Fazer a história” e o idealizador dos “lugares da memória”, Pierre Nora é, sobretudo, visto como o editor da maison Gallimard e o criador da famosa “Bibliothèque des sciences humaines”. Nessa coleção, a ‘nata’ da intelligentsia francesa e estrangeira (Michel Foucault, Georges Dumézil, Émile Benveniste, entre tantos outros) promove, nas décadas de 1960 e 1970, “os anos dourados das ciências humanas”.

Professor universitário (assistente na École des Hautes Études en Sciences Sociales e no Institut d’Études Politiques, nas décadas de 1970 e 1980), idealizador de diferentes coleções de ciências humanas (inicialmente na editora Julliard, em seguida na Gallimard), fundador (com Marcel Gauchet), em 1980, da revista Le Débat (importante mídia intelectual ancorada na crítica de ideias e nas análises da atualidade), imortal (eleito para a Académie Française em 2002), Pierre Nora ocupa ainda uma posição de destaque nos debates atuais da Cité (esfera pública) no que diz respeito, notadamente, aos imbróglios da memória, da história e do patrimônio francês.

No entanto, autor de um único livro, publicado durante a guerra da Argélia, Les Français d’Algérie, e de numerosos artigos (jamais agrupados) sobre história do presente e epistemologia da história, Pierre Nora encarna o intelectual solitário, o escritor de talento que duvida do caminho a seguir, e que se sente incapacitado para edificar uma obra individual.

Ao longo de um trabalho denso e detalhado, graças, notadamente, a uma extensa documentação do arquivo pessoal do biografado, François Dosse reconstitui os diversos itinerários desse historiador, buscando entender o enigma do acadêmico ‘fora da norma’. Como bem mostra a biografia, o paradoxo de Nora, editor de grandes livros em todas as disciplinas – da linguística à economia, da antropologia à história, da filosofia à política – residiria na sua impossibilidade de se afirmar como autor de uma obra.

Sensível à recepção de novas ideias, Pierre Nora publica, desde a década de 1960, textos até então inéditos e originais, produzidos na França e no estrangeiro. De As palavras e as coisas, de Michel Foucault, a Montaillou, povoado occitâneo, de Leroy Ladurie (300 mil exemplares vendidos), Pierre Nora, na Gallimard, lança os best sellers das ciências humanas e sociais. No entanto, duas obras de peso que marcaram seu tempo constituíram exceções. Tristes trópicos, de Lévi-Strauss, e A era dos extremos, de Eric Hobsbawm, foram recusados pela editora.

Ora, como explicar a trajetória de um autor sem obra, mas que parece ter feito de sua existência sua própria obra? Tal interrogação constitui um ‘desafio biográfico’ (título de um dos livros de François Dosse). Pierre Nora seria mais solícito a ideias de seus autores que à produção de suas próprias ideias. Escritor talentoso, ele teria dito: “os melhores editores são, certamente, escritores reconvertidos, reprimidos, transformados”.

Pautada por sucessos e fracassos, sua trajetória intelectual é reveladora de um Ser em busca permanente de si mesmo. Nora coloca em dúvida seu percurso, critica as normas acadêmicas e recusa fechar-se dentro de uma disciplina. Mas, ao lado de aparentes frustrações e insucessos (os concursos de admissão para a École Normale Supérieure, a renúncia a uma tese já iniciada, a desistência de trabalhos coletivos) encontram-se incontestáveis conquistas. Graças a seu dom de escritor, a sua visão antecipada e a sua incansável curiosidade, Pierre Nora obtém a difícil agrégation em história (concurso para se tornar professor da Educação Nacional), antecipa a criação de novos modelos historiográficos e consegue sobreviver à crise das ciências humanas e sociais, criando, em 1980, uma revista aberta aos debates intelectuais.

Relatar essa ‘aventura intelectual’ solicita, por parte de um bom biógrafo, recursos da psicanálise. François Dosse é, assim, levado a ressaltar uma experiência traumática, vivida pelo jovem Pierre aos 12 anos. De origem judia, totalmente assimilada à República francesa, a família Nora (originalmente Aron, antes do século XIX) se considera, no entanto, “uma família judia mais francesa do que francesa”. Refugiado com os parentes no sul da França, no momento da ocupação alemã, Pierre se salva de uma rafle (uma blitz para prender judeus) organizada pela Gestapo. Nas palavras do biógrafo, esse episódio drástico acrescentará certa inquietação e gravidade a sua existência, marcando-o para sempre.

Na opinião de François Dosse, a lembrança desse acontecimento incidirá, provavelmente, sobre seu trabalho intelectual posterior, levando-o a repensar as categorias da memória e da história: “[Esta] será, incontestavelmente, a contribuição mais decisiva de Pierre Nora à historiografia; a sua singularidade de judeu o leva a valorizar a memória – o Zakhor [‘lembre-se’] -, mas a submete a uma artilharia ininterrupta da crítica à disciplina histórica, à vigilância histórica”.

Outras pistas que podem explicar suas escolhas ou suas recusas são recenseadas: o autoritarismo do pai, o sucesso de um irmão mais velho (aluno brilhante na prestigiosa École Nationale d’Administration – ENA, alto funcionário das finanças e conselheiro de Mendès France, presidente do conselho de ministros da IV República), a paixão inicial pela literatura e poesia, o espírito crítico em relação à retórica e à filosofia ensinadas na juventude. Este último aspecto justificaria seu triplo fracasso no concurso de admissão para a École Normale Supérieure. Destinada aos futuros filósofos, a ENS constitui um dos ‘lugares de passagem’ da elite intelectual e ‘republicana parisiense’.

No entanto, a escrita de Les Français d’Algérie (1961) despertará seu interesse pelos arquivos. Nora idealiza, ainda na editora Julliard, o lançamento de uma coleção de bolso que apresentaria aos leitores a integralidade dos arquivos, acompanhados de comentários por parte de especialistas. Intitulada “Archives”, essa coleção, publicada em 1964, parece renovar a disciplina história. Seu projeto de lançamento de novas coleções, desta vez na editora Gallimard, se concretizaria na “Bibliothèque des sciences humaines”, na “Bibliothèque des histoires” e na coleção “Témoins”.

Seus sucessos editoriais, no entanto, o impedem de elaborar seu próprio pensamento. Em carta redigida no final da década de 1960, Edgar Morin demonstra sua inquietude e afirma:

cada vez mais, você encarcera sua primeira personalidade, que penso que é sonhadora, meditativa, afetuosa, plena de curiosidades profundas que vão alhures. Não existe uma solução em vista, mas existe um caminho: cultive sua própria filosofia. Isto não quer dizer: faça uma tese ou um livro, ou ande a cavalo. Isto quer dizer, apenas, que é hora de partir em busca da expressão daquilo que mais conta dentro de você mesmo.

Ora, segundo François Dosse, a grande obra na vida de Pierre Nora realizar-se-á através de sua ligação íntima com a França, por intermédio dos ‘lugares da memória’; ele até afirma que um ‘momento Nora’, semelhante a um ‘momento Michelet’ e a um ‘momento Lavisse’, marcará a historiografia francesa.

Esse empreendimento ‘memorial’, coordenado por Pierre Nora, tem por origem seu seminário sobre história do presente, na École des Hautes Études en Sciences Sociales, e durará mais de 10 anos, concluído em 1993 com a publicação do último tomo dos “Lugares da memória”. Propondo o retorno ao questionamento sobre a nação mediante a análise dos ‘lugares da memória’ (material, simbólico, funcional), o primeiro tomo consagra-se à “República” (1 volume sobre o século XIX), o segundo (3 volumes) à “Nação” (a partir da Idade Média), e o terceiro (3 volumes) às “Franças” (les France).

Trabalho historiográfico e epistemológico notável na trajetória intelectual de Nora, esse ‘empreendimento’ ocupa um espaço central em sua biografia. No capítulo intitulado “A fábrica dos lugares da memória”, François Dosse descreve a confecção dessa produção historiográfica lembrando que, nas décadas de 1980 e 1990, a expressão ‘lugares de memória’ passa a integrar a linguagem corrente. Se a noção da memória emerge no território dos historiadores franceses, ela se apresenta como coadjuvante da categoria da história. Através dos ‘lugares da memória’, Pierre Nora fornecerá “uma resposta histórica pessoal a esta situação ‘ambígua’ do intelectual francês judeu; desta [situação] resulta sua relação passional com este monumento editorial”.

No entanto, a partir da década de 1970, a França conhece o ressurgimento das memórias ocultas, reprimidas e recalcadas pela história oficial. Consequentemente, o fenômeno do après coup, do traumatismo, expresso pelos sobreviventes das catástrofes do século XX, modificará sensivelmente a abordagem do passado. Contudo, longe de exprimir a dialética da memória e do esquecimento (da memória coletiva), os ‘lugares da memória’ (responsáveis pelo retorno da questão nacional, por intermédio da memória e da política) se erigem como um estudo do patrimônio francês.

Embora reconhecendo seu valor heurístico, compartilho as críticas emitidas por alguns historiadores franceses (citadas por Dosse). Enquanto patrimônio nacional (simbólico e material), os ‘lugares da memória’ sacralizam a história oficial, os mitos da nação, os lugares de culto. Assim, os sete volumes que formam os três tomos dessa coletânea não deixam de representar um ‘monumento histórico’, uma celebração da história nacional francesa. Voltados à trilogia – a República, a Nação e as Franças – os ‘lugares da memória’, injustificadamente, não levam em conta a análise do passado colonial, ou seja, do império francês e da guerra da Argélia, esquecendo-se dos traumatismos da memória coletiva (o governo de Vichy, a guerra da Argélia e o tráfico de escravos, dentre outros).

Analisar, retrospectivamente, o chamado ‘momento Nora’ nos tempos atuais da vigência do paradigma da global history leva os historiadores a exprimir sérias reservas em relação à matriz histórica do Estado-nação. Além do mais, a noção de ‘identidade nacional’ (intrínseca e explícita a esta obra), que se transformou em uma categoria polêmica e perigosa na França atual, obriga os historiadores a rever as interpretações históricas e historiográficas das décadas anteriores.

Em contrapartida, é de fundamental importância o empreendimento posterior de Pierre Nora para a história intelectual. Criada em 1980, a revista Le Débat (dirigida por Pierre Nora, Marcel Gauchet e Krzysztof Pomian) se propõe a repensar novos modelos intelectuais e/ou ‘a mudança de paradigmas’ nas ciências humanas. Aberta à inovação, à reflexão, às contribuições estrangeiras e, sobretudo, à heterogeneidade das ideias, ela se instala na paisagem intelectual como uma referência obrigatória.

“A palavra-chave para caracterizar Le Débat é a abertura, uma vontade de descompartimentalização, de romper as fronteiras, tanto disciplinares como nacionais.” Ao longo dos 30 anos de sua existência, o espírito de renovação e a sensibilidade em relação às mutações históricas e intelectuais do momento da revista permanecem atuais.

Conjugando história do intelectual, história intelectual e história da historiografia francesa (dos últimos 50 anos), este estudo biográfico oferece ao leitor um estimulante percurso através das ideias. Abordando diferentes cenários – instituições, pessoas, obras e redes sociais -, François Dosse reconstitui tensões políticas e intelectuais, debates ideológicos, modelos de análise etc. através do percurso original de um discreto ‘aristocrata de esquerda’..

Helenice Rodrigues da Silva Silva – Professora Associada, Universidade Federal do Paraná. Rua General Carneiro, 460. 80060-150 Curitiba – PR – Brasil. E-mail: [email protected].

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Pequena história dos historiadores | Philippe Tétart

Toda sociedade tem História, mas nem toda sociedade deixa testemunhos e/ou escreve sua história. Na verdade, embora a expressão ‘história vivida’, a existência das sociedades e dos homens no tempo, seja comum a todas as civilizações conhecidas (ou não), a ‘história conhecimento’, ou mais precisamente, a interpretação daquele agir humano, refere-se apenas àquelas que tiveram a preocupação (política ou cultural) de deixar a posteridade o registro escrito de suas ações, sob a forma fragmentária de documentos (oficiais ou não), ou ainda de interpretações. Evidentemente, desde “tempos imemoriais, a questão da história dos homens e de sua sociedade se coloca” (TÉTART, 2000, p. 7). Mais ainda, para aquelas onde a cultura escrita preponderou sobre a tradição oral. No entanto, a importância de quem deixa o testemunho, sob a forma documental, ou mais caracteristicamente, por meio de uma interpretação (na figura subjetiva do historiador), segundo François Hartog em seu livro O espelho de Heródoto, só teria, de fato, se iniciado na Grécia, no século V antes de Cristo, principalmente com as Histórias de Heródoto, que buscaria “construir um saber fundado nos depoimentos escritos e orais, a fim de reconstituir a cadeia dos acontecimentos históricos e de designar suas causas naturais próximas ou distantes. Inaugura assim a tradição da história factual detalhada – particularmente das guerras” (TÉTART, 2000, p 13), conforme constatará Philippe Tétart. A própria palavra ‘história’, segundo Jacque Le Goff em seu livro História e memória, tal como aparece em todas as línguas românicas ou em inglês, viria do grego antigo historie, em dialeto jônico, que derivaria da raiz indo-européia wid-, weid-, que quer dizer ‘ver’. Daí, segundo ele, o sânscrito vettas, testemunha, e o grego histor, ‘aquele que vê’, seria também ‘aquele que sabe’. E esse é, para ele, o significado que a palavra ‘história’ tinha na obra de Heródoto, de procurar, de informar, de investigar (e, por extensão, de deixar testemunhado aquilo que ‘viu’ ou ‘ouviu’). Leia Mais

Historiadores do Brasil: capítulos de historiografia brasileira | Francisco Iglesias

Livro inédito e póstumo, publicado em 2000, um ano após o falecimento do historiador Francisco Iglésias, Historiadores do Brasil: capítulos da historiografia brasileira ainda representa um manual historiográfico a enriquecer, sobremodo, o ensino e a pesquisa de história. Não obstante às análises historiográficas produzidas nas últimas décadas, que alargaram os horizontes da pesquisa e ressignificaram trabalhos clássicos; o estudo da historiografia brasileira é um campo em aberto, que ainda carece de maior produção bibliográfica, et pour cause ávido por incursões capazes de ampliarem cada vez mais as interpretações há muito consagradas.

Longe de se constituir em um catálogo, o livro expressa, por um lado, o compromisso inequívoco do autor em entender a história do Brasil, o que sempre esteve inseparável do desafio do intelectual de transformá-la; e, por outro, a busca incessante para entender todas as dimensões da historiografia, área que o historiador Francisco Iglésias mais cultivou e refletiu ao longo de sua vida. Leia Mais

Paisagens da história. Como os historiadores mapeiam o passado | John Lewis Gaddis

Resenhista

Diogo da Silva Roiz


Referências desta Resenha

GADDIS, John Lewis. Paisagens da história. Como os historiadores mapeiam o passado. Trad. Marisa Rocha Motta. Rio de Janeiro: Campus, 2003. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Como os historiadores escrevem a história das sociedades passadas? História Debates e Tendências. Passo Fundo, v. 7, n. 1, p. 217-223, jan./jun. 2007. Acesso apenas pelo link original [DR]

Escrita singular: Capistrano de Abreu e Madre Maria José | Virgínia A. Castro Buarque

Resenhista

Paula Virgínia Pinheiro Batista – Universidade Federal do Ceará.

Referências desta Resenha

BUARQUE, Virgínia, A. Castro. Escrita singular: Capistrano de Abreu e Madre Maria José. Fortaleza: Museu do Ceará; Secretaria da Cultura, 2003. Resenha de: BATISTA, Paula Virgínia Pinheiro. Trajetos. Fortaleza, v.4, n. 8, 2006.

Acesso apenas no link original [DR]

Os gregos, os historiadores, a democracia, o grande desvio | Pierre Vidal-Naquet

Resenhista

Pedro Paulo Abreu Funari – Professor Titular de História Antiga, Coordenador-Associado do Núcleo de Estudos Estratégicos, Universidade Estadual de Campinas.

Referências desta Resenha

VIDAL-NAQUET, Pierre. Os gregos, os historiadores, a democracia, o grande desvio. Trad. Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. Resenha de FUNARI, Pedro Paulo A. História Revista. Goiânia, v.10, n.1, 2005.  Acessar publicação original.

Correspondência cordial: Capistrano de Abreu e Guilherme Studart | Eduardo Lúcio Guilherme Amaral

“HÁ MUITO TEMPO DESEJO-LHE ESCREVER…”:

ITINERÁRIOS HISTORIOGRÁFICOS NA ESCRITA DE CARTAS

Poucas figuras proeminentes do cenário intelectual brasileiro no séc. XIX tiveram sua imagem pública tão dissecada quanto João Capistrano de Abreu. De fato, as peripécias e infortúnios que cercam a vida deste historiador cearense serviram de matéria a um número vultoso de estudos e publicações. Espírito reservado, temperamento forte, estilo irônico, inteligência aguda, compulsão pela leitura, aversão a homenagens e honrarias, desmazelo nos cuidados com a aparência pessoal são algumas das características que tornaram Capistrano uma fonte quase inexaurível de situações inusitadas, oscilando em movimento pendular, do cômico ao trágico. Durante muito tempo, suas correspondências com amigos, parentes e colegas forneceram uma cornucópia de curiosidades, ensejando a difusão de anedotário que hoje praticamente se funde à personalidade do escritor. Leia Mais

A História de Homero a Santo Agostinho | François Hartog

Portanto, assim deve ser para mim o historiador: sem medo, incorruptível, livre, amigo da franqueza e da verdade; como diz o poeta cômico, alguém que chame os figos de figos e a gamela de gamela; alguém que não admita nem omita nada por ódio ou por amizade; que a ninguém poupe, nem respeite, nem humilhe; que seja juiz equânime, benevolente com todos até o ponto de não dar a um mais que o devido; estrangeiro nos livros, apátrida, autônomo, sem rei, não se preocupando com o que achará este ou aquele, mas dizendo o que se passou.

Esta orientação téorico-metodológica, esta introdução aos estudos históricos, embora tenha semelhança com o postulado estabelecido por Ranke no século XIX, aquele que instruía o historiador a “mostrar como algo realmente aconteceu” (wie es eigentlich gewesen 2), não pertence, no entanto, ao grande historiador alemão. Nem a W. Humboldt, ou a G. Monod, e muito menos a Langlois e Seignobos 3. Esta passagem é uma criação antiga, cuja data remonta ao ano 165 de nossa era, e foi escrita por Luciano de Samósata (119-175 d.C.), autor de numerosos tratados (diálogos, panfletos e sátiras), e da “única obra sobre a história que nos chegou da Antiguidade!”, explica François Hartog, na introdução que faz à coletânea, da qual também é o organizador e comentador, A história de Homero a Santo Agostinho 4. Leia Mais